07.06.2013 Views

Coletânea de Textos - Módulo I - Ministério da Educação

Coletânea de Textos - Módulo I - Ministério da Educação

Coletânea de Textos - Módulo I - Ministério da Educação

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>Coletânea</strong> <strong>de</strong> textos


<strong>Coletânea</strong> <strong>de</strong> textos<br />

módulo 1


MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO<br />

Secretaria <strong>de</strong> <strong>Educação</strong> Fun<strong>da</strong>mental<br />

Programa <strong>de</strong> Formação<br />

<strong>de</strong> Professores Alfabetizadores<br />

<strong>Coletânea</strong> <strong>de</strong> textos<br />

módulo 1<br />

Janeiro 2001


M1U1T1-<br />

M1U1T2-<br />

M1U1T3-<br />

M1U1T4-<br />

M1U1T5-<br />

M1U1T6-<br />

M1U2T1-<br />

M1U2T2-<br />

M1U2T3-<br />

M1U2T4-<br />

M1U2T5-<br />

M1U2T6-<br />

M1U2T7-<br />

M1U3T1-<br />

M1U3T2-<br />

M1U3T3-<br />

M1U3T4-<br />

M1U3T5-<br />

M1U3T6-<br />

M1U3T7-<br />

M1U3T8-<br />

M1U3T9-<br />

M1U3T10-<br />

M1U3T11-<br />

M1U3T12-<br />

M1U4T1-<br />

M1U4T2-<br />

M1U4T3-<br />

M1U4T4-<br />

M1U4T5-<br />

M1U4T6-<br />

M1U4T7-<br />

M1U4T8-<br />

M1U4T9-<br />

Apresentação<br />

Introdução<br />

Sumário<br />

Programa <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores Alfabetizadores - Expectativas <strong>de</strong> Aprendizagem<br />

Contribuições do registro escrito<br />

Escrever é preciso! -Equipe Pe<strong>da</strong>gógica do Programa <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores Alfabetizadores<br />

Memórias<br />

Para escrever memórias pessoais sobre a alfabetização<br />

Trajetória profissional <strong>da</strong>s professoras do Grupo-Referência e caracterização <strong>da</strong>s<br />

turmas <strong>de</strong> alunos<br />

Cem anos <strong>de</strong> perdão - Clarice Lispector<br />

Memória <strong>de</strong> livros - João Ubaldo Ribeiro<br />

Finá <strong>de</strong> ato - Anônimo<br />

Recomen<strong>da</strong>ções a uma professora iniciante<br />

Idéias, concepções e teorias que sustentam a prática <strong>de</strong> qualquer professor,<br />

mesmo quando ele não tem consciência <strong>de</strong>las - Telma Weisz<br />

Elaborando um mapa textual<br />

Mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> ensino e aprendizagem<br />

Píramo e Tisbe - Ovídio<br />

A história dos livros<br />

Assombrações <strong>de</strong> agosto - Gabriel García Márquez<br />

Amostras <strong>de</strong> escrita para análise - Ricardo e Antonio<br />

Como se apren<strong>de</strong> a ler e escrever ou, prontidão, um problema mal colocado -<br />

Telma Weisz<br />

Minha estação <strong>de</strong> mar - Domingos Pellegrini Jr.<br />

Darcy Ribeiro<br />

Eros e Psique - Fernando Pessoa<br />

Amostras <strong>de</strong> escrita para análise<br />

Contribuições à prática pe<strong>da</strong>gógica - 1<br />

Consi<strong>de</strong>rações sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do Programa Escrever para Apren<strong>de</strong>r<br />

Leitura orienta<strong>da</strong> do texto:“Como se apren<strong>de</strong> a ler e escrever ou, prontidão, um<br />

problema mal colocado”<br />

Morte e vi<strong>da</strong> Severina - João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto<br />

Um eterno principiante<br />

Aeroporto - Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Existe vi<strong>da</strong> inteligente no período pré-silábico? - Telma Weisz<br />

Por que e como saber o que sabem os alunos<br />

Direitos imprescritíveis do leitor - Daniel Pennac<br />

Da utili<strong>da</strong><strong>de</strong> dos animais - Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Maria Angula - Conto <strong>da</strong> tradição oral equatoriana<br />

Contribuições à prática pe<strong>da</strong>gógica - 2


M1U5T1-<br />

M1U5T2-<br />

M1U5T3-<br />

M1U5T4-<br />

M1U5T5-<br />

M1U5T6-<br />

M1U6T1-<br />

M1U6T2-<br />

M1U6T3-<br />

M1U6T4-<br />

M1U6T5-<br />

M1U6T6-<br />

M1U6T7-<br />

M1U7T1-<br />

M1U7T2-<br />

M1U7T3-<br />

M1U7T4-<br />

M1U7T5-<br />

M1U7T6-<br />

M1U7T7-<br />

M1U7T8-<br />

M1U7T9-<br />

M1U8T1-<br />

M1U8T2-<br />

M1U8T3-<br />

M1U8T4-<br />

M1U8T5-<br />

M1U8T6-<br />

M1U9T1-<br />

M1U9T2-<br />

M1U9T3-<br />

M1U9T4-<br />

M1U9T5-<br />

M1U9T6-<br />

M1U9T7-<br />

M1U9T8-<br />

M1U9T9-<br />

M1U9T10-<br />

M1U9T11-<br />

M1U9T12-<br />

M1U9T13-<br />

O primeiro beijo - Clarice Lispector<br />

O artista inconfessável - João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto<br />

500 anos <strong>de</strong> Brasil - José Francisco Borges<br />

Aspectos que <strong>de</strong>terminam uma boa situação <strong>de</strong> aprendizagem.<br />

Roteiro para planejamento <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Evolução <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong> aluna Maiara<br />

Ítaca - Kaváfis<br />

As longas colheres - História <strong>de</strong> tradição Sufi<br />

Vó caiu na piscina - Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

O que está escrito e o que se po<strong>de</strong> ler: a interpretação <strong>de</strong> um<br />

texto associado a uma imagem - Telma Weisz<br />

O que está escrito e o que se po<strong>de</strong> ler: as relações entre<br />

o texto, como totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e suas partes - Telma Weisz<br />

Entrevistando um professor<br />

Orientação <strong>de</strong> leitura dos textos M1U6T4 e M1U6T5<br />

A linha mágica - len<strong>da</strong> francesa<br />

Texto sem título iniciado por “Um jornal é melhor…”<br />

Consi<strong>de</strong>rações sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do programa Ler para apren<strong>de</strong>r.<br />

Cabo-<strong>de</strong>-guerra<br />

Texto em alemão 1<br />

Texto em alemão 2<br />

Alfabetização - Parâmetros Curriculares Nacionais<br />

Para ensinar a ler - Rosaura Soligo<br />

Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro ou falso?<br />

Lixo - Luís Fernando Veríssimo<br />

Colhendo os frutos <strong>da</strong> glória - João Ubaldo Ribeiro<br />

Zumbi<br />

Planejamento e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura<br />

Contribuições à prática pe<strong>da</strong>gógica - 3<br />

Aspectos que <strong>de</strong>terminam uma boa situação <strong>de</strong> aprendizagem (leitura)<br />

Concertos <strong>de</strong> leitura - Rubem Alves<br />

Isadora Duncan<br />

Felici<strong>da</strong><strong>de</strong> clan<strong>de</strong>stina - Clarice Lispector<br />

Alfabetização e ensino <strong>da</strong> língua<br />

Entrevistando Caetano Veloso<br />

Um apólogo - Machado <strong>de</strong> Assis<br />

Poema em linha reta - Álvaro <strong>de</strong> Campos<br />

Baleia - Graciliano Ramos<br />

Transcrição dos textos “A menina do chapéu ver<strong>de</strong>” e “Os gatinhos”<br />

A menina do chapéu ver<strong>de</strong><br />

Os gatinhos<br />

Proposta didática <strong>de</strong> alfabetização<br />

O papel do professor - Frank Smith


M1U10T1-<br />

M1U10T2-<br />

M1U10T3-<br />

M1U10T4-<br />

M1U10T5-<br />

M1U10T6-<br />

M1U11T1-<br />

M1U11T2-<br />

M1U11T3-<br />

M1U11T4-<br />

M1U11T5-<br />

Apren<strong>de</strong>r nunca é o que se espera!<br />

A moça tecelã - Marina Colasanti<br />

Língua - Caetano Veloso<br />

Quando o planejamento faz a diferença<br />

Contribuições à prática pe<strong>da</strong>gógica - 5<br />

Planejar é preciso - Rosa Maria Antunes <strong>de</strong> Barros<br />

Conto <strong>de</strong> verão n.º 2: ban<strong>de</strong>ira branca - Luís Fernando Veríssimo<br />

Para Maria <strong>da</strong> Graça - Paulo Men<strong>de</strong>s Campos<br />

Uma noite no paraíso - Ítalo Calvino<br />

Sobre a avaliação<br />

Descrição <strong>da</strong> proposta <strong>de</strong> avaliação


Caro professor cursista<br />

Apresentação<br />

Esta <strong>Coletânea</strong> <strong>de</strong> <strong>Textos</strong> é um importante subsídio à sua formação como cursista do Programa<br />

<strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores Alfabetizadores. Embora os materiais tenham um valor muito inferior<br />

ao uso que proporcionam, seguramente, se não houver materiais, não haverá qualquer possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> uso… Por isso, a Equipe Pe<strong>da</strong>gógica <strong>de</strong>sse Programa organizou um acervo <strong>de</strong> textos, para <strong>da</strong>r<br />

suporte ao trabalho proposto no <strong>Módulo</strong> 1 do Curso, que <strong>de</strong>verá ser organizado em seu Fichário,<br />

juntamente com o Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Registro.<br />

Você receberá os textos progressivamente, <strong>de</strong> acordo com seu significado para as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

propostas. A parceria que o <strong>Ministério</strong> <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> estabelece com to<strong>da</strong> instituição interessa<strong>da</strong><br />

em implementar o Programa <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores Alfabetizadores pressupõe o<br />

compromisso <strong>de</strong>ssa instituição em reproduzir os textos, <strong>de</strong> forma que ca<strong>da</strong> cursista possa<br />

compor o seu material <strong>de</strong> leitura, estudo e consulta.<br />

Nosso compromisso é oferecer oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s para que você leia muitos textos literários, muitos<br />

textos <strong>de</strong> aprofun<strong>da</strong>mento, muitos materiais <strong>de</strong> subsídio à sua prática educativa. Não apenas<br />

estes, <strong>da</strong> <strong>Coletânea</strong>, mas muitos outros que po<strong>de</strong>m ampliar o seu horizonte cultural e o seu<br />

repertório <strong>de</strong> conhecimento pe<strong>da</strong>gógico.<br />

Os Parâmetros e os Referenciais Curriculares Nacionais, os Ca<strong>de</strong>rnos <strong>da</strong> TV Escola e os livros<br />

que compõem o acervo do Programa Nacional Biblioteca na Escola, são alguns dos materiais<br />

que o <strong>Ministério</strong> <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> tem colocado à disposição <strong>da</strong>s escolas públicas brasileiras e,<br />

conseqüentemente, dos educadores. Mas há muitas outras obras importantes, que todo educador<br />

tem o direito e a obrigação <strong>de</strong> conhecer. Por isso, as instituições que implementam o Programa<br />

<strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores Alfabetizadores <strong>de</strong>vem organizar um acervo <strong>de</strong> consulta e empréstimo<br />

para todos os formadores e professores cursistas.<br />

Organize os seus textos, aproveite o melhor que pu<strong>de</strong>r essas leituras, registre e compartilhe suas<br />

experiências e mantenha aquecido o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r ca<strong>da</strong> vez mais a ensinar aos seus alunos.<br />

A quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> educação brasileira <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> muito <strong>de</strong> você!<br />

Secretaria <strong>de</strong> <strong>Educação</strong> Fun<strong>da</strong>mental


Introdução<br />

Um senhor toma o ônibus <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> comprar o jornal e o pôs embaixo do braço.<br />

Meia hora mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sce com o mesmo jornal sob o mesmo braço.<br />

Mas já não é o mesmo jornal, agora é um monte <strong>de</strong> folhas impressas<br />

que o senhor abandona num banco <strong>de</strong> uma praça.<br />

Apenas fica só no banco, o monte <strong>de</strong> folhas se torna outra vez um jornal,<br />

até que um rapaz o vê, o lê, e o <strong>de</strong>ixa convertido em um monte <strong>de</strong> folhas impressas.<br />

Apenas fica só no banco, o monte <strong>de</strong> folhas se torna outra vez um jornal,<br />

até que uma velha o encontra, o lê e o <strong>de</strong>ixa convertido<br />

em um monte <strong>de</strong> folhas impressas.<br />

Depois o leva para sua casa e no caminho o usa para enrolar meio quilo <strong>de</strong> acelgas,<br />

que é para o que servem os jornais <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>stas excitantes metamorfoses.<br />

Júlio Cortázar<br />

(In Histórias <strong>de</strong> cronópios e <strong>de</strong> famas)<br />

Todo material tem o valor que lhe é conferido pelo uso que <strong>de</strong>le se faz. Um texto é apenas uma porção<br />

<strong>de</strong> letras impressas, até que o leitor se aproprie do que ele diz e, então, dê alma às letras fazendo-as texto<br />

<strong>de</strong> fato. De certa forma, apropriar-se do texto do outro é torná-lo seu, é fazê-lo próprio também.<br />

O objetivo <strong>de</strong>sta <strong>Coletânea</strong> <strong>de</strong> <strong>Textos</strong> é subsidiar todo professor cursista em sua trajetória <strong>de</strong><br />

formação, para que seja um alfabetizador ca<strong>da</strong> vez mais competente e semeie leitura e escrita<br />

pelas escolas <strong>de</strong>ste país. Os textos lidos pelo formador nos momentos <strong>de</strong> Leitura Compartilha<strong>da</strong>,<br />

os textos expositivos que aprofun<strong>da</strong>m os conteúdos trabalhados no Curso, os textos que ca<strong>da</strong><br />

professor avalia terem quali<strong>da</strong><strong>de</strong> suficiente para serem socializados com os companheiros do grupo,<br />

os próprios textos... todos têm lugar no Fichário, que abriga a <strong>Coletânea</strong> e o Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Registro.<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong>s competências profissionais dos educadores passa necessariamente pela<br />

ampliação do universo <strong>de</strong> conhecimentos e pela reflexão sobre a prática. Portanto, o Fichário po<strong>de</strong><br />

progressivamente se tornar um aliado nesse processo: por meio dos textos lidos e do registro<br />

escrito, é possível não só apren<strong>de</strong>r mais sobre os conteúdos <strong>da</strong> formação e analisar criticamente a<br />

prática profissional,mas também ampliar as capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura e escrita,<strong>de</strong> interpretação e expressão.<br />

Em seu livro 40 escritos, (Editora Iluminuras, 2000) Arnaldo Antunes diz algo que traduz a certeza<br />

– que também temos – <strong>de</strong> que ca<strong>da</strong> texto é único: "A frase que eu digo não será a mesma<br />

frase se sair <strong>da</strong> sua boca. Ou se eu a disser <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um período. Ou com outra or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />

palavras. Ou se houver uma trilha sonora ao fundo. Ou se mu<strong>da</strong>rmos a trilha sonora. Ou se ela<br />

for escrita numa letra trêmula. Ou em tipo composto num jornal. Ou como letreiro <strong>de</strong> uma loja.<br />

Ou se dita só para testar o eco <strong>de</strong>sta sala. Ou se for mentira. Ou se tiver uma platéia escutando."<br />

Também ca<strong>da</strong> leitura é única, singular... e o <strong>de</strong>safio é compartilhá-la, torná-la acessível ao outro e<br />

fazê-lo enten<strong>de</strong>r nosso ponto <strong>de</strong> vista. Afinal, a eficácia <strong>da</strong> comunicação está na aproximação<br />

máxima entre o que se pretendia dizer, o que efetivamente se disse e o que é compreendido.<br />

Esperamos que todos os professores cursistas não só leiam muitos textos e <strong>de</strong>les se apropriem,<br />

mas que produzam os seus próprios, para que muitos outros leiam. Conquistando ca<strong>da</strong> vez mais<br />

essa aproximação entre o dito e o compreendido.<br />

Equipe Pe<strong>da</strong>gógica do Programa <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores Alfabetizadores


Programa <strong>de</strong> Formação<br />

<strong>de</strong> Professores Alfabetizadores –<br />

Expectativas <strong>de</strong> aprendizagem<br />

Para que os alunos possam ter assegurado seu direito <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a ler e escrever, é preciso que<br />

todo professor que alfabetiza crianças, jovens e adultos <strong>de</strong>senvolva as competências profissionais<br />

abaixo relaciona<strong>da</strong>s. Portanto, o Programa <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores Alfabetizadores tem<br />

como expectativas <strong>de</strong> aprendizagem que seus participantes se tornem progressivamente capazes <strong>de</strong>:<br />

• Encarar os alunos como pessoas que precisam ter sucesso em suas aprendizagens para se<br />

<strong>de</strong>senvolverem pessoalmente e para terem uma imagem positiva <strong>de</strong> si mesmos, orientando-se<br />

por esse pressuposto.<br />

• Desenvolver um trabalho <strong>de</strong> alfabetização a<strong>de</strong>quado às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem dos<br />

alunos, acreditando que todos são capazes <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r.<br />

• Reconhecer-se como mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> referência para os alunos: como leitor, como usuário <strong>da</strong> escrita<br />

e como parceiro durante as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

• Utilizar o conhecimento disponível sobre os processos <strong>de</strong> aprendizagem dos quais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> a<br />

alfabetização para planejar as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura e escrita.<br />

• Observar o <strong>de</strong>sempenho dos alunos durante as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, bem como as suas interações nas<br />

situações <strong>de</strong> parceria, para fazer intervenções pe<strong>da</strong>gógicas a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s.<br />

• Planejar ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> alfabetização <strong>de</strong>safiadoras, consi<strong>de</strong>rando o nível <strong>de</strong> conhecimento<br />

real dos alunos.<br />

• Formar agrupamentos produtivos <strong>de</strong> alunos, consi<strong>de</strong>rando seus conhecimentos e suas<br />

características pessoais.<br />

• Selecionar diferentes tipos <strong>de</strong> texto apropriados para o trabalho.<br />

• Utilizar instrumentos funcionais <strong>de</strong> registro do <strong>de</strong>sempenho e <strong>da</strong> evolução dos alunos, <strong>de</strong><br />

planejamento e <strong>de</strong> documentação do trabalho pe<strong>da</strong>gógico.<br />

• Responsabilizar-se pelos resultados obtidos em relação às aprendizagens dos alunos.<br />

M1U1T1<br />

M1U1T1<br />

1


Expectativas <strong>de</strong> aprendizagem do <strong>Módulo</strong> 1<br />

As propostas <strong>de</strong> formação que integram o <strong>Módulo</strong> 1 do Programa <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores<br />

Alfabetizadores foram organiza<strong>da</strong>s para que todos os professores alfabetizadores possam<br />

progressivamente:<br />

• Conhecer as bases conceituais, os objetivos, os materiais e a natureza <strong>da</strong>s propostas que<br />

compõem o Programa <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores Alfabetizadores, bem como idéias e experiências<br />

<strong>da</strong>s professoras do Grupo-Referência.<br />

• Analisar o percurso pessoal <strong>de</strong> aprendizagem escolar e <strong>de</strong> formação profissional, relacionando-o<br />

com a própria prática pe<strong>da</strong>gógica e atuação <strong>de</strong> professor.<br />

• Monitorar o processo pessoal <strong>de</strong> formação consi<strong>de</strong>rando as expectativas <strong>de</strong> aprendizagem do<br />

módulo e as próprias expectativas.<br />

• Trabalhar coletivamente <strong>de</strong> forma produtiva.<br />

• Intensificar as práticas <strong>de</strong> leitura e escrita, especialmente <strong>de</strong> textos reflexivos.<br />

• Utilizar o registro escrito para documentar o trabalho pe<strong>da</strong>gógico e para refletir sobre a prática<br />

profissional e sobre o processo <strong>de</strong> formação.<br />

• Desenvolver procedimentos produtivos <strong>de</strong> estudo dos textos expositivos que aprofun<strong>da</strong>m os<br />

conteúdos abor<strong>da</strong>dos no Curso.<br />

• Relacionar os conteúdos trabalhados no Curso com a prática pe<strong>da</strong>gógica.<br />

• Enten<strong>de</strong>r o contrato didático como um dos fatores que interferem na compreensão dos papéis e<br />

<strong>da</strong>s relações envolvidos nas situações <strong>de</strong> ensino e aprendizagem, tanto na sala <strong>de</strong> aula como no<br />

grupo <strong>de</strong> formação.<br />

• Conhecer a evolução <strong>da</strong>s concepções e práticas <strong>de</strong> alfabetização que tiveram lugar no Oci<strong>de</strong>nte,<br />

no século XX.<br />

• Aprofun<strong>da</strong>r o conhecimento sobre a natureza <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> alfabetização pauta<strong>da</strong>s na reflexão<br />

sobre a língua e sobre propostas metodológicas <strong>de</strong> resolução <strong>de</strong> problemas.<br />

• Melhorar a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> planejar produtivamente o trabalho pe<strong>da</strong>gógico <strong>de</strong> alfabetização com<br />

textos, compreen<strong>de</strong>ndo como os conceitos <strong>de</strong> alfabetização e letramento se traduzem nas<br />

situações <strong>de</strong> ensino e aprendizagem.<br />

• Aprofun<strong>da</strong>r o conhecimento sobre os processos <strong>de</strong> aprendizagem dos quais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> a alfabetização<br />

e utilizar esse conhecimento para planejar as situações didáticas <strong>de</strong> leitura e escrita.<br />

• Compreen<strong>de</strong>r os procedimentos possíveis/necessários para ler e escrever antes <strong>de</strong> estar<br />

alfabetizado.<br />

M1U1T1<br />

2


• Encarar os alunos como pessoas que precisam ter sucesso em suas aprendizagens para se<br />

<strong>de</strong>senvolver pessoalmente e para ter uma imagem positiva <strong>de</strong> si mesma<br />

• Compreen<strong>de</strong>r que os alunos po<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>vem ser incentivados a ler e escrever antes <strong>de</strong> estar<br />

alfabetizados e que por trás <strong>de</strong>ssa proposta existe uma concepção <strong>de</strong> ensino e aprendizagem.<br />

• Analisar a produção escrita dos alunos, especialmente quando ain<strong>da</strong> não se alfabetizaram.<br />

• Reconhecer que há atos inteligentes por trás <strong>da</strong>s escritas dos alunos que ain<strong>da</strong> não sabem ler<br />

e escrever convencionalmente.<br />

• Formar agrupamentos produtivos <strong>de</strong> alunos, consi<strong>de</strong>rando suas hipóteses <strong>de</strong> escrita e leitura e<br />

suas características pessoais.<br />

• Observar o <strong>de</strong>sempenho dos alunos durante as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, bem como suas interações nas situações<br />

<strong>de</strong> parceria.<br />

• Planejar intervenções pe<strong>da</strong>gógicas a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s.<br />

• Utilizar instrumentos funcionais <strong>de</strong> registro do <strong>de</strong>sempenho e evolução dos alunos, <strong>de</strong> planejamento<br />

e documentação do trabalho pe<strong>da</strong>gógico.<br />

• Reconhecer seu papel <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> referência para os alunos como leitor, como usuário <strong>da</strong><br />

escrita e como parceiro durante as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

• Reconhecer a importância <strong>de</strong> ler diariamente bons textos para os alunos, compreen<strong>de</strong>ndo que<br />

esse tipo <strong>de</strong> prática requer planejamento, critérios <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong> e diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> para a seleção<br />

dos textos e leitura prévia dos mesmos.<br />

• Compreen<strong>de</strong>r que é principalmente por meio <strong>da</strong> leitura (mesmo que escuta<strong>da</strong>) que se apren<strong>de</strong><br />

a linguagem escrita e que isso é condição para produzir textos <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

M1U1T1<br />

3


Contribuições do registro escrito<br />

O Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Registro é o lugar <strong>de</strong>:<br />

• fazer anotações pessoais;<br />

• escrever conclusões <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s;<br />

• documentar as sínteses <strong>da</strong>s discussões;<br />

• avaliar o trabalho <strong>de</strong> formação que está sendo realizado e as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s propostas;<br />

• registrar dúvi<strong>da</strong>s e perguntas que não foram respondi<strong>da</strong>s pela discussão;<br />

• anotar observações sobre os textos lidos;<br />

• realizar tarefas propostas etc.<br />

Por meio do registro escrito, é possível ao formador:<br />

• documentar o trabalho realizado;<br />

• anotar observações sobre o grupo;<br />

• refletir sobre o processo <strong>de</strong> formação que vivencia enquanto formador;<br />

• controlar o <strong>de</strong>senvolvimento do trabalho em função do planejamento;<br />

• anotar dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s e soluções para problemas i<strong>de</strong>ntificados;<br />

• avaliar as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, as uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, os módulos e o Curso;<br />

• ter material <strong>de</strong> consulta para elaborar relatórios <strong>de</strong> trabalho etc.<br />

Por meio do registro escrito, é possível ao Professor:<br />

• documentar os conhecimentos adquiridos, dúvi<strong>da</strong>s, sínteses, relatos <strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica<br />

e questões para discussão coletiva;<br />

• refletir sobre o processo pessoal <strong>de</strong> aprendizagem e sobre a prática pe<strong>da</strong>gógica;<br />

• recuperar o que foi aprendido e projetar novas aprendizagens;<br />

M1U1T2<br />

M1U1T2<br />

1


• dialogar com as próprias representações, modificando-as gra<strong>da</strong>tivamente quando for o caso;<br />

• refletir para buscar explicações e soluções para os problemas didáticos;<br />

• compreen<strong>de</strong>r melhor as questões que se colocam para os alunos, inclusive em relação à<br />

própria escrita;<br />

• documentar e socializar as experiências vivi<strong>da</strong>s;<br />

• criar meios para melhor organizar os estudos;<br />

• fazer anotações <strong>da</strong>s leituras realiza<strong>da</strong>s etc.<br />

M1U1T2<br />

2


Escrever é preciso!<br />

Escrevo porque à medi<strong>da</strong> que escrevo vou me enten<strong>de</strong>ndo<br />

e enten<strong>de</strong>ndo o que quero dizer, entendo o que posso fazer.<br />

Escrevo porque sinto necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

aprofun<strong>da</strong>r as coisas, <strong>de</strong> vê-las como realmente são...<br />

Clarice Lispector<br />

A escrita é um ato difícil. Escritores, compositores, jornalistas, professores e todos os profissionais<br />

que têm na escrita um instrumento <strong>de</strong> trabalho, em geral dizem que "suam a camisa" para redigir<br />

seus textos. Mas dizem também que a satisfação do texto pronto vale o esforço <strong>de</strong> produzi-lo.<br />

Há muitas falsas idéias sobre a escrita.<br />

Há quem pense que os que gostam <strong>de</strong> escrever têm o dom <strong>da</strong>s palavras, e que para estes as<br />

palavras "saem mais fácil". Não é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Escrever não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> dom, mas <strong>de</strong> empenho,<br />

<strong>de</strong>dicação, compromisso, serie<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>sejo e crença na possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ter algo a dizer que vale<br />

a pena. Escrever é um procedimento e, como tal, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> exercitação: o talento <strong>da</strong> escrita<br />

nasce <strong>da</strong> freqüência com que ela é experimenta<strong>da</strong>.<br />

Há quem pense que só os que gostam <strong>de</strong>vem escrever. Não é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.Todos que têm algo a<br />

dizer, que têm o que compartilhar, que precisam documentar o que vivem, que querem refletir<br />

sobre as coisas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e sobre o próprio trabalho, que ensinam a ler e escrever... precisam<br />

escrever. Por isso, nós, professores, precisamos escrever: porque temos o que dizer, porque<br />

temos o que compartilhar, porque precisamos documentar o que vivemos e refletir sobre isso,<br />

e porque ensinamos a escrever – somos profissionais <strong>da</strong> escrita!<br />

Se a escola não nos ensinou a intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a escrita e o gosto por escrever, só nos resta <strong>da</strong>r<br />

a volta por cima, arregaçar as mangas e assumir os riscos: escrever é preciso!<br />

Luís Fernando Veríssimo, escritor talentoso, <strong>de</strong>clara-se um gigolô <strong>da</strong>s palavras e nos incentiva e<br />

aconselha *:<br />

"[…] a linguagem, qualquer linguagem, é um meio <strong>de</strong> comunicação e que <strong>de</strong>ve ser julga<strong>da</strong><br />

exclusivamente como tal. Respeita<strong>da</strong>s algumas regras básicas <strong>da</strong> Gramática, para evitar os<br />

vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis.<br />

[…] Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por exemplo: Dizer "escrever<br />

claro" não é certo mas é claro, certo? O importante é comunicar. (E quando possível<br />

surpreen<strong>de</strong>r, iluminar, divertir, comover...)<br />

*<br />

Extraído <strong>de</strong> O nariz e outras crônicas, Coleção “Para gostar <strong>de</strong> ler”, Editora Ática.<br />

M1U1T3<br />

M1U1T3<br />

1


[…] Minha implicância com a Gramática na certa se <strong>de</strong>ve a minha pouca intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> com<br />

ela. Sempre fui péssimo em Português. Mas […] vejam vocês, a intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a Gramática<br />

é tão dispensável que eu ganho a vi<strong>da</strong> escrevendo, apesar <strong>da</strong> minha total inocência na matéria.<br />

Sou um gigolô <strong>da</strong>s palavras.Vivo às suas custas. E tenho com elas a exemplar conduta <strong>de</strong><br />

um cáften profissional. Abuso <strong>de</strong>las. Só uso as que conheço, as <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>s são perigosas e<br />

potencialmente traiçoeiras. Exijo submissão. Não raro, peço <strong>de</strong>las flexões inomináveis para<br />

satisfazer um gosto passageiro. Maltrato-as, sem dúvi<strong>da</strong>. E jamais me <strong>de</strong>ixo dominar por elas.<br />

Não me meto na sua vi<strong>da</strong> particular. Não me interessa seu passado, suas origens, sua família,<br />

nem o que os outros já fizeram com elas. As palavras, afinal, vivem na boca do povo. São<br />

faladíssimas.Algumas são <strong>de</strong> baixíssimo calão. Não merecem o mínimo respeito.<br />

Um escritor que passasse a respeitar a intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> gramatical <strong>de</strong> suas palavras seria tão ineficiente<br />

quanto um gigolô que se apaixonasse pelo seu plantel. Acabaria tratando-as com a <strong>de</strong>ferência <strong>de</strong><br />

um namorado ou com a tediosa formali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um marido. A palavra seria sua patroa! Com que<br />

cui<strong>da</strong>dos, com que temores e obséquio ele consentiria em sair com elas em público, alvo <strong>da</strong><br />

impiedosa atenção <strong>de</strong> lexicógrafos, etimologistas e colegas. Acabaria impotente, incapaz <strong>de</strong> uma<br />

conjunção.A Gramática precisa apanhar todos os dias para saber “quem é que man<strong>da</strong>."<br />

O Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Registro é para que todos os participantes do Programa <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores<br />

Alfabetizadores possam mostrar "quem é que man<strong>da</strong>" na linguagem escrita, e <strong>de</strong>senvolver o<br />

talento <strong>de</strong> documentar o processo pessoal <strong>de</strong> formação e o talento <strong>de</strong> refletir sobre a prática<br />

com a aju<strong>da</strong> <strong>da</strong> escrita, um po<strong>de</strong>roso recurso nesse sentido.<br />

Este Ca<strong>de</strong>rno será utilizado em todo o Curso e será uma testemunha documental do processo<br />

<strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um. Nele, serão impressas as marcas pessoais que revelam olhares<br />

diferentes em diferentes momentos: impressões, perguntas, comentários, sentimentos, angústias,<br />

orientações, reflexões, teorizações... Prioritário é lembrar que o tempo e o espaço não fazem<br />

parte <strong>de</strong> uma arena imutável, que somos agentes transformadores e que po<strong>de</strong>mos energizar o<br />

Ca<strong>de</strong>rno, gota a gota, como memória nascente.<br />

"Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever."<br />

M1U1T3<br />

2<br />

Clarice Lispector<br />

Equipe Pe<strong>da</strong>gógica do Programa <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores Alfabetizadores


Memórias<br />

M1U1T4<br />

Foi aí que nasci: nasci na sala do terceiro ano, sendo professora Dona Emerenciana Barbosa, que<br />

Deus a tenha. Até então era analfabeto e <strong>de</strong>spretensioso. Lembro-me: nesse dia <strong>de</strong> julho, o sol<br />

que <strong>de</strong>scia <strong>da</strong> serra era bravo e parado. A aula era <strong>de</strong> geografia, e a professora traçava no quadronegro<br />

nomes <strong>de</strong> países distantes. As ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s vinham surgindo na ponte dos nomes, e Paris era<br />

uma torre ao lado <strong>de</strong> uma ponte e <strong>de</strong> um rio, a Inglaterra não se enxergava bem no nevoeiro,<br />

um esquimó, um condor surgiam misteriosamente, trazendo países inteiros. Então, nasci. De<br />

repente nasci, isto é, senti necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever…<br />

Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

E não me esquecer, ao começar o trabalho <strong>de</strong> me preparar para errar.<br />

Não esquecer que o erro muitas vezes se havia tornado o meu caminho.<br />

To<strong>da</strong>s as vezes em que não <strong>da</strong>va certo o que eu pensava ou sentia – é que se fazia enfim uma<br />

brecha, e, se antes eu tivesse tido coragem, já teria entrado por ela. Mas eu sempre tivera medo<br />

do <strong>de</strong>lírio e erro.<br />

Meu erro, no entanto, <strong>de</strong>via ser o caminho <strong>de</strong> uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois quando erro é que saio do<br />

que entendo.<br />

Se a "ver<strong>da</strong><strong>de</strong>" fosse aquilo que posso enten<strong>de</strong>r, terminaria sendo apenas uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> pequena,<br />

do meu caminho.<br />

Clarice Lispector<br />

[…] para ca<strong>da</strong> pessoa há coisas que lhe <strong>de</strong>spertam hábitos mais duradouros que todos os<br />

<strong>de</strong>mais. Neles são forma<strong>da</strong>s as aptidões que se tornam <strong>de</strong>cisivas em sua existência. E, porque, no<br />

que me diz respeito, elas foram a leitura e a escrita, <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coisas com que me envolvi em<br />

meus primeiros anos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, na<strong>da</strong> <strong>de</strong>sperta em mim mais sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s que o jogo <strong>da</strong>s letras.<br />

Continha em pequenas plaquinhas as letras do alfabeto gótico, no qual pareciam mais joviais e<br />

femininas que os caracteres gráficos. Acomo<strong>da</strong>vam-se elegantes no atril inclinado, ca<strong>da</strong> qual<br />

perfeita, e ficavam liga<strong>da</strong>s umas às outras segundo a regra <strong>de</strong> sua or<strong>de</strong>m, que seja, a palavra <strong>da</strong><br />

qual faziam parte como irmãs. […] A sau<strong>da</strong><strong>de</strong> que em mim <strong>de</strong>sperta o jogo <strong>da</strong>s letras prova como<br />

foi parte integrante <strong>de</strong> minha infância. O que busco nele na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é ela mesma: a infância por<br />

inteiro, tal qual a sabia manipular a mão que empurrava as letras no filete, on<strong>de</strong> se or<strong>de</strong>navam<br />

como uma palavra. A mão po<strong>de</strong> ain<strong>da</strong> sonhar com essa manipulação, mas nunca mais po<strong>de</strong>rá<br />

<strong>de</strong>spertar para realizá-la <strong>de</strong> fato. Assim, posso sonhar como no passado aprendi a na<strong>da</strong>r. Mas isso<br />

na<strong>da</strong> adianta. Hoje sei na<strong>da</strong>r; porém, nunca mais po<strong>de</strong>rei tornar a aprendê-lo.<br />

Walter Benjamin<br />

M1U1T4<br />

1


Quando me perguntam, porém, como aprendi a ler, quais os métodos, quais as regras, não posso<br />

respon<strong>de</strong>r porque não guardo a menor lembrança. […]<br />

Des<strong>de</strong> pequenina eu era louca por narrativas, e to<strong>da</strong> quarta-feira chegava em casa o Tico-tico,<br />

revista infantil publica<strong>da</strong> no Rio <strong>de</strong> Janeiro; eu a aguar<strong>da</strong>va ansiosa e folheava para ver as figuras,<br />

até que um dos adultos tivesse um momento para ler-me as histórias. Pois um dia, ao olhar, na<br />

última página, os quadrinhos em que se pavoneavam o loiro Chiquinho, e o pretinho Benjamim,<br />

com o cachorro Jagunço, li o que estava embaixo <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> quadrinho! Muito espanta<strong>da</strong>, corri para<br />

mamãe, que estava costurando à máquina, para quem fiz a extraordinária <strong>de</strong>monstração. Ela não<br />

conseguia acreditar; abriu outra página ao acaso e lá fui tropeçando nas sílabas, lendo enrola<strong>da</strong>mente<br />

as palavras, mas lendo! E quando papai voltou do trabalho, à tar<strong>de</strong>, nova <strong>de</strong>monstração em<br />

páginas ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>s.<br />

Sabia perfeitamente que esta <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong>liciosa, que me livrara <strong>da</strong> espera dos adultos para<br />

conhecer o que estava escrito, era proveniente <strong>da</strong>queles momentos longos e enfadonhos na sala<br />

<strong>de</strong> aula, ouvindo distrai<strong>da</strong>mente ensinamentos que não me eram diretamente en<strong>de</strong>reçados, ou<br />

então fazendo <strong>de</strong>sajeitados rabiscos que a mestra olhava com <strong>de</strong>sânimo. Por que magia tal<br />

acontecera? Mistério! Os dias passados na Caetano <strong>de</strong> Campos adquiriram então outro sentido,<br />

outro atrativo.Talvez proviesse do saber ler, esse achado mirabolante, a predileção que <strong>de</strong>senvolvi<br />

a partir <strong>de</strong> então pelo brincar <strong>de</strong> escola, que eu propunha incansavelmente a irmãos e primos –<br />

os alunos, naturalmente! –, que em geral o repeliam com vigor."<br />

Maria Isaura Pereira <strong>de</strong> Queiroz*<br />

No meu primeiro dia na escola, ficou gravado em minha memória, o momento em que cheguei<br />

com meus pais e fui leva<strong>da</strong> para a sala. Estava um alvoroço, tanta gente, adultos falando alto,<br />

crianças chorando. Eu entrei fui apresenta<strong>da</strong> à professora. Era um colégio <strong>de</strong> freiras e a professora<br />

era Sra. Helena.<br />

Meus pais foram embora, fiquei quieta, esqueci<strong>da</strong> em um canto <strong>da</strong> sala, acho até que chorei, me<br />

senti perdi<strong>da</strong>.<br />

Com o tempo não me lembro do processo, mas lembro que me a<strong>da</strong>ptei e guar<strong>de</strong>i algumas<br />

passagens que consi<strong>de</strong>ro pertinentes para o momento. Minha professora dividia a turma em três<br />

colunas: duas filas no canto esquerdo <strong>da</strong> sala ficavam os alunos classe "C" (fracos), no meio os<br />

classe "A" (fortes) e no lado direito os alunos classe "B" (médios). Eu ficava mais na coluna <strong>da</strong><br />

direita, isso ficou tão forte que só consegui me libertar na 8ª série.<br />

Uma outra coisa que me ficou gravado, no final do dia nós fazíamos uma fila com a mão estendi<strong>da</strong><br />

para a professora e ela ia escrevendo um número na nossa mão, representando a nota do dia,<br />

para mostrar aos pais. Quando eu tirava nota baixa, fechava tanto as mãos, suava tanto que<br />

quando papai vinha me buscar o número estava quase apagado. Minha sorte era que meus pais<br />

não se ligavam nessa estratégia <strong>da</strong> irmã.<br />

Tinha um momento do dia em que a Sra. Helena; ia chamando aluno por aluno para ler a cartilha,<br />

até hoje me lembro perfeitamente como ela era.A professora pedia que disséssemos o alfabeto<br />

que estava impresso na contracapa <strong>da</strong> cartilha, para <strong>de</strong>pois passar para as lições.<br />

Porém tem um fato que eu gostava muito, era na hora do recreio. A Irmã ia para o pátio, brincava<br />

<strong>de</strong> ro<strong>da</strong>, <strong>de</strong> estátua, <strong>de</strong> bola, era uma farra, essa era a melhor hora do colégio, era tão boa que<br />

quando a gente passava para a 1ª série íamos brincar junto com a Irmã na turma <strong>da</strong> pré-escola.<br />

Professora Séfora Maria Farias<br />

Maceió-AL<br />

*<br />

A autora é ex-aluna do Instituto <strong>de</strong> <strong>Educação</strong> Caetano <strong>de</strong> Campos. Texto estraído <strong>de</strong>: Maria Candi<strong>da</strong> Delgado Reis. Caetano <strong>de</strong> Campos -<br />

Fragmentos <strong>da</strong> instrução pública no Estado <strong>de</strong> São Paulo.São Paulo, 1994.<br />

M1U1T4<br />

2


Estava perto o Gran<strong>de</strong> Dia.... meu irmão mais velho já estava na escola. Olhava para seus ca<strong>de</strong>rnos,<br />

seus livros, tinha só 6 anos e ain<strong>da</strong> não podia. Meu Deus, ain<strong>da</strong> não podia! Os 7 anos completei,<br />

mas sofri um bocado.A escola me aguar<strong>da</strong>va, não an<strong>da</strong>va, voava.<br />

Minha professora não era uma pessoa, era uma fa<strong>da</strong> bem rígi<strong>da</strong> que iria me ensinar a ver o mundo<br />

letrado.<br />

Aprendi a ler com bastante rapi<strong>de</strong>z. Gostava <strong>de</strong> tudo: Português, Matemática, Ciências e Estudos<br />

Sociais e a professora não precisava comigo usar <strong>de</strong> rigi<strong>de</strong>z.<br />

Tinha um problema: o Desenho não tinha jeito, não conseguia fazer e isso me fez fechar para<br />

esse mundo, mas, mesmo assim, não matou o meu sonho.<br />

Sou professora, sei que é vocação, tenho algo <strong>de</strong> minha primeira mestra: o amor, a rigi<strong>de</strong>z, o gosto<br />

pela leitura. Com isso, eu sei que vou vencer os <strong>de</strong>safios <strong>da</strong> <strong>Educação</strong>.<br />

Professora Edilene M. Nascimento dos Anjos<br />

Carnaíba-PE<br />

Receita <strong>de</strong> uma boa leitora e escritora<br />

Ingredientes<br />

Modo <strong>de</strong> fazer<br />

• 1 menina interessa<strong>da</strong> nos livros dos irmãos.<br />

• 3 irmãos leitores <strong>de</strong> contos infantis e gibis.<br />

• 1 professora <strong>de</strong> 1ª série séria e competente.<br />

• Pais preocupados com a alfabetização dos filhos.<br />

• 6 livros infantis.<br />

• 4 gibis.<br />

1) Coloque 1 menina junto aos irmãos em 1 quarto ou sala silenciosa e junte os 6 livros e 4<br />

gibis (variados) todos os dias, em um horário <strong>de</strong>terminado, <strong>de</strong> preferência antes do jantar.<br />

2) Verifique se os pais estão aten<strong>de</strong>ndo às expectativas e necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> menina com compreensão,<br />

atenção e carinho.<br />

3) Matricular a menina na 1ª série. Na 1ª série a menina <strong>de</strong>ve encontrar 1 professora séria, que<br />

possibilite que ela continue lendo os livros e os gibis.<br />

4) Depois <strong>de</strong> alfabetiza<strong>da</strong> e com muito interesse, a menina torna-se uma boa leitora e escritora.<br />

Professora Liria Maria<br />

Hortolândia-SP<br />

M1U1T4<br />

3


M1U1T4<br />

4<br />

Alfabetização socioconstrutivista®<br />

Composição<br />

Ler cui<strong>da</strong>dosamente antes <strong>de</strong> usar.<br />

Uso pediátrico e adulto.<br />

Informação ao professor<br />

Planejamento ................................................100 mg<br />

Dedicação......................................................100 mg<br />

Intervenção-mediação ................................100 mg<br />

Credibili<strong>da</strong><strong>de</strong>.................................................100 mg<br />

Mobilização....................................................100 mg<br />

Diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> textos ................................100 mg<br />

Amor ..............................................................100 mg<br />

O processo <strong>de</strong> alfabetização precisa ser reconstruído. Para isso, <strong>de</strong>vemos<br />

estu<strong>da</strong>r muito e contar com teorias que embasem, que orientem o<br />

nosso trabalho. Apren<strong>de</strong>mos construindo e, para construir, temos que<br />

pensar. O professor <strong>de</strong>ve ser mediador e saber como a criança apren<strong>de</strong>.<br />

É importante o trabalho em grupo. Caso surjam dúvi<strong>da</strong>s <strong>de</strong>sagradáveis<br />

durante a alfabetização, aconselha-se estu<strong>da</strong>r mais e planejar melhor,<br />

selecionando novas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que favoreçam uma alfabetização eficiente.<br />

Indicações<br />

É indica<strong>da</strong> a to<strong>da</strong>s as crianças, sem distinção <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>, cor, raça, religião<br />

ou classe social, e a jovens e adultos que ain<strong>da</strong> não tenham feito uso<br />

do medicamento.<br />

Contra-indicações<br />

Não tem.<br />

Precauções<br />

O trabalho <strong>de</strong>ve estar centrado nos textos. É fun<strong>da</strong>mental trabalhar<br />

com textos diversificados. Mas esse trabalho, para ser eficaz, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

intervenção que o professor vai fazer.<br />

Reações Adversas<br />

Professores que não acreditam na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> criança <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r e<br />

não acreditam que ela apren<strong>de</strong> construindo seu conhecimento <strong>de</strong>vem ser<br />

advertidos <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> a criança não se alfabetizar com sua aju<strong>da</strong>.<br />

Posologia<br />

<strong>Textos</strong> diversificados, ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> acordo com o nível <strong>de</strong> aprendizagem<br />

que a criança se encontra, num total <strong>de</strong> pelo menos quatro horas<br />

diárias. Advertimos que quando as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s não são administra<strong>da</strong>s<br />

em conformi<strong>da</strong><strong>de</strong> com as doses preconiza<strong>da</strong>s e não são media<strong>da</strong>s<br />

corretamente pelo professor, não se promove alfabetização significativa.<br />

Uso sob prescrição pe<strong>da</strong>gógica.<br />

Responsável técnica: Professora Ligia F. Jacomini Machado<br />

Man<strong>da</strong>guari – Paraná – Brasil


Tempo <strong>de</strong> escola<br />

Eu vou lhe contar agora<br />

Um pouquinho do passado<br />

Do meu tempo <strong>de</strong> escola<br />

De aluno educado<br />

Logo cedo eu chegava<br />

Com far<strong>da</strong> original<br />

Alegre e sempre em fila<br />

Cantava o Hino Nacional<br />

A minha escola era gran<strong>de</strong><br />

Com um enorme jardim em frente<br />

Na hora do recreio<br />

Juntava era muita gente<br />

Tinha uma cartilha azul<br />

Colori<strong>da</strong> e engraça<strong>da</strong><br />

Com as letras muito gran<strong>de</strong>s<br />

Que eu lia saltea<strong>da</strong>s<br />

Pro Maria era calma<br />

Meiga como uma flor<br />

Quando a gente errava<br />

Ela dizia "faz <strong>de</strong> novo, meu amor"<br />

Mas... lá tinha uma diretora<br />

Com uma gran<strong>de</strong> palmatória<br />

Quando a gente aprontava<br />

Então... era outra história<br />

Ao lembrar <strong>da</strong> minha escola<br />

Revivo muitas lembranças<br />

Dos colegas, dos professores<br />

Do meu tempo lindo <strong>de</strong> criança.<br />

Professora Grace Motta<br />

Salvador-BA<br />

M1U1T4<br />

5


Para escrever memórias<br />

pessoais sobre a alfabetização<br />

M1U1T5<br />

Memórias – Escrito em que alguém conta sua vi<strong>da</strong><br />

ou narra fatos a que assistiu ou <strong>de</strong> que participou.<br />

(Dicionário Aurélio)<br />

As folhas seguintes são para a escrita <strong>de</strong> suas memórias. Procure lembrar do tempo em que você<br />

apren<strong>de</strong>u a ler e escrever, recuperando os momentos marcantes, os professores, as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

as conquistas, os <strong>de</strong>safios, os sentimentos envolvidos... A partir dos fragmentos <strong>de</strong> suas lembranças,<br />

escreva as memórias <strong>de</strong>sse período. Os textos transcritos no texto "Memórias" (<strong>Coletânea</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Textos</strong> M1U1T4) foram escritos nos mais variados gêneros: poesia, bula, receita, biografia, cor<strong>de</strong>l,<br />

conto...Alguns são <strong>de</strong> escritores profissionais e outros são <strong>de</strong> escritores professores, participantes<br />

do Programa Parâmetros em Ação em diferentes lugares do país. Transcrevemos esses textos<br />

para compartilhar com você algumas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> utilizar a linguagem literária para tratar <strong>da</strong><br />

experiência pessoal e para que você tenha algumas referências – e, a partir <strong>de</strong>las, encontre a sua<br />

própria forma <strong>de</strong> redigir suas memórias.<br />

Agora é com você. Não se preocupe em inventar na<strong>da</strong> muito diferente (não é preciso!), trate<br />

apenas com cui<strong>da</strong>do a escrita <strong>da</strong> sua experiência <strong>de</strong> alfabetização: pense que o que você tem a<br />

dizer vale a pena... Se quiser, você po<strong>de</strong> escrever <strong>de</strong> maneira simples, sobre coisas simples, mas<br />

<strong>de</strong> forma literária: a literatura prima pelo uso estético <strong>da</strong> linguagem, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do assunto.<br />

Aqueça o braço, escolha um gênero, imprima <strong>de</strong>sejo e busque o prazer <strong>de</strong> escrever, o mais íntimo<br />

e solitário que se possa imaginar... Faça primeiro um rascunho para po<strong>de</strong>r acrescentar tudo que<br />

for lembrando e, quando julgar o resultado a<strong>de</strong>quado, passe então a limpo o seu texto, para que<br />

seja compartilhado com os colegas do seu grupo <strong>de</strong> formação.<br />

[…] O que é peculiar ao gênero literário <strong>da</strong>s memórias é que a reconquista do vivido não é<br />

somente um trabalho <strong>de</strong> restauração, mas sobretudo um esforço <strong>de</strong> renovação. Ao narrar tão<br />

fielmente como pu<strong>de</strong>r o que fez, viu e sentiu na vi<strong>da</strong>, o homem observa os acontecimentos e<br />

as pessoas com a inteligência e a sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> que são <strong>de</strong>le, no momento em que escreve, e<br />

não aquelas que eram suas, nos tempos que procura arrancar do olvido. Em tais condições, a<br />

apresentação dos fatos passados incute-lhes, sem dúvi<strong>da</strong>, um sentido renovado, ou, pelo<br />

menos, extrai <strong>de</strong>les um conteúdo vital, que podia não ser i<strong>de</strong>ntificável, quando ocorriam.<br />

Afonso Arinos <strong>de</strong> Melo Franco<br />

In A alma do tempo<br />

[…] A maior parte <strong>da</strong> nossa memória está fora <strong>de</strong> nós, numa viração <strong>de</strong> chuva, num cheiro <strong>de</strong><br />

quarto fechado ou no cheiro duma primeira labare<strong>da</strong>, em to<strong>da</strong> parte on<strong>de</strong> encontramos <strong>de</strong><br />

nós mesmos o que a nossa inteligência <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhara, por não lhe achar utili<strong>da</strong><strong>de</strong>, a última<br />

reserva do passado, a melhor, aquela que, quando to<strong>da</strong>s as nossas lágrimas parecem estanca<strong>da</strong>s,<br />

ain<strong>da</strong> sabe fazer-nos chorar. Fora <strong>de</strong> nós? Em nós, para melhor dizer, mas oculta a nossos<br />

próprios olhares, num esquecimento mais ou menos prolongado.<br />

Marcel Proust<br />

In A sombra <strong>da</strong>s raparigas em flor<br />

M1U1T5<br />

1


M1U1T5<br />

3


M1U1T5<br />

5


Trajetória profissional <strong>da</strong>s<br />

professoras do Grupo-Referência e<br />

caracterização <strong>da</strong>s turmas <strong>de</strong> alunos<br />

Depoimentos<br />

Maria Cláudia Perna <strong>da</strong> Silva<br />

Professora <strong>da</strong> Creche Central <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />

<strong>Educação</strong> Infantil – Turma <strong>de</strong> 6 anos<br />

M1U1T6<br />

Des<strong>de</strong> pequena quis ser professora. Sempre em minhas brinca<strong>de</strong>iras alguém <strong>de</strong>via ir para a<br />

escola. Ah, eu adorava! Na minha família também tem muitas professoras e eu sempre ouvia<br />

<strong>de</strong>las: "é muito bom ser professora"; "trabalhar com crianças faz a gente esquecer os problemas";<br />

"o único problema é o salário".<br />

Enfim, cresci ouvindo maravilhas sobre a profissão e, apesar do medo <strong>de</strong> "passar fome" com o<br />

salário pouco generoso, fui me apaixonando pela idéia. Meu primeiro emprego foi em uma escola<br />

particular do meu bairro. Eu tinha 14 anos e apesar <strong>de</strong> não ter formação tudo <strong>da</strong>va certo porque<br />

as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s estavam prontas e quando as crianças não entendiam ou não terminavam alguma <strong>da</strong>s<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s era eu quem fazia por elas. Eu achava muito fácil e como gostava <strong>de</strong> crianças resolvi<br />

estu<strong>da</strong>r para ser professora.<br />

Então, aos 16 anos, parei <strong>de</strong> trabalhar para estu<strong>da</strong>r. Cursei durante quatro anos, em período<br />

integral, o CEFAM (Centro Específico <strong>de</strong> Formação e Aperfeiçoamento do Magistério), promovido<br />

pelo Governo do Estado <strong>de</strong> São Paulo.<br />

Neste curso aprendi muito, principalmente, que o professor não é e nem po<strong>de</strong> ser o dono do<br />

saber, que ele tem que ir em busca <strong>de</strong> mais conhecimento para aju<strong>da</strong>r seus alunos e assim por<br />

diante.<br />

Neste curso tive uma professora <strong>de</strong> Metodologia <strong>da</strong> Língua Portuguesa, Sueli Maximiniano, que<br />

me ensinou muito. Quando eu contava as minhas experiências na sala <strong>de</strong> aula, ela nunca <strong>da</strong>va<br />

respostas imediatas ou criticava. Em suas aulas, tinha boas estratégias para que ca<strong>da</strong> um repensasse<br />

suas práticas, consi<strong>de</strong>rando a intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> educativa: o por que, o que, o como e o para que<br />

M1U1T6<br />

1


<strong>de</strong> tudo o que apresentávamos para os alunos. Com o tempo avaliei que meu primeiro trabalho<br />

foi uma experiência profissional muito ruim. Percebi que as propostas apresenta<strong>da</strong>s para os alunos<br />

não tinham fun<strong>da</strong>mento nenhum. Eu apenas "aplicava" as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, sem pensar nos objetivos, nas<br />

estratégias, conteúdos e agrupamentos, ou seja, apenas cumpria com as exigências <strong>da</strong> escola, sem<br />

enten<strong>de</strong>r por que fazia <strong>da</strong>quela forma.<br />

Depois <strong>de</strong> forma<strong>da</strong> comecei a trabalhar na Creche Central <strong>da</strong> USP (Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo).<br />

Estou lá há sete anos e trabalho com uma equipe <strong>de</strong> funcionários sérios que acreditam na<br />

educação. Sei que ain<strong>da</strong> estou em formação e vou estar sempre. Reconheço a importância do<br />

trabalho coletivo e <strong>da</strong> construção <strong>da</strong> autonomia intelectual, para o professor tomar <strong>de</strong>cisões e<br />

escolher caminhos coerentes com sua concepção.<br />

Hoje, sinto falta <strong>de</strong> um curso superior porque os cursos que faço são bons, me aju<strong>da</strong>m, porém<br />

acho que é pouco. Eu quero mais!<br />

Gosto muito <strong>de</strong> ser professora, sei que ain<strong>da</strong> tenho muitas falhas, mas também sei que no<br />

momento faço o melhor que posso.<br />

Regina Galvani Cavalheiro<br />

Professora <strong>da</strong> Creche Central <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />

<strong>Educação</strong> Infantil – Turma <strong>de</strong> 6 anos<br />

Meu nome é Regina, sou professora forma<strong>da</strong> em Magistério e Pe<strong>da</strong>gogia há cerca <strong>de</strong> treze anos,<br />

atualmente trabalho na Creche Central <strong>da</strong> USP (Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo) com um grupo <strong>de</strong><br />

crianças entre 5 e 6 anos.<br />

E foi assim que tudo começou...<br />

A primeira vez que entrei em contato com educação escolar eu tinha 16 anos, foi meu primeiro<br />

emprego. Era uma creche manti<strong>da</strong> pela igreja do meu bairro, lá eram atendi<strong>da</strong>s crianças entre 2<br />

e 6 anos, filhos <strong>de</strong> pessoas <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> baixa ren<strong>da</strong>. A maioria dos pais trabalhava fora,<br />

outros <strong>de</strong>ixavam seus filhos na creche por não po<strong>de</strong>r alimentá-los. Procurei esse emprego pela<br />

antiga vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser professora, isso era algo que dizia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequena: seria professora quando<br />

crescesse. Foi uma boa experiência, fiquei nesse lugar cerca <strong>de</strong> um ano com um grupo <strong>de</strong> crianças<br />

<strong>de</strong> 3 e 4 anos.<br />

O trabalho nessa creche era o que po<strong>de</strong>mos chamar <strong>de</strong> assistencialista, ou seja, estávamos ali para<br />

cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> alimentação, higiene e saú<strong>de</strong>, sendo que, nenhuma <strong>de</strong>ssas áreas eram entendi<strong>da</strong>s pela direção<br />

como partes <strong>de</strong> um trabalho pe<strong>da</strong>gógico. Nos momentos <strong>de</strong> sala com as crianças eu era orienta<strong>da</strong><br />

para cantar músicas, propor <strong>de</strong>senhos mimeografados para pintar, brincar ou ir ao parquinho.<br />

Eu gostava <strong>de</strong> trabalhar lá, mas queria fazer serviço <strong>de</strong> professora como o que era feito com as<br />

crianças <strong>de</strong> 6 anos, nesse grupo foi contrata<strong>da</strong> uma professora forma<strong>da</strong> e ela sim "<strong>da</strong>va aula":<br />

fazia propostas <strong>de</strong> escrita, matemática etc...<br />

M1U1T6<br />

2


Durante todo o ano fiquei questionando a diretora sobre essa diferença com as crianças: por que<br />

os menores não tinham aula, qual era o problema. Se fosse por causa <strong>da</strong> minha formação, eu me<br />

propunha a apren<strong>de</strong>r, ter aulas com a outra professora, qualquer coisa seria melhor que aquela<br />

indiferença sobre meu trabalho e meu grupo <strong>de</strong> alunos. No entanto, sempre <strong>de</strong>sconversavam<br />

dizendo que não era necessário, que seria maçante para os pequenos terem aulas como o pré,<br />

além disso, eles nem estavam em i<strong>da</strong><strong>de</strong> escolar; só estavam ali para os pais trabalharem ou serem<br />

olhados por nós.<br />

Pela minha pouca i<strong>da</strong><strong>de</strong>, falta <strong>de</strong> experiência e, principalmente, falta <strong>de</strong> estudos específicos eu não<br />

conseguia sair do <strong>de</strong>sconforto, enfrentar uma conversa mais adulta que resultasse em ações<br />

produtivas e sérias.<br />

Essa experiência foi muito boa, pois nessa escola comecei a perceber que ser professora ia além<br />

do sonho <strong>de</strong> criança, e também foi on<strong>de</strong> comecei a construir meu i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> professora. O resultado<br />

foi a certeza <strong>de</strong> que ser uma boa professora exigiria estu<strong>da</strong>r muito para não ser venci<strong>da</strong> por<br />

falta <strong>de</strong> argumentos conscientes e profissionais. Percebi também que, como professora, po<strong>de</strong>ria<br />

acreditar mais na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> e vonta<strong>de</strong> <strong>da</strong>s crianças em apren<strong>de</strong>r. Essa experiência foi marcante<br />

para minha <strong>de</strong>cisão em cursar Magistério e Pe<strong>da</strong>gogia.<br />

Na época <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>cisão eu havia mu<strong>da</strong>do <strong>de</strong> São Paulo para o interior, on<strong>de</strong> fiz esses dois<br />

cursos, e a partir <strong>de</strong> experiências como aluna adulta fui refletindo e tirando algumas conclusões<br />

para minha trilha profissional.<br />

"Saber por que se pe<strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> para um aluno é<br />

fun<strong>da</strong>mental para um trabalho sério que traga boas aprendizagens."<br />

Aprendi isso com uma professora do Magistério, que nos pediu para elaborarmos duzentos, sem<br />

exageros, duzentos planejamentos <strong>de</strong> Língua Portuguesa para alunos fictícios <strong>de</strong> 2ª série do 1º<br />

grau, contemplando conteúdo, estratégia, recursos, nome <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, avaliação. No começo<br />

achei que seria interessante para o futuro, já pensou que bom ter um montão <strong>de</strong> planejamentos<br />

prontos?<br />

Mas, uma coisa estranha começou a me incomo<strong>da</strong>r com aquela ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, algo perturbava...<br />

Enfim, <strong>de</strong>scobri: na<strong>da</strong> <strong>da</strong>quilo seria olhado pela professora, ela não teria tempo <strong>de</strong> corrigir tudo<br />

para que pudéssemos discutir ca<strong>da</strong> planejamento.<br />

A minha professora <strong>de</strong>scobriu sua <strong>de</strong>sorientação no exato momento em que eu a questionei<br />

sobre as <strong>de</strong>volutivas e, muito sem graça, suspen<strong>de</strong>u o trabalho para todos. Ela <strong>de</strong>ve ter percebido<br />

que propôs uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> sem o menor planejamento por parte <strong>de</strong>la, sem o menor compromisso<br />

educacional, sem a menor idéia <strong>de</strong> como aquele trabalho aju<strong>da</strong>ria seus alunos a apren<strong>de</strong>r.<br />

"O professor <strong>de</strong>ve ser um parceiro na<br />

aprendizagem <strong>de</strong> seus alunos, ser um bom mediador,<br />

se permitir apren<strong>de</strong>r com os conhecimentos<br />

<strong>de</strong> seus alunos e po<strong>de</strong>r refletir sobre sua prática."<br />

M1U1T6<br />

3


Essa certeza adquiri <strong>de</strong> uma maneira bem amarga! Cursava o Magistério, em uma aula <strong>de</strong> língua<br />

portuguesa e a professora nos pediu para elaborarmos uma aula sobre qualquer disciplina para<br />

exposição em sala. Essa professora era a que eu mais gostava, pois sempre permitia que discutíssemos,<br />

refletíssemos sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e outras questões. Estava mais próxima do que eu<br />

acreditava que um professor <strong>de</strong>veria ser.<br />

Bem, para o tal trabalho nos pediu para que durante as exposições prestássemos atenção nas<br />

possíveis variações, pontos a repensar, pontos negativos ou positivos etc. Estava indo tudo bem,<br />

meus amigos só elogiavam as exposições o que não proporcionava discussões, nem reflexões.A<br />

aula foi me incomo<strong>da</strong>ndo tanto que em <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> hora não agüentei e comecei a colocar<br />

também pontos que consi<strong>de</strong>rava bons para repensarmos, como o trabalho valia nota os meus<br />

amigos só faltaram me linchar na sala. A professora <strong>de</strong>ixou que discutíssemos sozinhos, ela apenas<br />

esperou o sinal tocar para sair <strong>da</strong> sala, como se na<strong>da</strong> fosse <strong>de</strong> sua responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Nesse dia, ela passou a fazer parte do quadro dos professores que para mim não serviam como<br />

bons exemplos.<br />

Essa professora per<strong>de</strong>u uma boa oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r com o meu jeito <strong>de</strong> ver as coisas,<br />

com o jeito em que estávamos levando a discussão, per<strong>de</strong>u a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> intervir como um<br />

parceiro mais experiente e com maior possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> argumentar e fazer o grupo crescer,<br />

per<strong>de</strong>u a chance <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r com a situação, com o conhecimento na ação.<br />

"Copiar textos idênticos ao livro não serve<br />

para sabermos o que um aluno enten<strong>de</strong>u do assunto."<br />

Ain<strong>da</strong> como aluna passei pela experiência <strong>de</strong> ter que respon<strong>de</strong>r a questões <strong>de</strong> prova exatamente<br />

como estavam no livro, caso contrário, seria reprova<strong>da</strong>. Tive uma professora <strong>de</strong> Psicologia <strong>da</strong><br />

<strong>Educação</strong> que <strong>de</strong>sistiu <strong>de</strong> tentar corrigir minhas provas, pois ela insistia em procurar as frases<br />

feitas e eu insistia em transformá-las para mostrar à professora que existiam outras maneiras <strong>de</strong><br />

escrevermos o que compreendíamos. Após algumas provas, ela percebeu que não conseguiria<br />

trabalhar <strong>de</strong> outro jeito, então me <strong>da</strong>va logo <strong>de</strong>z e fazia questão <strong>de</strong> não usar minha prova para<br />

comentários ou exemplos.<br />

"Uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser repeti<strong>da</strong> inúmeras vezes <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a ca<strong>da</strong><br />

vez o professor tenha avaliado seu planejamento <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início para<br />

constatar sua vali<strong>da</strong><strong>de</strong> atual, sua a<strong>de</strong>quação ao grupo real <strong>de</strong> trabalho."<br />

Certa vez, agora já atuando como professora, observei uma colega procurando ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e provas<br />

anteriores, <strong>de</strong> muitos anos atrás, para trabalhar conteúdos novos com os alunos. Fiquei intriga<strong>da</strong><br />

e quis saber como ela aproveitaria o material, simplesmente ela xerocou e aplicou aos alunos<br />

como fazia todos os anos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que elaborou o material.<br />

Fiquei sabendo pelas próprias crianças que tudo era fácil com essa professora, pois eles já sabiam<br />

como seria tudo do começo ao fim pelos irmãos e alunos antigos. Fiquei preocupa<strong>da</strong>, porque<br />

essas crianças cedo ou tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobririam que na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> elas foram engana<strong>da</strong>s, pois a professora<br />

não ensinou como se estu<strong>da</strong>, não <strong>de</strong>u a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ampliarem seu acervo <strong>de</strong> conhecimentos.<br />

M1U1T6<br />

4


Por essas e outras constatações fui selecionando ca<strong>da</strong> vez mais os lugares que po<strong>de</strong>ria trabalhar<br />

e os lugares também me selecionavam, pois em muitos eu era um problema porque não aceitava<br />

fazer as coisas sem explicações. Até o dia em que fui convi<strong>da</strong><strong>da</strong> para assumir uma classe <strong>de</strong><br />

<strong>Educação</strong> Infantil em uma escola particular que, segundo as informações, era uma escola<br />

nova e construtivista.<br />

A alfabetização nessa escola começava já no primeiro grupo com crianças <strong>de</strong> três anos.Trabalhavase<br />

com escrita <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as formas possíveis, aprendi muitas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s diferentes <strong>da</strong>s tradicionais,<br />

jeitos novos <strong>de</strong> encaminhar os conteúdos. Fiquei um ano nessa escola, fiquei muito feliz quando<br />

vi todos meus alunos lendo e escrevendo. No entanto, o que eu tinha feito naquele ano era uma<br />

mistura ou reforma do ensino tradicional e isso me incomo<strong>da</strong>va, porque nem sabia o que tinha<br />

<strong>da</strong>do certo, por que e como as crianças apren<strong>de</strong>ram, isso seria muito importante para que eu<br />

conseguisse ter sucesso nos próximos anos. Mesmo assim, estava melhorando porque nessa<br />

escola me senti mais feliz. Nela eu pu<strong>de</strong> criar, modificar, discutir com outras professoras e isso<br />

aju<strong>da</strong> muito um profissional a crescer e avançar.<br />

Nessa época, voltei a morar em São Paulo e passei por aulas eventuais em várias escolas, até<br />

chegar na creche <strong>da</strong> USP. Foi quando, finalmente, consegui respostas e enten<strong>de</strong>r minhas críticas,<br />

idéias, experiências...<br />

Durante todo o tempo eu questionava as aulas que eram <strong>da</strong><strong>da</strong>s, sem realmente tocar na questão:<br />

concepção <strong>de</strong> educação!<br />

As professoras que me angustiavam, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> estavam sendo coerentes com as idéias, crenças e<br />

conhecimentos que tinham sobre educação. Eu é que já tinha outra idéia, mas como não tinha<br />

conhecimento suficiente ficava apoia<strong>da</strong> apenas nas experiências, constatações e muita, muita intuição.<br />

Trabalhando na creche <strong>da</strong> USP aprendi que um trabalho sem discussão, sem reflexão, avaliação e<br />

estudo não é nem um pouco construtivista. Aprendi que a educação tradicional é aquela que, resumi<strong>da</strong>mente,<br />

acredita que o professor ensina e o aluno apren<strong>de</strong>. Era isso mesmo que me aborrecia!<br />

Com as reflexões sistemáticas, fui conseguindo justificar ca<strong>da</strong> experiência e assim, fui me<br />

tornando mais "dona" <strong>da</strong> minha prática, mais autora <strong>de</strong> minhas ações, analisando meu trabalho<br />

com mais consistência.<br />

Agora sei que as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que propomos para as crianças estão intimamente liga<strong>da</strong>s à concepção,<br />

ou seja, ao que acreditamos que seja educação.<br />

Uma boa bússola para orientar nosso trabalho e sempre estarmos alertas encontramos naquelas<br />

famosas perguntinhas ao próprio planejamento: o que, para que, como, para quem farei essa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>?<br />

Alguns dizem que trabalhar <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> concepção construtivista é difícil, trabalhoso, mas para mim<br />

é trabalhar com consciência, conhecimento, é crescer sem parar, é acreditar na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s<br />

crianças em apren<strong>de</strong>r, é ser um professor atuante, participativo no processo <strong>de</strong> aprendizagem, é<br />

levar propostas que provoquem os alunos a pensar e utilizar seus recursos para achar soluções,<br />

é ser informante por ser mais experiente, é sempre buscar mais conhecimento para trabalhar<br />

em sala, é lembrar-se sempre que todos têm conhecimentos – cultural, social e outros – para<br />

contribuir. Enfim, é estar vivo profissionalmente!<br />

M1U1T6<br />

5


Neste momento, estou participando <strong>de</strong>sse programa <strong>de</strong> formação para professores alfabetizadores,<br />

estou apren<strong>de</strong>ndo mais sobre como as crianças apren<strong>de</strong>m a ler e escrever. É um momento muito<br />

importante, porque discutir com outros profissionais a nossa prática é refletir sobre ela e<br />

principalmente ressignificá-la.Tenho passado por alegrias, euforia, cansaço, frustração, conquistas,<br />

<strong>de</strong>scobertas, dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s... não <strong>de</strong>sisto <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r, porque esse foi o caminho que escolhi...<br />

apren<strong>de</strong>r sempre!<br />

Nossa turma<br />

A creche on<strong>de</strong> trabalhamos aten<strong>de</strong> aos filhos <strong>de</strong> funcionários, professores e alunos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> São Paulo, o que resulta em uma diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural, econômica e social muito rica. De fato,<br />

a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> é muito interessante, pois tanto os adultos como as crianças apren<strong>de</strong>m com as<br />

diferenças, ampliam sua visão, opinião e saberes a respeito do mundo.<br />

Nós, adultos, apren<strong>de</strong>mos a <strong>de</strong>smistificar muitas <strong>da</strong>s idéias preconceituosas que, ao longo <strong>de</strong> nossas<br />

vi<strong>da</strong>s nos foram passa<strong>da</strong>s como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s, como por exemplo: criança pobre não apren<strong>de</strong>, não<br />

consegue ler, ou criança rica sabe mais, é mais fácil apren<strong>de</strong>r para elas, entre outras. Com nossas<br />

observações e reflexões nesses anos <strong>de</strong> experiência em sala, <strong>de</strong>stituímos a vali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas idéias<br />

preconceituosas e sabemos que os avanços nas aprendizagens dos alunos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m, principalmente,<br />

<strong>de</strong> nossos planejamentos, orientações, observações individuais, tudo isso balizado por nossa<br />

concepção <strong>de</strong> ensino e aprendizagem.<br />

Nós, em 2000, dividimos o mesmo grupo <strong>de</strong> pré, com crianças <strong>de</strong> 6 a 7 anos que permanecem<br />

diariamente <strong>de</strong> 9 a 12 horas na creche. É um grupo com 21 crianças e bem agitado, interessado,<br />

falante, crítico. A maioria do grupo freqüenta a creche <strong>de</strong>s<strong>de</strong> bebê. Pelo trabalho que é realizado<br />

na creche, as crianças entram em contato com a escrita, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os berçários, através <strong>da</strong>s fichas com<br />

seus nomes, dos cartazes com imagens e dos livros <strong>de</strong> histórias.<br />

Durante o percurso na creche, as crianças participam <strong>de</strong> diferentes projetos nas diversas áreas<br />

<strong>de</strong> conhecimento e chegam ao pré com um bom acervo <strong>de</strong> conhecimentos e com procedimentos<br />

<strong>de</strong> estu<strong>da</strong>nte mais consoli<strong>da</strong>dos.<br />

No início do ano, precisamos i<strong>de</strong>ntificar o que ca<strong>da</strong> um já sabe para que possamos planejar mais<br />

objetivamente nossas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Para realizar um levantamento dos conhecimentos <strong>da</strong>s crianças<br />

sobre o sistema <strong>de</strong> escrita, propomos ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> listas e, em segui<strong>da</strong>, pedimos que leiam o que<br />

escreveram. Por exemplo, se pedimos uma lista <strong>de</strong> doces para um aniversário, ditamos ca<strong>da</strong> doce<br />

sem a preocupação <strong>de</strong> ditar como se escreve, <strong>de</strong>pois pedimos que leiam o que escreveram<br />

mostrando on<strong>de</strong> está escrito o que estão lendo.<br />

Diante <strong>da</strong>s hipóteses <strong>de</strong> escrita <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um é que pensamos nos agrupamentos mais significativos<br />

para as aprendizagens dos alunos. Para explicar melhor, vamos apresentar alguns <strong>da</strong>dos:<br />

Total: 21 crianças<br />

• 3 já estavam alfabetiza<strong>da</strong>s;<br />

• 16 já reconheciam letras, nomes, algumas palavras, porém não escreviam convencionalmente;<br />

• 2 se recusavam a realizar as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, o que dificultava nossa observação.<br />

M1U1T6<br />

6


Para que todos se alfabetizem até o final do ano, precisamos pensar em ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e parcerias<br />

produtivas.<br />

Como temos muitas crianças, dividimos o grupo para conseguirmos observar todos. Anotamos as<br />

crianças que observamos a ca<strong>da</strong> dia para acompanhar todo o grupo. Essas observações são<br />

fun<strong>da</strong>mentais para planejarmos as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, pensarmos nos <strong>de</strong>safios e organizarmos os agrupamentos.<br />

Fazemos esse levantamento à medi<strong>da</strong> que notamos mu<strong>da</strong>nças nas hipóteses ou notamos que os<br />

agrupamentos atuais não estão sendo mais eficientes para promover avanços nos saberes <strong>da</strong>s crianças.<br />

O nosso trabalho é interessante, porque contamos com as diferenças como alia<strong>da</strong>s. Aliás, a<br />

diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> saberes no grupo é uma garantia <strong>de</strong> um aprendizado mais rápido.<br />

Nosso grupo está indo <strong>de</strong> vento em popa! Nosso objetivo é que até o final do ano todos<br />

estejam lendo e escrevendo. Para nós, a <strong>Educação</strong> Infantil tem um gran<strong>de</strong> valor e responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

sobre a alfabetização, porque quanto mais conseguirmos alcançar com as crianças, melhor para<br />

elas, já que não dispomos <strong>de</strong> garantias institucionais. Ou seja, <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> creche não sabemos<br />

que escola irão freqüentar, a concepção <strong>de</strong> ensino e aprendizagem dos professores, por isso<br />

quanto mais souberem sobre a língua que se escreve, sobre o sistema <strong>de</strong> escrita, quanto mais<br />

preparados estiverem para ingressar na 1ª série, melhor para elas.<br />

Ana Lúcia Brito<br />

Professora <strong>da</strong> Creche Central <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />

<strong>Educação</strong> Infantil - Turma <strong>de</strong> 6 anos<br />

Sou forma<strong>da</strong> no curso <strong>de</strong> Pe<strong>da</strong>gogia há vinte anos.<br />

Minha formação, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primário (hoje, Ensino Fun<strong>da</strong>mental) até o curso superior, foi basea<strong>da</strong><br />

no método tradicional, em que o professor tem o domínio do conhecimento e o aluno cumpre<br />

o papel <strong>de</strong> mero espectador, ou seja, receptor <strong>da</strong>s informações do mestre.<br />

Levei algum tempo para trabalhar com educação, pois quando cursava a Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> eu exercia a<br />

função <strong>de</strong> programadora <strong>de</strong> produção numa fábrica <strong>de</strong> peças do vestuário. Mesmo após o término<br />

do curso, continuei trabalhando na empresa por mais cinco anos.<br />

A razão <strong>de</strong> ter permanecido na empresa por mais tanto tempo se <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong> não ter o<br />

curso <strong>de</strong> Magistério: pela legislação vigente na época, só o diploma do curso <strong>de</strong> Pe<strong>da</strong>gogia não<br />

me <strong>da</strong>va direito <strong>de</strong> lecionar para 1ª a 4ª série, ou mesmo para <strong>Educação</strong> Infantil, nas escolas<br />

estaduais e municipais.<br />

Em 1986, fui educadora em uma escola particular <strong>de</strong> pequeno porte, on<strong>de</strong> lecionei até 1990, mas<br />

nunca perdi o interesse em trabalhar numa escola estadual ou municipal.<br />

M1U1T6<br />

7


Assim que ficava sabendo <strong>de</strong> concursos, logo me inscrevia, na esperança <strong>de</strong> conseguir uma vaga<br />

como professora. As <strong>de</strong>cepções aconteciam: era aprova<strong>da</strong>, mas não conseguia ingressar pelo fato<br />

<strong>de</strong> não ter o diploma do curso <strong>de</strong> Magistério.<br />

Fui orienta<strong>da</strong> pelas pessoas <strong>da</strong> <strong>de</strong>legacia <strong>de</strong> ensino a recorrer, através <strong>de</strong> documentações. Seguindo<br />

a orientação, man<strong>da</strong>va a documentação para análise e a resposta era a mesma: in<strong>de</strong>ferido.<br />

Bom, apesar dos pesa<strong>de</strong>los, não <strong>de</strong>sisti <strong>de</strong> correr atrás do sonho. Um dia, fiz inscrição numa<br />

escola estadual do município do Embu e consegui uma vaga como professora para salas <strong>de</strong><br />

5ª série, em caráter temporário, ficando lá por dois anos.<br />

Há oito anos, trabalho numa creche liga<strong>da</strong> ao serviço social <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo,<br />

<strong>de</strong>ntro do campus universitário.<br />

Quando cheguei à creche, percebi que a concepção <strong>de</strong> ensino e aprendizagem era diferente<br />

<strong>da</strong>quela que eu conhecia.<br />

Era tudo muito novo nessa instituição. Havia abor<strong>da</strong>gens e propostas pe<strong>da</strong>gógicas diferentes, em<br />

que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ambiente até as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s faziam parte <strong>da</strong> construção do conhecimento e autonomia<br />

<strong>da</strong> criança. Além <strong>da</strong> concepção, havia também um trabalho coletivo entre as educadoras do<br />

grupo.Tudo tinha que acontecer simultaneamente.<br />

Anteriormente, estava acostuma<strong>da</strong> a trabalhar apenas executando os planejamentos existentes<br />

nas escolas.<br />

O fato <strong>de</strong> trabalhar com constante avaliação <strong>da</strong> prática em sala <strong>de</strong> aula nos faz buscar novos<br />

conhecimentos.<br />

Através <strong>de</strong> cursos especializados, leituras e trocas com outros profissionais para a<strong>de</strong>quação dos<br />

planejamentos pu<strong>de</strong> avançar em meu processo <strong>de</strong> formação.<br />

Hoje, participo <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> formação e percebo que, apesar <strong>de</strong> ter avançado em meus<br />

conhecimentos ain<strong>da</strong> preciso enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> forma mais <strong>de</strong>talha<strong>da</strong> o processo pelo qual as crianças<br />

passam em suas construções <strong>de</strong> conhecimentos e assim aproveitar <strong>de</strong> forma mais produtiva a<br />

heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> do grupo.<br />

Em ca<strong>da</strong> reunião com o grupo <strong>de</strong> estudos os temas abor<strong>da</strong>dos reportam-se às questões coloca<strong>da</strong>s<br />

pelo dia-a-dia <strong>da</strong> sala <strong>de</strong> aula e isso resulta numa melhor maneira <strong>de</strong> propor as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s aos alunos.<br />

Um fato marcante que <strong>de</strong>staco nas discussões <strong>de</strong>sse grupo foi <strong>de</strong>scobrir a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

aten<strong>de</strong>r à diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> saberes dos alunos utilizando os agrupamentos, nos quais uma criança<br />

aju<strong>da</strong> outra e a dupla sai favoreci<strong>da</strong>.<br />

A ca<strong>da</strong> encontro percebo o quanto estou avaliando meu dia-a-dia e transformando minha<br />

prática. Esse é o caminho!<br />

M1U1T6<br />

8


Clélia Cortez Moriama<br />

Professora <strong>da</strong> Creche Central <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />

<strong>Educação</strong> Infantil - Turma <strong>de</strong> 6 anos<br />

A minha escolha em ser professora foi uma <strong>da</strong>s melhores que já fiz até hoje. Quando digo isto<br />

às pessoas sinto os meus olhos brilharem, irradiarem uma energia que talvez cause até espanto.<br />

Até entendo o porque disso. É um privilégio ser feliz naquilo que se faz, diante <strong>de</strong> um mercado<br />

<strong>de</strong> trabalho tão seletivo e injusto, que impõe tantas e tantas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Não quero dizer com isto que a educação me oferece as melhores condições <strong>de</strong> trabalho, me<br />

<strong>de</strong>ixa plenamente feliz. No dia-a-dia do meu exercício sinto os problemas como qualquer outro<br />

profissional – que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> salários superbaixos, até os problemas relacionados ao trabalho<br />

propriamente dito. No entanto, procuro lutar juntamente com os outros colegas para encontrar<br />

saí<strong>da</strong>s, soluções viáveis para tais problemas.<br />

Voltando a falar em escolha...<br />

Minha experiência em educação iniciou-se em 1989, quando ingressei no CEFAM – Centro<br />

Específico <strong>de</strong> Formação e Aperfeiçoamento do Magistério – um projeto <strong>da</strong> re<strong>de</strong> pública <strong>de</strong> São<br />

Paulo <strong>de</strong>stinado à formação <strong>de</strong> professores. Naquele momento <strong>de</strong> minha vi<strong>da</strong> pu<strong>de</strong> participar<br />

<strong>de</strong> muitas discussões sobre o papel <strong>da</strong> escola, realizar, analisar e avaliar muitas situações didáticas.<br />

Pu<strong>de</strong> também criar situações <strong>de</strong> aprendizagem e, o mais importante, conhecer uma concepção<br />

<strong>de</strong> ensino e aprendizagem que norteia meu trabalho até hoje: o construtivismo. Foi nessa época<br />

que comecei a apren<strong>de</strong>r também que não existem respostas prontas ou receitas para educar, e<br />

sim reflexões e ações que possibilitam pensar em melhores caminhos para nossos alunos.<br />

Além <strong>de</strong> tudo isso, nessa época foram muito significativos para mim alguns professores e amigos,<br />

pessoas que até hoje contribuem com o meu trabalho e também estão presentes em muitos<br />

momentos importantes <strong>de</strong> minha vi<strong>da</strong> pessoal, construindo comigo muitas e muitas histórias.<br />

Quando me formei no Magistério comecei a trabalhar em uma escola liga<strong>da</strong> à re<strong>de</strong> particular <strong>de</strong> São<br />

Paulo como professora <strong>de</strong> 1ª série, e resolvi aprofun<strong>da</strong>r mais ain<strong>da</strong> meus estudos em educação<br />

ingressando na facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Pe<strong>da</strong>gogia <strong>da</strong> Pontifícia Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> São Paulo (PUC-SP).<br />

Adquiri uma boa experiência <strong>de</strong> 1ª a 4ª série ao longo <strong>de</strong>sses anos, mas sempre na re<strong>de</strong> particular<br />

<strong>de</strong> ensino. Pelas circunstâncias, fui trabalhando com crianças <strong>de</strong> 7 a 10 anos, mas meu gran<strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>al era trabalhar com as <strong>de</strong> <strong>Educação</strong> Infantil, principalmente em creche. Foi aí que fiz outra<br />

escolha que resultou em muitas transformações em minha vi<strong>da</strong>: a Creche Central <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> São Paulo (USP). Optei pelo trabalho em pré-escola, <strong>de</strong>ixei o Ensino Fun<strong>da</strong>mental, e mais uma<br />

vez tenho a satisfação <strong>de</strong> dizer que escolhi o melhor para mim.Aos poucos fui me i<strong>de</strong>ntificando<br />

com o trabalho em creche, enten<strong>de</strong>ndo o que é educar e cui<strong>da</strong>r ao mesmo tempo e fui me<br />

repertoriando com discussões volta<strong>da</strong>s à <strong>Educação</strong> Infantil que pu<strong>de</strong>ssem esclarecer minhas<br />

dúvi<strong>da</strong>s e enriquecer a minha prática.<br />

M1U1T6<br />

9


Eu particularmente gosto muito <strong>de</strong> estu<strong>da</strong>r, conhecer coisas novas. Constantemente participo <strong>de</strong><br />

grupos <strong>de</strong> estudos, cursos, palestras e estabeleço parcerias com outras professoras. Tudo isso<br />

com a intenção <strong>de</strong> trocar experiências, refletir, ampliar horizontes e melhorar a quali<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

meu trabalho em sala <strong>de</strong> aula.<br />

O que aumenta mais ain<strong>da</strong> o meu entusiasmo em ser professora é o prazer <strong>da</strong>s leituras, pesquisas<br />

e <strong>de</strong>scobertas. Ao longo <strong>de</strong>sses anos adquiri uma postura que consi<strong>de</strong>ro muito importante a nós<br />

professores: a <strong>de</strong> pesquisadora. Mas não uma simples pesquisa, como eu estava acostuma<strong>da</strong> a<br />

fazer nos meus tempos <strong>de</strong> escola, em que eu copiava tudo igual à enciclopédia e nem entendia<br />

o porque (aliás, nem sei se posso chamar isso <strong>de</strong> pesquisa), mas sim uma pesquisa reflexiva, que<br />

me aponta sentidos e caminhos.<br />

A minha competência não está construí<strong>da</strong>, está em construção a partir <strong>de</strong> minhas reflexões<br />

sobre as ações realiza<strong>da</strong>s. Seria muita onipotência achar que já sei tudo, pois ca<strong>da</strong> dia é um dia,<br />

ca<strong>da</strong> grupo <strong>de</strong> alunos é um grupo, porque o novo amanhã po<strong>de</strong> ser o velho e este velho precisa<br />

ser visto como tempo <strong>de</strong> recomeço, o início <strong>de</strong> uma nova etapa.<br />

Prefiro dizer que sei um pouco e que o outro pouco vou procurar saber amanhã e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

amanhã, e assim por diante. É como diz Rubem Alves: "...na<strong>da</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r um pouquinho <strong>de</strong> saber<br />

e o máximo <strong>de</strong> sabor..."<br />

O essencial para mim é isso: querer saber um pouco a ca<strong>da</strong> dia e <strong>de</strong>scobrir o sabor <strong>de</strong>sses saberes.<br />

Por fim, quero po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>safiar e ser <strong>de</strong>safia<strong>da</strong>, compreen<strong>de</strong>r as questões que envolvem o meu<br />

trabalho, repensar a minha prática e ter sempre autonomia para tomar <strong>de</strong>cisões que consi<strong>de</strong>ro<br />

importantes. Tudo isso, é claro, em conjunto com os outros profissionais, porque sozinha não<br />

encontrarei caminho algum, nem se eu soubesse muito e muito. Preciso do outro para construir<br />

o meu saber <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> dia e aquele saber, é claro, com sabor e prazer.<br />

Nossa turma<br />

A maioria dos nossos alunos <strong>de</strong>ste ano está na creche <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos <strong>de</strong> berçário. Portanto,<br />

se conhecem muito bem.<br />

O grupo tem 25 crianças, sendo que seis <strong>de</strong>las freqüentam a creche meio período, três apenas<br />

o período <strong>da</strong> manhã, e outras três o período <strong>da</strong> tar<strong>de</strong>; o restante, em horário integral.<br />

A rotina <strong>da</strong>s crianças é composta <strong>de</strong> várias partes:<br />

1. Integração <strong>de</strong> crianças com faixa etária diferente: momento dos ateliês <strong>de</strong> jogos, artes, jardinagem,<br />

teatro e invenções.<br />

2. Momento livre: brincam <strong>de</strong> pega-pega, pula cor<strong>da</strong>, amarelinha, corre–cutia, casinha, tanque <strong>de</strong> areia etc.<br />

3. Momento em sala <strong>de</strong> aula em que são <strong>de</strong>senvolvidos conteúdos <strong>de</strong> várias áreas <strong>de</strong> conhecimento.<br />

Aqui na creche a aprendizagem não se limita apenas ao horário na sala <strong>de</strong> aula. Jogar bola, brincar <strong>de</strong><br />

amarelinha,fazer teatro e até mesmo o momento refeições são consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s situações <strong>de</strong> aprendizagem.<br />

M1U1T6<br />

10


Neste início <strong>de</strong> ano, os conhecimentos dos alunos sobre a escrita são os seguintes:<br />

• 3 alunos encontram-se em uma escrita alfabética, tendo apenas alguns problemas ortográficos;<br />

• 10 alunos encontram-se em uma hipótese <strong>de</strong> escrita silábica com valor sonoro;<br />

• 9 alunos encontram-se em uma hipótese <strong>de</strong> escrita silábica sem valor sonoro: usam qualquer letra para<br />

representar as sílabas;<br />

• 3 alunos em uma hipótese <strong>de</strong> escrita pré-silábica. Usam muitas letras, não conseguem ajustar a<br />

escrita com a leitura <strong>da</strong> palavra. Outras vezes colocam um número <strong>de</strong> letras que fica compatível com<br />

o tamanho do objeto, ou seja, escrevem com muitas letras palavras como "elefante" com poucas<br />

letras, "formiguinha", por exemplo.<br />

Para diagnosticar tais saberes, constantemente observamos a forma como a criança está pensando<br />

para escrever e ler. Para tanto, propomos a escrita <strong>de</strong> listas, como por exemplo <strong>de</strong> nomes<br />

próprios, dos amigos <strong>de</strong> preferência, <strong>de</strong> títulos <strong>de</strong> histórias conheci<strong>da</strong>s, ou mesmo uma lista <strong>de</strong><br />

doces para organizar uma festa.<br />

Várias situações como essas nos aju<strong>da</strong>m a conhecer mais <strong>de</strong> perto ca<strong>da</strong> criança. Periodicamente<br />

acompanhamos criança por criança para conhecer <strong>de</strong>talha<strong>da</strong>mente sua forma <strong>de</strong> pensar a escrita<br />

e a leitura, para assim fazermos novos encaminhamentos à nossa prática pe<strong>da</strong>gógica e a partir<br />

<strong>da</strong>í organizarmos parcerias produtivas para o trabalho. Além <strong>da</strong>s situações como as cita<strong>da</strong>s,<br />

sempre trabalhamos com reescrita <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> memória, escrita <strong>de</strong> bilhetes, cruzadinhas com<br />

lista <strong>de</strong> palavras, or<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> textos curtos, enfim, outras situações que também nos possibilitam<br />

conhecer a forma <strong>de</strong> pensar <strong>da</strong>s crianças.<br />

Esse grupo possui características bastante positivas: uma gran<strong>de</strong> intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a leitura <strong>de</strong><br />

livros e com situações varia<strong>da</strong>s <strong>de</strong> escrita, o que gera, certamente, um gran<strong>de</strong> interesse por<br />

aquilo que estamos trabalhando e uma participação significativa para conquistar novos avanços.<br />

A heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> dos saberes é um fator favorável ao nosso trabalho. Em princípio tínhamos um<br />

pouco <strong>de</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas com o <strong>de</strong>correr dos dias estamos apren<strong>de</strong>ndo a olhar mais um pouco<br />

para as diferenças <strong>de</strong> conhecimentos presentes em nossa sala e pensar no que elas po<strong>de</strong>m aju<strong>da</strong>r<br />

no processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> conhecimentos <strong>de</strong> nossos alunos.<br />

Ain<strong>da</strong> que não saibam ler e escrever convencionalmente, aproveitamos para trabalhar com outras<br />

competências que muitas vezes superam nossas expectativas. Para exemplificar: às vezes pedimos<br />

a uma criança que ain<strong>da</strong> não sabe ler e escrever para ditar para outra uma história ou uma parlen<strong>da</strong>.<br />

Nesse momento observamos o quanto a criança que dita está atenta à forma a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> do texto<br />

para possibilitar a compreensão do leitor. As diferenças também nos possibilitam <strong>de</strong>senvolver uma<br />

atitu<strong>de</strong> muito importante nas crianças: a autonomia.<br />

Na medi<strong>da</strong> em que há uma maior circulação <strong>de</strong> informações, a referência não fica centra<strong>da</strong> apenas<br />

na professora, mas em todos que fazem parte do grupo. E isso gera uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> respeito a<br />

to<strong>da</strong>s essas diferenças, pois os alunos começam a apren<strong>de</strong>r que po<strong>de</strong>m contribuir uns com os<br />

outros.Acreditamos que a interação é o eixo central <strong>de</strong> nosso trabalho.<br />

M1U1T6<br />

11


Rosalin<strong>da</strong> Soares Ribeiro <strong>de</strong> Vasconcelos<br />

Professora <strong>da</strong> 1ª série <strong>da</strong> Escola Municipal <strong>de</strong> Ensino Fun<strong>da</strong>mental Octávio Pereira<br />

Lopes – São Paulo<br />

Foi numa escola <strong>da</strong> zona rural que aprendi a ler e escrever. Mas gostar <strong>de</strong> ler e apren<strong>de</strong>r com os<br />

livros, a escola não me ensinou. Isso fui apren<strong>de</strong>r aos 11 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>, quando meu pai comprou<br />

os primeiros livros <strong>de</strong> nossa casa. Foram três coleções: uma <strong>de</strong> contos <strong>de</strong> fa<strong>da</strong>, quando me apaixonei<br />

pelo livro Robinson Crusoé (naufraguei e me salvei muitas e muitas vezes com ele), uma enciclopédia<br />

e uma coleção <strong>de</strong> dicionários. Passava horas e horas lendo e "viajando" com esses livros.<br />

Não me lembro <strong>de</strong> nenhum professor incentivando a leitura. No Curso Normal (antigo Magistério)<br />

aprendi um pouco sobre literatura, mas não sobre a importância <strong>da</strong> literatura na escola. Na<br />

facul<strong>da</strong><strong>de</strong>, eram raros os professores que pediam que lêssemos. Eu lia porque gostava e lia tudo que<br />

caía nas minhas mãos: fotonovelas, gibis, jornais velhos, revistas, enciclopédias, literatura em geral.<br />

Fiz o Curso Normal, não por vocação, mas por falta <strong>de</strong> opção <strong>de</strong> quem morava numa ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

pequena, on<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as moças acabavam sendo professoras. Mas no fundo acho que eu sempre<br />

quis ser professora, e professora <strong>da</strong> re<strong>de</strong> pública. Já experimentei trabalhar em escola particular,<br />

e acabei voltando.Também fui diretora <strong>de</strong> escola por dois anos e, quando tive que optar entre<br />

ser diretora ou professora, não tive dúvi<strong>da</strong>: voltei feliz para a sala <strong>de</strong> aula.<br />

Durante os dois primeiros anos <strong>de</strong> forma<strong>da</strong> fui professora substituta. Passava as manhãs observando as<br />

professoras <strong>da</strong>rem aula e, quando alguma faltava, o que era raro, eu assumia a classe. No terceiro ano<br />

<strong>de</strong> forma<strong>da</strong> (1973) me atribuíram uma classe numa escola rural para alunos <strong>de</strong> 2ª e 3ª séries. Entrei<br />

em pânico! Percebi que no Curso Normal não me ensinaram a <strong>da</strong>r aulas, e não tinha a quem<br />

recorrer. Como havia passado dois anos observando as boas professoras, resolvi seguir o mo<strong>de</strong>lo<br />

<strong>de</strong>las: trabalhava com o livro didático <strong>de</strong> capa a capa, <strong>da</strong>va muitos exercícios repetitivos, treinos<br />

ortográficos, muita cópia, principalmente como lição <strong>de</strong> casa; aluno mudo, sentado um atrás do outro,<br />

professora <strong>de</strong>tentora do saber e controladora <strong>da</strong> aprendizagem. Quando penso naquela época, fico<br />

envergonha<strong>da</strong> com tantos erros que cometi. A sorte dos meus alunos é que eu realmente queria<br />

ser uma boa professora, e por isso fazia todos os cursos que apareciam e isso acabava melhorando<br />

minha prática pe<strong>da</strong>gógica.<br />

Em 79, já morando em Guarulhos, na Gran<strong>de</strong> São Paulo, além <strong>da</strong> escola estadual, comecei a <strong>da</strong>r<br />

aulas na re<strong>de</strong> municipal <strong>de</strong> São Paulo.Trabalhei em duas escolas até 97, quando me aposentei <strong>da</strong><br />

escola estadual. E todos os anos, em pelo menos uma <strong>de</strong>ssas escolas, eu escolhia a 1ª série, acho<br />

que já sentia um certo fascínio pela alfabetização, mesmo quando ain<strong>da</strong> acreditava numa concepção<br />

empirista <strong>de</strong> ensino e aprendizagem.<br />

Devo ter trabalhado uns quinze anos nessa linha <strong>de</strong> professora tradicional, que sabe tudo, que<br />

controla a aprendizagem <strong>de</strong> seus alunos, mas não me sentia satisfeita com os resultados, sempre<br />

ficava um vazio quando terminava o ano; e por mais que eu me esforçasse em ensinar, muitas<br />

crianças haviam "ficado para trás". Alguma coisa estava erra<strong>da</strong>. Eu precisava <strong>de</strong>scobrir o que era.<br />

M1U1T6<br />

12


Em 1990 conheci pessoas inteligentes, sensíveis, que também tinham as mesmas preocupações,<br />

entre elas a educadora Rosaura Soligo, que já fazia um trabalho <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> professores na<br />

re<strong>de</strong> municipal <strong>de</strong> São Paulo e acabou me conseguindo uma vaga no curso "Por uma alfabetização<br />

sem fracasso", com a educadora Telma Weisz.<br />

Foi aí que comecei a refletir sobre as concepções <strong>de</strong> educação, escola, aluno e ensino-aprendizagem<br />

que eu tinha até então e comecei a mu<strong>da</strong>r o rumo do meu trabalho. Não fui resistente às<br />

mu<strong>da</strong>nças, pois o velho não me satisfazia mais. Mesmo assim, foi dolorido. Ao mesmo tempo que<br />

eu me <strong>de</strong>slumbrava com as coisas novas que via, eu me <strong>de</strong>sesperava sem saber como fazer em<br />

sala <strong>de</strong> aula com meu aluno.<br />

Esse ano <strong>de</strong> 1990 foi um marco na minha vi<strong>da</strong>. Perdi o controle sobre a aprendizagem <strong>de</strong> meus<br />

alunos, muitas vezes no meio <strong>de</strong> uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> eu percebia que aquilo estava muito ruim, que<br />

precisava ser melhorado, mas não sabia como. E aí <strong>da</strong>va vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> largar tudo e voltar a ser<br />

aquela professora medíocre, conforma<strong>da</strong>... Mas isso durava alguns segundos, parava tudo, inventava<br />

outra coisa e <strong>de</strong>pois ia repensar a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Estava claro o que não servia mais, mas a dúvi<strong>da</strong> era como e o que colocar no lugar. Foi um ano<br />

muito difícil, a minha cabeça não <strong>da</strong>va conta <strong>de</strong> processar tantos conhecimentos novos, até com<br />

sapatos trocados acabei indo para a escola um dia. Joguei fora to<strong>da</strong>s as cartilhas e todos os<br />

mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> exercícios motores, <strong>de</strong> textos cartilhescos e outros mais. No final do ano, apesar <strong>de</strong><br />

ain<strong>da</strong> ter alunos que não liam, eu me sentia mais segura, conseguia compreen<strong>de</strong>r melhor o<br />

processo <strong>de</strong>ssas crianças e ajudá-las.<br />

Nos anos seguintes fui melhorando, participava <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> professores alfabetizadores<br />

oferecidos pela Prefeitura <strong>de</strong> São Paulo, coor<strong>de</strong>nados por pessoas que entendiam<br />

realmente <strong>de</strong> alfabetização, que levava o grupo a discutir a prática pe<strong>da</strong>gógica embasa<strong>da</strong> em<br />

pressupostos teóricos. E na escola havia um espaço muito importante, que era o horário <strong>de</strong><br />

trabalho coletivo, quando estudávamos, discutíamos e planejávamos as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> sala <strong>de</strong> aula,<br />

e isso <strong>da</strong>va uma certa segurança para eu ir em busca <strong>de</strong> novos caminhos.<br />

O que ficou bem claro nesse novo jeito <strong>de</strong> caminhar é que as mu<strong>da</strong>nças não acontecem num<br />

passe <strong>de</strong> mágica, que é preciso sim, "correr atrás do prejuízo" <strong>da</strong> má formação profissional, que<br />

é preciso ler, estu<strong>da</strong>r, refletir, discutir e muitas vezes brigar por aquilo que acreditamos.<br />

O meu aprendizado não foi fácil, mas valeu a pena, não sei como seria minha vi<strong>da</strong> se ain<strong>da</strong> fosse<br />

aquela professora tradicional; talvez cansa<strong>da</strong>, reclamando <strong>da</strong>s crianças que não apren<strong>de</strong>m e<br />

tentando achar o culpado, esperando o tempo passar rápido para me aposentar, sem muitos<br />

<strong>de</strong>safios, sem sonhos... Não consigo me ver assim, sou apaixona<strong>da</strong> pelo que faço.Vibro com ca<strong>da</strong><br />

conquista <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> criança, vivo me <strong>de</strong>safiando para po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>safiar meus alunos. Não sei tudo,<br />

mas quero saber muito. Continuo lendo, estu<strong>da</strong>ndo, discutindo, revendo, reinventando, procurando,<br />

<strong>de</strong>scobrindo e, o mais importante, apren<strong>de</strong>ndo.<br />

M1U1T6<br />

13


Minha turma<br />

Minha classe é o 1º ano A, forma<strong>da</strong> por 22 meninos e 16 meninas, num total <strong>de</strong> 38 crianças, sendo<br />

que:<br />

• 35 têm 7 anos completos e freqüentaram a Escola <strong>de</strong> <strong>Educação</strong> Infantil que fica perto <strong>de</strong> nossa escola;<br />

• 2, com 8 anos, são repetentes <strong>da</strong> 1ª série;<br />

• 1, com 9 anos, é aluno <strong>da</strong> 3ª série mas, como ain<strong>da</strong> não apren<strong>de</strong>u a ler, meta<strong>de</strong> do período <strong>de</strong> aula<br />

freqüenta a minha classe.<br />

A maioria <strong>de</strong> meus alunos é <strong>de</strong> família <strong>de</strong> baixa ren<strong>da</strong>, cujos pais (com algumas exceções) têm<br />

pouca escolari<strong>da</strong><strong>de</strong> e, conseqüentemente, pouca qualificação profissional. Por querer que os<br />

filhos tenham uma vi<strong>da</strong> melhor que a <strong>de</strong>les, há um envolvimento e participação muito gran<strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

maioria dos pais nas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s escolares <strong>de</strong> seus filhos. E isso é muito bom, porque as crianças<br />

se sentem mais valoriza<strong>da</strong>s e motiva<strong>da</strong>s.<br />

Des<strong>de</strong> o primeiro dia <strong>de</strong> aula vou observando as crianças, fazendo um diagnóstico dos saberes<br />

<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> uma. Percebi nessa turma que a maioria não estava habitua<strong>da</strong> a ouvir leitura <strong>de</strong> histórias<br />

– nem em casa, nem na pré-escola. São poucas as crianças que têm livros em casa e cujos pais<br />

são leitores.Também observei o que já sabem sobre o sistema alfabético <strong>de</strong> escrita, fazendo uma<br />

entrevista individual on<strong>de</strong> ditei uma lista <strong>de</strong> palavras e ca<strong>da</strong> uma escreveu e leu <strong>de</strong> acordo com<br />

suas hipóteses. Neste momento (início do ano letivo) a minha classe está assim:<br />

• 4 crianças chegaram alfabetiza<strong>da</strong>s: Davy (repetente <strong>da</strong> 1ª série) e Bruno lêem fluentemente e as outras<br />

duas, Renato e Bianca, são recém-alfabéticos e lêem com um pouco <strong>de</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>;<br />

• 3 estão quase alfabetizados, às vezes usam uma letra para escrever uma sílaba, outras vezes usam<br />

duas letras (silábicos/alfabéticos);<br />

• 31 têm uma hipótese <strong>de</strong> escrita silábica, ou seja, utilizam uma letra para ca<strong>da</strong> sílaba; sendo que 16<br />

utilizam pelo menos uma letra correta <strong>da</strong> sílaba e 15 não conhecem os valores sonoros e nem sabem<br />

o nome <strong>da</strong>s letras do alfabeto.<br />

Eu acho muito importante conhecer bem os saberes <strong>de</strong> meus alunos, não para classificá-los, mas<br />

para planejar ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>safiadoras, agrupá-los <strong>de</strong> maneira produtiva e fazer intervenções<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s para que eles apren<strong>da</strong>m mais rápido.<br />

De maneira geral, minha turma é bem anima<strong>da</strong>, interessa<strong>da</strong>, participativa e falante. Estão sempre<br />

querendo saber mais, são ousados, se arriscam e não têm medo <strong>de</strong> errar. As meninas são mais<br />

calmas, falam baixo, algumas são tão quietas que tenho até medo <strong>de</strong> esquecê-las. Já os meninos<br />

são mais agitados, falam muito alto, são mais "levados" e alguns meio agressivos.<br />

Já conseguimos estabelecer um vínculo afetivo muito forte e também discutimos e estabelecemos<br />

algumas regras que <strong>de</strong>verão ser segui<strong>da</strong>s no <strong>de</strong>correr do ano.<br />

Essa classe é muito heterogênea, tanto no conhecimento como no comportamento; enquanto há<br />

crianças que sabem muito, há crianças com muitas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s que precisam diariamente <strong>de</strong> uma<br />

atenção especial; enquanto há crianças extremamente quietas, há outras barulhentas <strong>de</strong>mais.<br />

Trabalhar com essa heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> não vai ser tão difícil, o difícil mesmo, mas não impossível,<br />

é <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong>ssa sala tão numerosa.<br />

M1U1T6<br />

14


Florentina Pitz Maiochi<br />

Professora <strong>da</strong> 1ª série <strong>da</strong> Escola Municipal <strong>de</strong> Ensino Fun<strong>da</strong>mental Octávio Pereira<br />

Lopes – São Paulo<br />

Iniciei meus estudos no interior do estado <strong>de</strong> Santa Catarina. Cursei o primário numa escola rural<br />

multisseria<strong>da</strong>. Aprendi a ler <strong>de</strong>corando as lições <strong>da</strong> cartilha. Gostava <strong>de</strong> estu<strong>da</strong>r, mas as séries<br />

iniciais foram difíceis; além <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s normais para quem vê letras pela primeira vez, havia<br />

também a barreira <strong>da</strong> língua, eu só me comunicava em alemão, a língua utiliza<strong>da</strong> pelos meus pais.<br />

Cursei a 5ª série, preparativa para o exame <strong>de</strong> admissão, na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois meus pais mu<strong>da</strong>ram-se<br />

para um sítio próximo a uma pequena ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, para que os filhos pu<strong>de</strong>ssem <strong>da</strong>r continui<strong>da</strong><strong>de</strong> aos<br />

estudos. Em segui<strong>da</strong>, ingressei no Curso Normal Regional, equivalente ao antigo ginásio, que <strong>da</strong>va<br />

habilitação para o magistério em escolas rurais multisseria<strong>da</strong>s.<br />

Quando estava no 3º ano <strong>de</strong>sse curso, na época 2º grau, li o primeiro livro não-didático <strong>da</strong> minha<br />

vi<strong>da</strong> estu<strong>da</strong>ntil; recebi-o como prêmio <strong>de</strong> boa aluna e lembro-me <strong>de</strong> ter lido e relido muitas<br />

vezes. Naquele tempo não tínhamos livros em casa, exceto a Bíblia e os didáticos, e não havia<br />

biblioteca na escola e nem na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Terminei esse curso aos 16 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> e, no ano seguinte, comecei a lecionar numa escola<br />

municipal rural para alunos <strong>de</strong> 1ª a 4ª série. Eu cui<strong>da</strong>va <strong>da</strong> parte pe<strong>da</strong>gógica e simultaneamente<br />

<strong>da</strong> meren<strong>da</strong>, <strong>da</strong> higiene e <strong>da</strong> limpeza do prédio escolar, e <strong>da</strong> APM (Associação <strong>de</strong> Pais e Mestres),<br />

responsável por arreca<strong>da</strong>r fundos para manter a escola.<br />

Lembro-me que era difícil <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong> tudo em meio período <strong>de</strong> trabalho, mas tenho lembranças<br />

boas <strong>da</strong> escola, dos alunos e <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mesmo assim, não estava satisfeita, saí em busca <strong>de</strong><br />

melhores condições e resolvi continuar meus estudos.<br />

Fiz o curso Normal (antigo Magistério), com duração <strong>de</strong> três anos e que me habilitava para<br />

lecionar em Grupo Escolar <strong>de</strong> 1ª a 4ª série primária e <strong>de</strong> 1ª a 4ª série ginasial.<br />

Foi muito difícil continuar lecionando numa escola naquelas condições num período, e no outro<br />

viajar diariamente 60 Km <strong>de</strong> estra<strong>da</strong> <strong>de</strong> terra para estu<strong>da</strong>r. Consegui terminar os estudos e<br />

trabalhar num Grupo Escolar.<br />

Depois vim morar em São Paulo e, como meus estudos não tinham vali<strong>da</strong><strong>de</strong> em outro Estado,<br />

não podia lecionar aqui, a não ser que fizesse o curso <strong>de</strong> Pe<strong>da</strong>gogia.<br />

Enfrentei todos os obstáculos, fiz a facul<strong>da</strong><strong>de</strong> e comecei a lecionar numa escola estadual, como<br />

professora substituta. Depois, prestei o concurso <strong>de</strong> professor <strong>de</strong> 1ª a 4ª série <strong>da</strong> Re<strong>de</strong> Municipal<br />

<strong>de</strong> São Paulo e fui efetiva<strong>da</strong> em 1978, on<strong>de</strong> estou até hoje.<br />

A minha primeira classe foi uma 1ª série. Era a 1ª C. Naquela época o ensino municipal adotava<br />

a cartilha A pata na<strong>da</strong> que ensinava to<strong>da</strong>s as sílabas primeiro em "a", ex: ba, ca, <strong>da</strong>, ma, etc;<br />

formava-se palavras e frases e só <strong>de</strong>pois fazia-se a troca <strong>da</strong>s vogais, isto é, substituía a vogal "a"<br />

pelo "o" em to<strong>da</strong>s as consoantes e assim sucessivamente com as outras vogais. Eu achava muito<br />

complicado, mas tinha que seguir as normas <strong>da</strong> escola.<br />

M1U1T6<br />

15


Fiz um curso com a professora Albanize e fiquei bem integra<strong>da</strong> nesse método.Todos os alunos<br />

aprendiam a ler e escrever, só que era um aprendizado mecânico, pura memorização, e o fracasso<br />

aparecia mais adiante, na 3ª e na 4ª séries. Pensei que fosse esse método o culpado pelo fracasso<br />

e voltei para as famílias silábicas (cartilha Caminho Suave), que também não levavam ao resultado<br />

que eu esperava.<br />

Procurei outros cursos. E num <strong>de</strong>les aprendi a fazer o silabário <strong>da</strong> classe partindo <strong>de</strong> palavras<br />

"chaves" contextualiza<strong>da</strong>s e próximas <strong>da</strong> vivência dos alunos. Notei um pequeno avanço, inclusive<br />

na motivação dos alunos, mas ain<strong>da</strong> não estava satisfeita.<br />

Pouco tempo <strong>de</strong>pois ouvi falar <strong>de</strong> um curso chamado Por uma Alfabetização sem Fracasso e<br />

procurei me inscrever. Foi difícil, pois o curso era <strong>de</strong>stinado aos professores <strong>da</strong> re<strong>de</strong> estadual. Na<br />

ocasião, a professora Rosaura Soligo trabalhava na equipe <strong>de</strong> Apoio Pe<strong>da</strong>gógico <strong>da</strong> Divisão<br />

Regional do Ensino Municipal e conseguiu algumas vagas para os professores <strong>da</strong> re<strong>de</strong> municipal. Foi<br />

quando consegui fazer o curso, que era coor<strong>de</strong>nado pela educadora Telma Weisz, no ano <strong>de</strong> 1990.<br />

Comecei lendo e replicando a Psicogênese <strong>de</strong> Emilia Ferreiro, e também fui lendo outros autores<br />

como: Ana Teberosky, Mary Kato, Wan<strong>de</strong>rley Geraldi, Frank Smith etc. Nessa mesma época<br />

participei <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> formação permanente <strong>de</strong> professores, cujas estratégias eram: leitura<br />

compartilha<strong>da</strong> <strong>de</strong> bons textos, tematização <strong>da</strong> prática e troca <strong>de</strong> experiências. Participei também<br />

<strong>de</strong> seminários e congressos. Foi o marco transformador <strong>da</strong> minha trajetória profissional.<br />

A minha prática transformou-se, <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> lado a cartilha. No início fiquei sem "chão", mas <strong>de</strong>pois<br />

fui <strong>de</strong>scobrindo o caminho. O caminho que não tem volta: alfabetizar com textos. O texto como<br />

suporte para apropriação <strong>de</strong> uma varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gêneros (a questão do letramento) e também o<br />

texto para compreen<strong>de</strong>r o sistema alfabético <strong>de</strong> escrita.<br />

Comecei a ler diariamente para os meus alunos e numa diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> enorme e hoje eu sei que<br />

esse ambiente alfabetizador fez falta no passado.<br />

Compreendi também que as crianças começam a pensar muito cedo sobre o sistema <strong>de</strong> escrita, e<br />

que se utilizam <strong>de</strong> várias estratégias <strong>de</strong> leitura para interpretar um texto e que ca<strong>da</strong> criança<br />

constrói seu processo <strong>de</strong> alfabetização; alguns <strong>de</strong>moram mais, outros vão mais rápido, mas todos<br />

passam pelas mesmas etapas em <strong>de</strong>terminados momentos do processo. Mesmo os adultos, quando<br />

estão em processo <strong>de</strong> alfabetização vão construindo e compreen<strong>de</strong>ndo o sistema alfabético<br />

passando pelas mesmas hipóteses <strong>da</strong>s crianças. Hoje eu sei...<br />

Depois <strong>de</strong>ssa etapa <strong>da</strong> minha trajetória profissional fui coor<strong>de</strong>nadora pe<strong>da</strong>gógica e diretora <strong>de</strong><br />

escola. Foi um <strong>de</strong>safio e uma experiência que valeu a pena. Mas a minha realização profissional<br />

acontece mesmo é na sala <strong>de</strong> aula.<br />

No ano passado voltei a alfabetizar, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> dois anos afasta<strong>da</strong>. No início <strong>de</strong>ste ano me envolvi<br />

com este Projeto, fazendo parte do Grupo-Referência, e estou estu<strong>da</strong>ndo para melhorar ca<strong>da</strong><br />

vez mais a minha atuação profissional.<br />

Tenho também uma amiga e parceira, Rosalin<strong>da</strong>, com quem partilhei e partilho há mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<br />

anos as dúvi<strong>da</strong>s, angústias, certezas e incertezas que permearam e continuam permeando esse<br />

processo <strong>de</strong> construção <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> profissional que não se encerra aqui, mas continua...<br />

M1U1T6<br />

16


Minha turma<br />

São 36 alunos, sendo 33 alunos novos e 3 alunas reti<strong>da</strong>s por faltas no ano passado. Essas três alunas<br />

repetentes têm muitas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s, duas <strong>de</strong>las estão com uma avaliação psicológica e necessitam<br />

<strong>de</strong> acompanhamento fonoaudiológico, psicológico e psicope<strong>da</strong>gógico.<br />

Fiz um levantamento para <strong>de</strong>tectar os conhecimentos prévios dos alunos através <strong>de</strong> vários<br />

instrumentos como: leitura compartilha<strong>da</strong> com inferência para conhecer a visão <strong>de</strong> mundo dos<br />

mesmos; diagnóstico <strong>da</strong> clientela através <strong>de</strong> pesquisa com os pais para saber, entre outros, o<br />

nível sócio-econômico e cultural <strong>da</strong>s famílias; verificação <strong>de</strong> estudo anterior como freqüência na<br />

pré-escola, e uma son<strong>da</strong>gem na qual ditei palavras <strong>de</strong> um mesmo campo semântico e em segui<strong>da</strong><br />

pedi a leitura, para <strong>de</strong>scobrir como os alunos pensam a escrita.<br />

Nesse levantamento constatei que meus alunos, mesmo tendo freqüentado a pré-escola, sabem<br />

pouco sobre a linguagem escrita, não têm livros em casa e nem o hábito <strong>de</strong> ouvir histórias. Os pais<br />

também não são usuários <strong>da</strong> língua escrita, a maioria estudou muito pouco e há dois analfabetos.<br />

Após a son<strong>da</strong>gem para saber qual é a hipótese <strong>de</strong> escrita dos alunos neste momento, tenho o<br />

seguinte:<br />

• apenas 1 aluna sabe ler e escrever com autonomia;<br />

• 20 alunos escrevem usando uma letra qualquer para ca<strong>da</strong> emissão sonora, além <strong>de</strong> não conhecer todo<br />

o alfabeto;<br />

• 10 alunos ao escrever utilizam uma letra para ca<strong>da</strong> sílaba, mas com o valor sonoro correto;<br />

• 5 alunos ain<strong>da</strong> não sabem que a escrita representa a fala e, para escrever <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s palavras,<br />

usam letras sem nenhum critério e para ler apontam tudo <strong>de</strong> uma só vez.<br />

Como vimos, todos possuem um conhecimento sobre o sistema <strong>de</strong> escrita. Sobre a língua que<br />

se escreve e a visão <strong>de</strong> mundo, todos têm um longo caminho a trilhar.<br />

O grupo-classe é ativo, mostra interesse em apren<strong>de</strong>r mas são <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> professora para<br />

a realização <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que provocam <strong>de</strong>safios.<br />

Há dois grupos na classe: os que vieram <strong>da</strong> escola <strong>de</strong> educação infantil próxima e já estu<strong>da</strong>vam<br />

na mesma turma e os outros que vieram <strong>de</strong> outras escolas e, por isso, há uma certa rivali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

entre os grupos, o que acaba gerando muitas brigas entre eles.<br />

A heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> do grupo é bastante visível, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a faixa etária que é entre 6 a 9 anos.<br />

Conhecimentos e procedência <strong>de</strong>sses alunos: 60% <strong>da</strong> mesma escola <strong>de</strong> educação infantil, 10%<br />

repetentes e 30% <strong>de</strong> outras escolas. Mas as parcerias monta<strong>da</strong>s <strong>de</strong> acordo com os objetivos <strong>da</strong>s<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s para favorecer a troca e a veiculação <strong>de</strong> conhecimentos será a mola propulsora do<br />

meu trabalho pe<strong>da</strong>gógico ao longo <strong>de</strong>ste ano.<br />

M1U1T6<br />

17


Márcia Januário Monteiro Museneck<br />

Professora <strong>da</strong> 1ª série D <strong>da</strong> Escola Municipal <strong>de</strong> Ensino Fun<strong>da</strong>mental Coman<strong>da</strong>nte<br />

Gastão Moutinho – São Paulo<br />

Gostaria <strong>de</strong> aproveitar esta oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> para contar a trajetória <strong>de</strong> um sonho, do meu sonho.<br />

Des<strong>de</strong> pequena, sempre quis ser professora. Fui em busca do meu sonho, fazendo o curso <strong>de</strong><br />

Magistério, on<strong>de</strong> recebi muitos mo<strong>de</strong>los, fiz ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> música, coor<strong>de</strong>nação motora, <strong>da</strong>tas<br />

comemorativas e outros.<br />

Em 1985, assumi uma sala na Prefeitura <strong>de</strong> São Paulo, uma sala <strong>de</strong> <strong>Educação</strong> Infantil que funcionava<br />

numa escola <strong>de</strong> primeiro grau. No <strong>de</strong>correr do trabalho, percebi que a classe real não era o que<br />

eu imaginava, às vezes sentia-me totalmente perdi<strong>da</strong>, pois alguns alunos avançavam e outros eu<br />

tinha a sensação <strong>de</strong> não estarem apren<strong>de</strong>ndo e eu, por minha vez, não conseguia ajudá-los. Isso<br />

gerava uma angústia, um <strong>de</strong>sespero por não saber o que e como fazer para que avançassem.<br />

Busquei naquilo que conhecia uma maneira para aju<strong>da</strong>r esses alunos. E agora, refletindo sobre<br />

isso, percebo que na época eu acreditava que somente o professor ensinava, só ele faria o<br />

grupo avançar.<br />

Comecei a buscar enten<strong>de</strong>r como as crianças aprendiam, o que pensavam, do que precisavam<br />

para seu aprendizado. Nessa época começaram a surgir textos que abor<strong>da</strong>vam a questão <strong>de</strong><br />

"como a criança apren<strong>de</strong>". Lia tudo o que encontrava ou que me era oferecido, buscava discutir<br />

para enten<strong>de</strong>r, mas ain<strong>da</strong> havia muitas questões obscuras.<br />

Em 1986, trabalhei em um projeto <strong>da</strong> Prefeitura chamado "classes comunitárias". Nesse projeto,<br />

os educadores <strong>da</strong> re<strong>de</strong> pública iam <strong>da</strong>r aula em salas <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s; a minha sala era na favela<br />

do Jardim Peri, ali conheci educadores que partilhavam as mesmas preocupações e ansie<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

que eu. Nós tínhamos encontros mensais para a discussão sobre as propostas do projeto. A<br />

questão <strong>da</strong> aprendizagem era o que mais discutíamos, e percebíamos que ain<strong>da</strong> não havia clareza<br />

<strong>de</strong> como trabalhar, como fazer o aluno avançar.<br />

Senti que tive avanços, mas questões importantes, como a importância <strong>da</strong> interação entre as<br />

crianças e a intervenção do professor, ain<strong>da</strong> não eram observáveis para mim.<br />

Em 1989, a prefeitura criou na re<strong>de</strong> os grupos <strong>de</strong> formação, um espaço on<strong>de</strong> os educadores<br />

iriam estu<strong>da</strong>r. Como trabalhar para fazer o aluno avançar, enten<strong>de</strong>r como o aluno pensa, rever a<br />

ação do professor na sala <strong>de</strong> aula, enten<strong>de</strong>r a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> interação entre os alunos e <strong>de</strong> boas<br />

intervenções, eram as questões que se pretendia abor<strong>da</strong>r nos encontros.<br />

Nesse espaço privilegiado, nossas angústias afloravam, pois íamos para a escola cheias <strong>de</strong><br />

esperanças e às vezes em nossa ânsia <strong>de</strong> fazer não conseguíamos os resultados esperados, mas<br />

a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> discutir e repensar nossas ações e o que resultava <strong>de</strong>las ia oportunizando nosso<br />

crescimento. Esse período foi uma marco na minha carreira como educadora, me fez repensar a<br />

prática com subsídios teóricos.<br />

M1U1T6<br />

18


O ano <strong>de</strong> 1990 foi um ano especial, pois pela primeira vez peguei uma sala <strong>de</strong> 1ª série, com a<br />

qual eu po<strong>de</strong>ria ousar. A classe seria minha pelo ano todo, pois até então eu pegava somente<br />

curtas substituições.<br />

A sala para a qual eu lecionei foi forma<strong>da</strong> para uma "escola nova" que seria construí<strong>da</strong> próximo<br />

<strong>da</strong>li. Havia nessa sala alunos <strong>de</strong> 6 a 14 anos, que vinham <strong>da</strong>s mais varia<strong>da</strong>s reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Por ter uma<br />

classe tão heterogênea, fiz um trabalho bastante diferente. Hoje creio terem sido pequenos<br />

projetos, como o trabalho com receitas, on<strong>de</strong> íamos para a cozinha <strong>da</strong> escola, fazíamos um prato<br />

e <strong>de</strong>pois coletivamente escrevíamos a receita, que comporia um livro <strong>de</strong> receitas.<br />

Fizemos também um minimercado, on<strong>de</strong> confeccionávamos os produtos a serem comercializados,<br />

<strong>da</strong>ndo-lhes nomes e preços e organizando em prateleiras por categorias.<br />

Em 1991 me efetivei na re<strong>de</strong> municipal <strong>de</strong> ensino e fui trabalhar em duas escolas, uma <strong>de</strong> <strong>Educação</strong><br />

Infantil e outra <strong>de</strong> Ensino Fun<strong>da</strong>mental. Nessa época pu<strong>de</strong> continuar com o trabalho do grupo <strong>de</strong><br />

formação e também continuar com a busca pelo meu aprendizado; e o mais gostoso foi construir<br />

parcerias, pois havia nesse grupo outras professoras que, como eu, buscavam um caminho.<br />

Em 1992 comecei a trabalhar em uma escola na qual o grupo <strong>de</strong> professores <strong>de</strong>cidiu promover<br />

para o 2º ano um número gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> alunos que já faziam a 1ª série há alguns anos. Escolhi<br />

trabalhar com o 2º ano, e essa classe me foi atribuí<strong>da</strong>. Para mim, essa classe foi um marco no<br />

trabalho <strong>de</strong> leitura, pois era uma classe com sérios problemas <strong>de</strong> disciplina, mas nos momentos<br />

<strong>de</strong> leitura do professor e <strong>de</strong> escolha <strong>de</strong> livros para leitura eles me surpreendiam, pois ficavam<br />

atentos e ansiosos pelo que seria lido, se envolviam <strong>de</strong> uma maneira mágica, sempre pediam mais<br />

e mais. Ficava claro para mim quanto a leitura era importante para eles naquele momento.<br />

Em 1994, iniciei um trabalho com alfabetização <strong>de</strong> adultos, e então pu<strong>de</strong> comprovar que o que<br />

estudávamos sobre como se apren<strong>de</strong> se aplicava também aos adultos. Creio que esse período <strong>da</strong><br />

minha carreira foi o mais prazeroso, pois após um dia <strong>de</strong> trabalho árduo e pesado meus alunos<br />

vinham com to<strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> saber.<br />

No início tinham muita vergonha, quase não falavam, percebi que se eu explicitasse as propostas,<br />

meus objetivos, oferecendo o porque e o para que <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> eles sempre a realizavam, mesmo<br />

não gostando <strong>de</strong> algo, como por exemplo trabalhar em dupla. Com o passar do tempo os alunos<br />

percebiam a importância <strong>de</strong> falar, <strong>de</strong> ouvir e <strong>de</strong> perguntar. O trabalho com adultos me mostrou<br />

claramente como eles aprendiam e ensinavam o tempo todo.<br />

Hoje, quando paro para refletir sobre minha trajetória como educadora, percebo que muitas <strong>da</strong>s<br />

angústias que permeavam minha prática ain<strong>da</strong> estão presentes: quando um aluno não avança<br />

como esperado, quando não sei qual a melhor intervenção a fazer. Contudo tenho comigo algumas<br />

certezas: que a criança precisa interagir para apren<strong>de</strong>r, que preciso planejar as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, as<br />

parcerias e as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> intervenção. A maior certeza que tenho hoje é que não posso<br />

parar <strong>de</strong> buscar, <strong>de</strong> tentar fazer o máximo pelos meus alunos.<br />

M1U1T6<br />

19


Minha turma<br />

Este ano minha turma <strong>de</strong>morou a se formar, pois alguns alunos <strong>da</strong> turma inicial se mu<strong>da</strong>ram<br />

e outros conseguiram vagas em escolas mais próximas <strong>de</strong> suas casas, com isso foram sendo<br />

matriculados alunos mais novos, que farão 7 anos no segundo semestre.<br />

A classe é heterogênea, tenho no grupo alunos com conhecimentos diferenciados, a gran<strong>de</strong><br />

maioria encontra-se na hipótese <strong>de</strong> escrita pré-silábica, ou seja, a etapa em que a escrita ain<strong>da</strong><br />

não é representação do falado. Percebo hoje que ter na classe alunos com hipóteses tão varia<strong>da</strong>s<br />

po<strong>de</strong> favorecer o meu trabalho, pois cria possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> parceria on<strong>de</strong> as crianças trocam,<br />

pensam juntas, estabelecem relações entre o que ca<strong>da</strong> um sabe, po<strong>de</strong>ndo compreen<strong>de</strong>r a linguagem<br />

escrita e pensando sobre suas regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Quando comecei o trabalho com a turma, percebi que quatro alunos não escreviam seus nomes;<br />

a gran<strong>de</strong> maioria já escrevia e o i<strong>de</strong>ntificava nas mais varia<strong>da</strong>s situações.<br />

Des<strong>de</strong> o inicio, tenho proposto para os alunos situações <strong>de</strong> escrita para fazer lista: dos materiais,<br />

dos alunos presentes...Verifiquei que poucos, cinco alunos, já escrevem convencionalmente,<br />

outros estão a caminho: têm a hipótese <strong>de</strong> que para ca<strong>da</strong> sílaba é preciso uma letra. Alguns já<br />

utilizam o valor sonoro convencional.<br />

A turma é falante, participativa, interessa<strong>da</strong>, está sempre disposta a fazer, a pensar.Alguns alunos<br />

têm dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> para se organizar com o material. Será necessário pensar em situações que os<br />

aju<strong>de</strong>, ao longo do ano, a <strong>de</strong>senvolver a organização.<br />

A partir <strong>da</strong>s observações que fiz nas primeiras semanas <strong>de</strong> aula estou <strong>de</strong>lineando minhas ações<br />

pe<strong>da</strong>gógicas. Hoje valorizo muito esse diagnóstico inicial, pois é ele que fornece as pistas para um<br />

planejamento que <strong>de</strong> fato reverta em aprendizagem.<br />

Acredito que será um ano produtivo para todos nós.<br />

Maria <strong>da</strong> Conceição Nascimento<br />

Professora <strong>da</strong> 1ª série B <strong>da</strong> Escola Municipal <strong>de</strong> Ensino Fun<strong>da</strong>mental Coman<strong>da</strong>nte<br />

Gastão Moutinho – São Paulo<br />

Eu sou Maria <strong>da</strong> Conceição, professora <strong>de</strong> <strong>Educação</strong> Infantil e Ensino Fun<strong>da</strong>mental no município<br />

<strong>de</strong> São Paulo.<br />

Ao falar sobre meu trabalho, tenho <strong>de</strong> fazer uma longa trajetória: contar alguns caminhos que<br />

hoje posso avaliar um pouco mais. Ao buscar explicitar, contarei minha formação e o meu<br />

<strong>de</strong>senvolvimento profissional permanente, que propiciou <strong>de</strong>senvolvimento pessoal, mu<strong>da</strong>nças <strong>de</strong><br />

valores, crenças, hábitos e atitu<strong>de</strong>s.<br />

M1U1T6<br />

20


Lembro que aos 7 anos já dizia que iria ser professora e, talvez inconscientemente, já me <strong>da</strong>va<br />

conta <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> importância <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sejo para minha vi<strong>da</strong>.<br />

Meu pai, um homem analfabeto, sempre me incentivou e achava motivo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> orgulho eu ser<br />

professora. Dizia ele: "Filha, estu<strong>da</strong>, estu<strong>da</strong> mesmo, para não ser burro <strong>de</strong> carga como eu". Sabia,<br />

em sua simplici<strong>da</strong><strong>de</strong>, que ter conhecimentos, saber ler e escrever era uma porta para a ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia,<br />

e isto sempre tentava passar para os seus filhos, aliás oito.<br />

Fiz o antigo 1º grau na Escola Municipal Armando <strong>de</strong> Arru<strong>da</strong> Pereira e, ao terminá-lo, fui fazer o<br />

2º grau (antigo colegial) na Escola Estadual <strong>de</strong> Segundo Grau Doutor Carlos Augusto <strong>de</strong> Freitas<br />

Villalva Júnior. Comecei a trabalhar em um escritório <strong>de</strong> contabili<strong>da</strong><strong>de</strong> para po<strong>de</strong>r aju<strong>da</strong>r minha<br />

família e na<strong>da</strong> melhor que um escritório, em tempos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> empregos, nos<br />

quais se ensinava o serviço e se oferecia "oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s" <strong>de</strong> trabalho. Não fiz Magistério, pois<br />

os cursos eram pagos e não havia cursos gratuitos no período noturno nas escolas próximas<br />

à minha residência.<br />

Trabalhava e aju<strong>da</strong>va meus pais no sustento <strong>de</strong> minha família, pois passei a estu<strong>da</strong>r no período<br />

noturno.Tudo caminhava razoavelmente bem, mas li<strong>da</strong>r só com números não estava trazendo<br />

satisfação. Surgiu então a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar como catequista em uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

paroquial, um serviço voluntário feito nos finais <strong>de</strong> semana. Foi com esse trabalho que pu<strong>de</strong><br />

pensar em didática, começando a ter contato com o ensinar, e a me entusiasmar com o que fazia.<br />

Com o grupo <strong>de</strong> catequistas estava sempre estu<strong>da</strong>ndo, pensando na tarefa <strong>de</strong> conciliar evangelização<br />

e confronto <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, preocupar-se em criar condições para que as crianças ficassem à<br />

vonta<strong>de</strong>, se sentissem alegres e com vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar. Isto envolvia a parte didática e, para<br />

isto, tínhamos uma coor<strong>de</strong>nação que nos aju<strong>da</strong>va a preparar o trabalho <strong>de</strong> forma significativa.<br />

Irmã Rejane Chedid era coor<strong>de</strong>nadora <strong>de</strong> um colégio particular e sempre fazia reflexões profun<strong>da</strong>s<br />

sobre o educar, reflexões que para a época e o ambiente on<strong>de</strong> atuávamos eram bastante<br />

avança<strong>da</strong>s, envolvia o compromisso com a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, mu<strong>da</strong>r sua própria vi<strong>da</strong>, abrindo a si<br />

mesmo e aos outros, trabalhando para transformar as estruturas do mundo, aju<strong>da</strong>r o outro a ter<br />

uma vi<strong>da</strong> melhor.<br />

Trabalhei ain<strong>da</strong> como voluntária na <strong>Educação</strong> <strong>de</strong> Jovens e Adultos no Movimento Comunitário<br />

<strong>de</strong> Promoção Humana <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> Paroquial <strong>de</strong> Santo Antônio. Professores formados<br />

orientavam o trabalho <strong>de</strong> leigos na educação <strong>de</strong> adultos e a ca<strong>da</strong> dia sentia-me mais entusiasma<strong>da</strong>.<br />

Terminei o antigo 2º grau e estava tenta<strong>da</strong> a <strong>da</strong>r uma gran<strong>de</strong> vira<strong>da</strong> em minha vi<strong>da</strong>, largar algo<br />

seguro como a contabili<strong>da</strong><strong>de</strong> e trabalhar com o Magistério. Em meio a pon<strong>de</strong>rações e incertezas<br />

<strong>de</strong> como começar a trabalhar como professora, fui fazer Pe<strong>da</strong>gogia no Instituto Metodista <strong>de</strong><br />

Ensino Superior, e no último ano <strong>de</strong> facul<strong>da</strong><strong>de</strong> fiz a inscrição para o concurso ao cargo <strong>de</strong><br />

professora. Passei, e comecei na <strong>Educação</strong> Infantil no Ensino Municipal <strong>de</strong> São Paulo em 1984.<br />

Inicialmente sentia muita dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>, até porque a formação que recebi na facul<strong>da</strong><strong>de</strong> não oferecia<br />

a prática necessária para o trabalho com as crianças <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> Infantil. Apareciam alguns<br />

cursos esporádicos e tudo isso era pouco para o início do trabalho. Os cursos oferecidos não<br />

aju<strong>da</strong>vam no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> competências profissionais, havia pouca parceria na escola e os<br />

professores caminhavam muito mais pela "intuição" do que com alicerces teóricos.<br />

M1U1T6<br />

21


O trabalho mais voltado para formação tive em um período <strong>de</strong> quatro anos, on<strong>de</strong> foi constante a<br />

reflexão <strong>da</strong> prática em sala e o estudo <strong>de</strong> outras práticas educativas.Trabalho <strong>de</strong> uma política<br />

volta<strong>da</strong> para quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ensino.<br />

Muito <strong>de</strong> minha formação também está liga<strong>da</strong> ao interesse pessoal em buscar práticas alternativas<br />

que melhorassem meu trabalho. O início <strong>de</strong>ssa mu<strong>da</strong>nça começou em 1990, com oficinas, palestras,<br />

congressos oferecidos pela Secretaria Municipal, o trabalho se consolidou através dos grupos <strong>de</strong><br />

formação, momentos propiciados aos professores em diferentes horários o que possibilitava a<br />

participação <strong>de</strong> professores que como eu, tinham dois cargos no Magistério.<br />

Na formação permanente discutia-se a postura do professor alfabetizador e como aju<strong>da</strong>r os<br />

alunos a apren<strong>de</strong>r. Tivemos contato com projetos que faziam a reflexão sobre o fracasso<br />

escolar, estudos para aju<strong>da</strong>r o professor a conhecer e compreen<strong>de</strong>r como os alunos utilizam a<br />

linguagem etc. Através dos grupos <strong>de</strong> estudos pu<strong>de</strong> melhorar a minha compreensão do processo<br />

<strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong> leitura e escrita, enten<strong>de</strong>r que os alunos tinham muitas informações e que<br />

a minha tarefa <strong>de</strong>via estar centra<strong>da</strong> nas questões <strong>de</strong> aprendizagem.<br />

De início essa mu<strong>da</strong>nça foi difícil, tive que mu<strong>da</strong>r atitu<strong>de</strong>s, posturas e práticas que antes eram<br />

seguras para mim, exemplo disso era o trabalho com textos que pedia para circular letras, textos<br />

em sua maioria escolarizados que só existiam <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> escola. Repensar como utilizar o texto<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> escola, foi a primeira mu<strong>da</strong>nça. Estimular o trabalho com a leitura e o porque <strong>da</strong><br />

leitura em seus diferentes objetivos foram mu<strong>da</strong>nças que vieram em segui<strong>da</strong>.<br />

Outro ponto importante na mu<strong>da</strong>nça foi <strong>de</strong>scobrir que apren<strong>de</strong>r a escrever estava<br />

diretamente ligado ao fato <strong>de</strong> <strong>da</strong>r a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> aos alunos para escreverem.Aos poucos<br />

fui <strong>da</strong>ndo espaço para a produção <strong>de</strong> textos, mesmo quando meus alunos não sabiam ain<strong>da</strong><br />

ler e escrever convencionalmente.<br />

A questão <strong>da</strong> heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> foi um ponto <strong>de</strong> muita reflexão. Ao longo do trabalho com a<br />

<strong>Educação</strong> Infantil e o Ensino Fun<strong>da</strong>mental, pu<strong>de</strong> explorar as diferenças entre os grupos como<br />

vantagem para a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> troca. Era preciso montar agrupamentos nos quais houvesse a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> informação, e aquele que "não sabe" aju<strong>da</strong>sse aquele que supostamente "sabe mais".<br />

Enquanto professora <strong>de</strong> <strong>Educação</strong> Infantil e Ensino Fun<strong>da</strong>mental minha preocupação sempre esteve<br />

volta<strong>da</strong> para as questões <strong>de</strong> alfabetização, principalmente após a implantação do ciclo, pois os<br />

alunos que não mais ficavam retidos na 1ª série seguiam para a 2ª e até mesmo para a 3ª série<br />

sem estar alfabetizados. Comecei a propor ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>safiadoras e contextualiza<strong>da</strong>s, que fizessem<br />

os alunos pensar, usar os conhecimentos que já tinham, buscar estratégias para construir a escrita.<br />

Comecei a ter contato com outras professoras que também estavam repensando sua atuação<br />

profissional e suas práticas em sala <strong>de</strong> aula e sempre nos encontrávamos nos finais <strong>de</strong> semana<br />

em grupos <strong>de</strong> estudos que visavam a melhoria <strong>da</strong> prática.<br />

M1U1T6<br />

22


Foi através <strong>da</strong> troca que pu<strong>de</strong> conhecer o trabalho com projetos que podiam envolver ações<br />

entre várias disciplinas ou focar em uma única, envolver um produto compartilhado com as<br />

crianças, e muitas outras vantagens. Foi através <strong>de</strong>ssa troca entre professores que pu<strong>de</strong> rever<br />

minhas ações e me apropriar <strong>de</strong> outras; compartilhar minhas angústias e me sentir mais segura;<br />

experimentar coisas novas e ousar.<br />

Minha turma<br />

Minha classe iniciou o ano com 36 alunos, 29 dos quais estavam com 6 anos, e somente 7<br />

haviam completado 7 anos no início do ano escolar.<br />

Para conhecer meu grupo, utilizei-me <strong>de</strong> son<strong>da</strong>gens, ou seja, ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s para diagnosticar quais<br />

conhecimentos os alunos traziam consigo. No período <strong>de</strong> a<strong>da</strong>ptação, fui propondo ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

para conhecer as hipóteses que os alunos não-alfabetizados tinham sobre a escrita. Esse diagnóstico<br />

mostrou-me o que pensavam naquele momento e como eu po<strong>de</strong>ria encaminhar o trabalho<br />

diante <strong>de</strong> um grupo com tantas diferenças e informações.<br />

A maioria dos alunos veio <strong>de</strong> escolas <strong>de</strong> <strong>Educação</strong> Infantil próximas, creches convenia<strong>da</strong>s ou ain<strong>da</strong><br />

escolas particulares. Dentro <strong>de</strong>sse grupo três crianças iniciaram alfabetiza<strong>da</strong>s, já sabiam ler e<br />

escrever. Vários ain<strong>da</strong> não relacionavam o sistema gráfico e o sonoro, utilizavam letras quaisquer<br />

e muitos não conheciam o alfabeto. Oito crianças não escreviam seu nome, necessitavam <strong>de</strong> um<br />

mo<strong>de</strong>lo para o registro. Cinco alunos já utilizavam uma letra para ca<strong>da</strong> emissão sonora, isto é,<br />

uma letra para ca<strong>da</strong> sílaba, e algumas vezes apareciam letras pertencentes à palavra que estavam<br />

escrevendo. Quatro alunos "oscilavam", ora escreviam silabicamente, ora alfabeticamente.<br />

Diante <strong>de</strong>ssa heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong>, tive <strong>de</strong> pensar em como agrupar esses alunos, principalmente no<br />

trabalho inicial, quando muitos não conseguiam li<strong>da</strong>r com o trabalho em grupos e duplas.Tinha<br />

como <strong>de</strong>safio garantir procedimentos didáticos em que fosse possível a circulação <strong>de</strong> informações<br />

e a aju<strong>da</strong> no grupo, socializar as respostas e ajudá-los a pensar.<br />

Para que pu<strong>de</strong>sse começar, iniciei explicando que trabalharíamos sempre em grupos e todos<br />

estavam lá para compartilhar.<br />

Diante <strong>da</strong>s primeiras experiências, observei que o grupo não era individualista. Ficou evi<strong>de</strong>nte a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> que todos têm <strong>de</strong> caminhar em conjunto, trocar informações, participar e cooperar.<br />

A interação gerou vários conflitos, como era <strong>de</strong> se esperar, mas via os alunos pensando e<br />

garantindo a troca <strong>de</strong> informações.<br />

Logo no início trabalhei com os nomes dos alunos.Tinha como finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar o interesse<br />

e o envolvimento <strong>de</strong> todos e também garantir informações sobre as letras, já que muitos não as<br />

conheciam. Além do nome próprio, outros textos passaram a fazer parte <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em<br />

duplas: poesias, parlen<strong>da</strong>s, canções.<br />

Hoje, percebo o quanto é importante incentivar a cooperação para <strong>de</strong>senvolver conhecimentos.<br />

M1U1T6<br />

23


Márcia Maria Camargo Gianvechio<br />

Professora <strong>da</strong> 2ª série <strong>da</strong> Escola Municipal <strong>de</strong> Ensino Fun<strong>da</strong>mental Tenente Aviador<br />

Fre<strong>de</strong>rico Gustavo – São Paulo<br />

Quando a gente pensa em trajetória profissional,vários aspectos po<strong>de</strong>m ser abor<strong>da</strong>dos,mas para este<br />

momento acho que o mais relevante é pensar no que foi importante para a minha transformação,<br />

tanto no que diz respeito à concepção <strong>de</strong> aprendizagem que eu tinha quanto nas mu<strong>da</strong>nças que<br />

tive na minha prática em sala <strong>de</strong> aula.<br />

Em primeiro lugar me lembro como se fosse hoje a sensação que tive quando me falaram numa<br />

reunião <strong>de</strong> professores sobre as hipóteses <strong>de</strong> escrita <strong>da</strong>s crianças (1989). Na época, eu trabalhava<br />

com uma 4ª série e fiquei morrendo <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> assumir uma 1ª série só para ver se era<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> o que estavam me dizendo. No ano seguinte lá estava eu <strong>da</strong>ndo aula para uma 1ª série,<br />

e tentando ver se tudo aquilo que me disseram era ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro.<br />

Percebi então que em primeiro lugar eu precisaria estu<strong>da</strong>r, pois o assunto era difícil. E foi o que<br />

fiz.Tive sorte, porque na escola em que eu trabalhava começava a se formar um grupo <strong>de</strong> pessoas<br />

com muita garra e disposição para estu<strong>da</strong>r e mu<strong>da</strong>r. Formamos um grupo <strong>de</strong> estudos para<br />

aprofun<strong>da</strong>r a teoria e ao mesmo tempo colocá-la em prática, só que como éramos um "grupo"<br />

podíamos ao mesmo tempo discuti-la.<br />

Um fato é importante dizer: apesar <strong>de</strong> to<strong>da</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>, o trabalho coletivo constituído nos<br />

permitiu não cometer algumas distorções <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nossa prática. O avanço foi muito rápido. O<br />

rompimento com as sílabas foi logo no primeiro ano em que trabalhei com 1ª série (1990). Esse<br />

ano foi muito sofrido, porque eu sabia como a criança aprendia, sabia <strong>da</strong>s suas hipóteses <strong>de</strong><br />

escrita, mas não tinha idéia do que fazer. É muito difícil quando se tira o nosso chão e não se<br />

coloca na<strong>da</strong> no lugar. Nesse momento começaram os meus problemas, porque não é fácil.<br />

Enten<strong>de</strong>r como a criança pensa é uma coisa, modificar a prática é outra. E enten<strong>de</strong>r e não<br />

mu<strong>da</strong>r é incoerente.<br />

Tivemos também o privilégio <strong>de</strong> ter um assessoramento <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> escola com uma pessoa <strong>de</strong><br />

fora, que apontava para nós os problemas <strong>de</strong> nossas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e ao mesmo tempo propunha a<br />

reflexão e a reformulação <strong>de</strong>la. Isto foi fun<strong>da</strong>mental para a construção <strong>de</strong> nossa prática e <strong>da</strong><br />

elaboração <strong>de</strong> um rol <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s para se apren<strong>de</strong>r a ler.<br />

Esse foi um gran<strong>de</strong> momento <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong> profissional, mas não parou por aí, logo em segui<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>scobri que alfabetizar não era só apren<strong>de</strong>r o sistema. Descobri então o letramento e passei a<br />

acreditar que só isto era importante, e que isto <strong>da</strong>ria conta <strong>de</strong> tudo, inclusive <strong>da</strong> aquisição do<br />

sistema alfabético.<br />

Hoje o que faço é bem diferente do que eu fazia. Estou buscando o equilíbrio, e uma didática que dê<br />

conta <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s essas mu<strong>da</strong>nças. Descobri que a organização <strong>da</strong> rotina, a distribuição <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

e formas <strong>de</strong> organização didática dos conteúdos, são a tônica para o meu trabalho atual. Ain<strong>da</strong><br />

estou "apanhando" em algumas situações, mas tenho certeza que no próximo ano será diferente.<br />

M1U1T6<br />

24


Minha turma<br />

Minha sala iniciou o ano com 36 crianças em níveis <strong>de</strong> conceitualização <strong>de</strong> escrita e leitura bem<br />

heterogêneos. Havia 15 crianças com hipótese <strong>de</strong> escrita silábica e o restante variava entre<br />

silábicos-alfabéticos e alfabéticos. Por ser uma sala <strong>de</strong> 2º ano do ciclo, o que se espera é que<br />

todos tenham pelo menos a compreensão do sistema <strong>de</strong> escrita, mas consi<strong>de</strong>rando que essa é<br />

uma situação real, e não a i<strong>de</strong>al, eu precisei criar uma rotina que <strong>de</strong>sse conta <strong>de</strong>ssas diferenças.<br />

Nessa rotina, garanto sempre uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura para as crianças com escrita silábica,<br />

enquanto as outras crianças refletem sobre outro aspecto <strong>da</strong> escrita. Consi<strong>de</strong>rando tudo isto,<br />

priorizei algumas situações didáticas importantes como: ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s permanentes (leitura diária<br />

pelo professor, ro<strong>da</strong> <strong>de</strong> leitores, empréstimo <strong>de</strong> livros), ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s seqüencia<strong>da</strong>s e projetos.To<strong>da</strong>s<br />

as situações que planejo são para privilegiar o aspecto discursivo do texto, mas garanto em<br />

to<strong>da</strong>s elas momentos para discutir também os aspectos voltados para o sistema alfabético <strong>de</strong><br />

escrita. Estes são alguns tipos <strong>de</strong> texto que estou priorizando na série: contos (<strong>de</strong> assombração,<br />

populares, maravilhosos); fábulas; len<strong>da</strong>s.<br />

Tenho convicção que um planejamento que aten<strong>da</strong> às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem dos alunos<br />

possibilitará que todos finalizem o ano lendo e escrevendo.<br />

Valéria Apareci<strong>da</strong> Scorsafava<br />

Professora <strong>da</strong> 4 a série D <strong>da</strong> Escola Municipal <strong>de</strong> Ensino Fun<strong>da</strong>mental Coman<strong>da</strong>nte<br />

Gastão Moutinho – São Paulo<br />

— Fala tchau para a mamãe...<br />

Refletir é olhar a própria ação<br />

<strong>de</strong> uma maneira particular e à distância.<br />

É tomar uma certa distância para melhor<br />

julgar o que se está fazendo,<br />

ou o que se fez, ou o que se fará.<br />

Pierre Furter<br />

Caminhando por aquele corredor enorme, fui coloca<strong>da</strong>, para alegria <strong>de</strong> minha mãe, com a melhor<br />

professora <strong>da</strong> escola.Tudo parecia muito gran<strong>de</strong> e diferente naquele primeiro dia <strong>de</strong> aula.<br />

— Repitam o movimento, cantando com a professora:<br />

Eu já vou enrolar<br />

O novelo <strong>da</strong> vovó<br />

Ela vai me tricotar<br />

Um bonito cachecol<br />

Maja é uma boa menina<br />

Tito é um bom menino<br />

Dunga é o cachorro <strong>de</strong> Tito<br />

M1U1T6<br />

25


Este foi o primeiro texto do meu livro <strong>de</strong> alfabetização, que todos os dias levava na minha mala,<br />

como se fosse o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro responsável por me tornar uma criança alfabetiza<strong>da</strong>.<br />

— Amanhã vou tomar sua leitura!<br />

Suor, calafrio, pânico. Essas eram as sensações que me causavam o momento <strong>da</strong> leitura. E, se no<br />

dia marcado tropeçasse nas sílabas e palavras, o "Regular" faria parte do meu livro, como<br />

muitos <strong>de</strong>les o fizeram.<br />

— Quando eu voltar, quero uma palavra escrita com M na lousa ou então... — or<strong>de</strong>nou a professora.<br />

O giz já estava todo molhado em minha mão, e a classe inteira gritava: mar, mar... Até que um<br />

colega, por dó talvez, foi até a lousa e me socorreu soletrando as letras M – A – R.<br />

Nunca fui uma criança brilhante nos estudos, o "Regular" tornou-se parte <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong>, quando<br />

se tratava <strong>de</strong> leitura e escrita.<br />

Esse início <strong>de</strong> minha escolari<strong>da</strong><strong>de</strong>, para mim tão significativo, tornou-me uma profissional que<br />

busca o tempo todo alternativas para o aprendizado <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita.<br />

São Paulo, 14 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1985.<br />

Jardim Cabuçu<br />

Foi com essa <strong>da</strong>ta na lousa que iniciei a minha carreira na <strong>Educação</strong> Infantil.<br />

Periferia <strong>de</strong> São Paulo, 40 alunos na sala <strong>de</strong> aula e eu, a professora que chegava quase no meio<br />

do ano para <strong>da</strong>r conta do conteúdo <strong>da</strong> pré-escola:<br />

Crianças cantem comigo fazendo o seguinte movimento:<br />

Eu já vou enrolar<br />

O novelo <strong>da</strong> vovó<br />

Ela vai me tricotar<br />

Um bonito cachecol<br />

E foi assim, entre cantigas e cantigas, que aquelas crianças saíram <strong>da</strong> pré-escola com uma perfeita<br />

coor<strong>de</strong>nação motora. A sensação que tive? De trabalho cumprido e insatisfação.<br />

O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> como e o que ensinar era <strong>da</strong>do pela minha experiência como aluna, que o curso<br />

<strong>de</strong> Magistério legitimou. O que meus professores diziam era que os tais exercícios <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação<br />

– a exemplo do "enrola o novelo <strong>da</strong> vovó" — eram importantes e necessários para as crianças,<br />

principalmente na pré-escola e no início <strong>da</strong> alfabetização.<br />

Embora essas fossem as únicas referências que eu tinha, algo parecia errado: meus alunos não se<br />

apaixonavam pelo que eu ensinava, assim como eu, quando estava na primeira série. No fundo, eu<br />

buscava que eles se apaixonassem pelo que eu lhes apresentava, a ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejarem apren<strong>de</strong>r...<br />

M1U1T6<br />

26


No ano seguinte, conheci uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> diferente. Estava numa Emei (Escola Municipal <strong>de</strong><br />

<strong>Educação</strong> Infantil) com 42 crianças <strong>de</strong> 5 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>, que passavam doze horas na escola. Percebi<br />

no olhar <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las que o "enrola o novelo" não ia novamente <strong>da</strong>r certo. Procurei,<br />

então, alternativas que tornassem aquelas quatro horas comigo mais agradáveis. Não sabia muito<br />

bem o que fazer, mas tentei.<br />

Conhecer como meus alunos pensavam, o que sabiam sobre os assuntos que pretendia ensinar,<br />

foi o meu primeiro passo. Olhava para os exercícios <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação motora e comparava com<br />

tudo que estava <strong>de</strong>scobrindo sobre as crianças… estava diante <strong>de</strong> mim a contradição, que não<br />

conseguia enxergar antes: aqueles exercícios não faziam o menor sentido! As crianças traziam<br />

idéias interessantes sobre várias coisas, relacionavam uma com a outra, ousavam tirar conclusões,<br />

criavam, e na<strong>da</strong> disso era compatível com os infindáveis treinos viso-motores.<br />

Ah! Se pu<strong>de</strong>sse ter entendido antes!<br />

Durante seis anos trabalhei com crianças em i<strong>da</strong><strong>de</strong> pré-escolar e, a ca<strong>da</strong> ano, inovava minha<br />

prática, ora <strong>de</strong> maneira intuitiva, ora respal<strong>da</strong><strong>da</strong> por grupos <strong>de</strong> formação que aconteciam em<br />

algumas gestões políticas. Mas foi a maneira que estou chamando <strong>de</strong> intuitiva, que orientou minha<br />

observação sobre como meus alunos aprendiam, ou seja, vendo sentido naquilo que faziam, que<br />

me ensinou o valor <strong>de</strong> ser uma educadora e a reconhecer o po<strong>de</strong>r que exercemos.<br />

Em segui<strong>da</strong>, prestei o concurso que <strong>da</strong>va acesso a uma carreira na <strong>Educação</strong> Infantil e/ou no ensino<br />

Fun<strong>da</strong>mental. Para meu <strong>de</strong>sespero, fui reprova<strong>da</strong> na <strong>Educação</strong> Infantil e aprova<strong>da</strong> como professora<br />

para o Ensino Fun<strong>da</strong>mental. Quando recebi a notícia, queria que o mundo acabasse! O que iria<br />

fazer agora? E tudo que havia conquistado e aprendido na <strong>Educação</strong> Infantil? Pânico total.<br />

"Não quero mais ser professora!"<br />

"Eu não sei <strong>da</strong>r aulas para crianças mais velhas!"<br />

São Paulo, 2 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1991<br />

Vila Brasilândia, 1ª série – Alfabetização<br />

O peso <strong>da</strong> palavra alfabetização tomava conta <strong>de</strong> mim naquele primeiro dia <strong>de</strong> aula. Não sabia<br />

como dizer "bom dia" para aquelas crianças que acabavam <strong>de</strong> entrar na escola e estavam ali para<br />

apren<strong>de</strong>r a ler e escrever.<br />

"Você não precisa abandonar tudo que já sabe."<br />

"Você tem capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> para alfabetizar essas crianças."<br />

Essas frases, que ouvi em um dia <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, foram o gran<strong>de</strong> impulso para o início do meu<br />

trabalho. Era ver<strong>da</strong><strong>de</strong>: o que eu já sabia não podia ser abandonado.<br />

Foi então que comecei o meu trabalho <strong>de</strong> alfabetização pela primeira vez.<br />

"Você não vai usar a cartilha?"<br />

"Como você vai ensinar as famílias silábicas?"<br />

"O seu plano <strong>de</strong> aula para passar para o grupo é <strong>da</strong>s famílias do N e V?"<br />

M1U1T6<br />

27


Não foi fácil enfrentar uma escola na qual a cartilha era a minha principal rival.<br />

Eu e outra colega éramos as únicas que não usávamos a cartilha para alfabetizar as crianças <strong>da</strong><br />

1ª série. Não tínhamos muito apoio, as outras professoras não acreditavam que o nosso trabalho<br />

po<strong>de</strong>ria <strong>da</strong>r certo.<br />

Sabia, pela experiência que havia construído na pré-escola, que ler diariamente era a primeira regra,<br />

afinal, como apren<strong>de</strong>r a linguagem que se escreve sem conhecê-la, sem interagir com ela?<br />

Organizei com meus alunos um ca<strong>de</strong>rno, no qual colávamos <strong>de</strong> cinco a oito textos por semana,<br />

fazíamos textos coletivos todos os dias, além <strong>de</strong> muitas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que, na época, julgava úteis<br />

para a reflexão sobre como se escreve.<br />

Acreditava que era a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que fazia a diferença. Minha sala tinha pare<strong>de</strong>s<br />

cobertas por textos produzidos coletivamente, outros que eu copiava <strong>de</strong> livros, como poemas,<br />

parlen<strong>da</strong>s e ain<strong>da</strong> listas <strong>de</strong> nomes <strong>da</strong>s crianças, animais, frutas etc.<br />

Fazíamos, eu e mais duas colegas, reuniões semanais nas quais discutíamos o an<strong>da</strong>mento do<br />

nosso trabalho com as classes <strong>de</strong> primeira série, preparávamos ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e nos fortalecíamos na<br />

prática que estávamos <strong>de</strong>senvolvendo.<br />

Terminei aquele ano com três crianças não-alfabetiza<strong>da</strong>s. E foi com essa preocupação que comecei<br />

a investir no meu aprendizado. Fui em busca <strong>de</strong> pessoas que pu<strong>de</strong>ssem me aju<strong>da</strong>r a enten<strong>de</strong>r<br />

melhor tudo o que fazia e <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> fazer por falta <strong>de</strong> conhecimento.<br />

No ano seguinte, assumi uma segun<strong>da</strong> série, <strong>da</strong> qual faziam parte as crianças <strong>da</strong> minha sala que<br />

não tinham se alfabetizado no ano anterior.<br />

Minha classe era então <strong>de</strong> "crianças repetentes", com i<strong>da</strong><strong>de</strong> entre 8 e 12 anos. Novamente,<br />

iniciei meu trabalho com um gran<strong>de</strong> investimento na leitura: lia para as crianças todos os dias,<br />

fazíamos ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> textos, empréstimos <strong>de</strong> livros e via nas crianças o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a<br />

ler e escrever.Alcançava minha primeira meta, aquela que havia <strong>de</strong>scoberto quando "aprendia"<br />

com meus alunos <strong>da</strong> pré-escola.<br />

Nesse ano, tive mais apoio, duas colegas concor<strong>da</strong>ram em não trabalhar com cartilha e tivemos<br />

um grupo maior para discutir e organizar o trabalho pe<strong>da</strong>gógico.<br />

São Paulo, 2 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1993<br />

Vila Dionísia<br />

Tentava chegar ca<strong>da</strong> vez mais perto <strong>de</strong> casa para trabalhar.A escola anterior, na Vila Brasilândia,<br />

era muito longe. Consegui — no processo <strong>de</strong> remoção — uma vaga numa escola na Vila Dionísia,<br />

uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> bem próxima à <strong>da</strong> Brasilândia.<br />

Classes homogêneas: solução <strong>de</strong> todos os problemas.<br />

M1U1T6<br />

28


O grupo <strong>de</strong> professores <strong>de</strong>ssa escola era especial. O compromisso com o bom trabalho estava<br />

à frente <strong>de</strong> tudo. Fazíamos o máximo para garantir o aprendizado <strong>da</strong>quelas crianças. Discussões<br />

em horário coletivo, troca <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e informações, cursos que tratavam <strong>da</strong> alfabetização,<br />

leituras e relatos faziam parte do nosso dia-a-dia.<br />

A busca para compreen<strong>de</strong>r o que ain<strong>da</strong> não sabíamos muito bem era constante. As crianças que<br />

saíam <strong>da</strong> primeira série não-alfabetiza<strong>da</strong>s eram a nossa maior preocupação. Para atendê-las,<br />

formávamos classes homogêneas que eram assumi<strong>da</strong>s pelo professor mais experiente do nosso<br />

grupo. O papel do grupo era apoiá-lo no que precisasse.<br />

Assumi uma <strong>de</strong>ssas salas. Uma segun<strong>da</strong> série com 39 alunos no início e mais ou menos 15 no<br />

final do período letivo, porque no <strong>de</strong>correr do ano, havia o remanejamento <strong>da</strong>s crianças que<br />

conquistavam a base alfabética para outras classes mais avança<strong>da</strong>s e eu ficava apenas com aqueles<br />

que precisavam <strong>de</strong> mais aju<strong>da</strong>. Fazia também um atendimento especial após o horário para os<br />

alunos com maiores dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Hoje vejo quanto equívoco cometi, não sabia como a heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria aju<strong>da</strong>r tanto as<br />

crianças, como a mim nesse trabalho.<br />

É muito forte a idéia que temos <strong>de</strong> que as crianças apren<strong>de</strong>m se estiverem no mesmo nível <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento, como se isso fosse possível. Por trás <strong>de</strong>ssa crença existe o <strong>de</strong>sconhecimento<br />

do quanto uma boa parceria po<strong>de</strong> ser produtiva para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong>s crianças. No fundo,<br />

a idéia <strong>de</strong> homogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> encobre a falsa concepção <strong>de</strong> que, tendo os alunos o mesmo nível, fica<br />

mais fácil ensiná-los.<br />

Vila Dionísia fez parte <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong> como um gran<strong>de</strong> aprendizado. Pu<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r que não<br />

existem classes homogêneas, porque as crianças são diferentes; que o processo <strong>de</strong> aprendizagem<br />

<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> uma é ímpar; e que o professor tem que conhecer como as crianças apren<strong>de</strong>m, como<br />

pensam nesse período <strong>de</strong> construção do conhecimento <strong>da</strong> leitura e escrita, para que possa<br />

organizar seu planejamento a favor <strong>da</strong> aprendizagem <strong>da</strong>s crianças.<br />

Mas sem dúvi<strong>da</strong>, apesar <strong>da</strong> condução equivoca<strong>da</strong> do nosso trabalho com relação à formação <strong>da</strong>s<br />

classes homogêneas, pu<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r também o valor do trabalho coletivo. De po<strong>de</strong>r contar com<br />

um parceiro para trocar experiências, reflexões e... as angústias que sentimos quando vemos que,<br />

apesar <strong>de</strong> tudo que estamos fazendo, algumas crianças não estão apren<strong>de</strong>ndo. Principalmente<br />

quando percebemos que o que fazemos não é útil a to<strong>da</strong>s as crianças e nos in<strong>da</strong>gamos sobre o<br />

que fazer, como atingir aquele aluno a quem parece na<strong>da</strong> fazer sentido.<br />

O trabalho coletivo mostrou-me a importância <strong>da</strong> interlocução com os parceiros que estão<br />

atuando na mesma reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois evi<strong>de</strong>nciou que procurar juntos soluções para problemas<br />

comuns é muito melhor que sozinho.<br />

Foi acreditando no meu trabalho e trabalhando em conjunto é que <strong>de</strong>scobri a importância <strong>de</strong><br />

ser uma professora alfabetizadora.<br />

Acredito que essa experiência me tornou a profissional que po<strong>de</strong> enxergar os próprios erros<br />

como parte <strong>da</strong> construção do seu conhecimento.<br />

M1U1T6<br />

29


Minha turma<br />

São Paulo, 7 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2000<br />

Crianças <strong>de</strong> 4ª série precisam ser alfabetiza<strong>da</strong>s<br />

Procura-se um professor que queira assumir uma sala <strong>de</strong> aula com 34 alunos, sendo 28 meninos e<br />

6 meninas. Escola pública do município <strong>de</strong> São Paulo. Nessa sala há crianças que ain<strong>da</strong> não conhecem<br />

letras e outras que se arriscam a escrever algumas palavras. São participantes, colaboradoras, e<br />

sabem o que querem.Trazem um conhecimento rico, mas infelizmente não sabem disso ain<strong>da</strong>.<br />

Recomen<strong>da</strong>-se para essa sala um trabalho voltado para a língua escrita, não esquecendo <strong>de</strong> que<br />

as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s têm <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>safiadoras, que possam enriquecer seus conhecimentos. Há por parte<br />

<strong>de</strong>sses alunos um interesse muito gran<strong>de</strong> por histórias, contos, poemas, fábulas, len<strong>da</strong>s e pia<strong>da</strong>s.<br />

O trabalho com agrupamentos é recomen<strong>da</strong>do, pois cria possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s na troca <strong>de</strong> saberes. Um<br />

planejamento que garanta a todo momento reflexão e avaliação por parte <strong>de</strong>sse professor<br />

também é muito importante.<br />

Quanto aos pais: pessoas simples que <strong>de</strong>positam nesse professor to<strong>da</strong> a esperança <strong>de</strong> tornar<br />

seus filhos ci<strong>da</strong>dãos.<br />

Começava nessa <strong>da</strong>ta a minha trajetória com uma sala <strong>de</strong> 4ª série, com 34 alunos entre 9 e 13<br />

anos, que precisavam apren<strong>de</strong>r a ler e escrever.<br />

No primeiro momento, notei que todos estavam ali à espera <strong>de</strong> algo diferente, pois já sabiam que<br />

aquela classe não era como as outras — talvez algo que os confortasse.<br />

Percebi que ca<strong>da</strong> um era bem diferente do outro, e que seus saberes também se diferenciavam,<br />

mesmo que o critério <strong>de</strong> formação <strong>da</strong>quela classe fosse o <strong>de</strong> agrupar crianças <strong>da</strong>s quartas séries<br />

que sabiam ler e escrever muito pouco, que não liam o que escreviam, não entendiam o que liam...<br />

No início, nossa relação foi conquista<strong>da</strong> passo a passo. Eu tinha, <strong>de</strong> alguma maneira, <strong>de</strong> fazê-los<br />

perceber o quanto sabiam e o quanto eram capazes. Tarefa muito difícil essa. As marcas do<br />

fracasso já haviam sido incorpora<strong>da</strong>s por todos eles. A conquista <strong>de</strong> um novo saber passa<br />

<strong>de</strong>spercebi<strong>da</strong> a olhares tão duros e sofridos. O meu papel foi então pontuar ca<strong>da</strong> avanço, fazendo-os<br />

acreditar em si mesmos.<br />

Busquei oferecer a esses alunos uma aprendizagem volta<strong>da</strong> ao <strong>de</strong>safio, à troca, ao experimento e à<br />

avaliação do que estavam apren<strong>de</strong>ndo. Procurei mostrar que valeria a pena se arriscar novamente.<br />

Não foi na<strong>da</strong> fácil. Durante oito meses tive que me manter firme ao meu propósito e não <strong>de</strong>ixar<br />

que na<strong>da</strong> abalasse aqueles alunos.A agressivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a revolta, a apatia e o silêncio eram suas armas.<br />

E, do outro lado, apenas eu.<br />

Hoje percebo o quanto avançaram e o quanto são capazes <strong>de</strong> perceber seus próprios avanços.<br />

Estamos na reta final e seus olhares buscam um mundo para novas conquistas.<br />

M1U1T6<br />

30


Marlene dos Santos Reis Melo<br />

Professora <strong>de</strong> Classe <strong>de</strong> Aceleração na Escola Estadual Mário Toledo <strong>de</strong> Moraes –<br />

Caieiras/SP<br />

Trabalho na E.E. Dr. Mário Toledo <strong>de</strong> Moraes há catorze anos, regendo classes <strong>de</strong> lª a 4ª séries<br />

e Classes <strong>de</strong> Aceleração.<br />

Minha trajetória profissional tem girado em torno <strong>de</strong> uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> superar-me a ca<strong>da</strong> dia,<br />

que é característica <strong>da</strong> minha personali<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong> uma busca constante <strong>da</strong>s soluções i<strong>de</strong>ais para<br />

as questões surgi<strong>da</strong>s <strong>de</strong>ssa superação.<br />

Iniciei meu trabalho na re<strong>de</strong> estadual <strong>de</strong> ensino há 23 anos, na secretaria <strong>de</strong> uma escola, on<strong>de</strong> fazia<br />

parte <strong>de</strong> minhas atribuições encaminhar os alunos que, freqüentemente, eram tirados <strong>da</strong> sala <strong>de</strong><br />

aula e pouco a pouco excluídos <strong>da</strong> escola. É isso mesmo, excluídos, expostos ao fracasso escolar,<br />

um pouco por dia porque as queixas pelas quais eles "iam para a diretoria" eram sempre as<br />

mesmas: não queriam fazer as lições, só queriam brincar em sala <strong>de</strong> aula ou haviam <strong>de</strong>srespeitado<br />

o professor.A rotativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> alunos também não era gran<strong>de</strong>, eram sempre os mesmos.<br />

Por questões pessoais, sempre me interessei por esses alunos, e geralmente me <strong>de</strong>svencilhava <strong>de</strong><br />

outras atribuições para ficar conversando com eles, e <strong>de</strong>scobria que os motivos que os levavam<br />

a tomar a atitu<strong>de</strong> que motivava as queixas dos professores também eram sempre os mesmos:<br />

aulas chatas, distantes <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos alunos, a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> interação com o grupo-classe,<br />

falta <strong>de</strong> clareza dos objetivos do professor, "marcação do professor" (enten<strong>de</strong>ndo por marcação<br />

a acusação constante, feita a um aluno que tenha infringido "as regras" uma primeira vez, na qual<br />

a questão ficou mal resolvi<strong>da</strong>).<br />

Com isto tudo, fui colhendo <strong>da</strong>dos e levantando hipóteses sobre trajetórias <strong>de</strong> insucesso escolar<br />

que só po<strong>de</strong>riam ser confirma<strong>da</strong>s, e fazer sentido, se eu estivesse do outro lado, ou seja, na<br />

regência <strong>de</strong> uma sala <strong>de</strong> aula.Voltei a estu<strong>da</strong>r. Terminei o 2º grau, que interrompera há muitos<br />

anos por causa <strong>de</strong> uma reprovação, que aliás, eu nunca "engoli". Entrei na facul<strong>da</strong><strong>de</strong>, porém logo<br />

<strong>de</strong>pois tranquei matrícula por motivos financeiros. Não satisfeita, retornei à escola <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

mais alguns anos, para cursar o magistério.<br />

Por conta <strong>de</strong>ssa minha trajetória conturba<strong>da</strong>, meu curso foi muito prejudicado: apenas dois anos,<br />

muitas faltas, assistindo aulas muitas vezes acompanha<strong>da</strong> dos meus filhos pequenos, por não ter<br />

com quem <strong>de</strong>ixá-los, e muitas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s, que só eram supera<strong>da</strong>s pela minha vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

comprovar, ou não, as minhas hipóteses sobre as histórias <strong>de</strong> fracasso escolar.<br />

Assim que concluí o curso, assumi aulas como substituta, em uma escola estadual, a mesma em<br />

que me efetivei em 1991 e estou até hoje. Nesse primeiro ano trabalhei com classes <strong>de</strong> 1ª a 4ª<br />

séries e tive uma turma <strong>de</strong> reforço.<br />

M1U1T6<br />

31


Minha experiência inicial não po<strong>de</strong>ria ter sido mais rica! Na época, a diretora <strong>da</strong> escola, como<br />

também as professoras titulares <strong>de</strong>ssas classes, to<strong>da</strong>s muito experientes e contando com anos <strong>de</strong><br />

um trabalho bem aceito e respeitado pela escola, acolheram-me muito amigavelmente; sentiam-se<br />

"responsáveis" por mim, por eu ser recém-forma<strong>da</strong> e estar substituindo-as uma vez por semana.<br />

Essa parceria foi muito importante para a construção do meu perfil profissional.Trabalhando com<br />

elas pu<strong>de</strong> colher subsídios para a construção do meu próprio espaço, e logo fui percebendo que<br />

eu precisava <strong>de</strong>scobrir uma prática pe<strong>da</strong>gógica que se parecesse comigo e estivesse mais relaciona<strong>da</strong><br />

com os meus i<strong>de</strong>ais.<br />

No ano seguinte (1988), assumi minha primeira classe, uma 1ª série. Senti-me como quem recebe<br />

a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> aju<strong>da</strong>r a construir o futuro. Mas tudo o que eu tinha para isso era uma cartilha,<br />

e muitos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.Todos eles baseados na mesma cartilha, que por sua vez, era a<br />

mesma com a qual minha professora <strong>da</strong> 1ª série tentou exaustivamente me alfabetizar, enquanto<br />

eu aprendia a ler e escrever lendo a Bíblia, jornais e revistas e escrevendo poesias e pequenos<br />

romances com as intervenções do meu pai, que era semi-analfabeto.<br />

De forma meio oculta, comecei então, a criar, intuitivamente, outras ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s para os meus<br />

alunos, por exemplo: recortar <strong>de</strong> jornais e revistas palavras com <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> sílaba, colar e copiar<br />

algumas vezes. Hoje sei que não eram as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s i<strong>de</strong>ais. Acabava transformando portadores<br />

<strong>de</strong> texto tão ricos em "portadores <strong>de</strong> lições <strong>de</strong> escola", mas em compensação, sempre tive<br />

a preocupação <strong>de</strong> permitir aos meus alunos o acesso livre a todos os tipos <strong>de</strong> leitura e fazia com<br />

que eles lessem e escrevessem muito antes que soubessem fazê-lo <strong>de</strong> forma convencional, pois<br />

foi assim que eu aprendi.Trabalhar a leitura <strong>de</strong>ssa forma era bem mais divertido e produtivo, e<br />

eles não passariam pelo enfado <strong>de</strong> <strong>de</strong>corar as famílias silábicas simples, <strong>de</strong>pois as complexas, e<br />

só receber um livrinho em setembro ou outubro, quando a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ler e escrever coisas<br />

significativas até já havia passado. Sem assessoria técnica, e sem a aprovação <strong>da</strong> escola, eu não<br />

po<strong>de</strong>ria abolir totalmente a cartilha, mas esta passou a ser apenas um apoio, algo que as crianças<br />

levavam para completar em casa, embora, talvez como eu, nunca tenham chegado a enten<strong>de</strong>r<br />

qual era seu objetivo real.<br />

Minhas turmas alcançavam resultados ótimos, era raro ocorrer, entre os meus alunos, alguma<br />

história <strong>de</strong> fracasso escolar. Quando um problema era <strong>de</strong>tectado, eu fazia o impossível para<br />

reverter o caso: aulas <strong>de</strong> reforço, trabalhos paralelos individuais, montagem <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> estudos,<br />

diversificação <strong>da</strong> técnica pe<strong>da</strong>gógica...<br />

Em 1990, meu filho mais novo ingressou na pré-escola.Até a entra<strong>da</strong> na escola era uma criança<br />

normal, muito crítica, criativa, com ótima capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> memorização e abstração, enfim, muito<br />

inteligente. Só que, por mais que a professora reclamasse, brigasse e colocasse o menino <strong>de</strong><br />

castigo, ele não conseguia se encaixar no quadradinho que a escola oferecia. O pior era que eu<br />

sabia que a falha não era <strong>de</strong>le, mas todo meu conhecimento era intuitivo, e não tinha bases<br />

teóricas para argumentar com a escola (hoje o Robson está com 16 anos e cursando o 1º ano<br />

do Ensino Médio; acompanhar o processo <strong>de</strong>le foi <strong>de</strong>terminante para a minha formação).<br />

Coinci<strong>de</strong>ntemente, em 1991, minha irmã assumiu a coor<strong>de</strong>nação do Ciclo Básico até a 4ª série<br />

numa escola também <strong>da</strong> re<strong>de</strong> estadual e, nas reuniões e conversas com outros coor<strong>de</strong>nadores,<br />

M1U1T6<br />

32


ela começou a ter contato com a teoria psicogenética, com as pesquisas <strong>de</strong> Emilia Ferreiro e com<br />

alguns livros que tratavam do assunto. Conversávamos muito e fui percebendo que <strong>de</strong> forma<br />

intuitiva, era isso que eu buscava para melhorar a minha atuação em sala <strong>de</strong> aula e para aju<strong>da</strong>r o<br />

meu filho, que era tratado pela escola como mais um "problema <strong>de</strong> aprendizagem".<br />

Eu lia todos os livros e apostilas que minha irmã trazia. Comecei a participar <strong>de</strong> cursos, reuniões,<br />

simpósios, compartilhar minhas inquietações e dúvi<strong>da</strong>s com outras pessoas e, assim, fui construindo<br />

um novo olhar para as questões <strong>da</strong> aprendizagem, um olhar agora fun<strong>da</strong>mentado e com bases<br />

mais sóli<strong>da</strong>s.<br />

Em 1993, planejei e <strong>de</strong>senvolvi, com minha classe <strong>de</strong> 2ª série, meu primeiro Projeto. Nessa época,<br />

eu ain<strong>da</strong> não tinha clareza teórica <strong>de</strong>sse trabalho e pouco se ouvia falar em trabalho com projetos,<br />

mas o nosso alcançou sucesso absoluto. Foi feito para homenagear a diretora <strong>da</strong> nossa escola,<br />

que estava grávi<strong>da</strong>.Trabalhei com as crianças, <strong>de</strong> forma que compreen<strong>de</strong>ssem <strong>da</strong> concepção aos<br />

primeiros anos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>: fizemos poesias, carteirinhas <strong>de</strong> vacina, registros <strong>de</strong> nascimento, diário<br />

do bebê, cartas para a diretora, e o produto final foi a apresentação <strong>de</strong> uma peça teatral, que<br />

chamamos <strong>de</strong> "O bebê chegou" e a entrega <strong>de</strong> um presentinho que a classe havia comprado para<br />

a diretora, com o dinheiro <strong>da</strong>s próprias economias.<br />

Achei o trabalho muito interessante, e continuei. Só muitos anos <strong>de</strong>pois, quando se começou a<br />

enfocar mais o trabalho com projetos, <strong>de</strong>scobri, que talvez tenha sido esse o maior motivo do<br />

sucesso dos meus alunos: eles estiveram sempre envolvidos em situações reais, significativas e<br />

prazerosas, como a vi<strong>da</strong>, que geralmente não pulsa nos livros didáticos.<br />

Nos anos <strong>de</strong> 1994 e 1995 assumi, além <strong>de</strong> uma classe <strong>de</strong> 3ª série e outra <strong>de</strong> 4ª, respectivamente,<br />

a coor<strong>de</strong>nação do CB à 4ª série <strong>da</strong> minha escola, e isto me abriu novas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

participação em cursos e oficinas. Foram muitos os cursos, e <strong>de</strong>stes o que marcou mais a minha<br />

trajetória foi "Alfabetização: teoria e prática", que fiz na Delegacia <strong>de</strong> Ensino <strong>de</strong> Caieiras. Esse curso<br />

representou a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> mostrar as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que eu <strong>de</strong>senvolvia em sala <strong>de</strong> aula e ouvir,<br />

sobre elas, análises críticas e fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s. Dessa forma, eu pu<strong>de</strong> refletir sobre minhas ações<br />

práticas, certificar-me <strong>de</strong> alguns procedimentos utilizados e avaliar se atendia <strong>de</strong> forma respeitosa<br />

as fases <strong>de</strong> aprendizagens <strong>da</strong>s crianças, permitindo-lhes avanços reais.<br />

Em 1996, assumi a convite <strong>da</strong> minha atual diretora, admiradora do meu trabalho, uma Classe <strong>de</strong><br />

Aceleração, porque segundo palavras <strong>de</strong>la, o projeto se parecia comigo.<br />

Classes <strong>de</strong> Aceleração é um projeto que tem como finali<strong>da</strong><strong>de</strong> a Reorganização <strong>da</strong> Trajetória<br />

Escolar <strong>de</strong> alunos com dois ou mais anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fasagem i<strong>da</strong><strong>de</strong>/série, fazendo com que recuperem<br />

o tempo perdido, avançando em seu percurso escolar e retomando, com sucesso, o percurso<br />

estabelecido pelo Sistema <strong>de</strong> Ensino. Um trabalho árduo, mas que tem sido muito gratificante e<br />

tem me proporcionado vivenciar um "Ensinar e Apren<strong>de</strong>r" muito mais significativo.<br />

Continuei <strong>de</strong>senvolvendo esse trabalho nos últimos quatro anos. Como regente <strong>de</strong>ssas classes,<br />

tenho cerca <strong>de</strong> 120 horas anuais <strong>de</strong> capacitação garanti<strong>da</strong>s pelos órgãos centrais <strong>da</strong> <strong>Educação</strong>.<br />

Nos dois primeiros anos do projeto, to<strong>da</strong> a assessoria vinha do CENPEC — e <strong>de</strong> lá eu <strong>de</strong>stacaria<br />

a parceria com Van<strong>da</strong>, minha capacitadora, correspon<strong>de</strong>nte, companheira, confi<strong>de</strong>nte, com quem<br />

M1U9T6<br />

33


tenho partilhado as angústias e vitórias <strong>de</strong>stes últimos cinco anos <strong>de</strong> trabalho. A partir do 3º ano<br />

do Projeto, a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> passou a ser <strong>da</strong> Delegacia <strong>de</strong> Ensino e continuei contando com a<br />

aju<strong>da</strong> <strong>da</strong>s ATPs <strong>da</strong> Delegacia <strong>de</strong> Ensino (hoje Diretoria Regional). E, para visitar os alunos cujas<br />

famílias por algum motivo não vêm às reuniões para acompanhar a trajetória dos filhos, conto<br />

com a companhia <strong>da</strong> minha mãe.<br />

Rapi<strong>da</strong>mente o trabalho <strong>da</strong>s Classes <strong>de</strong> Aceleração, em Caieiras, confundiu-se com o meu trabalho;<br />

em 1998, a FDE resolveu transformar as minhas experiências no livro Aqui entre nós:<br />

”correspondência entre professoras". Foi muito gratificante po<strong>de</strong>r compartilhar com muitos<br />

outros professores o que tenho aprendido – com os livros, com quem os escreve, com a vi<strong>da</strong>,<br />

comigo mesma e principalmente com meus filhos e meus alunos.<br />

As cartas que compõem esse livro não foram escritas visando a uma publicação, mas quando isso<br />

aconteceu, achei que era uma oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> preciosa <strong>de</strong> dizer para outros professores que<br />

compartilhar nossos medos, dúvi<strong>da</strong>s, angústias, esforços e esperanças, não apenas para <strong>de</strong>sabafar,<br />

mas também para refletir, é um caminho infalível na busca do aprimoramento <strong>da</strong> prática pe<strong>da</strong>gógica.<br />

Falar aju<strong>da</strong> a organizar o pensamento.<br />

Além <strong>da</strong> fala, outro po<strong>de</strong>roso instrumento <strong>de</strong> reflexão é o registro escrito <strong>da</strong>s situações ocorri<strong>da</strong>s<br />

em sala <strong>de</strong> aula, do processo <strong>de</strong> aprendizagem dos alunos e do nosso próprio processo, <strong>da</strong>s<br />

nossas intervenções etc. Através <strong>de</strong>ssas formas <strong>de</strong> expressão, po<strong>de</strong>mos "visitar" muitas vezes a<br />

situação vivi<strong>da</strong>, compreendê-la ca<strong>da</strong> vez melhor, criando possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> enfrentar situações<br />

semelhantes <strong>de</strong> formas diferentes e propor encaminhamentos ca<strong>da</strong> vez mais acertados.<br />

Em 1997, a prefeitura <strong>de</strong> Caieiras, introduziu na Re<strong>de</strong> Municipal <strong>de</strong> <strong>Educação</strong> o trabalho com<br />

Projetos. A Diretora do Departamento indicou-me para compor sua equipe pe<strong>da</strong>gógica, como<br />

Professora <strong>de</strong> Apoio. Eu <strong>de</strong>veria acompanhar to<strong>da</strong> a re<strong>de</strong>, assessorando as professoras e<br />

<strong>da</strong>ndo-lhes o apoio necessário nesse período <strong>de</strong> transformação <strong>da</strong> prática.<br />

Assumi as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e, ain<strong>da</strong> no 1º ano, to<strong>da</strong>s as professoras apresentaram um <strong>de</strong>sempenho<br />

excelente, mu<strong>da</strong>ndo to<strong>da</strong> a estrutura <strong>da</strong> re<strong>de</strong>. Para mim não po<strong>de</strong>ria ter sido mais gratificante.<br />

Era a primeira vez que eu orientava profissionais e ao mesmo tempo aprendia com elas, uma<br />

experiência totalmente nova para mim: li<strong>da</strong>r com crianças <strong>de</strong> 0 a 6 anos. Até então, eu só conhecia<br />

os problemas <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> instalados. Foi interessante conhecer o processo <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o início. Nesses dois anos e meio, interagindo com creches e pré-escolas, pu<strong>de</strong> perceber, observar,<br />

anotar e refletir como tem sido o processo <strong>de</strong> ensino-aprendizagem <strong>da</strong>s crianças.<br />

Foi através <strong>de</strong>sse trabalho com a prefeitura que pu<strong>de</strong> participar também <strong>de</strong> três semestres do<br />

curso "Teoria e prática <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> professores", com Telma Weisz. O curso foi <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

importância na minha formação profissional; pu<strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mentar um pouco mais minhas teorias e<br />

intuições sobre a aprendizagem, e percebi uma gran<strong>de</strong> semelhança entre os meus alunos e as<br />

crianças pequenas em seus processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita. Apesar do foco<br />

central do curso ser a educação infantil, pu<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar nas minhas turmas os temas abor<strong>da</strong>dos<br />

durante as reuniões, e fui a<strong>da</strong>ptando os encaminhamentos ou interferências a serem feitos.<br />

Em 1999, fui vencedora do Prêmio Victor Civita – Professor Nota 10, promovido pela revista<br />

Nova Escola, com o projeto "correspondência", <strong>de</strong>senvolvido pela minha classe em 98. Para mim,<br />

to<strong>da</strong> a recompensa pelo meu trabalho é ver crianças apren<strong>de</strong>ndo com felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas esse prêmio<br />

M1U1T6<br />

34


veio juntar-se ao sorriso dos meus alunos como uma certeza <strong>de</strong> que quando se tem um gran<strong>de</strong><br />

objetivo, vale a pena todo esforço para alcançá-lo.<br />

No momento, estou participando do Programa <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores Alfabetizadores.Talvez<br />

seja esse o programa mais intenso dos que eu já participei. A diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> experiências relata<strong>da</strong>s<br />

pelas professoras do grupo <strong>de</strong> referência, a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> informações recebi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> equipe<br />

pe<strong>da</strong>gógica e as reflexões que passei a fazer <strong>da</strong> minha própria prática pe<strong>da</strong>gógica abalaram as<br />

minhas estruturas. Senti a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> reorganizar mais uma vez minha trajetória e, <strong>de</strong> início,<br />

nem sabia muito bem por on<strong>de</strong> começar.<br />

Tenho aprendido muito. Estou tendo a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quar e fun<strong>da</strong>mentar as minhas<br />

convicções, adquirir uma nova bagagem <strong>de</strong> conhecimentos e, principalmente, compreen<strong>de</strong>r<br />

melhor as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> interferência nas produções dos alunos e a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ter<br />

maior clareza dos meus objetivos específicos em ca<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> que preparo, para que haja<br />

uma aprendizagem real e significativa.<br />

Tenho refletido muito sobre o que tenho lido e ouvido. Tenho aprendido <strong>de</strong>ntro do próprio<br />

programa a avaliar criticamente tudo, para saber o que serve e o que tem a ver comigo e com<br />

o meu grupo real <strong>de</strong> alunos.<br />

Estou fazendo também um curso <strong>de</strong> Pe<strong>da</strong>gogia. Estou no terceiro semestre, a ca<strong>da</strong> aula sinto-me<br />

como uma "aluna nova". Sei que tenho ain<strong>da</strong> uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> coisas para apren<strong>de</strong>r, e aprendo<br />

com prazer.<br />

A propósito, sobre o meu primeiro objetivo quando resolvi lecionar: ao longo <strong>de</strong>sses catorze<br />

anos, tenho me empenhado por confirmar as minhas hipóteses, valendo-me para isto, <strong>da</strong> minha<br />

própria prática.<br />

Minha turma<br />

Neste ano tenho uma classe teoricamente <strong>de</strong> Aceleração II (que seria <strong>de</strong> alunos acima <strong>de</strong> 11<br />

anos, com dois ou mais anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fasagem i<strong>da</strong><strong>de</strong>/série). Mas, na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, tenho alunos egressos<br />

<strong>da</strong> 1ª,2ª,3ª e 4ª séries. Seriam <strong>de</strong> Aceleração I, II e Correção <strong>de</strong> Ciclo. Como a escola não tinha<br />

número suficiente para montar nenhuma <strong>de</strong>ssas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s, optou-se por juntá-los em uma<br />

mesma turma.<br />

São 23 alunos, entre 11 e 17 anos, e tenho um quadro com o que ca<strong>da</strong> um sabe sobre leitura e<br />

escrita, mais ou menos como o <strong>de</strong>scrito abaixo:<br />

• O aluno Ismael tem 12 anos e está cursando o primeiro <strong>de</strong> escolari<strong>da</strong><strong>de</strong>. Sabe que para escrever<br />

utilizamos letras, pois as copia indiscrimina<strong>da</strong>mente do alfabeto <strong>de</strong> apoio afixado na sala. Se questionado,<br />

respon<strong>de</strong> com evasivas, quase não fala, reconhece apenas as vogais "A, E, I". Está apren<strong>de</strong>ndo agora a<br />

escrever o próprio nome.<br />

M1U1T6<br />

35


• O Iran tem 11 anos, reconhece apenas a letra "A". Grafa to<strong>da</strong>s as outras e na hora <strong>de</strong> escrever as utiliza<br />

indiscrimina<strong>da</strong>mente, sem se preocupar com valores qualitativos ou quantitativos. Não lê nem apoiado na<br />

memória ou na ilustração, nega-se a falar e, se questionado, respon<strong>de</strong> com movimentos corporais.<br />

• Cinco alunos utilizavam quaisquer letras para escrever, sem preocupações com a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> ou com<br />

a quali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e não lêem nem apoiados na ilustração ou na memória, não reconhecem to<strong>da</strong>s as letras.<br />

Se lhes peço para ler, soletram nas palavras as letras que conhecem, ignorando as <strong>de</strong>mais.<br />

• Dois alunos utilizam muitas letras para escrever, sem estabelecer uma relação <strong>da</strong> fala com a escrita;<br />

no entanto, utilizam algumas letras com valor sonoro correspon<strong>de</strong>ntes às letras <strong>da</strong>s palavras que<br />

preten<strong>de</strong>m escrever. Negam-se a ler.<br />

• Três alunos fazem uma relação <strong>da</strong> fala com a escrita e usam algumas letras correspon<strong>de</strong>ntes às <strong>da</strong>s<br />

palavras que preten<strong>de</strong>m escrever. Fazem pseudoleitura, apoiados na ilustração e na memória. Comunicam-se<br />

com clareza, utilizando-se <strong>de</strong> recursos do discurso oral para se fazer enten<strong>de</strong>r.<br />

• Três alunos escrevem utilizando sempre a vogal correspon<strong>de</strong>nte à <strong>da</strong> palavra que preten<strong>de</strong>m escrever,como<br />

também utilizando quase sempre a consoante correta; omitem quase sempre os "r" e "s" intercalados, e<br />

não escrevem as sílabas complexas. Por exemplo: para "escola, barco, baralho" escrevem: "ecola, baco,<br />

baralio ou baralo". Lêem <strong>da</strong> mesma forma, omitindo essas letras e não enten<strong>de</strong>m o que lêem. Recuperam<br />

o texto apoiados na ilustração ou na memória.<br />

• Seis alunos escrevem <strong>de</strong> forma alfabética convencional. Lêem com fluência e enten<strong>de</strong>m o que lêem.<br />

• Dois alunos escrevem <strong>de</strong> forma alfabética convencional e lêem com certa fluência, mas não recuperam<br />

o texto lido, ou seja, não enten<strong>de</strong>m o que lêem.<br />

Para chegar a essa síntese <strong>da</strong> classe temos escrito muitas listas <strong>de</strong> nomes; no entanto, se escrevem<br />

enunciados mais extensos que a palavra, fazem-no com conceitualizações menos elabora<strong>da</strong>s, e é<br />

comum per<strong>de</strong>rem o controle <strong>da</strong> escrita; por isso, não é raro negarem-se a escrever sozinhos.<br />

Apenas dois alunos utilizam uma estrutura discursiva a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> ao tipo <strong>de</strong> texto que estão<br />

produzindo, estruturas próprias do discurso escrito e escrevem com clareza e coerência,<br />

utilizando recursos básicos <strong>de</strong> coesão e marcadores <strong>de</strong> tempo e espaço.<br />

Além <strong>da</strong> <strong>de</strong>fasagem <strong>de</strong> aprendizagem, por conta <strong>da</strong> trajetória permea<strong>da</strong> por muitos fracassos, são<br />

alunos apáticos, agressivos, violentos, individualistas, faltosos, com baixa auto-estima e alguns não<br />

têm nenhuma noção <strong>de</strong> limites. As famílias não acompanham o percurso escolar dos filhos. São<br />

copistas e negam-se a fazer as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s se tiverem <strong>de</strong> refletir.<br />

Iniciei o ano com a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> diagnóstica do grupo, através do Projeto "Meus amigos e eu". Além<br />

<strong>de</strong> diagnosticar o que ca<strong>da</strong> aluno sabia, meus objetivos eram: fortalecer a união do grupo, trabalhar<br />

o autoconhecimento e a auto-estima.<br />

M1U1T6<br />

36


Este projeto foi composto por uma série <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s: "Meu time predileto", "Meu prato<br />

predileto", "Meus amigos e eu", "Minha família e eu", "Meus <strong>da</strong>dos pessoais", "Coisas que gosto<br />

e que não gosto" etc.<br />

De início, a heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> sala pareceu-me um problema impossível <strong>de</strong> ser solucionado, mas<br />

tenho percebido que na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> o problema não é a classe ser heterogênea: é que a classe não<br />

forma um todo, um grupo. Tenho me empenhado por caracterizá-los como "um grupo que<br />

trabalha junto", on<strong>de</strong> todos ensinam a todos e todos apren<strong>de</strong>m com todos.Assim eu terei muitos<br />

informantes: quem fala melhor, colabora com a orali<strong>da</strong><strong>de</strong>, quem escreve melhor serve <strong>de</strong> escriba<br />

ou aju<strong>da</strong> o colega a escrever, quem tem um vocabulário mais amplo e é mais criativo, cria e dita<br />

para outros escreverem. Essa dinâmica permite que todos escrevam e leiam, mesmo que ain<strong>da</strong><br />

não o façam <strong>de</strong> forma convencional, e que todos sejam autores, leitores e escritores.<br />

Além disso, para que todos possam avançar ca<strong>da</strong> vez mais, <strong>de</strong>ntro do seu ritmo, tenho <strong>de</strong> ter<br />

pelo menos uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> diversifica<strong>da</strong> por dia, garantindo <strong>de</strong>safios para todos. Por exemplo:<br />

• trabalho com jornal: manchete para uns e reportagens ou notícias para outros;<br />

• leitura: textos curtos para possibilitar a aquisição <strong>da</strong> base alfabética e textos mais longos para<br />

os que já lêem convencionalmente, para que retirem do texto uma informação;<br />

• revisão <strong>de</strong> textos: os que já escrevem e lêem convencionalmente <strong>de</strong>vem rever a escrita<br />

ortográfica <strong>da</strong>s palavras e convenções textuais, e os que não escrevem convencionalmente<br />

<strong>de</strong>vem rever a construção <strong>da</strong> base alfabética;<br />

• produção <strong>de</strong> textos individuais, uns serão incentivados a escrever "mais" e outros a escrever<br />

pelo menos uma linha.<br />

Dessa forma, a heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> ser um problema, para ser um facilitador <strong>da</strong> interação.<br />

Maria Helena Roque Taríssio<br />

Professora <strong>de</strong> sala multisseria<strong>da</strong> <strong>da</strong> Escola Municipal <strong>de</strong> Ensino Fun<strong>da</strong>mental Fazen<strong>da</strong><br />

Conceição – Jundiaí/SP<br />

Foi assim.<br />

Iniciei meu trabalho como docente em 1980, quando fui trabalhar em Mairiporã (SP). Lugar<br />

encantador, porém a distância e a falta <strong>de</strong> transporte me perturbavam.<br />

As crianças eram dóceis, filhos <strong>de</strong> caseiros <strong>da</strong>s belas chácaras que margeavam a escola.Tratava-se<br />

<strong>de</strong> uma classe multisseria<strong>da</strong>.<br />

Nessa época, eu era recém-forma<strong>da</strong>. Graças a Deus minha professora <strong>da</strong> disciplina Didática, dona<br />

Terezinha, era atualiza<strong>da</strong>, preferia novas idéias e isso me ajudou muito, pois fui para essa escola<br />

com a teoria; a experiência ain<strong>da</strong> era pouca para o exercício.<br />

M1U1T6<br />

37


Nas primeiras semanas paguei táxi e não sobrava na<strong>da</strong> no final do mês, pois táxi era artigo <strong>de</strong><br />

luxo, e não tive outra opção.Até que uma família <strong>de</strong> portugueses, comovi<strong>da</strong> com minha situação,<br />

convidou-me para morar com eles. Ali fiquei o ano inteiro.Tomava banho <strong>de</strong> "chuveiro <strong>de</strong> bal<strong>de</strong>",<br />

carregava lenha com dona Hermelina e o senhor Saul, hoje falecido. As moças cui<strong>da</strong>vam do gado<br />

e <strong>da</strong>s plantações.Tive momentos muito bons ao lado <strong>de</strong>sse casal e seus onze filhos, sendo que<br />

três <strong>de</strong>les eram meus alunos.<br />

No ano seguinte trabalhei no bairro Corumbá, que também era muito longe. A escola era<br />

construí<strong>da</strong> <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira e encontrava-se <strong>de</strong>sfolha<strong>da</strong> pelo tempo.<br />

A estra<strong>da</strong> era <strong>de</strong> terra e meu irmão <strong>de</strong> 15 anos me acompanhava, pois atravessava mata fecha<strong>da</strong><br />

e, muitas vezes, nos assustávamos com os bichos que atravessavam à frente <strong>da</strong> moto. Diziam até<br />

que tinha um leão foragido <strong>de</strong> um circo, que ninguém capturou. E o medo?<br />

Uma vez precisamos parar para esperar uma cobra atravessar a estra<strong>da</strong>. Quase todos os dias<br />

levávamos um susto. Quando chovia, por causa <strong>da</strong>s pedras e muita lama, precisávamos empurrar<br />

a moto por uma longa distância. Eu sentia muita pena <strong>da</strong>quelas crianças. Eram crianças ingênuas,<br />

sofri<strong>da</strong>s, mas se<strong>de</strong>ntas <strong>de</strong> conhecimentos. Tornei-me até cabeleireira <strong>de</strong>las.<br />

Sempre me preocupei em usar uma tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> voz agradável, sem aqueles urros que assombraram<br />

meu tempo <strong>de</strong> aluna. Isso causou certa surpresa às crianças. Quando cheguei a essa escola, todos<br />

ficavam com olhares espantados, aguar<strong>da</strong>ndo um novo coronel. Mas na minha infância sentira<br />

os mesmos medos e, com certeza, isso influenciou minha postura como professora.<br />

Na época eu não dispunha <strong>de</strong> muitos meios para trabalhar em sala <strong>de</strong> aula – o giz, a lousa, e<br />

alguns livros paradidáticos eram os meus recursos.<br />

Encerra<strong>da</strong> essa aventura <strong>de</strong> um ano fui para um outro bairro chamado Capim Branco, ain<strong>da</strong> em<br />

Mairiporã. Estra<strong>da</strong>s <strong>de</strong>sérticas e longínquas. Muitas vezes, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um temporal, ao voltar para<br />

casa caía no barro, levantava e seguia, pois naquele lugar não <strong>da</strong>va para ficar, nem com céu azul e<br />

sol escal<strong>da</strong>nte.<br />

Minha mãe ficava aflita quando me atrasava, ou quando chovia à tar<strong>de</strong>, pois sabia dos obstáculos<br />

que sua filha enfrentaria.<br />

Na minha hora <strong>de</strong> almoço, antes <strong>de</strong> ir para a escola, passava no Zé Vermelho, o quitan<strong>de</strong>iro, e<br />

comprava bananas para reforçar o lanche <strong>da</strong>s crianças.<br />

O tempo foi passando, e todos os dias, circulando por aquele lugar <strong>de</strong>sértico enquanto a moto<br />

<strong>de</strong>slizava pelas estra<strong>da</strong>s solitárias, eu ia silenciosamente pedindo a Deus que me guar<strong>da</strong>sse e não<br />

aparecesse nenhum carro, nenhum bicho, na<strong>da</strong> que pu<strong>de</strong>sse me amedrontar.<br />

Um dia, muito apressa<strong>da</strong>, fui abastecer minha moto e, como estavam dois galões juntos, um <strong>de</strong><br />

cândi<strong>da</strong> e outro <strong>de</strong> gasolina, imaginem... enchi o tanque <strong>de</strong> cândi<strong>da</strong>!! An<strong>de</strong>i uns cem quilômetros<br />

e a moto começou a falhar até que parou. Minha mãe logo percebeu que eu estava em apuros e<br />

mandou meu irmão "SOS" atrás <strong>de</strong> mim. Ele trouxe a moto para casa <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> esvaziá-la, ali<br />

mesmo na estra<strong>da</strong>. Fiquei entedia<strong>da</strong>, paguei um táxi e segui. As crianças me esperavam preocupa<strong>da</strong>s,<br />

pois não era <strong>de</strong> me atrasar. Esqueci todos os inconvenientes ao me <strong>de</strong>parar com aqueles rostinhos<br />

ansiosos me aguar<strong>da</strong>ndo.<br />

M1U1T6<br />

38


Sempre honrei minha profissão. Não queria ser a melhor, mas sim honrar com os compromissos<br />

assumidos a partir do dia em que <strong>de</strong>cidi ser professora. Logo <strong>de</strong>pois me vi numa escola perto <strong>de</strong><br />

casa. Pensei por um instante: "Ah, agora vai melhorar!".<br />

As crianças eram rebel<strong>de</strong>s, cheias <strong>de</strong> <strong>de</strong>fasagens na aprendizagem, auto-estima no fundo do poço.<br />

Tratava-se <strong>de</strong> uma classe especial. Pensei que não conseguiria vencer tal <strong>de</strong>safio, mas, com carinho,<br />

<strong>de</strong>dicação e muito trabalho, as crianças voltaram a sentir prazer em estu<strong>da</strong>r.<br />

Há cinco anos trabalho numa fazen<strong>da</strong>, a Fazen<strong>da</strong> Conceição, em Jundiaí. Um lugar maravilhoso,<br />

um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro paraíso em terra. Sou feliz ali. Amo as pessoas com as quais convivo na minha<br />

rotina diária.<br />

Trabalho com a proposta construtivista implementa<strong>da</strong> em to<strong>da</strong> re<strong>de</strong> <strong>de</strong> educação <strong>de</strong> Jundiaí.<br />

Com o ensino tradicional, colhi bons frutos, mas as coisas se renovam, sofrem transformações.<br />

Muitas <strong>de</strong>scobertas na área educacional foram feitas e isso gera a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> inovar.<br />

O encontro com essa proposta me fez refletir mais sobre meu trabalho. Mu<strong>da</strong>nças foram feitas:<br />

hoje me preocupo em apresentar uma diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> textos para os alunos, na Matemática, parto<br />

<strong>da</strong>s idéias que os alunos têm, valorizo o cálculo mental, planejo projetos <strong>de</strong> trabalho em to<strong>da</strong>s as<br />

áreas <strong>de</strong> conhecimento.<br />

Ain<strong>da</strong> estou na <strong>de</strong>scoberta do mundo, assim como as crianças que vão tateando, pisando leve e<br />

<strong>de</strong>scobrindo as belezas e... as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s também.<br />

Agra<strong>de</strong>ço a Deus, aos familiares e amigos que tanto me apoiaram e me ensinaram nesses vinte<br />

anos <strong>de</strong> profissão.<br />

Minha turma<br />

Minha classe reúne alunos do 2º,3º e 4º ano, num total <strong>de</strong> 24 alunos. Destes, quatro pertencem<br />

ao 2º ano, <strong>de</strong>zesseis ao 3º e quatro ao 4º ano. Exceto os alunos do 4º ano, nos outros grupos<br />

tenho crianças que ain<strong>da</strong> não se alfabetizaram.<br />

O trabalho não é fácil, pois preciso aten<strong>de</strong>r e <strong>de</strong>safiar a todos.Tenho feito um gran<strong>de</strong> investimento<br />

na leitura: as crianças lêem jornais, revistas especializa<strong>da</strong>s, livros <strong>de</strong> história, gibis.<br />

Na minha rotina, garanto algumas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s comuns a todos, como as <strong>de</strong> leitura, outras que são<br />

específicas para ca<strong>da</strong> turma, e ain<strong>da</strong> aquelas em que as crianças maiores estão agrupa<strong>da</strong>s com os<br />

menores. A vantagem <strong>da</strong> sala multisseria<strong>da</strong> é a riqueza <strong>da</strong>s trocas <strong>de</strong> informações. Muitas vezes<br />

um aluno <strong>de</strong> 2º ano ensina um <strong>de</strong> 4º ano.<br />

A turma é bastante tranqüila. As crianças são participativas, respeitosas e estão geralmente<br />

muito dispostas a apren<strong>de</strong>r.<br />

M1U1T6<br />

39


Maria Angélica Turato Lotti<br />

Professora do Centro Municipal <strong>de</strong> <strong>Educação</strong> para Jovens e Adultos – Jundiaí/SP<br />

Sou forma<strong>da</strong> em Letras e trabalho com classes <strong>de</strong> 1ª a 4ª série <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1990. Escolhi ser professora<br />

porque é muito gratificante ensinar. É uma carreira maravilhosa. Ensinar a ler e a escrever, então, é<br />

mais gratificante ain<strong>da</strong>. Acompanhar o processo <strong>de</strong> aprendizagem dos alunos, observar e comemorar<br />

ca<strong>da</strong> conquista, apoiar e acolher para enfrentarem os <strong>de</strong>safios, são ações recompensadoras, nos<br />

levam a fazer <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> alento!<br />

Comecei a trabalhar com educação <strong>de</strong> jovens e adultos em 1999. Confesso que, no início, fiquei<br />

com medo, pois não tinha nenhuma experiência com adultos; ficava angustia<strong>da</strong> em observar<br />

aquelas pessoas tão mais velhas do que eu, que sabiam tantas coisas, como construir casas, não<br />

conseguirem <strong>de</strong>cifrar textos simples. O incentivo e o acolhimento <strong>da</strong> diretora <strong>da</strong> escola foram<br />

fun<strong>da</strong>mentais para eu controlar minha ansie<strong>da</strong><strong>de</strong>, rever minhas expectativas <strong>de</strong> aprendizagens e<br />

entrar no ritmo do grupo, afinal, nem to<strong>da</strong>s as frutas <strong>de</strong> uma árvore amadurecem juntas.<br />

Hoje, me sinto melhor prepara<strong>da</strong> e com mais recursos para planejar as aulas e ajudá-los em suas<br />

aprendizagens.Trabalho com os textos <strong>de</strong> uso social (agen<strong>da</strong>, bilhetes, cartas, informativos etc.),<br />

com os nomes, com listas enfim, me sinto mais segura e consciente para <strong>de</strong>senvolver uma prática<br />

com ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que façam sentido para o grupo. O maior <strong>de</strong>safio que enfrento é receber alunos<br />

novos e integrá-los à rotina <strong>da</strong> classe. Por isso, venho discutindo com o grupo <strong>de</strong> professoras os<br />

melhores encaminhamentos para integrá-los com mais rapi<strong>de</strong>z e <strong>de</strong>ixá-los mais confiantes e<br />

animados para novas aprendizagens.<br />

É muito gratificante trabalhar com jovens e adultos. Os alunos têm muita vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r<br />

e, por isso, muita disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong> para as aulas. Como em to<strong>da</strong> sala <strong>de</strong> aula, os alunos têm ritmos<br />

<strong>de</strong> aprendizagem muito diferentes, e é preciso valorizar as conquistas <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um.Até hoje, a aluna<br />

que mais me impressionou foi uma senhora <strong>de</strong> 90 anos. Minha mãe conhecia essa senhora, que<br />

fazia remédios caseiros, e a convidou para estu<strong>da</strong>r comigo. Pedi que fosse fazer a matrícula. Ela,<br />

com 90 anos, não sabia assinar o nome e muito menos pegar na caneta. Iniciou as aulas. Mostrei<br />

as letras do alfabeto, seu nome com letra <strong>de</strong> fôrma e <strong>de</strong> mão e assim que viu, disse: "os hinos <strong>da</strong><br />

minha igreja". Aproveitei o conhecimento que tinha dos hinos <strong>da</strong> igreja e transcrevi alguns em<br />

cartazes para lermos juntas. Além dos hinos, trabalhamos com listas (<strong>de</strong> compras, nomes dos alunos,<br />

nomes <strong>de</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s etc.); com receitas (<strong>de</strong>stacando to<strong>da</strong>s as partes: título, lista <strong>de</strong> ingredientes,<br />

modo e tempo <strong>de</strong> preparo); com textos <strong>de</strong> memória (quadras e parlen<strong>da</strong>s). Mais ou menos dois<br />

meses <strong>de</strong>pois, ela estava começando a ler, eu mesma me surpreendi, era fantástico! A certeza que<br />

fica é que não existe i<strong>da</strong><strong>de</strong> para as pessoas apren<strong>de</strong>rem.<br />

Ca<strong>da</strong> turma freqüenta a escola por duas horas e meia, diariamente. O grupo <strong>de</strong> professores<br />

participa <strong>de</strong> um programa <strong>de</strong> capacitação às quartas-feiras, <strong>da</strong>s 8 às 11 horas; esse grupo tem<br />

contribuído muito para a reflexão sobre nossa prática.<br />

Minha turma<br />

A turma que freqüenta <strong>da</strong>s 15 às 17h30 tem mais ou menos 17 alunos e a turma que freqüenta<br />

<strong>da</strong>s 18h30 às 21 horas tem mais ou menos 35 alunos.<br />

Não temos uma turma fixa. Nossa escola funciona em quatro períodos, e o aluno escolhe qual<br />

o mais a<strong>de</strong>quado para sua vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabalho.<br />

M1U1T6<br />

40


Quando o aluno ingressa na escola, o primeiro passo é o nome. Geralmente, eles conseguem<br />

escrever com letra cursiva.As primeiras propostas são escritas com letra <strong>de</strong> forma, pois é a letra<br />

que está presente nos jornais, nas placas e cartazes – além <strong>de</strong> individualizarem os caracteres.<br />

Todo início <strong>de</strong> aula faço uma leitura compartilha<strong>da</strong> (poesia, crônica, notícia <strong>de</strong> jornal etc.), para<br />

aproximá-los, <strong>de</strong> forma mais sistemática, <strong>da</strong> linguagem escrita encontra<strong>da</strong> nos textos literários e<br />

para ampliar o horizonte cultural do grupo.<br />

Os textos que os alunos conhecem <strong>de</strong> cor (quadras, parlen<strong>da</strong>s, músicas etc.) também estão<br />

muito presentes na sala <strong>de</strong> aula. Esses textos favorecem a pesquisa do código escrito, à medi<strong>da</strong><br />

que buscam ajustar o falado ao escrito e, como sabem <strong>de</strong> memória, há uma autonomia maior<br />

para i<strong>de</strong>ntificar o texto e algumas <strong>da</strong>s partes que o compõem.<br />

Quando o jovem ou o adulto procura a escola, é porque já se encheu <strong>de</strong> coragem para voltar ou<br />

para começar. Eu procuro sempre incentivar e falar <strong>da</strong> importância <strong>da</strong> aprendizagem <strong>da</strong> leitura e<br />

<strong>da</strong> escrita para uma participação social maior.<br />

Neste ano, <strong>de</strong>senvolvi um projeto chamado "autobiografia". Os alunos tiveram oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

escrever, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse projeto, sobre suas vi<strong>da</strong>s, gostos, medos, sonhos, preferências etc. Pensei,<br />

no início, que fosse ser fácil <strong>de</strong>senvolver esse projeto. No entanto, quando chegamos na árvore<br />

genealógica, percebemos a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois muitos não conheciam seus antepassados: avós, bisavós.<br />

Realizei uma son<strong>da</strong>gem, e percebi que muitos dos meus alunos não tinham diálogo com seus pais,<br />

mães e avós, e muitos não tinham os documentos necessários para ser um ci<strong>da</strong>dão. Foi uma<br />

oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> para tirarem os documentos e conhecerem seus direitos.<br />

Aprendi muito com o programa <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> alfabetizadores: a controlar a ansie<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />

sentia, a rever minhas expectativas <strong>de</strong> aprendizagem e, principalmente, compreendi como os alunos<br />

apren<strong>de</strong>m a ler e escrever pensando e atribuindo sentido às ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Aprendi a ver o texto com um olhar prazeroso, parei <strong>de</strong> silabar as palavras. Acreditava que<br />

assim aprendiam, hoje sei fazer diferente.<br />

Dionéa Tomázia Silva Mazzola<br />

Professora do Centro Municipal <strong>de</strong> <strong>Educação</strong> para Jovens e Adultos – Jundiaí/SP<br />

São 17 anos <strong>de</strong> magistério, sendo que <strong>de</strong>stes 17, 13 com <strong>Educação</strong> <strong>de</strong> Jovens e Adultos. Cursei o<br />

Magistério, Pe<strong>da</strong>gogia e Pós-graduação. Iniciei com alunos <strong>de</strong> uma escola particular em São<br />

José dos Campos, tradicionalíssima.<br />

Casei-me e foi quando comecei a lecionar para Jovens e Adultos em Jundiaí. No começo estranhei<br />

um pouco. Era uma instituição que se chamava Fun<strong>da</strong>ção Educar.<br />

Logo se extinguiu, surgindo o Promad – Programa <strong>de</strong> Alfabetização <strong>de</strong> Adultos.<br />

Nessa época trabalhávamos com textos diversos, cuja temática estava volta<strong>da</strong> para adultos.<br />

Existiam palavras-chaves e, partindo <strong>de</strong>las, os alunos estu<strong>da</strong>vam as famílias silábicas. Depois,<br />

surgiu a Suplência, on<strong>de</strong> os alunos tinham vários módulos (livros) <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as áreas, com os<br />

conteúdos selecionados.<br />

M1U1T6<br />

41


Hoje, chegamos ao Ensino Fun<strong>da</strong>mental <strong>de</strong> 1ª a 4ª série, com uma proposta totalmente diferente,<br />

na qual os alunos precisam pôr em jogo tudo o que sabem e pensam sobre o conteúdo que o<br />

professor organiza. Antes, eu só entregava o livro e os alunos copiavam o conteúdo; hoje, é<br />

proposta uma situação <strong>de</strong>safiadora, na qual existe o possível e o difícil, para o aluno refletir,<br />

produzir, opinar, criticar etc. Atualmente, minha prática pe<strong>da</strong>gógica e as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s propostas são<br />

diversifica<strong>da</strong>s, e os alunos se agrupam, favorecendo uma aprendizagem melhor, pois antes era ca<strong>da</strong><br />

um por si, e a orientação era individualiza<strong>da</strong>.<br />

Dessa forma, vou apren<strong>de</strong>ndo a trabalhar produtivamente com turmas heterogêneas, enfrentando<br />

muitos <strong>de</strong>safios. São conquistas e mais conquistas que <strong>de</strong>vem estar presentes sempre: tanto para<br />

o aluno quanto para o professor. Nós, professores <strong>da</strong> re<strong>de</strong> municipal, temos um encontro <strong>de</strong><br />

trabalho pe<strong>da</strong>gógico coletivo semanal, em que temos momentos <strong>de</strong> reflexão sobre diversos tipos<br />

<strong>de</strong> texto, <strong>de</strong> materiais e <strong>de</strong> conteúdos, além <strong>de</strong> trocar e socializar experiências.<br />

É uma formação importante e fun<strong>da</strong>mental, que aten<strong>de</strong> minhas necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s nas mais diversas<br />

situações resultando em aspectos positivos para minha prática pe<strong>da</strong>gógica. É um momento<br />

coletivo, <strong>de</strong> aperfeiçoamento e reflexão constantes. Mas ain<strong>da</strong> tenho muitas questões: "O que<br />

fazer para garantir situações didáticas <strong>de</strong> fato <strong>de</strong>safiadoras?" "Como garantir e <strong>de</strong>senvolver um<br />

trabalho produtivo com uma classe heterogênea?"<br />

Sei que, para ocorrer tudo isso, preciso estruturar os meus objetivos e a minha prática, norteando<br />

assim a ação do aluno, e avaliar sempre, pois é nesse momento que "amarramos o vivido e<br />

replanejamos o futuro".<br />

Quero ser sempre otimista, acreditando nas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos meus alunos, ser capaz <strong>de</strong> exercer<br />

uma influência benéfica, como um todo e em ca<strong>da</strong> aluno, possibilitando um clima saudável, uma<br />

imaginação criadora e atitu<strong>de</strong>s construtivistas.<br />

Minha turma<br />

Na minha classe recebo alunos novos quase to<strong>da</strong>s as semanas. Aos alunos <strong>de</strong> 1ª e 2ª séries<br />

chamamos <strong>de</strong> "alunos <strong>da</strong> alfabetização inicial", e aos <strong>da</strong> 3ª e 4ª séries <strong>de</strong> pós-alfabetização. Faço<br />

uma rotina semanal para ca<strong>da</strong> grupo. São alunos com i<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> 14 a 80 anos, e mais ou menos<br />

30 a 35 alunos por classe. Esse <strong>da</strong>do é relativo, <strong>de</strong>vido aos horários que eles trabalham. Leciono<br />

para duas turmas com alunos <strong>de</strong> 1ª a 4ª séries. São alunos que iniciam na maioria <strong>da</strong>s vezes<br />

conhecendo algumas letras. Ingressam geralmente interessados e ao mesmo tempo angustiados<br />

por apren<strong>de</strong>r a ler e escrever convencionalmente. Nesta etapa do ano (março), todos já conhecem<br />

e escrevem o seu nome, alguns já se arriscam na leitura, e todos são convi<strong>da</strong>dos a produzir textos<br />

escritos e orais. Um dos recursos que utilizo para saber o que eles já conhecem é a son<strong>da</strong>gem,<br />

que são situações que planejo com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> diagnosticar os saberes dos alunos.<br />

Penso que tudo o que proponho <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>safiador, porque assim os alunos investem em<br />

resolver uma situação <strong>de</strong> aprendizagem, e isso os aju<strong>da</strong> a avançar em seus conhecimentos. Procuro<br />

garantir o trabalho coletivo em duplas e grupos, procurando repensar nessa formação para<br />

garantir as trocas <strong>de</strong> informações.<br />

Espero que no final do ano letivo tenhamos conseguido realizar o sonho <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um dos alunos,<br />

<strong>de</strong> não precisar <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r mais dos outros para ler e escrever.<br />

M1U1T6<br />

42


Cem anos <strong>de</strong> perdão *<br />

Clarice Lispector<br />

Quem nunca roubou não vai me enten<strong>de</strong>r. E quem nunca roubou rosas, então, é que jamais<br />

po<strong>de</strong>rá me enten<strong>de</strong>r. Eu, em pequena, roubava rosas.<br />

Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos, la<strong>de</strong>a<strong>da</strong>s por palacetes que ficavam no centro<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos muito <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir a quem pertenciam os<br />

palacetes. "Aquele branco é meu." "Não, eu já disse que os brancos são meus." Parávamos às<br />

vezes longo tempo, a cara imprensa<strong>da</strong> nas gra<strong>de</strong>s, olhando.<br />

Começou assim. Numa <strong>da</strong>s brinca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> "essa casa é minha", paramos diante <strong>de</strong> uma que<br />

parecia um pequeno castelo. No fundo, via-se o imenso pomar. E, à frente, em canteiros bem<br />

ajardinados, estavam planta<strong>da</strong>s as flores.<br />

Bem, mas isola<strong>da</strong> no seu canteiro, estava uma rosa apenas entreaberta cor-<strong>de</strong>-rosa vivo. Fiquei<br />

feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ain<strong>da</strong> não era. E<br />

então aconteceu: do fundo <strong>de</strong> meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como<br />

eu queria. E não havia jeito <strong>de</strong> obtê-la. Se o jardineiro estivesse por ali, pediria a rosa, mesmo<br />

sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques. Não havia jardineiro à vista, ninguém.<br />

E as janelas, por causa do sol, estavam <strong>de</strong> venezianas fecha<strong>da</strong>s. Era uma rua on<strong>de</strong> não passavam<br />

bon<strong>de</strong>s e raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio e do silêncio <strong>da</strong> rosa, havia o<br />

meu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> possuí-la como coisa só minha. Eu queria po<strong>de</strong>r pegar nela. Queria cheirá-la até<br />

sentir a vista escura <strong>de</strong> tanta tonteira <strong>de</strong> perfume.<br />

Então não pu<strong>de</strong> mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio <strong>de</strong> paixão. Mas, como<br />

boa realizadora que era, raciocinei friamente com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o<br />

seu papel: vigiar as janelas <strong>da</strong> casa ou a aproximação ain<strong>da</strong> possível do jardineiro, vigiar os<br />

transeuntes raros na rua. Enquanto isso, entreabri lentamente o portão <strong>de</strong> gra<strong>de</strong>s um pouco<br />

enferruja<strong>da</strong>s, contando já com o leve rangido. Entreabri somente o bastante para que meu<br />

esguio corpo <strong>de</strong> menina pu<strong>de</strong>sse passar. E, pé ante pé, mas veloz, an<strong>da</strong>va pelos pedregulhos que<br />

ro<strong>de</strong>avam os canteiros. Até chegar à rosa foi um século <strong>de</strong> coração batendo.<br />

Eis-me afinal diante <strong>de</strong>la. Paro um instante, perigosamente, porque <strong>de</strong> perto ela ain<strong>da</strong> é mais<br />

lin<strong>da</strong>. Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o<br />

sangue dos <strong>de</strong>dos.<br />

*<br />

Extraído <strong>de</strong> Para gostar <strong>de</strong> ler, volume 9. São Paulo, Ática.<br />

M1U2T1<br />

M1U2T1<br />

1


E, <strong>de</strong> repente — ei-la to<strong>da</strong> na minha mão. A corri<strong>da</strong> <strong>de</strong> volta ao portão tinha também <strong>de</strong> ser sem<br />

barulho. Pelo portão que <strong>de</strong>ixara entreaberto, passei segurando a rosa. E então nós duas páli<strong>da</strong>s,<br />

eu e a rosa, corremos literalmente para longe <strong>da</strong> casa.<br />

O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha.<br />

Levei-a para casa, coloquei-a num copo d’ água, on<strong>de</strong> ficou soberana, <strong>de</strong> pétalas grossas e<br />

avelu<strong>da</strong><strong>da</strong>s, com vários entretons <strong>de</strong> rosa-chá. No centro <strong>de</strong>la a cor se concentrava mais e<br />

seu coração quase parecia vermelho.<br />

Foi tão bom.<br />

Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas.<br />

O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo<br />

com a rosa na mão.<br />

Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.<br />

Também roubava pitangas. Havia uma igreja presbiteriana perto <strong>de</strong> casa, ro<strong>de</strong>a<strong>da</strong> por uma sebe<br />

ver<strong>de</strong>, alta e tão <strong>de</strong>nsa que impossibilitava a visão <strong>da</strong> igreja. Nunca cheguei a vê-la, além <strong>de</strong> uma<br />

ponta <strong>de</strong> telhado.A sebe era <strong>de</strong> pitangueira. Mas pitangas são frutas que se escon<strong>de</strong>m: eu não via<br />

nenhuma. Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão por<br />

entre as gra<strong>de</strong>s, mergulhava-a <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> sebe e começava a apalpar até meus <strong>de</strong>dos sentirem o<br />

úmido <strong>da</strong> frutinha. Muitas vezes, na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura <strong>de</strong>mais com<br />

os <strong>de</strong>dos que ficavam como ensangüentados. Colhia várias que ia comendo ali mesmo, umas até<br />

ver<strong>de</strong>s <strong>de</strong>mais, que eu jogava fora.<br />

Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão <strong>de</strong> rosas e <strong>de</strong> pitangas tem cem anos <strong>de</strong> perdão.<br />

As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pe<strong>de</strong>m para ser colhi<strong>da</strong>s, em vez <strong>de</strong> amadurecer<br />

e morrer no galho, virgens.<br />

M1U2T1<br />

2


*<br />

Extraído <strong>de</strong>: Um brasileiro em Berlim. Editora Nova Fronteira, 1995.<br />

Memória <strong>de</strong> Livros *<br />

João Ubaldo Ribeiro<br />

M1U2T2<br />

Aracaju, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> on<strong>de</strong> nós morávamos no fim <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 40, começo <strong>da</strong> <strong>de</strong> 50, era a orgulhosa<br />

capital <strong>de</strong> Sergipe, o menor Estado brasileiro (mais ou menos do tamanho <strong>da</strong> Suíça). Essa distinção,<br />

contudo, não lhe tirava o caráter <strong>de</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> pequena, provinciana e calma, à boca <strong>de</strong> um rio e a pouca<br />

distância <strong>de</strong> praias muito bonitas.Sabíamos do mundo pelo rádio,pelos cinejornais que acompanhavam<br />

todos os filmes e pelas revistas nacionais. A televisão era ti<strong>da</strong> por muitos como mentira <strong>de</strong><br />

viajantes, só alguns loucos an<strong>da</strong>vam <strong>de</strong> avião, comprávamos galinhas vivas e verduras trazi<strong>da</strong>s à<br />

nossa porta nas costas <strong>de</strong> mulas, tínhamos gran<strong>de</strong>s quintais e jardins, meninos não discutiam com<br />

adultos, mulheres não usavam calças compri<strong>da</strong>s nem dirigiam automóveis e vivíamos tão longe<br />

<strong>de</strong> tudo que se dizia que, quando o mundo acabasse, só íamos saber uns cinco dias <strong>de</strong>pois.<br />

Mas vivíamos bem. Morávamos sempre em casarões enormes, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s portas, varan<strong>da</strong>s e<br />

tetos altíssimos, e meu pai, que sempre gostou <strong>da</strong>s últimas novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s tecnológicas, trazia para<br />

casa quanto era tipo <strong>de</strong> geringonça mo<strong>de</strong>rna que aparecia. Fomos a primeira família <strong>da</strong> vizinhança<br />

a ter uma gela<strong>de</strong>ira e recebemos visitas para examinar o impressionante armário branco que<br />

esfriava tudo. Quando surgiram os primeiros discos long-play, já tínhamos a vitrola apropria<strong>da</strong> e<br />

meu pai comprava montanhas <strong>de</strong> gravações dos clássicos, que ele próprio se recusava a ouvir,<br />

mas nos obrigava a escutar e comentar.<br />

Na<strong>da</strong>, porém, era como os livros.To<strong>da</strong> a família sempre foi obceca<strong>da</strong> por livros e às vezes ain<strong>da</strong><br />

arma brigas ferozes por causa <strong>de</strong> livros, entre acusações mútuas <strong>de</strong> furto ou apropriação indébita.<br />

Meu avô furtava livros <strong>de</strong> meu pai, meu pai furtava livros <strong>de</strong> meu avô, eu furtava livros <strong>de</strong> meu<br />

pai e minha irmã até hoje furta livros <strong>de</strong> todos nós. A maior casa on<strong>de</strong> moramos, mais ou menos<br />

a partir <strong>da</strong> época em que aprendi a ler, tinha uma sala reserva<strong>da</strong> para a biblioteca e gabinete <strong>de</strong><br />

meu pai, mas os livros não cabiam nela — na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, mal cabiam na casa. E, embora os interesses<br />

básicos <strong>de</strong>le fossem Direito e História, os livros eram sobre todos os assuntos e <strong>de</strong> todos os<br />

tipos. Até mesmo ciências ocultas, assunto que fascinava meu pai e fazia com que ele às vezes se<br />

trancasse na companhia <strong>de</strong> uns <strong>de</strong>senhos esotéricos, para <strong>de</strong>pois sair e dirigir olhares magnéticos<br />

aos circunstantes, só que ninguém ligava e ele <strong>de</strong>sistia temporariamente.<br />

Havia uns livros sobre hipnotismo e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ler um <strong>de</strong>les, hipnotizei um peru que nos tinha<br />

sido <strong>da</strong>do para um Natal e que, como jamais ninguém lembrou <strong>de</strong> assá-lo, passou a residir no<br />

quintal e, não sei por que, era conhecido como Lúcio. Minha mãe se impressionou porque, assim<br />

que comecei meus passes hipnóticos, Lúcio estacou, pareceu engolir em seco e ficou paralisado,<br />

mas meu pai — talvez porque ele próprio nunca tenha conseguido hipnotizar na<strong>da</strong>, apesar <strong>de</strong><br />

inúmeras tentativas — <strong>de</strong>clarou que aquilo não tinha na<strong>da</strong> com hipnotismo, era porque Lúcio era<br />

na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> uma perua e tinha pensado que eu era o peru.<br />

M1U2T2<br />

1


Não sei bem dizer como aprendi a ler. A circulação entre os livros era livre (tinha que ser,<br />

pensando bem, porque eles estavam pela casa to<strong>da</strong>, inclusive na cozinha e no banheiro), <strong>de</strong><br />

maneira que eu convivia com eles to<strong>da</strong>s as horas do dia, a ponto <strong>de</strong> passar tempos enormes com<br />

um <strong>de</strong>les aberto no colo, fingindo que estava lendo e, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, se não me trai a vã memória, <strong>de</strong><br />

certa forma lendo, porque quando havia figuras, eu inventava as histórias que elas ilustravam e,<br />

ao olhar para as letras, tinha a sensação <strong>de</strong> que entendia nelas o que inventara. Segundo a crônica<br />

familiar, meu pai interpretava aquilo como uma gran<strong>de</strong> se<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber cruelmente insatisfeita e<br />

queria que eu apren<strong>de</strong>sse a ler já aos quatros anos, sendo <strong>de</strong>movido a muito custo, por uma<br />

pe<strong>da</strong>goga amiga nossa. Mas, <strong>de</strong>pois que completei seis anos, ele não agüentou, fez um discurso<br />

dizendo que eu já conhecia to<strong>da</strong>s as letras e agora era só uma questão <strong>de</strong> juntá-las e, além <strong>de</strong><br />

tudo, ele não suportava mais ter um filho analfabeto. Em segui<strong>da</strong>, mandou que eu vestisse uma<br />

roupa <strong>de</strong> sair, foi comigo a uma livraria, comprou uma cartilha, uma tabua<strong>da</strong> e um ca<strong>de</strong>rno e me<br />

levou à casa <strong>de</strong> D. Gilete.<br />

— D. Gilete — disse ele, apresentando-me a uma senhora <strong>de</strong> cabelos presos na<br />

nuca, óculos redondos e ar severo —, este rapaz já está um homem e ain<strong>da</strong> não sabe ler.<br />

Aplique as regras.<br />

"Aplicar as regras", soube eu muito <strong>de</strong>pois, com um susto retar<strong>da</strong>do, significava, entre outras coisas,<br />

usar a palmatória para vencer qualquer manifestação <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> empenho ou burrice por parte<br />

do aluno. Felizmente D. Gilete nunca precisou me aplicar as regras, mesmo porque eu <strong>de</strong> fato já<br />

conhecia a maior parte <strong>da</strong>s letras e juntá-las me pareceu facílimo, <strong>de</strong> maneira que, quando voltei<br />

para casa nesse mesmo dia, já estava começando a po<strong>de</strong>r ler. Fui a uma <strong>da</strong>s estantes do corredor<br />

para selecionar um <strong>da</strong>queles livrões com retratos <strong>de</strong> homens carrancudos e cenas <strong>de</strong> batalhas,<br />

mas meu pai apareceu subitamente à porta do gabinete, carregando uma pilha <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> vinte<br />

livros infantis.<br />

— Esses <strong>da</strong>í agora não — disse ele. — Primeiro estes, para treinar. Estas livrarias <strong>da</strong>qui<br />

são umas porcarias, só achei estes. Mas já encomen<strong>de</strong>i mais, esses <strong>da</strong>í <strong>de</strong>vem durar uns dias.<br />

Duraram bem pouco, sim, porque <strong>de</strong> repente o mundo mudou e aquelas pare<strong>de</strong>s cobertas <strong>de</strong><br />

livros começaram a se tornar vivas, freqüenta<strong>da</strong>s por um número estonteante <strong>de</strong> maravilhas,<br />

escritas <strong>de</strong> todos os jeitos e capazes <strong>de</strong> me transportar a todos os cantos do mundo e a todos<br />

os tipos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> possíveis. Um pouco febril às vezes, chegava a ler dois ou três livros num só dia,<br />

sem querer dormir e sem querer comer porque não me <strong>de</strong>ixavam ler à mesa — e, pela primeira<br />

vez em muitas, minha mãe disse a meu pai que eu estava maluco, preocupação que até hoje<br />

volta e meia ela manifesta.<br />

— Seu filho está doido — disse ela, <strong>de</strong> noite, na varan<strong>da</strong>, sem saber que eu estava<br />

escutando.<br />

— Ele não larga os livros. Hoje ele estava abrindo os livros <strong>da</strong>quela estante que vai<br />

cair para cheirar.<br />

— Que é que tem isso? É normal, eu também cheiro muito os livros <strong>da</strong>quela estante.<br />

São livros velhos, alguns têm um cheiro ótimo.<br />

M1U2T2<br />

— Ele ontem passou a tar<strong>de</strong> inteira lendo um dicionário.<br />

2


— Normalíssimo. Eu também leio dicionários, distrai muito. Que dicionário ele estava lendo?<br />

— O Lello.<br />

— Ah, isso é que não po<strong>de</strong>. Ele tem que ler o Lau<strong>de</strong>lino Freire, que é muito melhor. Eu<br />

vou ter uma conversa com esse rapaz, ele não enten<strong>de</strong> na<strong>da</strong> <strong>de</strong> dicionários. Ele está cheirando<br />

os livros certos, mas lendo o dicionário errado, precisa <strong>de</strong> orientação.<br />

Sim, tínhamos muitas conversas sobre livros. Durante to<strong>da</strong> a minha infância, havia dois tipos<br />

básicos <strong>de</strong> leitura lá em casa: a compulsória e a livre, esta última dividi<strong>da</strong> em dois subtipos — a<br />

livre propriamente dita e a incerta. A compulsória variava conforme a disposição <strong>de</strong> meu pai. Havia<br />

a leitura em voz alta <strong>de</strong> poemas, trechos <strong>de</strong> peças <strong>de</strong> teatro e discursos clássicos, em que nossa<br />

dicção e entonação eram invariavelmente <strong>de</strong>scritas como o pior <strong>de</strong>sgosto que ele tinha na vi<strong>da</strong>.<br />

Líamos Homero, Camões, Horácio, Jorge <strong>de</strong> Lima, Sófocles, Shakespeare, Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha, <strong>de</strong>zenas<br />

<strong>de</strong> outros. Muitas vezes não entendíamos na<strong>da</strong> do que líamos, mas gostávamos <strong>da</strong>quelas palavras<br />

sonoras, <strong>da</strong>queles conflitos estranhos entre gente <strong>de</strong> nomes exóticos, e <strong>da</strong> expressão comovi<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> minha mãe, com pena <strong>de</strong> Antígona e torcendo por Heitor na Ilía<strong>da</strong>. Depois <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> leitura,<br />

meu pai fazia sua palestra <strong>de</strong> rotina sobre nossa ignorância e, an<strong>da</strong>ndo para cima e para baixo <strong>de</strong><br />

pijama na varan<strong>da</strong>, <strong>da</strong>va uma aula grandiloqüente sobre o assunto <strong>da</strong> leitura, ou sobre o autor do<br />

texto, aula esta a que os vizinhos muitas vezes vinham assistir.Também tínhamos os resumos —<br />

escritos ou orais — <strong>da</strong>s leituras, as cópias (começa<strong>da</strong>s quando ele, com gran<strong>de</strong> escân<strong>da</strong>lo, <strong>de</strong>scobriu<br />

que eu não entendia direito o ponto-e-vírgula e me obrigou a copiar sermões do Padre Antônio<br />

Vieira, para apren<strong>de</strong>r a usar o ponto-e-vírgula) e os trechos a <strong>de</strong>corar. No que certamente é um<br />

mistério para os psicanalistas, até hoje não só os sermões <strong>de</strong> Vieira como muitos <strong>de</strong>sses autores<br />

forçados pela goela abaixo estão entre minhas leituras favoritas. (Em compensação, continuo<br />

ruim <strong>de</strong> ponto-e-vírgula).<br />

Mas o bom mesmo era a leitura livre, inclusive porque oferecia seus perigos. Meu pai usava uma<br />

técnica maquiavélica para me convencer a me interessar por certas leituras. A circulação entre<br />

os livros permanecia absolutamente livre, mas, <strong>de</strong> vez em quando, ele brandia um volume no ar<br />

e anunciava com veemência:<br />

— Este não po<strong>de</strong>! Está proibido! Arranco as orelhas do primeiro que chegar perto <strong>de</strong>ste <strong>da</strong>qui!<br />

O problema era que não só ele <strong>de</strong>ixava o livro proibido bem à vista, no mesmo lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> o<br />

tirara subitamente, como às vezes a proibição era para valer. A incerteza era inevitável e então<br />

tínhamos momentos <strong>de</strong> suspense arrasador (meu pai nunca arrancou as orelhas <strong>de</strong> ninguém, mas<br />

todo mundo achava que, se fosse por uma questão <strong>de</strong> princípios, ele arrancaria), nos quais lemos<br />

Nossa vi<strong>da</strong> sexual do Dr. Fritz Kahn, Romeu e Julieta; O livro <strong>de</strong> San Michèle, Crônica escan<strong>da</strong>losa<br />

dos doze Césares, Salambô, O crime do Padre Amaro — enfim, <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> títulos <strong>de</strong> uma coleção<br />

estapafúrdia, cujo único ponto em comum era o medo <strong>de</strong> passarmos o resto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> sem orelhas<br />

— e hoje penso que li tudo o que ele queria disfarça<strong>da</strong>mente que eu lesse, embora à custa <strong>de</strong><br />

sobressaltos e suores frios.<br />

Na área proibi<strong>da</strong>, não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser feita uma menção aos pais <strong>de</strong> meu pai, meus avós João<br />

e Amália. João era português, leitor anticlerical <strong>de</strong> Guerra Junqueiro e não levava o filho muito a<br />

M1U2T2<br />

3


sério intelectualmente, porque os livros que meu pai escrevia eram finos e não ficavam em pé<br />

sozinhos. "Isto é mer<strong>da</strong>", dizia ele, sopesando com <strong>de</strong>sdém uma <strong>da</strong>s monografias jurídicas <strong>de</strong> meu<br />

pai. "Estas tripinhas que não se sustentam em pé não são livros, são uns folhetos". Já minha avó<br />

tinha mais respeito pela produção <strong>de</strong> meu pai, mas achava que, <strong>de</strong> tanto estu<strong>da</strong>r altas ciências,<br />

ele havia ficado um pouco abobalhado, não entendia na<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Isto foi muito bom para a<br />

expansão dos meus horizontes culturais, porque ela não só lia como <strong>de</strong>ixava que eu lesse tudo<br />

o que ele não <strong>de</strong>ixava, inclusive revistas policiais oficialmente proibi<strong>da</strong>s para menores. Nas férias<br />

escolares, ela ia me buscar para que eu as passasse com ela, e meu pai ficava preocupado.<br />

— D. Amália — dizia ele, tratando-a com cerimônia na esperança <strong>de</strong> que ela se imbuísse<br />

<strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> atendê-lo —, o menino vai com a senhora, mas sob uma condição. A senhora<br />

não vai <strong>de</strong>ixar que ele fique o dia inteiro <strong>de</strong>itado, cercado <strong>de</strong> bolachinhas e docinhos e lendo essas<br />

coisas que a senhora lê.<br />

— Senhor doutor — respondia minha avó —, sou avó <strong>de</strong>ste menino e tua mãe. Se te criei<br />

mal, Deus me perdoe, foi a inexperiência <strong>da</strong> juventu<strong>de</strong>. Mas este cá ain<strong>da</strong> po<strong>de</strong> ser salvo e não<br />

vou <strong>de</strong>ixar que tuas maluquices o infelicitem. Levo o menino sem condição nenhuma e, se insistes,<br />

digo-te muito bem o que po<strong>de</strong>s fazer com tuas condições e vê lá se não me respon<strong>de</strong>s, que hoje<br />

acor<strong>de</strong>i com a ciática e não vejo a hora <strong>de</strong> <strong>de</strong>itar a sombrinha ao lombo <strong>de</strong> um que se atreva a<br />

chatear-me. Passar bem, Senhor doutor.<br />

E assim eu ia para a casa <strong>de</strong> minha avó Amália, on<strong>de</strong> ela comentava mais uma vez com meu avô<br />

como o filho estu<strong>da</strong>ra <strong>de</strong>mais e ficara abestalhado para a vi<strong>da</strong>, e meu avô, que queria que ela saísse<br />

para po<strong>de</strong>r beber em paz a cerveja que o médico proibira, tirava um bolo <strong>de</strong> dinheiro do bolso<br />

e nos man<strong>da</strong>va comprar umas coisitas <strong>de</strong> ler — Amália tinha razão, se o menino queria ler que<br />

lesse, não havia mal nas leituras, havia em certos leitores. E então saíamos gloriosamente, minha<br />

avó e eu, para a maior banca <strong>de</strong> revistas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, que ficava num parque perto <strong>da</strong> casa <strong>de</strong>la e<br />

cujo dono já estava acostumado àquela dupla excêntrica. Nós íamos chegando e ele perguntava:<br />

M1U2T2<br />

— Uma <strong>de</strong> ca<strong>da</strong>?<br />

— Uma <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> — confirmava minha avó, passando a superinten<strong>de</strong>r, com os olhos<br />

brilhando, a colheita <strong>de</strong> um exemplar <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> revista, proibi<strong>da</strong> ou não-proibi<strong>da</strong>, que ia formar<br />

uma montanha colori<strong>da</strong> <strong>de</strong>slumbrante, num carrinho <strong>de</strong> mão que talvez o homem tivesse<br />

comprado para aten<strong>de</strong>r a fregueses como nós.<br />

— Man<strong>de</strong> levar. E agora aos livros!<br />

Depois <strong>da</strong> banca, naturalmente, vinham os livros. Ela acompanhava certas coleções, histórias <strong>de</strong><br />

Raffles, o ladrão <strong>de</strong> casaca, Ponson du Terrail, Sir Walter Scott, Edgar Wallace, Michel Zevaco, Emil<br />

Salgari, os Dumas e mais uma porção <strong>de</strong> outros, em edições <strong>de</strong> sobrecapas extravagantemente colori<strong>da</strong>s<br />

que me <strong>de</strong>ixavam quase sem fôlego. Na livraria, ela não só se servia dos últimos lançamentos<br />

<strong>de</strong> seus favoritos, como se dirigia imperiosamente à seção <strong>de</strong> literatura para jovens e escolhia<br />

livros para mim, geralmente sem ouvir minha opinião — e foi assim que li Karl May, Edgar Rice<br />

Burroughs, Robert Louis Stevenson, Swift e tantos mais, num sofá enorme, soterrado por<br />

revistas, livros e latas <strong>de</strong> docinhos e bolachinhas, sem querer fazer mais na<strong>da</strong>, absolutamente na<strong>da</strong>,<br />

4


neste mundo encantado. De vez em quando, minha avó e eu mantínhamos tertúlias literárias<br />

na sala, comentando nossos vilões favoritos e nosso herói predileto, o Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Monte<br />

Cristo — Edmond <strong>de</strong> Nantès!, como dizia ela, fremindo num gesto dramático. E meu avô,<br />

bebendo cerveja escondido lá <strong>de</strong>ntro, dizia "ai, ai, esses dois se acham letrados, mas nunca<br />

leram o Guerra Junqueiro".<br />

De volta à casa <strong>de</strong> meus pais, <strong>de</strong>pois <strong>da</strong>s férias, o problema <strong>da</strong>s leituras compulsórias às vezes se<br />

agravava, porque meu pai, na certeza (embora nunca <strong>de</strong>sse ousadia <strong>de</strong> me perguntar), <strong>de</strong> que<br />

minha avó me tinha <strong>da</strong>do para ler tudo o que ele proibia, entrava numa programação <strong>de</strong>lirante,<br />

<strong>de</strong>stina<strong>da</strong> a limpar os efeitos <strong>de</strong>letérios <strong>da</strong>s revistas policiais. Sei que parece mentira e não me<br />

aborreço com quem não acreditar (quem conheceu meu pai acredita), mas a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é que, aos<br />

doze anos, eu já tinha lido, com efeitos às vezes surpreen<strong>de</strong>ntes, a maior parte <strong>da</strong> obra traduzi<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> Shakespeare, O elogio <strong>da</strong> loucura, As déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Tito Lívio, D. Quixote (uma <strong>da</strong>s ilustrações<br />

<strong>de</strong> Gustave Doré, mostrando monstros e personagens saindo dos livros <strong>de</strong> cavalaria do fi<strong>da</strong>lgo<br />

me fez mal, porque eu passei a ver as mesmas coisas saindo dos livros <strong>da</strong> casa), a<strong>da</strong>ptações<br />

especiais do Fausto e <strong>da</strong> Divina comédia, a Ilía<strong>da</strong>, a Odisséia, vários ensaios <strong>de</strong> Montaigne, Poe,<br />

Alexandre Herculano, José <strong>de</strong> Alencar, Machado <strong>de</strong> Assis, Monteiro Lobato, Dickens, Dostoievski,<br />

Suetônio, os Exercícios espirituais <strong>de</strong> Santo Inácio <strong>de</strong> Loyola e mais não sei quantos outros<br />

clássicos, muitos <strong>de</strong>les resumidos, discutidos ou simplesmente lembrados em conversas inflama<strong>da</strong>s,<br />

dos quais nunca me esqueço e a maior parte dos quais faz parte íntima <strong>de</strong> minha vi<strong>da</strong>.<br />

Fico pensando nisso e me pergunto: não estou imaginando coisas, tudo isso po<strong>de</strong>ria ter realmente<br />

acontecido? Terei tido uma infância normal? Acho que sim, também joguei bola, tomei banho nu<br />

no rio, subi em árvores e acreditei em Papai Noel. Os livros eram brinca<strong>de</strong>ira como outra qualquer,<br />

embora certamente a melhor <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s. Quando tenho sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> infância, as sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s são<br />

<strong>da</strong>quele universo que nunca volta, dos meus olhos <strong>de</strong> criança vendo tanto que se entonteciam,<br />

dos cheiros dos livros velhos, <strong>da</strong> navegação infinita pela palavra, <strong>de</strong> meu pai, <strong>de</strong> meus avós, do<br />

velho casarão mágico <strong>de</strong> Aracaju.<br />

M1U2T2<br />

5


Finá <strong>de</strong> ato *<br />

Adispôs <strong>de</strong> tanto amor<br />

De tanto cheiro cheiroso<br />

De tanto beijo gostoso, nós briguemos<br />

Foi uma briga fatá; eu disse: cabou-se !<br />

Ele, disse; cabou-se!<br />

E nós dois fiquemos mudo, sem vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> falá.<br />

Xinguemos, sim, nós se xinguemos<br />

Como se po<strong>de</strong> axingá:<br />

— Ô, mandinga <strong>de</strong> sapo seco!<br />

— Ô baba <strong>de</strong> cururu!<br />

— Tu fica no Norte<br />

Que eu vô pru sul<br />

Não quero te ver nem pintado <strong>de</strong> carvão<br />

Lá no fundo do quintá<br />

E se eu contigo sonhar<br />

Acordo e rezo o Creio em Deus Pai<br />

Pru modi não me assombrá.<br />

É… o Brasil é muito gran<strong>de</strong><br />

Bem po<strong>de</strong> nos separar!<br />

Eu engoli um salucio<br />

Ele, engoliu bem uns quatro.<br />

Larguemo o pé pelo mato<br />

Passou-se tantos tempo<br />

Que nem é bom rescor<strong>da</strong>r…<br />

Onti, nós si encotremus<br />

Nenhum tentou disfaçá<br />

Eu parti pra riba <strong>de</strong>le<br />

Cum um fogo aceso nu oiá<br />

Que se num fosse um cabra <strong>de</strong> osso<br />

Tava aqui dois pe<strong>da</strong>ço.<br />

Foi tanto cheiro cheiroso…<br />

Foi tanto beijo gostoso…<br />

Antonce nós si alembremos<br />

O Brasil… é tão pequeno<br />

Nem po<strong>de</strong> nos separá!<br />

* Texto original <strong>de</strong> autor <strong>de</strong>sconhecido.A<strong>da</strong>ptação <strong>de</strong> Gertru<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Silva Jimenez Vargas<br />

M1U2T3<br />

M1U2T3<br />

1


Recomen<strong>da</strong>ções a uma<br />

professora iniciante<br />

Durante uma reunião com professores <strong>da</strong>s séries iniciais, a coor<strong>de</strong>nadora pe<strong>da</strong>gógica propôs a<br />

seguinte situação: "Imagine que você orientará uma professora alfabetizadora iniciante. Quais<br />

recomen<strong>da</strong>ções lhe <strong>da</strong>ria para que seus alunos apren<strong>de</strong>ssem a ler e escrever o mais rápido possível?"<br />

Veja o que alguns professores disseram:<br />

M1U2T4<br />

Maria Estela — Eu aconselharia a investir na leitura, pois a leitura aju<strong>da</strong> bastante no aprendizado<br />

<strong>da</strong> escrita. Diria a ela para iniciar com os textos simples e curtos para que os alunos pu<strong>de</strong>ssem<br />

fixar as sílabas e, com o tempo, apresentar textos mais longos e com sílabas complexas.Tomar a<br />

leitura <strong>de</strong>sses textos também é muito importante.<br />

Sueli — Diria a ela que é preciso ter muita paciência no início do ano, pois nem to<strong>da</strong>s as crianças<br />

ingressam na 1ª série com maturi<strong>da</strong><strong>de</strong> para se alfabetizar. Nos primeiros meses, é importante<br />

trabalhar com exercícios <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação motora fina, laterali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s fora <strong>da</strong> classe, ao<br />

ar livre, para que as crianças treinem o traçado <strong>da</strong>s letras no chão, na pare<strong>de</strong>, com brinca<strong>de</strong>iras.<br />

Com esse investimento no início, muitos problemas, como a troca <strong>de</strong> letras, dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> copiar<br />

que, mais adiante, po<strong>de</strong>riam atrapalhar a vi<strong>da</strong> escolar do aluno, são resolvidos.<br />

Lúcia — Além <strong>de</strong>ssas recomen<strong>da</strong>ções que as colegas já colocaram, eu acrescentaria que também<br />

é muito importante para o sucesso dos alunos na alfabetização estar atento aos problemas que<br />

vivenciam em seus lares: alimentação precária, falta <strong>de</strong> carinho e atenção, dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> econômica<br />

para a compra <strong>de</strong> material escolar, agressivi<strong>da</strong><strong>de</strong>… Muitos alunos não apren<strong>de</strong>m a ler e escrever<br />

por causa <strong>de</strong>sses problemas, e se o professor não consi<strong>de</strong>rar isso acaba pensando que suas aulas<br />

é que não são boas.<br />

Sandra — Eu recomen<strong>da</strong>ria que planejasse suas aulas com antecedência e trabalhasse com<br />

palavras-chaves que têm significado para os alunos.A compreensão <strong>da</strong> sílaba torna-se mais fácil<br />

quando partimos <strong>de</strong> palavras que fazem sentido ao aluno. Fazer ditado <strong>de</strong> formas varia<strong>da</strong>s também<br />

é um ótimo recurso. Por exemplo: ditado relâmpago, que é quando a professora escreve uma<br />

palavra na lousa, os alunos a observam por dois ou três segundos, a palavra é apaga<strong>da</strong> e todos<br />

<strong>de</strong>vem escrevê-la no ca<strong>de</strong>rno; ditado mudo em que a professora dita palavras significativas para<br />

os alunos apenas fazendo o movimento com a boca sem pronunciar a palavra.<br />

Para que os alunos sintam prazer em apren<strong>de</strong>r é fun<strong>da</strong>mental utilizar jogos nessa fase. Muitos<br />

<strong>de</strong>coram as sílabas mais por causa dos jogos do que pelos exercícios no ca<strong>de</strong>rno. Essas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

também contribuem muito para alunos que "comem letra", aqueles que sempre esquecem algumas<br />

letras na escrita <strong>da</strong>s palavras. Tive um aluno que por muito tempo ficou escrevendo palavras<br />

assim: FOIHA em vez <strong>de</strong> formiga — CADNO em vez <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>rno. O ditado foi o que o ajudou<br />

a superar esses erros.<br />

Você concor<strong>da</strong> com as recomen<strong>da</strong>ções <strong>de</strong>sses professores? Se sim, explique por<br />

quê. Se não, escreva uma recomen<strong>da</strong>ção que expresse suas idéias.<br />

M1U2T4<br />

1


Idéias, concepções e teorias que<br />

sustentam a prática <strong>de</strong> qualquer professor,<br />

mesmo quando ele não tem consciência <strong>de</strong>las *<br />

Quando analisamos a prática pe<strong>da</strong>gógica <strong>de</strong> qualquer professor, vemos que, por trás <strong>de</strong> suas<br />

ações, há sempre um conjunto <strong>de</strong> idéias que as orienta. Mesmo quando ele não tem consciência<br />

<strong>de</strong>ssas idéias, <strong>de</strong>ssas concepções, <strong>de</strong>ssas teorias, elas estão presentes.<br />

Para compreen<strong>de</strong>r a ação do professor é preciso analisá-la com o objetivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>svelar os<br />

seguintes aspectos:<br />

• qual a concepção que o professor tem, e que se expressa em seus atos, do conteúdo que ele<br />

espera que o aluno apren<strong>da</strong>;<br />

• qual a concepção que o professor tem, e que se expressa em seus atos, do processo <strong>de</strong><br />

aprendizagem, isto é, dos caminhos pelos quais a aprendizagem acontece;<br />

• qual a concepção que o professor tem, e que se expressa em seus atos, <strong>de</strong> como <strong>de</strong>ve<br />

ser o ensino.<br />

A teoria empirista — que historicamente é a que mais vem influenciando as representações<br />

sobre o que é ensinar, quem é o aluno, como ele apren<strong>de</strong> e o que e como se <strong>de</strong>ve ensinar — se<br />

expressa em um mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong> aprendizagem conhecido como <strong>de</strong> "estímulo-resposta". Esse mo<strong>de</strong>lo<br />

<strong>de</strong>fine a aprendizagem como "a substituição <strong>de</strong> respostas erra<strong>da</strong>s por respostas certas".<br />

A hipótese subjacente a essa concepção é a <strong>de</strong> que o aluno precisa memorizar e fixar informações<br />

— as mais simples e parciais possíveis e que <strong>de</strong>vem ir se acumulando com o tempo. O mo<strong>de</strong>lo<br />

típico <strong>de</strong> cartilha está baseado nisso.<br />

As cartilhas trabalham com uma concepção <strong>de</strong> língua escrita como transcrição <strong>da</strong> fala: elas supõem<br />

a escrita como espelho <strong>da</strong> língua que se fala. Seus "textos" são construídos com a função <strong>de</strong> tornar<br />

clara (segundo o que elas supõem) essa relação <strong>de</strong> transcrição. Em geral, são palavras-chave e<br />

famílias silábicas, usa<strong>da</strong>s exaustivamente — e aí encontram-se coisas como "o bebê baba na<br />

babá", "o boi bebe", "Didi dá o <strong>da</strong>do a Dedé". A função do material escrito numa cartilha é<br />

apenas aju<strong>da</strong>r o aluno a <strong>de</strong>sentranhar a regra <strong>de</strong> geração do sistema alfabético: que b com a dá<br />

ba, e por aí afora.<br />

*<br />

Telma Weisz. In O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo, Ática, 1999.<br />

M1U2T5<br />

M1U2T5<br />

1


Centra<strong>da</strong> nessa abor<strong>da</strong>gem que vê a língua como pura fonologia, a cartilha introduz o aluno no<br />

mundo <strong>da</strong> escrita apresentando-lhe um texto que, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é apenas um agregado <strong>de</strong> frases<br />

<strong>de</strong>sconecta<strong>da</strong>s. Essa concepção <strong>de</strong> "texto" para ensinar a ler está tão internaliza<strong>da</strong> no imaginário<br />

do professor que, certa vez, uma professora que se esforçava para transformar sua prática<br />

documentou em ví<strong>de</strong>o uma aula e me enviou, para mostrar como já conseguia trabalhar sem a<br />

cartilha. A ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> era uma produção coletiva <strong>de</strong> texto na lousa. O texto produzido pelos alunos<br />

e grafado pela professora era o seguinte:<br />

O sapo<br />

O sapo é bom.<br />

O sapo come inseto.<br />

O sapo é feio.<br />

O sapo vive na água e na terra.<br />

Ele solta um líquido pela espinha.<br />

O sapo é ver<strong>de</strong>.<br />

Como se po<strong>de</strong> observar, ca<strong>da</strong> enunciado é tratado como se fosse um parágrafo in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.<br />

Exigências mínimas <strong>de</strong> coesão textual, como não repetir "o sapo" em ca<strong>da</strong> enunciado, nem sequer<br />

são consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s. Só na quinta frase aparece, pela primeira vez, um pronome para substituir<br />

"o sapo". E na sexta frase, lá está ele <strong>de</strong> novo. Seria fácil concluir que a professora é que não sabe<br />

escrever com um mínimo <strong>de</strong> coerência e coesão. Mas não era esse o caso. Além <strong>de</strong> saber escrever, era<br />

uma ótima professora: empenha<strong>da</strong> e comprometi<strong>da</strong> com seu trabalho e seus alunos. Apenas havia<br />

interiorizado em sua prática o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> "texto" que caracteriza a metodologia <strong>de</strong> alfabetização<br />

expressa nas cartilhas. E <strong>de</strong> tal maneira que nem sequer tinha consciência disso: foi preciso<br />

tematizar sua prática a partir <strong>de</strong>ssa situação documenta<strong>da</strong> para que ela pu<strong>de</strong>sse se <strong>da</strong>r conta.<br />

Como a metodologia <strong>de</strong> ensino expressa nas cartilhas concebe os caminhos pelos<br />

quais a aprendizagem acontece<br />

Po<strong>de</strong>ríamos dizer, em poucas palavras, que na concepção empirista o conhecimento está "fora"<br />

do sujeito e é internalizado através dos sentidos, ativados pela ação física e perceptual. O sujeito<br />

<strong>da</strong> aprendizagem seria "vazio" na sua origem, sendo "preenchido" pelas experiências que tem<br />

com o mundo. Criticando essa idéia <strong>de</strong> um ensino que se "<strong>de</strong>posita" na mente do aluno, Paulo<br />

Freire usava uma metáfora — "educação bancária" — para falar <strong>de</strong> uma escola em que se preten<strong>de</strong><br />

"sacar" exatamente aquilo que se "<strong>de</strong>positou" na cabeça do aluno.<br />

Nessa concepção o aprendiz é alguém que vai juntando informações. Ele apren<strong>de</strong> o ba, be, bi, bo,<br />

bu, <strong>de</strong>pois o ma, me, mi, mo, mu e supõe-se que em algum momento, ao longo <strong>de</strong>sse processo,<br />

tenha uma espécie <strong>de</strong> "estalo" e comece a perceber o que é que o ma, o me, o mi, o mo e o mu<br />

têm em comum.Acredita-se que ele seja capaz <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r exatamente o que lhe ensinam e <strong>de</strong><br />

ultrapassar um pouco isso, fazendo uma síntese a partir <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

informações. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o mo<strong>de</strong>lo supõe apenas a acumulação. Os professores é que, convivendo<br />

com alunos reais o tempo todo, acabam encontrando na figura do "estalo" a resposta para<br />

certas ocorrências aparentemente inexplicáveis. Porque sabem que alguns enten<strong>de</strong>m o sistema<br />

logo que apren<strong>de</strong>m algumas poucas famílias silábicas, enquanto outros chegam ao Z <strong>de</strong> zabumba<br />

M1U2T5<br />

2


sem compreendê-lo. E já que não têm como enten<strong>de</strong>r essas diferenças, buscam explicações no<br />

que se convencionou chamar <strong>de</strong> "estalo". Freqüentemente dizem: "O menino <strong>de</strong>u o estalo" ou<br />

"Ain<strong>da</strong> não <strong>de</strong>u o estalo, mas uma hora vai <strong>da</strong>r".<br />

Para se acomo<strong>da</strong>r a essa teoria, o processo <strong>de</strong> ensino é caracterizado por um investimento na<br />

cópia, na escrita sob ditado, na memorização pura e simples, na utilização <strong>da</strong> memória <strong>de</strong> curto prazo<br />

para reconhecimento <strong>da</strong>s famílias silábicas quando o professor toma a leitura. Essa forma <strong>de</strong> trabalhar<br />

está relaciona<strong>da</strong> à crença <strong>de</strong> que primeiro os meninos têm <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a ler e a escrever <strong>de</strong>ntro<br />

do sistema alfabético, fazendo uma leitura mecânica, para <strong>de</strong>pois adquirir uma leitura compreensiva.<br />

Ou seja, primeiro eles precisariam apren<strong>de</strong>r a fazer barulho com a boca diante <strong>da</strong>s letras para<br />

<strong>de</strong>pois po<strong>de</strong>r apren<strong>de</strong>r a ler <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e a produzir sentido diante <strong>de</strong> textos escritos.<br />

Assim, os três tipos <strong>de</strong> concepção a que nos referimos no início <strong>de</strong>ste capítulo se articulam para<br />

produzir a prática do professor que trabalha segundo a concepção empirista: a língua (conteúdo)<br />

é vista como transcrição <strong>da</strong> fala, a aprendizagem se dá pelo acúmulo <strong>de</strong> informações e o ensino<br />

<strong>de</strong>ve investir na memorização. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, qualquer prática pe<strong>da</strong>gógica, qualquer que seja o<br />

conteúdo, em qualquer área, po<strong>de</strong> ser analisa<strong>da</strong> a partir <strong>de</strong>ste trio: conteúdo, aprendizagem e ensino.<br />

Para mu<strong>da</strong>r é preciso reconstruir to<strong>da</strong> a prática a partir <strong>de</strong> um novo paradigma<br />

teórico<br />

Quando se tenta sair <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> aprendizagem empirista para um mo<strong>de</strong>lo construtivista, as<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> entendimento às vezes são graves. De uma perspectiva construtivista, o conhecimento<br />

não é concebido como uma cópia do real, incorporado diretamente pelo sujeito: pressupõe uma<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, por parte <strong>de</strong> quem apren<strong>de</strong>, que organiza e integra os novos conhecimentos aos já existentes.<br />

Isso vale tanto para o aluno quanto para o professor em processo <strong>de</strong> transformação.<br />

Se o professor procura inovar sua prática, adotando um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> ensino que pressupõe a<br />

construção <strong>de</strong> conhecimento sem compreen<strong>de</strong>r suficientemente as questões que lhe dão<br />

sustentação, corre o risco, grave no meu modo <strong>de</strong> ver, <strong>de</strong> ficar se <strong>de</strong>slocando <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo que<br />

lhe é familiar para o outro, meio <strong>de</strong>sconhecido, sem muito domínio <strong>de</strong> sua própria prática —<br />

"mesclando", como se costuma dizer.<br />

O equívoco mais comum é pensar que alguns conteúdos se constroem e outros não. O que,<br />

nessa visão "mescla<strong>da</strong>", vale dizer que uns precisariam ser ensinados e outros, não. Em outros<br />

casos o mo<strong>de</strong>lo empirista fica intocado e as idéias que as crianças constroem em seu processo<br />

<strong>de</strong> aprendizagem são distorci<strong>da</strong>s a ponto <strong>de</strong> o professor vê-las como conteúdo a ser ensinado.<br />

Um exemplo disso são os professores que, encantados com o que a psicogênese <strong>da</strong> língua<br />

escrita <strong>de</strong>svendou sobre o que pensam as crianças quando se alfabetizam, passaram a ensinar<br />

seus alunos a escrever silabicamente. Que raciocínio leva a uma distorção <strong>de</strong>sse tipo? Se os alunos<br />

têm <strong>de</strong> passar por uma escrita silábica para chegar a uma escrita alfabética, ensiná-los a escrever<br />

silabicamente faria chegar mais rápido à escrita alfabética, pensam esses professores. Essa<br />

perspectiva só po<strong>de</strong> caber num mo<strong>de</strong>lo empirista <strong>de</strong> ensino, cuja lógica intrínseca é a <strong>de</strong> organizar<br />

etapas <strong>de</strong> apresentação do conhecimento aos alunos. Essa lógica não faz nenhum sentido num<br />

mo<strong>de</strong>lo construtivista.<br />

M1U2T5<br />

3


Outro tipo <strong>de</strong> entendimento distorcido, mais influenciado por práticas espontaneístas, é o seguinte:<br />

diante <strong>da</strong> informação <strong>de</strong> que quem constrói o conhecimento é o sujeito, houve professores que<br />

enten<strong>de</strong>ram que a intervenção pe<strong>da</strong>gógica seria, então, <strong>de</strong>snecessária. Se é o aluno quem vai<br />

construir o conhecimento, o que os professores teriam a fazer <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> sala <strong>de</strong> aula? E passaram<br />

a não fazer na<strong>da</strong>. Como se vê, é fácil nos per<strong>de</strong>rmos em nossa prática educativa quando não nos<br />

<strong>da</strong>mos conta do que orienta <strong>de</strong> fato nossas ações. Ou melhor, <strong>de</strong> quais são as nossas teorias em ação.<br />

Conteúdos escolares são objetos <strong>de</strong> conhecimento complexos, que <strong>de</strong>vem ser<br />

<strong>da</strong>dos a conhecer, aos alunos, por inteiro<br />

A mu<strong>da</strong>nça na concepção dos conteúdos oferecidos pela escola provoca, <strong>de</strong> imediato, uma<br />

transformação enorme na oferta <strong>de</strong> informação aos alunos.Vamos continuar com o exemplo <strong>da</strong><br />

língua escrita para tornar mais claro o que queremos dizer. Se o professor parte do princípio <strong>de</strong><br />

que a língua escrita é complexa, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma concepção construtivista <strong>da</strong> aprendizagem ela<br />

<strong>de</strong>ve ser — mesmo assim e por isso mesmo — ofereci<strong>da</strong> inteira para os alunos. E <strong>de</strong> forma<br />

funcional, isto é, tal como é usa<strong>da</strong> realmente. Quando alguém apren<strong>de</strong> a escrever, está apren<strong>de</strong>ndo<br />

ao mesmo tempo muitos outros conteúdos além do bê-á-bá, do sistema <strong>de</strong> escrita alfabética —<br />

por exemplo, as características discursivas <strong>da</strong> língua, ou seja, a forma que ela assume em diferentes<br />

gêneros através dos quais se realiza socialmente.<br />

Pensando assim caberá ao professor criar situações que permitam aos alunos vivenciar os usos<br />

sociais que se faz <strong>da</strong> escrita, as características dos diferentes gêneros textuais, a linguagem<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> a diferentes contextos comunicativos, além do sistema pelo qual a língua é grafa<strong>da</strong>, o<br />

sistema alfabético. Para alguém ser capaz <strong>de</strong> ler com autonomia é preciso compreen<strong>de</strong>r o sistema<br />

alfabético, mas isso apenas lhe confere autonomia. Qualquer um po<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r muito sobre a<br />

língua escrita mesmo sem po<strong>de</strong>r ler e escrever autonomamente. Isso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> ouvir a leitura <strong>de</strong> textos, participar <strong>de</strong> situações sociais nas quais os textos reais são utilizados,<br />

pensar sobre os usos, as características e o funcionamento <strong>da</strong> língua escrita.<br />

Para os construtivistas — diferentemente dos empiristas, para quem a informação <strong>de</strong>veria ser<br />

ofereci<strong>da</strong> <strong>da</strong> forma mais simples possível, uma <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> vez, para não confundir aquele que apren<strong>de</strong><br />

— o aprendiz é um sujeito, protagonista do seu próprio processo <strong>de</strong> aprendizagem, alguém que<br />

vai produzir a transformação que converte informação em conhecimento próprio. Essa construção,<br />

pelo aprendiz, não se dá por si mesma e no vazio, mas a partir <strong>de</strong> situações nas quais ele possa<br />

agir sobre o que é objeto <strong>de</strong> seu conhecimento, pensar sobre ele, recebendo aju<strong>da</strong>, sendo<br />

<strong>de</strong>safiado a refletir, interagindo com outras pessoas.<br />

Quando se acredita que o motor <strong>da</strong> aprendizagem é o esforço do sujeito para <strong>da</strong>r sentido à<br />

informação que está disponível, tem-se uma situação bastante diferente <strong>da</strong>quela em que o<br />

aprendiz teria <strong>de</strong> permanecer tranqüilo e com os sentidos abertos para introjetar a informação<br />

que lhe é ofereci<strong>da</strong>, <strong>da</strong> maneira como é ofereci<strong>da</strong>. Num mo<strong>de</strong>lo empirista a informação é<br />

introjeta<strong>da</strong>, ou não. Num mo<strong>de</strong>lo construtivista, o aprendiz tem <strong>de</strong> transformar a informação<br />

para po<strong>de</strong>r assimilá-la. Concepções tão diferentes dão origem, necessariamente, a práticas<br />

pe<strong>da</strong>gógicas muito diferentes.<br />

M1U2T5<br />

4


Afirmar que o conhecimento prévio é base <strong>da</strong> aprendizagem não é <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />

pré-requisitos<br />

Para apren<strong>de</strong>r alguma coisa, é preciso já saber alguma coisa — diz o mo<strong>de</strong>lo construtivista. Ninguém<br />

conseguirá apren<strong>de</strong>r alguma coisa se não tiver como reconhecer aquilo como algo apreensível.<br />

O conhecimento não é gerado do na<strong>da</strong>, é uma permanente transformação a partir do conhecimento<br />

que já existe. Essa afirmação — a <strong>de</strong> que o conhecimento prévio do aprendiz é base <strong>de</strong> novas<br />

aprendizagens — não significa a crença ou <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> pré-requisitos. Tampouco esse tipo <strong>de</strong><br />

conhecimento se confun<strong>de</strong> com a matéria ensina<strong>da</strong> anteriormente pelo professor.<br />

Se, por um lado, é o que ca<strong>da</strong> um já possui <strong>de</strong> conhecimento que explica as diferentes formas e<br />

tempos <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados conteúdos que estão sendo tratados, por outro<br />

sabemos que a intervenção do professor é <strong>de</strong>terminante neste processo. Seja nas propostas <strong>de</strong><br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, seja na forma como encoraja ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong> seus alunos a se lançar na ousadia <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r,<br />

o professor atua o tempo inteiro.<br />

Não informar nem corrigir significa abandonar o aluno à própria sorte<br />

Como já vimos, diante <strong>de</strong> um corpo <strong>de</strong> idéias tão novo como a concepção construtivista <strong>da</strong><br />

aprendizagem e o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> ensino mediante a resolução <strong>de</strong> problemas, o professor está também<br />

na posição <strong>de</strong> aprendiz. No entanto, o conhecimento pe<strong>da</strong>gógico é produzido coletivamente,<br />

o que permite aos professores hoje apren<strong>de</strong>r a partir do que outros já apren<strong>de</strong>ram e tomar<br />

cui<strong>da</strong>do com erros já cometidos por outros.<br />

Um erro que precisa ser evitado por suas graves conseqüências é o <strong>de</strong>svio espontaneísta: como<br />

é o aluno quem constrói o conhecimento, não seria necessário ensinar-lhe.A partir <strong>de</strong>ssa crença<br />

o professor passa a não informar, a não corrigir e a se satisfazer com o que o aluno faz "do seu<br />

jeito". Essa visão implica abandonar o aluno à sua própria sorte. E é muito importante que o<br />

professor compreen<strong>da</strong> o que significa, do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> criança, o "vou fazer do meu jeito".<br />

Vamos usar a alfabetização novamente para exemplificar. Quando uma criança entra na escola<br />

ain<strong>da</strong> não alfabetiza<strong>da</strong>, tanto ela quanto o professor sabem que ela não sabe ler nem escrever.<br />

Ao propor que se arrisque a escrever do jeito que imagina, o que o professor na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> está<br />

propondo é uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> basea<strong>da</strong> na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil <strong>de</strong> jogar, <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong> conta. Num contrato<br />

<strong>de</strong>sse tipo — que reza que o aluno <strong>de</strong>ve escrever pondo em jogo tudo o que sabe e pensa<br />

sobre a escrita — o professor <strong>de</strong>ve usar tudo o que sabe sobre as hipóteses que as crianças<br />

constroem a respeito <strong>da</strong> escrita para po<strong>de</strong>r, interpretando o que o aluno escreveu, ajudá-lo a<br />

avançar. Dentro <strong>de</strong>sse contrato, quem "faz <strong>de</strong> conta" é a criança. Nesse espaço em que a criança<br />

escreve "do seu jeito" o papel do professor é <strong>de</strong>licado. Mas é semelhante ao <strong>de</strong> alguém adulto<br />

que participa <strong>de</strong> uma brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> faz <strong>de</strong> conta sem entrar nela.Ao professor cabe organizar<br />

a situação <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong> forma a oferecer informação a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>. Sua função é observar a<br />

ação <strong>da</strong>s crianças, acolher ou problematizar suas produções, intervindo sempre que achar que<br />

po<strong>de</strong> fazer a reflexão dos alunos sobre a escrita avançar. O professor funciona então como uma<br />

espécie <strong>de</strong> diretor <strong>de</strong> cena ou <strong>de</strong> contra-regra e cabe a ele montar o an<strong>da</strong>ime para apoiar a<br />

construção do aprendiz.<br />

M1U2T5<br />

5


Elaborando um mapa textual<br />

1. Anotar no Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Registro, a partir <strong>da</strong> leitura do título do texto, tudo que você supõe<br />

que ele vá tratar. O título é sempre uma fonte <strong>de</strong> informação sobre o conteúdo do texto —<br />

a partir <strong>de</strong>le, é possível perguntar a nós mesmos "o que já sabemos sobre esse assunto?".<br />

Desse modo, acionamos uma série <strong>de</strong> conhecimentos prévios relacionados ao conteúdo e ao<br />

tipo <strong>de</strong> texto, ou seja, conhecimentos construídos ao longo <strong>da</strong>s nossas experiências pessoais,<br />

que sempre contribuem para uma melhor compreensão do que lemos.<br />

2. Para que as anotações do seu Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Registro fiquem organiza<strong>da</strong>s e contextualiza<strong>da</strong>s e,<br />

com o passar do tempo, não percam o sentido, é necessário que você registre sempre a<br />

orientação <strong>da</strong><strong>da</strong> para a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, os títulos orientadores e a <strong>da</strong>ta em que você fez a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

proposta. Neste caso, por exemplo:<br />

Estu<strong>da</strong>ndo o texto "As idéias, concepções e teorias que sustentam a prática <strong>de</strong> qualquer<br />

professor, mesmo quando ele não tem consciência <strong>de</strong>las", capítulo 4 do livro O diálogo<br />

entre o ensino e a aprendizagem, <strong>de</strong> Telma Weisz, Editora Ática.<br />

Proposta: Listar os conteúdos que o título sugere; "Listar o que os subtítulos sugerem" etc.<br />

3. Observe todo o texto, <strong>de</strong> forma bastante breve, especialmente seus subtítulos. Em segui<strong>da</strong>,<br />

anote no centro <strong>de</strong> uma folha em branco do seu Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Registro (disposto horizontalmente)<br />

o título do texto, circun<strong>da</strong>ndo-o com uma figura geométrica qualquer. Partindo do centro, esten<strong>da</strong><br />

cinco linhas e escreva em ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las um subtítulo do texto. Como o título e os<br />

subtítulos <strong>de</strong>sse texto são extensos, é preferível escrever em tamanho bem reduzido a fim<br />

<strong>de</strong> garantir espaço para as <strong>de</strong>mais anotações durante a leitura.<br />

4. Leia o trecho inicial (até o primeiro subtítulo), i<strong>de</strong>ntifique as principais idéias e anote-as, com<br />

expressões breves, no esquema do Ca<strong>de</strong>rno, partindo <strong>da</strong> figura geométrica central em que está<br />

o título.<br />

5. A partir do que você já po<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar, imagine o que possivelmente vai encontrar no próximo<br />

trecho (referente ao primeiro subtítulo. Nesse caso "Como a metodologia <strong>de</strong> ensino…").<br />

6. Continue a leitura até o segundo subtítulo, sublinhe as idéias-chaves <strong>de</strong>sse trecho e faça<br />

anotações no esquema, partindo <strong>da</strong> figura geométrica em torno do subtítulo.<br />

7. Prossiga a leitura utilizando esses mesmos procedimentos, até o final do texto.<br />

M1U2T6<br />

M1U2T6<br />

1


M1U2T7<br />

1<br />

Mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> ensino e aprendizagem<br />

Mo<strong>de</strong>lo empirista <strong>de</strong> ensino e aprendizagem<br />

Como o aluno apren<strong>de</strong> Como é preciso ensinar<br />

M1U2T7


M1U2T7<br />

3<br />

Mo<strong>de</strong>lo construtivista <strong>de</strong> ensino e aprendizagem<br />

Como o aluno apren<strong>de</strong> Como é preciso ensinar


Registre, a seguir, todos os pontos do texto lido que consi<strong>de</strong>rou <strong>de</strong> difícil compreensão.<br />

M1U2T7<br />

5


Píramo e Tisbe *<br />

M1U3T1<br />

Já houve um tempo em que o vermelho profundo <strong>da</strong>s bagas <strong>da</strong> amoreira era branco como a<br />

neve. A mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> cor resultou <strong>de</strong> um fato muito estranho e triste: a morte <strong>de</strong> dois jovens<br />

apaixonados.<br />

Píramo e Tisbe, ele o mais belo dos jovens e ela a mais bela virgem <strong>de</strong> todo o Oriente, viviam na<br />

Babilônia, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> rainha Semíramis, em casas tão próximas que apenas uma pare<strong>de</strong> comum<br />

as separava. Crescendo assim, lado a lado, apren<strong>de</strong>ram a amar-se mutuamente. Queriam muito<br />

casar-se, mas não havia como vencer a proibição dos pais. O amor, porém, não po<strong>de</strong> ser proibido.<br />

Quanto mais se cobre a chama, mais fortes ficam as labare<strong>da</strong>s.Além disso, o amor sempre acaba<br />

encontrando soluções. Não era possível manter separados esses dois jovens cujos corações<br />

explodiam <strong>de</strong> amor.<br />

Na pare<strong>de</strong> que separava as duas casas havia uma pequena fen<strong>da</strong> <strong>da</strong> qual até então ninguém se<br />

<strong>de</strong>ra conta. A quem ama, porém, não há na<strong>da</strong> que passe <strong>de</strong>spercebido. Nossos dois jovens <strong>de</strong>scobriram-na,<br />

e através <strong>de</strong>la começaram, então, a sussurrar doces palavras <strong>de</strong> amor,Tisbe <strong>de</strong> um<br />

lado e Píramo do outro. A odiosa pare<strong>de</strong> que os separava transformara-se em sua única forma<br />

<strong>de</strong> contato. "Não fosse tua existência, po<strong>de</strong>ríamos estar juntos e beijar-nos", costumavam dizer,<br />

referindo-se à pare<strong>de</strong>. "Mas, pelo menos, po<strong>de</strong>mos falar através <strong>de</strong> ti. Permites que doces palavras<br />

<strong>de</strong> amor cheguem aos nossos ouvidos apaixonados. Não somos ingratos." Assim falavam e,<br />

quando a noite chegava e tinham <strong>de</strong> separar-se, era na pare<strong>de</strong> que <strong>da</strong>vam os beijos que não<br />

tinham como chegar aos lábios do outro lado.<br />

To<strong>da</strong>s as manhãs, quando o alvorecer já expulsara do céu as estrelas e os raios do Sol já haviam<br />

secado a gea<strong>da</strong> que endurecia a relva, iam furtivamente até a fen<strong>da</strong> e ali ficavam, às vezes trocando<br />

as mais doces juras <strong>de</strong> amor, outras vezes lamentando o triste <strong>de</strong>stino a que pareciam con<strong>de</strong>nados.<br />

Suas palavras, porém, eram sempre troca<strong>da</strong>s em forma <strong>de</strong> sussurros quase inaudíveis. Por fim<br />

chegou o dia em que não tinham mais condições <strong>de</strong> continuar suportando aquela situação.<br />

Decidiram que, naquela mesma noite, iriam tentar fugir e atravessar a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> em direção ao campo,<br />

on<strong>de</strong> finalmente po<strong>de</strong>riam ficar juntos em liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. Combinaram encontrar-se em lugar bastante<br />

conhecido — o Túmulo <strong>de</strong> Nino —, sob uma árvore que ali havia, uma gran<strong>de</strong> amoreira cheia <strong>de</strong><br />

bagas brancas como a neve, e perto <strong>da</strong> qual murmuravam as águas frescas <strong>de</strong> uma fonte.<br />

O plano lhes pareceu perfeito, e para eles aquele foi o mais longo dia <strong>de</strong> suas vi<strong>da</strong>s.<br />

Por fim, o Sol mergulhou no oceano e a noite chegou. Na escuridão,Tisbe saiu furtivamente <strong>de</strong><br />

casa e, fazendo o possível para não ser vista, dirigiu-se para o túmulo on<strong>de</strong> haviam combinado<br />

encontrar-se. Píramo ain<strong>da</strong> não tinha chegado, e ela ficou a esperá-lo com a coragem fortaleci<strong>da</strong><br />

pelo amor. De repente, porém, a luz <strong>da</strong> lua permitiu-lhe divisar o vulto <strong>de</strong> uma leoa que se<br />

aproximava. A fera selvagem tinha acabado <strong>de</strong> matar uma presa; tinha as mandíbulas ensangüenta<strong>da</strong>s,<br />

e vinha saciar a se<strong>de</strong> na fonte. Estava ain<strong>da</strong> a uma distância que permitia a fuga <strong>de</strong> Tisbe; mas,<br />

ao correr em busca <strong>de</strong> um abrigo seguro, a jovem <strong>de</strong>ixou cair a capa que trazia aos ombros.<br />

* Esta história é conta<strong>da</strong> por Ovídio. É bastante característica do que há <strong>de</strong> melhor em seu estilo: boa narração, vários monólogos retóricos e,<br />

no meio, um pequeno ensaio sobre o Amor. Extraído <strong>de</strong>: Mitologia, Edith Hamilton, São Paulo, Martins Fontes, 1992.<br />

M1U3T1<br />

1


Ao voltar para o seu covil, a leoa viu a capa e, antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecer na floresta, abocanhou-a e fez<br />

<strong>de</strong>la apenas um monte <strong>de</strong> trapos. Ao chegar, poucos minutos <strong>de</strong>pois, foi com essa cena que Píramo<br />

se <strong>de</strong>parou. Diante <strong>de</strong>le estavam os farrapos ensangüentados <strong>da</strong> capa e, visíveis na obscuri<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

as pega<strong>da</strong>s <strong>da</strong> leoa. A conclusão era inevitável:Tisbe estava morta. Ele permitira que seu amor,<br />

uma jovem tão <strong>de</strong>lica<strong>da</strong>, viesse sozinha para um lugar tão cheio <strong>de</strong> perigos, e ali não estivera<br />

para protegê-la. "Fui eu que te matei", exclamou. Do solo espezinhado, levantou o que restava<br />

<strong>da</strong> capa e, beijando-a muitas vezes, levou-a consigo para perto <strong>da</strong> amoreira. "Agora", disse ele,<br />

"beberás também do meu sangue." Desembainhou a espa<strong>da</strong> e cravou-a no coração. O sangue,<br />

lançado em borbotões, atingiu em cheio as bagas <strong>da</strong> amoreira, que então se tingiram <strong>de</strong> um<br />

vermelho escuro.<br />

Apesar <strong>de</strong> ain<strong>da</strong> apavora<strong>da</strong> com a leoa, o gran<strong>de</strong> medo <strong>de</strong> Tisbe era não conseguir encontrar<br />

seu amado. Assim, resolveu arriscar-se a voltar para junto <strong>da</strong> árvore on<strong>de</strong> haviam marcado o<br />

encontro, a amoreira dos reluzentes frutos brancos, mas não conseguia encontrá-la. A árvore era<br />

a mesma, mas seus ramos não <strong>de</strong>ixavam entrever um só lampejo <strong>de</strong> brilho branco. Ao olhar bem,<br />

percebeu que alguma coisa se mexia no chão. Recuou, trêmula, mas no instante seguinte, firmando<br />

os olhos por entre as sombras, viu claramente o que se passava ali: Píramo, banhado em<br />

sangue e quase morto.Voou para ele e o tomou nos braços, beijando-lhe os lábios frios e<br />

implorando-lhe que a olhasse e falasse. "Sou eu, a tua Tisbe, a tua ama<strong>da</strong>!", disse-lhe a chorar.<br />

Ao ouvir o nome que tanto amava, Píramo entreabriu os olhos pesados e olhou para Tisbe pela<br />

última vez. Em segui<strong>da</strong>, a morte se encarregou <strong>de</strong> fechá-los para sempre.<br />

Ela então viu a espa<strong>da</strong> que lhe caíra <strong>da</strong>s mãos, e bem perto <strong>de</strong>la a sua capa mancha<strong>da</strong> <strong>de</strong> sangue<br />

e esfarrapa<strong>da</strong>. Num instante, compreen<strong>de</strong>u tudo. "Tua própria mão te matou", disse, "e teu amor<br />

por mim.Também posso ser corajosa, também eu posso amar. Só a morte teria tido o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

nos separar, mas agora <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> ter esse po<strong>de</strong>r." Cravou no coração a espa<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> úmi<strong>da</strong> do<br />

sangue <strong>de</strong> seu amado.<br />

Por fim, os <strong>de</strong>uses se apie<strong>da</strong>ram, e o mesmo fizeram os pais dos dois jovens. O fruto vermelho<br />

escuro <strong>da</strong> amoreira ficou sendo a eterna recor<strong>da</strong>ção <strong>de</strong>sses amantes fiéis e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros. Suas<br />

cinzas estão conti<strong>da</strong>s em uma única urna, pois nem a morte foi capaz <strong>de</strong> separá-los.<br />

M1U3T1<br />

2


A história dos livros *<br />

Quando pensamos em um livro, geralmente imaginamos um conjunto <strong>de</strong> folhas impressas em papel.<br />

Nossa idéia <strong>de</strong> livro está associa<strong>da</strong> a um tipo <strong>de</strong> material, o papel, e à técnica <strong>de</strong> impressão.<br />

Assim, não nos referimos a livro quando lemos um texto escrito no computador nem quando o<br />

texto é escrito à mão.<br />

No entanto, a palavra "livro", que vem <strong>da</strong> forma latina liber, <strong>de</strong>signava a cama<strong>da</strong> externa <strong>da</strong> casca<br />

<strong>da</strong>s árvores, o que nos dá uma pista <strong>de</strong> como se escrevia antigamente. Os livros nem sempre<br />

tiveram o formato atual. Foi durante a I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média que passaram a ter um aspecto parecido ao<br />

<strong>de</strong> hoje. Antigamente, como os livros eram escritos à mão, eles não eram muito difundidos, porque<br />

havia poucos exemplares. A partir <strong>da</strong> invenção <strong>da</strong> imprensa, no século XV, foi possível imprimir<br />

livros em gran<strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>, tornando-os acessíveis a um maior número <strong>de</strong> pessoas.<br />

No ano <strong>de</strong> 1436, na Alemanha, um joalheiro chamado Johannes von Gutenberg inventou a<br />

imprensa. Graças a essa invenção, pu<strong>de</strong>ram ser feitas muitas cópias <strong>de</strong> um mesmo livro, não sendo<br />

mais necessário copiá-los à mão. Esses manuscritos, anteriores à invenção <strong>de</strong> Gutenberg, são<br />

chamados códices. 1 E os livros que foram impressos na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XV, entre<br />

1436 e 1500, são chamados incunábulos. 2<br />

Graças ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> novas tecnologias, atualmente não existem livros apenas <strong>de</strong><br />

papel, mas também em suporte informático, isto é, po<strong>de</strong>m ser lidos na tela <strong>de</strong> um computador.<br />

Quem escrevia os livros?<br />

M1U3T2<br />

Inicialmente, os homens escreviam para anotar a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> animais que tinham. Assim,<br />

podiam guar<strong>da</strong>r a informação e controlar os animais que eram vendidos, que se perdiam ou<br />

que morriam. O que se escrevia na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, portanto, não eram livros, mas breves<br />

anotações comerciais.<br />

Com exceção dos documentos comerciais, apenas os sacerdotes podiam escrever livros, porque<br />

se acreditava que a escrita era um dom concedido pelos <strong>de</strong>uses. Essas pessoas eram as únicas<br />

que tinham permissão para ler os livros sagrados. 3 Assim, durante a I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média, na Europa, os<br />

monges foram encarregados <strong>de</strong> copiar tais obras, à mão.<br />

Esses monges eram chamados copistas. 4 Já nos países do Oriente, como na Pérsia, por exemplo,<br />

os encarregados <strong>de</strong> copiar e ilustrar livros não eram os monges, mas sim algumas famílias. E<br />

todos os membros <strong>de</strong>viam se <strong>de</strong>dicar a esse trabalho.<br />

* Extraído <strong>de</strong>: Apren<strong>de</strong>ndo Português. Conteúdos essenciais para o Ensino Fun<strong>da</strong>mental <strong>de</strong> 1ª a 4ª série, <strong>de</strong> Cesar Coll e Ana Teberosky, São Paulo,<br />

Ática, 2000, p. 113, 114 e 115.<br />

1 Códice é o nome <strong>da</strong>do aos livros escritos à mão, antes <strong>da</strong> invenção <strong>da</strong> imprensa. A maioria <strong>de</strong>sses livros foi escrita por monges, chamados escribas.<br />

2 Incunábulo é o nome <strong>da</strong>do aos livros impressos entre 1436 e 1500.<br />

3 Livro sagrado é um livro que reúne a história e os ensinamentos <strong>de</strong> uma religião.<br />

4 Copista era o homem que, na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média, se <strong>de</strong>dicava a copiar os livros, quando ain<strong>da</strong> não existia a imprensa e era necessário fazê-los à mão.<br />

M1U3T2<br />

1


Além <strong>de</strong> livros religiosos, também começaram a ser escritos tratados científicos e filosóficos, que<br />

analisavam e explicavam o universo, as leis <strong>da</strong> natureza e questões <strong>da</strong> existência humana, tal como<br />

se pensava até então.<br />

Graças à invenção <strong>da</strong> imprensa, foi possível imprimir e divulgar ca<strong>da</strong> vez mais livros. Atualmente,<br />

qualquer pessoa po<strong>de</strong> escrever sobre os mais variados assuntos. A informática tem facilitado ain<strong>da</strong><br />

mais a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos escritores.<br />

Os livros e os conflitos<br />

Conhecemos, ao longo <strong>da</strong> história, muitos episódios em que alguns povos, para dominar outros,<br />

<strong>de</strong>struíam ou pilhavam suas bibliotecas. Dessa forma, eles não podiam preservar a sua história<br />

nem apren<strong>de</strong>r com a experiência dos seus antepassados, conti<strong>da</strong> nos livros.<br />

Um exemplo disso foi o que aconteceu com a famosa Biblioteca <strong>de</strong> Alexandria, no Antigo Egito:<br />

quando os romanos invadiram a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Alexandria para conquistá-la, queimaram a sua imensa<br />

biblioteca. Na Europa, no período <strong>da</strong> Inquisição, entre os séculos XV e XVI, a Igreja Católica também<br />

or<strong>de</strong>nou a queima <strong>de</strong> livros consi<strong>de</strong>rados contra a fé cristã. Quase em meados do século XX,<br />

durante a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial, milhares <strong>de</strong> livros foram queimados em praça pública pelo<br />

regime nazista, por serem consi<strong>de</strong>rados contrários ao sistema político.<br />

M1U3T2<br />

2


Assombrações <strong>de</strong> agosto *<br />

Gabriel García Márquez<br />

Chegamos a Arezzo, pouco antes do meio-dia, e per<strong>de</strong>mos mais <strong>de</strong> duas horas buscando o<br />

castelo renascentista que o escritor venezuelano Miguel Ottero Silva havia comprado naquele<br />

rincão idílico <strong>da</strong> planície toscana. Era um domingo <strong>de</strong> princípios <strong>de</strong> agosto, ar<strong>de</strong>nte e buliçoso, e<br />

não era fácil encontrar alguém que soubesse alguma coisa nas ruas abarrota<strong>da</strong>s <strong>de</strong> turistas. Após<br />

muitas tentativas inúteis voltamos ao automóvel, abandonamos a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> por uma trilha <strong>de</strong> ciprestes<br />

sem indicações viárias e uma velha pastora <strong>de</strong> gansos indicou-nos com precisão on<strong>de</strong> estava o<br />

castelo. Antes <strong>de</strong> se <strong>de</strong>spedir perguntou-nos se pensávamos dormir por lá, e respon<strong>de</strong>mos, pois<br />

era o que tínhamos planejado, que só íamos almoçar.<br />

— Ain<strong>da</strong> bem — disse ela —, porque a casa é assombra<strong>da</strong>.<br />

Minha esposa e eu, que não acreditamos em aparição do meio-dia, <strong>de</strong>bochamos <strong>de</strong> sua creduli<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Mas nossos dois filhos, <strong>de</strong> nove e sete anos, ficaram alvoroçados com a idéia <strong>de</strong> conhecer um<br />

fantasma em pessoa.<br />

Miguel Ottero Silva, que além <strong>de</strong> bom escritor era um anfitrião esplêndido e um comilão refinado,<br />

nos esperava com um almoço <strong>de</strong> nunca esquecer. Como havia ficado tar<strong>de</strong> não tivemos tempo <strong>de</strong><br />

conhecer o interior do castelo antes <strong>de</strong> sentarmos à mesa, mas seu aspecto, visto <strong>de</strong> fora, não<br />

tinha na<strong>da</strong> <strong>de</strong> pavoroso, e qualquer inquietação se dissipava com a visão completa <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

vista do terraço florido on<strong>de</strong> almoçávamos. Era difícil acreditar que naquela colina <strong>de</strong> casas<br />

empoeira<strong>da</strong>s, on<strong>de</strong> mal cabiam noventa mil pessoas, houvessem nascido tantos homens <strong>de</strong><br />

gênio perdurável. Ain<strong>da</strong> assim, Miguel Ottero Silva nos disse, com seu humor caribenho, que<br />

nenhum <strong>de</strong> tantos era o mais insigne <strong>de</strong> Arezzo.<br />

— O maior — sentenciou — foi Ludovico.<br />

Assim, sem sobrenome, Ludovico, o gran<strong>de</strong> senhor <strong>da</strong>s artes e <strong>da</strong> guerra, que havia construído<br />

aquele castelo <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>sgraça, e <strong>de</strong> quem Miguel Ottero nos falou durante o almoço inteiro.<br />

Falou-nos <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r imenso, <strong>de</strong> seu amor contrariado e <strong>de</strong> sua morte espantosa. Contou-nos<br />

como foi que, num instante <strong>de</strong> loucura do coração, havia apunhalado sua <strong>da</strong>ma no leito on<strong>de</strong><br />

tinham acabado <strong>de</strong> se amar, e <strong>de</strong>pois atiçara contra si mesmo seus ferozes cães <strong>de</strong> guerra que<br />

o <strong>de</strong>spe<strong>da</strong>çaram a <strong>de</strong>nta<strong>da</strong>s. Garantiu-nos muito a sério que a partir <strong>da</strong> meia-noite o espectro <strong>de</strong><br />

Ludovico perambulava pela casa em trevas, tentando conseguir sossego em seu purgatório <strong>de</strong> amor.<br />

O castelo, na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> era imenso e sombrio. Mas em pleno dia, com o estômago cheio e o<br />

coração contente, o relato <strong>de</strong> Miguel só podia parecer outra <strong>de</strong> suas tantas brinca<strong>de</strong>iras para<br />

entreter seus convi<strong>da</strong>dos. Os 82 quartos que percorremos sem assombro <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> sesta<br />

tinham pa<strong>de</strong>cido <strong>de</strong> todo tipo <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nças, graças aos seus donos sucessivos. Miguel havia<br />

* Gabriel García Márquez In Doze contos peregrinos, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Record, 1993<br />

M1U3T3<br />

M1U3T3<br />

1


estaurado por completo o primeiro an<strong>da</strong>r e tinha construído para si um dormitório mo<strong>de</strong>rno,<br />

com piso <strong>de</strong> mármore e instalações para sauna e cultura física, e o terraço <strong>de</strong> flores imensas<br />

on<strong>de</strong> havíamos almoçado. O segundo an<strong>da</strong>r, que tinha sido mais usado no curso dos séculos,<br />

era uma sucessão <strong>de</strong> quartos sem nenhuma personali<strong>da</strong><strong>de</strong>, com móveis <strong>de</strong> diferentes épocas<br />

abandonados à própria sorte. Mas no último an<strong>da</strong>r era conservado um quarto imenso, por on<strong>de</strong><br />

o tempo tinha esquecido <strong>de</strong> passar. Era o dormitório <strong>de</strong> Ludovico.<br />

Foi um instante mágico. Lá estava a cama <strong>de</strong> cortinas bor<strong>da</strong><strong>da</strong>s com fios <strong>de</strong> ouro, e o cobre-leito<br />

<strong>de</strong> prodígios <strong>de</strong> passamanarias ain<strong>da</strong> enrugado pelo sangue seco <strong>da</strong> amante sacrifica<strong>da</strong>. Estava a<br />

lareira com as cinzas gela<strong>da</strong>s e o último tronco <strong>de</strong> lenha convertido em pedra, o armário com<br />

suas armas bem escova<strong>da</strong>s e o retrato a óleo do cavalheiro pensativo numa moldura <strong>de</strong> ouro,<br />

pintado por algum dos mestres florentinos que não teve a sorte <strong>de</strong> sobreviver ao seu tempo. No<br />

entanto, o que mais me impressionou foi o perfume <strong>de</strong> morangos recentes que permanecia<br />

estancado sem explicação possível no ambiente do dormitório.<br />

Os dias <strong>de</strong> verão são longos e parcimoniosos na Toscana, e o horizonte se mantém em seu<br />

lugar até as nove <strong>da</strong> noite. Quando terminamos <strong>de</strong> conhecer o castelo, eram mais <strong>de</strong> cinco<br />

<strong>da</strong> tar<strong>de</strong>, mas Miguel insistiu em levar-nos para ver os afrescos <strong>de</strong> Piero <strong>de</strong>lla Francesca na<br />

igreja <strong>de</strong> São Francisco, <strong>de</strong>pois tomamos um café com muita conversa <strong>de</strong>baixo <strong>da</strong>s pérgulas<br />

<strong>da</strong> praça, e quando regressamos para buscar as maletas, encontramos a mesa posta. Portanto,<br />

ficamos para o jantar.<br />

Enquanto jantávamos, <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> um céu <strong>de</strong> malva com uma única estrela, as crianças acen<strong>de</strong>ram<br />

algumas tochas na cozinha e foram explorar as trevas nos an<strong>da</strong>res altos. Da mesa ouvíamos seus<br />

galopes <strong>de</strong> cavalos, errantes pelas esca<strong>da</strong>rias, os lamentos <strong>da</strong>s portas, os gritos felizes<br />

chamando Ludovico nos quartos tenebrosos. Foi <strong>de</strong>les a má idéia <strong>de</strong> ficarmos para dormir,<br />

Miguel Ottero Silva apoiou-os encantado e nós não tivemos a coragem civil <strong>de</strong> dizer não.<br />

Ao contrário do que eu temia, dormimos muito bem, minha esposa e eu num dormitório do<br />

an<strong>da</strong>r térreo e meus filhos no quarto contíguo. Ambos haviam sido mo<strong>de</strong>rnizados e não tinham<br />

na<strong>da</strong> <strong>de</strong> tenebrosos. Enquanto tentava conseguir sono, contei os doze toques insones do relógio<br />

<strong>de</strong> pêndulo <strong>da</strong> sala e recor<strong>de</strong>i a advertência pavorosa <strong>da</strong> pastora <strong>de</strong> gansos. Mas estávamos tão<br />

cansados que dormimos logo, num sono <strong>de</strong>nso e contínuo, e <strong>de</strong>spertei <strong>de</strong>pois <strong>da</strong>s sete com um<br />

sol esplêndido entre as trepa<strong>de</strong>iras <strong>da</strong> janela. Ao meu lado, minha esposa navegava no mar<br />

aprazível dos inocentes. "Que bobagem", disse a mim mesmo, "alguém continuar acreditando<br />

em fantasmas nestes tempos." Só então estremeci com o perfume <strong>de</strong> morangos recém-cortados,<br />

e vi a lareira com as cinzas frias e a última lenha converti<strong>da</strong> em pedra e o retrato do cavalheiro<br />

triste que nos olhava há três séculos por trás na moldura <strong>de</strong> ouro. Pois não estávamos na alcova do<br />

térreo on<strong>de</strong> havíamos <strong>de</strong>itado na noite anterior, e sim no dormitório <strong>de</strong> Ludovico, <strong>de</strong>baixo do dossel<br />

e <strong>da</strong>s cortinas poeirentas e dos lençóis empapados ain<strong>da</strong> quentes <strong>de</strong> sua cama maldita.<br />

M1U3T3<br />

2


Amostras <strong>de</strong> escrita para análise<br />

Dr. Edmo<br />

Ricardo e Antônio<br />

não vou trabalhar amanhã porque o grêmio tem que reunir<br />

ri car do<br />

Antonio (adulto)<br />

“in” ga ne i “u” bo bo na cas ca do/o vo<br />

Ricardo<br />

quem ca i u ca i u pri me i ro “di” a bri “u”<br />

M1U3T4<br />

Ricardo<br />

M1U3T4<br />

1


Como se apren<strong>de</strong> a ler e escrever ou,<br />

prontidão, um problema mal colocado *<br />

[…]<br />

A criança e seu processo <strong>de</strong> alfabetização<br />

Telma Weisz<br />

As pesquisas sobre o processo <strong>de</strong> alfabetização vêm mostrando que, para po<strong>de</strong>r se apropriar do nosso<br />

sistema <strong>de</strong> representação <strong>da</strong> escrita, a criança precisa construir respostas para duas questões:<br />

1. O que a escrita representa?<br />

2. Qual a estrutura do modo <strong>de</strong> representação <strong>da</strong> escrita?<br />

A escola consi<strong>de</strong>ra evi<strong>de</strong>nte que a escrita é "um sistema <strong>de</strong> signos que expressam sons individuais<br />

<strong>da</strong> fala" (Gelb, 1976) e supõe que também para a criança isso seja <strong>da</strong>do a priori. Mas não é.No<br />

início do processo to<strong>da</strong> criança supõe que a escrita é uma outra forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar as coisas.<br />

Vamos <strong>da</strong>r alguns exemplos que o professor po<strong>de</strong> reconhecer, na sua prática diária, mas não<br />

tinha até então como interpretar.<br />

Pediu-se a uma criança, que apren<strong>de</strong>ra a reproduzir a forma escrita do nome <strong>de</strong> sua mãe (Dalva),<br />

que escrevesse a palavra "mamãe", cuja forma ela não conhecia. Ela escreveu, com convicção,<br />

"Dalva". E, questiona<strong>da</strong> em relação à ina<strong>de</strong>quação <strong>da</strong> sua escrita, ficou perplexa com a incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

adulta <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r uma coisa tão evi<strong>de</strong>nte, isto é, que "Dalva" e "mamãe" são a mesma<br />

pessoa e, portanto, a mesma escrita.<br />

O que a criança não compreen<strong>de</strong> é que a escrita representa a fala, o som <strong>da</strong>s palavras, e não o<br />

objeto a que o nome se refere. De uma pesquisa realiza<strong>da</strong> em Recife, reproduzimos as seguintes<br />

informações <strong>da</strong> entrevista ocorri<strong>da</strong> no início do ano letivo com uma criança cursando pela<br />

primeira vez a 1ª série:<br />

Diante do par <strong>de</strong> palavras BOI – ARANHA<br />

M1U3T5<br />

Experimentador: Nestes cartões estão escritas duas palavras: "boi" e "aranha". On<strong>de</strong> você<br />

acha que está escrito boi, e on<strong>de</strong> está escrito "aranha"?<br />

Criança: Aqui está escrito boi (apontando para a palavra "aranha") e aqui está escrito aranha<br />

(apontando para a palavra "boi").<br />

* Este texto é um fragmento do artigo “Como se apren<strong>de</strong> a ler e escrever ou prontidão, um problema mal colocado”, publicado em Ciclo Básico,<br />

Cenp/Secretaria <strong>de</strong> Estado <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1988.<br />

M1U3T5<br />

1


Experimentador: Por que você acha que aqui ("boi") está escrito aranha e aqui ("aranha") está<br />

escrito boi?<br />

Criança: Porque essa <strong>da</strong>qui tá pequena e esse <strong>da</strong>qui tá gran<strong>de</strong>.Tia me ensinou que boi começa<br />

com A.<br />

Vê-se, portanto, aqui, o divórcio entre o conhecimento <strong>da</strong> letra e as hipóteses <strong>de</strong>ssa criança a<br />

respeito <strong>da</strong> escrita. Para ela, a escrita <strong>de</strong>via conformar-se à sua concepção ain<strong>da</strong> realística <strong>da</strong><br />

palavra, ou seja, coisas gran<strong>de</strong>s têm nomes gran<strong>de</strong>s e coisas pequenas têm nomes pequenos." 1<br />

Mas o fato é que, em vez <strong>de</strong> confirmar, a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e fora <strong>da</strong> escola <strong>de</strong>smente segui<strong>da</strong>mente<br />

a teoria que a criança construiu sobre o que a escrita representa. Desmente e problematiza,<br />

obrigando a criança a construir uma nova teoria, novas hipóteses.Ao começar a se <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong>s<br />

características formais <strong>da</strong> escrita, a criança constrói então duas hipóteses que vão acompanhá-la<br />

por algum tempo durante o processo <strong>de</strong> alfabetização:<br />

a) <strong>de</strong> que é preciso um número mínimo <strong>de</strong> letras – entre duas e quatro – para que esteja<br />

escrito alguma coisa; 2 e,<br />

b) <strong>de</strong> que é preciso um mínimo <strong>de</strong> varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> caracteres para que uma série <strong>de</strong> letras "sirva<br />

para ler".<br />

De início, a criança não faz uma diferenciação clara entre o sistema <strong>de</strong> representação do <strong>de</strong>senho<br />

(pictográfico) e o <strong>da</strong> escrita (alfabético), como se po<strong>de</strong> observar, a seguir, na escrita <strong>de</strong> Reginaldo.<br />

M1U3T5<br />

Reginaldo, 6 anos 3<br />

(22/8/84)<br />

Reginaldo ain<strong>da</strong> não estabelece uma diferença clara entre o sistema <strong>de</strong> representação <strong>da</strong> escrita e<br />

do <strong>de</strong>senho. As letras que aparecem são as do seu nome, menos em "borboleta", on<strong>de</strong> usa as do<br />

nome <strong>de</strong> sua irmã Sandra.<br />

1 In Apren<strong>de</strong>r pensando: contribuições <strong>da</strong> Psicologia cognitiva para a educação, SEE Pernambuco/ 1983<br />

2 A idéia <strong>de</strong> que uma letra sozinha “não serve para ler”, “não diz na<strong>da</strong>”,nós <strong>da</strong> uma pista para compreen<strong>de</strong>r a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s crianças, mesmo<br />

as mais avança<strong>da</strong>s, com a escrita isola<strong>da</strong> dos artigos.<br />

3 In Repensando a prática <strong>de</strong> alfabetização - as idéias <strong>de</strong> Emília Ferreiro na sala <strong>de</strong> aula,Telma Weisz - Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Pesquisa/1985.<br />

2<br />

1) (gato)<br />

2) (borboleta)<br />

3) (cavalo)<br />

4) (i, agora vou fazer o boi.)<br />

5) (gato) (bebe leite)


No universo urbano, o contato com os dois sistemas – <strong>da</strong> escrita e do <strong>de</strong>senho – permite<br />

estabelecer progressivamente essa diferenciação. Mas, mesmo quando a criança já tem claro<br />

que "<strong>de</strong>senha-se com figuras" e "escreve-se com letras", a natureza do sistema alfabético ain<strong>da</strong><br />

permanece um mistério a ser <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>do.<br />

Ain<strong>da</strong> antes <strong>de</strong> supor a escrita como representação <strong>da</strong> fala, a criança faz várias tentativas <strong>de</strong><br />

construir um sistema que se assemelhe formalmente à escrita adulta buscando registrar as<br />

diferenças entre as palavras através <strong>de</strong> diferenças na quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>, na posição e na variação dos<br />

caracteres empregados para escrevê-las.Veja a escrita <strong>da</strong> Edinil<strong>da</strong> (22/8/84).<br />

(borboleta)<br />

(boi)<br />

(o gato bebe leite)<br />

Edinil<strong>da</strong>, 7 anos<br />

(22/8/84)<br />

Edinil<strong>da</strong> avançou mais que Reginaldo. Ela supõe<br />

que "escreve-se com letras", mas ain<strong>da</strong> não <strong>de</strong>scobriu<br />

que as letras representam sons. Sua hipótese –<br />

é preciso uma hipótese para produzir qualquer<br />

escrita – po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong>scrita assim:<br />

Para escrever (qualquer coisa) é preciso <strong>de</strong> sete a<br />

nove letras (o nome <strong>de</strong>la tem oito letras).<br />

Mas não po<strong>de</strong>m ser sempre as mesmas letras, nem na<br />

mesma posição. Por isso ela varia o máximo que<br />

po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do seu limitado repertório, o que, às<br />

vezes, exige que ela invente algumas.<br />

Edinil<strong>da</strong> já percebeu que a palavras diferentes<br />

correspon<strong>de</strong>m escritas diferentes, mas não sabe a<br />

que atribuir essas diferenças, pois não <strong>de</strong>scobriu<br />

ain<strong>da</strong> o que é que as letras representam.<br />

Enquanto não encontra respostas satisfatórias para as duas perguntas fun<strong>da</strong>mentais: "o que a<br />

escrita representa?" e "qual a estrutura do modo <strong>de</strong> representação <strong>da</strong> escrita?", a criança continua<br />

pensando e tentando a<strong>de</strong>quar suas hipóteses às informações que recebe do mundo. A <strong>de</strong>scoberta<br />

<strong>de</strong> que a escrita representa a fala leva a criança a formular uma hipótese ao mesmo tempo falsa<br />

e necessária: a hipótese silábica.<br />

A hipótese silábica<br />

(gato)<br />

A hipótese silábica é um salto qualitativo, uma <strong>da</strong>quelas "gran<strong>de</strong>s reestruturações globais" <strong>de</strong> que<br />

nos fala Piaget. Um salto qualitativo tornado possível pelo acirramento <strong>da</strong>s contradições entre as<br />

hipóteses anteriores <strong>da</strong> criança e as informações que a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> lhe oferece.<br />

O que caracteriza a hipótese silábica é a crença <strong>de</strong> que ca<strong>da</strong> letra representa uma sílaba – a menor<br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> emissão sonora.Veja, a seguir, três amostras <strong>de</strong> escrita silábica.<br />

M1U3T5<br />

3


(bor-bo-le-ta)<br />

(ca-va- lo)<br />

Cleonil<strong>da</strong>, 7 anos<br />

(22/8/84)<br />

A hipótese com a qual essa menina trabalha é a <strong>de</strong> que ca<strong>da</strong> letra representa uma emissão<br />

sonora, isto é, uma sílaba oral. É o tipo <strong>de</strong> escrita que Emília Ferreiro chama silábica estrita.<br />

Cleonil<strong>da</strong> <strong>de</strong>monstra um razoável conhecimento do valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras<br />

que, no entanto, ela a<strong>da</strong>pta às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua hipótese conceitual. A vogal "O", por exemplo,<br />

vale "TO" em gato, "BOR" e "BO" em borboleta,"LO" em cavalo e novamente "BO" em boi.<br />

Lourivaldo, 8 anos<br />

A escrita <strong>de</strong>sse menino também é silábica. Mas, no caso <strong>de</strong>le, essa hipótese entra em conflito com<br />

outra: a hipótese <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> mínima <strong>de</strong> caracteres para que um conjunto <strong>de</strong> letras possa ser<br />

consi<strong>de</strong>rado uma palavra (no início do processo <strong>de</strong> alfabetização, as crianças supõem que uma<br />

única letra "não serve para ler"; o que varia <strong>de</strong> uma para outra é o número <strong>de</strong> letras tido como<br />

mínimo, em geral entre duas e quatro). O Lourivaldo exige três letras no mínimo, o que cria um<br />

problema na escrita dos monossílabos e dissílabos. A solução que ele encontrou foi agregar<br />

letras sem valor sonoro às palavras com menos <strong>de</strong> três sílabas, o que acabou criando, em "gato"<br />

e "boi", uma discrepância entre a intenção <strong>da</strong> escrita e a interpretação <strong>da</strong> leitura: na escrita a<br />

letra mu<strong>da</strong> era a terceira, mas na hora <strong>de</strong> ler preferiu consi<strong>de</strong>rar como mu<strong>da</strong> a letra do meio.<br />

Há também preocupação com o valor sonoro convencional.<br />

M1U3T5<br />

4<br />

(ga- -to)<br />

(gato)<br />

(bor-bo-le-ta)<br />

(ca-va-lo)<br />

(bo-i)<br />

(o-ga-to-be-bi-lei-ti)<br />

(bo- -i)<br />

(gato-be-be-lei-te)


(ga-to)<br />

(borboleta)<br />

Daniel, 7 anos<br />

(22/8/84)<br />

(ca-va-lo -_-_-_-_ )<br />

(o gato) (o gato bebe leite)<br />

Esta é uma escrita silábica bem mais difícil <strong>de</strong> reconhecer que as anteriores. Mas nesse caso é o<br />

conhecimento que a professora construiu observando a criança que possibilita a interpretação.<br />

Daniel estava vivendo um momento <strong>de</strong> conflito cognitivo.Vinha testando sua hipótese silábica em<br />

to<strong>da</strong>s as palavras a que tinha acesso, isto é, to<strong>da</strong>s as que alguém lia para ele, e ficava visivelmente aflito<br />

com as letras que sobravam. A forma que encontrou <strong>de</strong> acomo<strong>da</strong>r a situação foi agregar letras<br />

mu<strong>da</strong>s no final, mas esse arranjo não era, <strong>de</strong> modo algum, satisfatório. Seu <strong>de</strong>sconforto durante a<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> era visível: recusou-se a ler "borboleta" e "boi" e foi preciso insistir muito para que lesse<br />

"cavalo" e "gato".<br />

Dissemos que a hipótese silábica é falsa e necessária.Vamos analisar as duas partes <strong>de</strong>ssa afirmação.<br />

Em primeiro lugar, a questão <strong>da</strong> falsi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Supor que ca<strong>da</strong> letra representa uma sílaba é falso com<br />

relação à concepção adulta <strong>da</strong> escrita, à convenção social, que é alfabética. Mas não resta dúvi<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> que é muito mais ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira que as hipóteses anteriores. Ela dá uma resposta ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira à<br />

primeira questão: "O que a escrita representa?". O salto qualitativo é a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> que a<br />

escrita representa os sons <strong>da</strong> fala. Junto com a compreensão <strong>da</strong> natureza do objeto representado<br />

emerge a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> estabelecer um critério <strong>de</strong> correspondência. Não é mais possível à<br />

criança atribuir globalmente a palavra fala<strong>da</strong> à sua escrita. Impõe-se a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> partir tanto<br />

a fala quanto a escrita, e fazer correspon<strong>de</strong>r as duas séries <strong>de</strong> fragmentos. Nesse esforço, a<br />

criança comete um erro: supõe que a menor uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> língua é a sílaba. Um "erro" aliás muito<br />

lógico, se pensarmos na impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> emitir o fonema isolado.A hipótese silábica é, então,<br />

parcialmente falsa, mas necessária. Necessária como são necessários "erros construtivos" no<br />

caminho em direção ao conhecimento objetivo.<br />

(boi)<br />

M1U3T5<br />

5


As pesquisas <strong>de</strong> Emília Ferreiro, em 1982, com novecentas crianças que cursavam pela primeira<br />

vez a 1ª série <strong>da</strong> escola pública em várias ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do México, mostram que mais ou menos 85%<br />

<strong>da</strong>s crianças estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s que apren<strong>de</strong>ram a ler utilizavam a hipótese silábica, em pelo menos uma<br />

<strong>da</strong>s quatro entrevistas realiza<strong>da</strong>s durante o ano. Isto é, a maioria <strong>da</strong>s crianças precisou <strong>de</strong>sse<br />

"erro construtivo" para chegar ao sistema alfabético. Como o intervalo entre as entrevistas era<br />

<strong>de</strong> 60 a 80 dias, fica difícil saber se os 15% restantes passaram ou não por esse erro construtivo.<br />

Mas uma coisa é certa: é impossível chegar à compreensão do sistema alfabético <strong>da</strong> escrita sem<br />

<strong>de</strong>scobrir, em algum momento, que o que a escrita representa é a fala.<br />

Mas, no processo <strong>de</strong> alfabetização, a hipótese silábica é, ao mesmo tempo, um gran<strong>de</strong> avanço<br />

conceitual e uma enorme fonte <strong>de</strong> conflito cognitivo.<br />

"No entanto, a hipótese silábica cria suas próprias condições <strong>de</strong> contradição: contradição entre<br />

o controle silábico e a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> mínima <strong>de</strong> letras que uma escrita <strong>de</strong>ve possuir para ser<br />

interpretável (por exemplo, o monossílabo <strong>de</strong>veria se escrever com uma única letra, mas quando<br />

se coloca uma letra só, o escrito 'não po<strong>de</strong> ser lido', ou seja, não é interpretável); além disso, há<br />

contradição entre a interpretação silábica e as escritas produzi<strong>da</strong>s pelos adultos (que têm sempre<br />

mais letras do que as que a hipótese silábica permite antecipar).<br />

No mesmo período – embora não necessariamente ao mesmo tempo – as letras po<strong>de</strong>m começar<br />

a adquirir valores sonoros (silábicos) relativamente estáveis, o que leva a uma correspondência com<br />

o eixo qualitativo: as partes sonoras semelhantes entre as palavras começam a se exprimir por<br />

letras semelhantes. E isto também gera suas formas particulares <strong>de</strong> conflito." (Emilia Ferreiro).<br />

Imaginem como fica conflitante para a criança <strong>de</strong>frontar-se com o fato <strong>de</strong> que, por exemplo, sua<br />

escrita para "pato" (AO) ficou igual à que ela produziu para "gato".Vocês <strong>de</strong>vem estar se perguntando<br />

por que isso não foi percebido até então, não se tornou observável antes. A resposta é que<br />

não podíamos "ver" a escrita silábica por razões semelhantes à <strong>de</strong> que a humani<strong>da</strong><strong>de</strong> não pô<strong>de</strong><br />

rever a idéia <strong>de</strong> uma Terra plana enquanto não admitiu que esta é que girava em torno do Sol,<br />

e não o contrário. Foi necessária uma concepção dialética do processo <strong>de</strong> aprendizagem, uma<br />

concepção que permitisse ver a ação do aprendiz construindo o seu conhecimento, on<strong>de</strong> o<br />

professor aparece não mais como o que controla a aprendizagem do aluno, e sim como um<br />

mediador entre aquele que apren<strong>de</strong> e o conteúdo a ser aprendido. Só a partir <strong>de</strong>sse novo<br />

referencial é possível imaginar que a criança apren<strong>da</strong> algo que não foi ensinado pelo professor.<br />

A caminho <strong>da</strong> hipótese alfabética<br />

Vamos recapitular para não per<strong>de</strong>r o fio.Vimos emergir <strong>da</strong>s pesquisas uma criança que se esforça<br />

para compreen<strong>de</strong>r a escrita. Que começa diferenciando o sistema <strong>de</strong> representação <strong>da</strong> escrita do<br />

sistema <strong>de</strong> representação do <strong>de</strong>senho. Que tenta várias abor<strong>da</strong>gens globais, numa busca consistente<br />

<strong>da</strong> lógica do sistema, até <strong>de</strong>scobrir – o que implica uma mu<strong>da</strong>nça violenta <strong>de</strong> critérios – que a<br />

escrita não representa o objeto a que se refere, e sim o <strong>de</strong>senho sonoro do seu nome. Que<br />

nesse momento costuma aparecer uma hipótese conceitual que atribui a ca<strong>da</strong> letra escrita uma<br />

sílaba oral. Que essa hipótese gera inúmeros conflitos cognitivos, tanto com as informações que<br />

recebe do mundo como com as hipóteses <strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> e varie<strong>da</strong><strong>de</strong> mínima <strong>de</strong> caracteres<br />

construí<strong>da</strong>s pela própria criança.Veja a seguir as amostras <strong>de</strong> escrita <strong>da</strong> Cleonil<strong>da</strong>, do Lourivaldo<br />

e do Daniel, <strong>de</strong> 22/8/84, nas quais isso aparece com clareza.<br />

M1U3T5<br />

6


(ga- -to)<br />

(bor-bo-le-ta)<br />

(ca-va- lo)<br />

(gato)<br />

(bor-bo-le-ta)<br />

(ca-va-lo)<br />

(bo-i)<br />

(o-ga-to-be-bi-le-i-ti)<br />

Cleonil<strong>da</strong>, 7 anos<br />

(22/8/84) (30/11/84)<br />

(bo- -i)<br />

Lourivaldo, 8 anos<br />

(22/8/84) (30/11/84)<br />

(gato-be-be-lei-te)<br />

M1U3T5<br />

7


(ga-to)<br />

(ca-va-lo -_-_-_-_ )<br />

(borboleta)<br />

(o gato) (o gato bebe leite)<br />

Daniel, 8 anos<br />

Daniel escreve alfabeticamente as palavras, mas regri<strong>de</strong> ao nível silábico-alfabético (<strong>de</strong> transição)<br />

na frase. É possível que isso tenha acontecido porque estava preocupado com a separação <strong>da</strong>s<br />

palavras. Foi o único que não escreveu tudo junto, como seria normal. O que é coerente<br />

com seu estilo: muito atento à forma adulta <strong>de</strong> escrever, buscando sempre reproduzir suas<br />

características, mesmo sem compreen<strong>de</strong>r.<br />

As escritas silábica e silábico-alfabética têm sido encara<strong>da</strong>s como patológicas pela escola que não<br />

dispõe <strong>de</strong> conhecimento para perceber seu caráter evolutivo.<br />

Se o professor compreen<strong>de</strong> a hipótese com que a criança está trabalhando, passa a ser possível<br />

problematizá-la, acirrar – através <strong>de</strong> informações a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s – as contradições que vão gerar os<br />

avanços necessários para a compreensão do sistema alfabético. E foi isso que aconteceu com<br />

Cleonil<strong>da</strong>, Lourivaldo e Daniel, como se po<strong>de</strong> ver nas amostras <strong>de</strong> escrita <strong>de</strong> 30/11/84 (na coluna<br />

<strong>da</strong> direita do quadro anterior).<br />

Cleonil<strong>da</strong>, que em noventa dias <strong>de</strong> aula estava alfabetiza<strong>da</strong>, não é capaz <strong>de</strong> articular oralmente<br />

nenhum encontro consonantal – nem no seu próprio nome.Apesar disso, ou talvez por isso mesmo,<br />

<strong>da</strong>s crianças que se alfabetizaram nesse grupo era a que menos erros <strong>de</strong> escrita cometia. Ela<br />

jamais escrevia "comi", para "come", como o Lourivaldo, que falava corretamente.<br />

Reginaldo, como se po<strong>de</strong> ver no quadro seguinte, pela evolução <strong>da</strong> cópia <strong>de</strong> seu nome, não tem<br />

orientação espacial <strong>da</strong> escrita, "come" letras, espelha letras, tem traçado inseguro, é incapaz <strong>de</strong><br />

manter a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong>s letras na cópia (e tinha dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> para segurar o lápis)...<br />

M1U3T5<br />

8<br />

(22/8/84) (30/11/84)<br />

(boi)


1) (gato)<br />

2) (borboleta)<br />

Reginaldo, 6 anos<br />

(14/6/84) Diante <strong>da</strong> recusa e <strong>da</strong> ansie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong> criança, a professora sugere o uso do<br />

apelido REGI em lugar <strong>de</strong> REGINALDO, e<br />

oferece um mo<strong>de</strong>lo para cobrir e copiar.<br />

(19/6/84) Insiste em copiar REGINALDO.<br />

Fica muito infeliz com o resultado.<br />

(25/6/84) aceita fazer "lição <strong>de</strong> nome", isto<br />

é, cobrir o mo<strong>de</strong>lo e copiar embaixo.<br />

Durante o mês <strong>de</strong> agosto, REGINALDO se<br />

esforça para copiar to<strong>da</strong>s as letras do seu<br />

nome, agregando-as aos poucos. A conservação<br />

<strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong>s grafias do mo<strong>de</strong>lo não tem ain<strong>da</strong><br />

significado, o que importa é a presença.<br />

3) (cavalo)<br />

4) (i, agora vou fazer o boi.)<br />

5) (gato) (bebe leite)<br />

M1U3T5<br />

9


M1U3T5<br />

10<br />

13/9/84<br />

22/10/84<br />

9/11/84<br />

26/11/84<br />

29/11/84<br />

(ma-to)<br />

(bo-i)<br />

8/8/84<br />

20/8/84<br />

27/8/84<br />

31/8/84<br />

Em setembro e outubro consegue garantir<br />

a presença <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as letras e parece<br />

começar a se preocupar com a or<strong>de</strong>m.<br />

Em novembro <strong>de</strong>scobre que as letras<br />

representam sons (ver quadro abaixo) e<br />

a questão <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong>s grafias se resolve.<br />

Dedica-se, então, a posicionar corretamente<br />

ca<strong>da</strong> letra.<br />

(assinatura na ausência <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo)<br />

1ª tentativa (rejeita<strong>da</strong>) <strong>de</strong> escrever<br />

"mato".<br />

Prof. – "Mato se escreve com que sílabas?"<br />

(2ª tentativa)<br />

Regi - "O ma do macaco." (escreve M)<br />

"O to do pato." (escreve T)<br />

"E a bolinha?" (apaga o T e substitui por O)<br />

Prof. - "agora escreve boi." (bo - i)<br />

Regi - (escreve B) "É o i (que falta)?"<br />

Prof. - "O que você acha?"<br />

Regi - "É." (Escreve A)


No entanto, os seus problemas perceptivo-motores <strong>de</strong>sapareceram, como por encanto, quando<br />

ele <strong>de</strong>scobriu o quê, exatamente, as letras representavam. Pensem bem, que importância tem a<br />

posição ou a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong>s letras, se para nós elas são apenas <strong>de</strong>senhos?<br />

O que este texto tentou informar em linhas gerais é como é que se apren<strong>de</strong> a ler. Tentamos<br />

mostrar que as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse processo são muito mais <strong>de</strong> natureza conceitual e muito menos<br />

perceptual, conforme pensávamos antes. E, como nossa prática se baseava sobre o que sabíamos,<br />

é preciso repensá-la, não?<br />

[…]<br />

M1U3T5<br />

11


Minha estação <strong>de</strong> mar *<br />

Domingos Pellegrini Jr. 1<br />

Quando eu tinha 10 anos, o ano tinha mais <strong>de</strong> quatro estações, e to<strong>da</strong>s elas ficavam nas minhas<br />

mãos. A estação dos piões <strong>de</strong>ixava um anel caloso no fura-bolo, on<strong>de</strong> a fieira apertava, e um furo<br />

na unha do <strong>de</strong>dão, on<strong>de</strong> o prego do pião girava até esquentar. A estação <strong>da</strong>s búricas marcava o<br />

nó do <strong>de</strong>dão, com um calo grosso, rachado igual terra seca. Logo começava a estação <strong>da</strong>s<br />

rolimãs, e as rachaduras <strong>de</strong>sse calo enchiam <strong>de</strong> graxa, ficavam ali entupi<strong>da</strong>s até a estação <strong>da</strong>s<br />

mangas. Então crescia na mão o limo <strong>da</strong>s mangueiras, uma placa visguenta. Depois, a mão<br />

fedia: na estação dos papagaios eu vivia com alho no bolso; era só esfregar no <strong>de</strong>do e segurar<br />

linha <strong>de</strong> papagaio alheio, <strong>da</strong>li a pouco <strong>de</strong>spencava com a linha roí<strong>da</strong>.<br />

Na estação do "bafo" a mão criava calos nas bor<strong>da</strong>s, e acabava com cheiro <strong>de</strong> pena queima<strong>da</strong>, <strong>de</strong><br />

tanta cuspi<strong>da</strong> pra gru<strong>da</strong>r as figurinhas. Depois a estação do "bete", a <strong>da</strong>s tampinhas, a dos saquinhos<br />

<strong>de</strong> areia, to<strong>da</strong>s lavrando cortes, calos e cheiros nas mãos, além do calo que uma caneta <strong>de</strong>ixa no<br />

pai-<strong>de</strong>-todos quando tem que copiar, na escola, duzentas vezes uma frase.<br />

Naquele tempo a escola era a única prisão que eu conhecia. Mas o pai comprou um carro e,<br />

<strong>de</strong>pois do passeio inaugural com minha mão avisando <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as placas e esquinas, ele anunciou<br />

na janta:<br />

— Este ano vamos tirar um mês na praia.<br />

M1U3T6<br />

Eu conhecia o mar como uma lagoa gran<strong>de</strong>, distante e sem graça nas figurinhas, on<strong>de</strong> aparecia às<br />

vezes ver<strong>de</strong> e às vezes azul. Agora íamos conhecer o mar em pessoa, ia começar uma nova estação<br />

on<strong>de</strong> entravam todos — o pai, a mãe,Alice, eu e a Linalva, nossa emprega<strong>da</strong> que já vira o mar <strong>de</strong><br />

passagem quando viera do Norte. A estação do mar me encheu a cabeça. O pai começou a falar<br />

<strong>de</strong> on<strong>da</strong>s que rebentavam e a gente mergulhava <strong>de</strong>ntro. Eu não conseguia imaginar mas comecei<br />

a achar ótimo.A mãe ia tirando a mesa e, a ca<strong>da</strong> vez que vinha <strong>da</strong> cozinha, lembrava os perigos<br />

do mar e <strong>da</strong>va conselhos. Sim, o mar <strong>de</strong>via ser uma coisa ótima. E o pai avisou, bicando a xícara<br />

quente <strong>de</strong> café: parti<strong>da</strong> <strong>da</strong>li a três dias, todo mundo que se preparasse.<br />

Não me preparei, mas me acor<strong>da</strong>ram no dia marcado, às cinco <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong>, com tudo preparado<br />

para mim. Nem tive tempo <strong>de</strong> perguntar por que levantar tão cedo se íamos passear; a mãe<br />

e o pai distribuíam or<strong>de</strong>ns. Eu <strong>de</strong>via levantar logo e me lavar, escovar os <strong>de</strong>ntes e trazer a escova.<br />

Devia comer pão com manteiga, café com leite, um ovo cozido e uma banana, mesmo que não<br />

tivesse fome. Ninguém ia ficar parando na estra<strong>da</strong> pra eu comer. E ninguém ia ficar parando<br />

antes <strong>de</strong> Ibiporã pra eu urinar, então fui urinar e quase durmo <strong>de</strong> novo na priva<strong>da</strong>. Mas ninguém<br />

ia ficar esperando a vi<strong>da</strong> inteira, bateram na porta, batiam portas <strong>de</strong> armários, fechavam malas,<br />

enchiam sacolas. Coma logo isso que seu pai já levou as malas. Cadê a bolsa, alguém viu a bolsa?<br />

* Extraido <strong>de</strong>: O mo<strong>de</strong>rno conto brasileiro, 6, ed. (Antologia Escolar, Organização <strong>de</strong> João Antônio.) Editora Civilização Brasileira, 1987.<br />

1 Domingos Pellegrini Jr, nasceu no norte do Paraná, em Londrina, no ano <strong>de</strong> 1949. É professor <strong>de</strong> Teoria Literária. Já foi jornalista e lí<strong>de</strong>r estu<strong>da</strong>ntil,<br />

vivendo no momento como publicitário na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> on<strong>de</strong> nasceu. Fez teatro popular <strong>de</strong> rua e no palco. Seu primeiro livro, O homem vermelho<br />

(publicado há pouco mais <strong>de</strong> um ano pela Civilização Brasileira, e recentemente premiado pela Câmara Brasileira do Livro), revelou um contista<br />

que insere na primeira linha <strong>de</strong> autores nacionais. Como poeta, publicou Conversa clara, poemas, Calhamaço <strong>de</strong> poemas e Quatro poetas (antologia<br />

com outros autores). Seu segundo livro, também <strong>de</strong> contos, Os meninos, consolou plenamente o prestígio <strong>de</strong> que o autor é dono.<br />

M1U3T6<br />

1


Você tem certeza <strong>de</strong> que esse carro agüenta? Desliga esse rádio, moleque, rádio <strong>de</strong> carro só com<br />

o motor funcionando. Enfia esta blusa que ain<strong>da</strong> é madruga<strong>da</strong>; não quero saber, enfia logo. Não<br />

vamos esquecer <strong>de</strong> <strong>de</strong>sligar a luz. Não seria melhor fechar também o registro <strong>da</strong> água? Vai pro teu<br />

lugar, moleque, lá atrás, sim senhor.Tira o pé do banco, não abre o vidro que dá dor <strong>de</strong> ouvido.<br />

E assim partimos para o mar.<br />

Dormi e acor<strong>de</strong>i com o sol, as pernas querendo esticar e uma zoeira no ouvido.Alice acordou<br />

logo e brigamos nem lembro por quê, então ela passou para o banco <strong>da</strong> frente, junto <strong>da</strong> mãe, e<br />

eu fiquei sem ter o que fazer. Passavam os mais compridos canaviais e cafezais do mundo, comecei<br />

a empurrar os bancos <strong>da</strong> frente com os pés, mas não podia. Comecei a tirar fiapos do cochinil, mas<br />

não podia. Examinei o cinzeiro por <strong>de</strong>ntro e por fora várias vezes, comi ovos cozidos e chupei<br />

laranjas, <strong>de</strong>scasca<strong>da</strong>s pela Linalva porque eu podia me cortar com a faca. Quando lembrei do<br />

rádio, a mãe falou logo que não suportava rádio em viagem, e o pai avisou que não ia parar pra<br />

erguer a antena, <strong>de</strong> modo que chupei mais umas laranjas e <strong>de</strong>scobri que o tapete <strong>de</strong> borracha<br />

podia virar um megafone, mas não podia; <strong>de</strong> modo que <strong>de</strong>scasquei mais um ovo com todo<br />

cui<strong>da</strong>do pra não triscar a clara e comi só a gema. Descobri tudo que não se po<strong>de</strong> fazer num carro.<br />

Ler chapas, por exemplo.<br />

Quando li a chapa do primeiro carro na frente, a mãe aproveitou pra testar minha visão em<br />

comparação com a <strong>da</strong> Alice. Depois <strong>de</strong> umas duas ou três chapas, achou que eu e a Alice<br />

enxergávamos a mesma coisa na mesma distância, e que <strong>de</strong>víamos ter puxado os olhos do pai<br />

<strong>de</strong>la, que já estava caduco sem nunca usar óculos. Continuei a ler as placas em voz alta, repetindo<br />

a mesma placa enquanto o pai não po<strong>da</strong>va o carro <strong>da</strong> frente, até que falou que aquilo já tinha enchido<br />

e sugeriu que eu lesse uma vez ca<strong>da</strong> placa, e só.Não passou muito tempo e aquilo também encheu<br />

todo mundo, mas a Linalva sugeriu que eu podia ler as placas mentalmente quantas vezes quisesse.<br />

Mas isso logo me encheu.<br />

Quando <strong>de</strong>scobri que só podia ficar ali sentado, também <strong>de</strong>scobri que estava na segun<strong>da</strong> prisão<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, com a mãe no lugar <strong>da</strong> professora apontando as paisagens e outras coisas bonitas que o<br />

mundo tem mas ninguém pára pra ver direito. O pai só foi parar quando a Alice realmente se<br />

irmanou comigo pela primeira vez na vi<strong>da</strong>. Ficamos os dois com uma coceira que a mãe logo<br />

i<strong>de</strong>ntificou como formiga na bun<strong>da</strong> ou foguinho no rabo.<br />

Esticamos as pernas, urinamos e tomamos guaraná num bar <strong>de</strong> posto <strong>de</strong> gasolina, o pai botou<br />

gasolina e voltamos à prisão. Demônios <strong>de</strong>vem ron<strong>da</strong>r os postos <strong>de</strong> gasolina, porque naquela viagem<br />

a mãe garantia que eu sempre ficava com o <strong>de</strong>mônio no corpo <strong>de</strong>pois que parávamos num posto.<br />

Quando a situação ficou infernal <strong>de</strong>ntro do carro tive que reconhecer: realmente o pai pararia<br />

para <strong>da</strong>r um jeito em mim se eu continuasse encapetado. De maneira que resolvi comer mais um<br />

ovo, mas não podia porque estava chegando a hora do almoço. Laranjas ain<strong>da</strong> podia, até que o<br />

pai ficou cheio <strong>de</strong> abrir o vidro pra eu jogar fora os bagaços e as sementes, e a mãe falou que eu<br />

não tinha tampa, parecia um buraco sem fundo e acabaram-se as laranjas. Quando comecei a<br />

estalar a boca, o pai falou que a mãe <strong>de</strong>via fazer alguma coisa porque aquilo era a coisa mais<br />

irritante do mundo, e ela falou que estalando a boca pelo menos eu ficava quieto com o rosto,<br />

aí ele falou, que ela sempre estava <strong>de</strong> acordo com qualquer coisa quando era pra contrariar uma<br />

M1U3T6<br />

2


opinião <strong>de</strong>le, aí ela falou, ele falou, <strong>de</strong> repente estavam discutindo os hábitos e <strong>de</strong>feitos um do<br />

outro, e <strong>de</strong>pois não falaram mais até a hora <strong>de</strong> escolher on<strong>de</strong> almoçar.<br />

A mãe achava que <strong>de</strong>víamos entrar numa ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas o pai achava que um restaurante <strong>de</strong> beira<br />

<strong>de</strong> estra<strong>da</strong> seria ótimo. Ela falou em higiene, perigo <strong>de</strong> uma intoxicação e talheres sujos, e ele<br />

falou <strong>de</strong> preço e distância, gasolina e tempo perdido, e ela mandou que ele parasse on<strong>de</strong> quisesse<br />

e fizesse o que quisesse porque ela já tinha mesmo perdido o gosto <strong>de</strong> viajar e — aliás — nem<br />

sabia mesmo porque tinha vindo naquela viagem e — quer saber duma coisa? — por ela, podiam<br />

voltar <strong>da</strong>li mesmo. Aí o pai também falou — quer saber duma coisa você também? — e fez meiavolta.<br />

Eu senti que nunca ia ver o mar.<br />

O motor foi ro<strong>da</strong>ndo enfezado naquele silêncio, ca<strong>da</strong> vez mais enfezado, até que o pai teve que<br />

brecar numa curva e o carro <strong>da</strong>nçou pra lá e pra cá. A mãe não abriu a boca mas todo mundo<br />

ficou ouvindo o silêncio <strong>de</strong>la, tão pesado que o carro começou a an<strong>da</strong>r <strong>de</strong>vagar, tão <strong>de</strong>vagar que<br />

<strong>da</strong>va agonia. Até que o pai parou num posto <strong>de</strong> gasolina com churrascaria. Como o posto era<br />

do outro lado <strong>da</strong> estra<strong>da</strong>, ele teve que fazer outra meia-volta, <strong>de</strong> jeito que ficamos <strong>de</strong> novo na<br />

direção do mar.<br />

O pai freou o carro e falou: essa mulher não vê que on<strong>de</strong> tem muito carro parado é porque a<br />

comi<strong>da</strong> é boa, mas eu sei o que ela está querendo. Mas na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> só tinha o nosso carro parado<br />

ali, fora uns trinta caminhões, e a mãe falou com uma cara que o pai chama <strong>de</strong> cara <strong>de</strong> mártir: <strong>de</strong>scem<br />

vocês, meus filhos, vai com eles, Linalva, hoje vocês vão comer comi<strong>da</strong> <strong>de</strong> motorista <strong>de</strong> caminhão.<br />

Aí o pai falou: isso, meus filhos, vamos que <strong>de</strong>certo o pai <strong>de</strong> vocês vai envenenar vocês.A Linalva<br />

saiu com a gente e a mãe falou: cui<strong>da</strong>do, Linalva, olha bem essas carnes e não <strong>de</strong>ixa eles nem<br />

chegarem perto <strong>de</strong> maionese, fruta só lava<strong>da</strong> e água só mineral.<br />

Comi carne com maionese com o pai olhando agra<strong>de</strong>cido, mas quando pedi um gole <strong>de</strong> cerveja<br />

ele não <strong>de</strong>ixou. A Linalva, <strong>de</strong>pois que encheu o prato <strong>de</strong> ossos, começou a apertar as mãos e<br />

suspirar <strong>de</strong> agonia, até que o pai falou pra ela levar uma coxa <strong>de</strong> frango, um pão e um copo <strong>de</strong><br />

leite pra mãe lá no carro. E completou que não existia comi<strong>da</strong> que a mãe mais gostava do que<br />

coxa com pão e leite. Falei que nunca tinha visto a mãe comer coxa com pão e leite, e ele<br />

respon<strong>de</strong>u que foi antes <strong>de</strong>les casarem, e que ela ia lembrar.<br />

Realmente a mãe lembrou, porque o copo voltou vazio e, quando voltamos pro carro, ela não<br />

estava mais com uma cara tão perto <strong>da</strong> morte. E, como o carro já estava na direção do mar, o<br />

pai tocou em frente e passamos pela mesma paisagem até o ponto <strong>de</strong> on<strong>de</strong> tínhamos voltado.<br />

A mãe perguntou ao pai se ele tinha bebido, ele disse que só uma cervejinha, aí começaram a falar<br />

<strong>de</strong> novo <strong>da</strong>s paisagens, o pai perguntou se o frango estava bom, a mãe disse que sim e eu<br />

aproveitei pra elogiar a maionese.Aí a mãe azedou, virou a cabeça e ficou olhando a paisagem,<br />

passamos um túnel e ela continuou olhando a paisagem <strong>de</strong>ntro do túnel. Depois avisou que não<br />

ia mexer uma palha se a gente ficasse com o intestino solto, e que eu podia cagar até as tripas<br />

que ela não ia nem se incomo<strong>da</strong>r.<br />

O pai lembrou que eu tinha misturado laranja e ovo na barriga a manhã inteira, comparou que<br />

maionese é mistura <strong>de</strong> ovos com limão e portanto quase a mesma coisa, portanto eu já estava cheio<br />

<strong>de</strong> maionese antes mesmo <strong>de</strong> almoçar. Mas a mãe não falou mais na<strong>da</strong> até que começou a chover.<br />

M1U3T6<br />

3


O diabo, como disse a Linalva, é que a maionese começou a fazer efeito justamente quando o pai<br />

mandou fechar todos os vidros por causa <strong>da</strong> chuva. A primeira vez em que o cheiro ficou preso<br />

junto com a gente no carro, o pai perguntou quem foi, a mãe perguntou pra Alice se tinha sido<br />

ela, <strong>de</strong>pois pra mim, e concluiu logo que tinha sido eu, embora eu lembrasse que a Linalva<br />

também tinha misturado ovos com laranja. De modo que ficou sendo eu mesmo e no começo<br />

foi até engraçado, o pai disse que eu parecia usina <strong>de</strong> cana, que mastiga o doce mas <strong>de</strong>ixa o ar azedo,<br />

e a Linalva completou que lá no Norte uma comi<strong>da</strong> que empesteia muito os intestinos é mistura<br />

<strong>de</strong> carne <strong>de</strong> bo<strong>de</strong> com uma frutinha que ela não lembrava o nome.<br />

Na segun<strong>da</strong> vez o pai falou que a usina estava a todo vapor, a Alice riu e ficou olhando mecanismos<br />

e mistérios na minha barriga, e a mãe falou pro pai que, do jeito que ele falava, eu podia até<br />

acabar achando que aquilo era uma coisa muito bonita. Na terceira vez o pai não fez mais graça<br />

nenhuma e <strong>de</strong>u a caixa <strong>de</strong> fósforos pra mãe acen<strong>de</strong>r um. Na quarta vez o pai falou que agora já<br />

chegava e que eu parasse <strong>de</strong> gracinha porque não tinha graça nenhuma, mas aí a mãe falou que<br />

aquilo era uma coisa natural e ele não podia forçar o menino a segurar. Discutiram um pouco os<br />

intestinos e a natureza, a minha sem-vergonhice ou o mal que faz a maionese <strong>de</strong> restaurante. O<br />

pai começou a falar que a maionese <strong>de</strong> restaurante ain<strong>da</strong> nem me tinha chegado no intestino,<br />

mas teve que pedir pra mãe acen<strong>de</strong>r outro fósforo. Depois falou que tanto fósforo e tudo mais<br />

estava esquentando o ar e embaçando os vidros <strong>de</strong>mais, abriu um pouco a janela mas a mãe<br />

lembrou que estava chovendo e era melhor sufocar do que arriscar um resfriado. Quando acabou<br />

a caixa <strong>de</strong> fósforo o pai falou que, por ele, eu podia até pegar pneumonia, abriu o vidro um<br />

minuto e fechou porque molhava até o ombro <strong>de</strong>le mesmo, e continuamos assim, a mãe dizendo<br />

que aquele cheiro <strong>da</strong>va vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> vomitar o almoço e o pai abrindo e fechando o vidro <strong>de</strong> vez<br />

em quando. Em São Paulo a maionese parou <strong>de</strong> fazer efeito, estava anoitecendo e a Alice resmungava<br />

o tempo todo no colo <strong>da</strong> mãe, até que ela passou a ser uma menina cheia <strong>de</strong> nove-horas e eu<br />

menino quieto que <strong>de</strong>via ser imitado. Acontece que eu estava com sono ou qualquer coisa<br />

<strong>de</strong>sse tipo, já nem tinha mais vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> que o pai parasse ou <strong>de</strong> que os postos <strong>de</strong> gasolina<br />

tivessem confeitaria. Não sentia fome nem se<strong>de</strong>, tinha vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> afun<strong>da</strong>r mas, quando afun<strong>da</strong>va<br />

a cabeça no colo <strong>da</strong> Linalva, <strong>da</strong>va vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> levantar — até que acabei ficando <strong>de</strong> novo um<br />

moleque encapetado, a mãe falando que aquele carro estava um inferno e que ela não ia agüentar<br />

mais meia hora. Quando apareceram as luzes o pai falou — Eh São Paulo que não pára <strong>de</strong> crescer!…<br />

— e a mãe perguntou se ele ia saber dirigir na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ele falou que não precisava an<strong>da</strong>r muito pra<br />

achar um hotelzinho mais ou menos, e conhecia a entra<strong>da</strong> como a palma <strong>da</strong> mão. A mãe lembrou que<br />

ele não ia a São Paulo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> solteiro, e que ninguém ia dormir em nenhum muquifo… Aí o pai<br />

falou bem compreensivo e <strong>de</strong>vagar que a gente não precisava gastar um dinheirão pagando hotel<br />

<strong>de</strong> primeira pra dormir uma noite só,e a mãe falou que ninguém dorme mais <strong>de</strong> uma noite ca<strong>da</strong><br />

vez. Aí ele falou que numa noite <strong>de</strong> hotel em São Paulo a gente ia gastar mais que uma semana <strong>de</strong><br />

aluguel <strong>de</strong> uma casa na praia. A Linalva começou a falar — vocês po<strong>de</strong>m me <strong>de</strong>ixar numa pensão<br />

mais barata e amanhã… — mas a mãe mandou calar a boca que <strong>de</strong> hotel quem entendia ela.<br />

O pai quis per<strong>de</strong>r a paciência mas já estava numa rua com mais carro do que eu tinha visto<br />

na vi<strong>da</strong> inteira.<br />

Começaram a buzinar e a mãe falou que estavam buzinando pra nós, a Alice perguntou como é<br />

que sabiam que a gente ia chegar e o pai mandou todo mundo calar a boca porque tinha que se<br />

concentrar. A primeira placa <strong>de</strong> hotel que apareceu fui eu quem leu primeiro e dizia Hotel Paraíso,<br />

mas a mãe achou que não enganava ninguém só pelo jeito do prédio. Buzinaram pra nós e o pai<br />

continuou, mas aí já não sabia se contornava um tal <strong>de</strong> viaduto ou se ia em frente, <strong>de</strong> maneira<br />

M1U3T6<br />

4


que acabou virando antes do tal viaduto e acabamos numas ruas escuras on<strong>de</strong> disseram que hotel,<br />

do jeito que a mãe queria, o mais perto era do lado do tal viaduto. Quando o pai conseguiu achar<br />

<strong>de</strong> novo uma rua movimenta<strong>da</strong>, buzinaram pra nós e ele perguntou se aqueles filhos <strong>da</strong> puta não<br />

podiam parar um minuto. A mãe falou que ele é que <strong>de</strong>via parar duma vez e perguntar pra um<br />

guar<strong>da</strong>. Discutiram isso uma meia hora com o carro an<strong>da</strong>ndo mas, quando o pai parou e ela abriu<br />

a janela e botou a cara pra fora, o guar<strong>da</strong> apitou e mandou tocar em frente, tocar em frente,<br />

passamos <strong>de</strong> novo em frente o Hotel Paraíso e o pai xingou a mãe, São Paulo, os ônibus e o<br />

lazarento do espelho retrovisor que entortava to<strong>da</strong> hora.<br />

Quando passamos pela terceira vez pelo Hotel Paraíso o pai falou — quer saber duma coisa? —<br />

e enfiou o carro no estacionamento. Depois, na portaria, o homem falou que dois quartos, do<br />

jeito que minha mãe queria, não tinha, mas <strong>de</strong>socupavam no outro dia <strong>de</strong> manhã. Ela perguntou<br />

mas que hotel é este que não tem nem pia nos quartos, mas meu pai falou que servia sem pia<br />

mesmo e o homem disse que pra qualquer coisa o banheiro era no fim do corredor e muito<br />

asseado. O homem subiu com a gente e a mãe reclamando <strong>da</strong> esca<strong>da</strong> e dizendo que já estava<br />

sentindo o cheiro nojento do banheiro. Aí o homem abriu uma porta e ela falou que o cheiro<br />

<strong>de</strong> mofo do quarto só faltava <strong>de</strong>rrubar a gente, meu pai falou para o homem <strong>de</strong>sculpar que ela<br />

era assim mesmo. Aí ela empurrou a gente pra <strong>de</strong>ntro e fechou a porta, <strong>da</strong>li a pouco o pai e a<br />

Linalva entraram com as malas, o pai abriu a janela e ficou olhando pra fora e ouvindo as buzinas<br />

e a mãe, abrindo as malas e reclamando que ela não era vaca pra ser "assim mesmo".<br />

O pai saiu e trouxe pastéis, empadinhas com azeitonas <strong>de</strong>ntro, quibe e um leite que vinha em<br />

saquinhos <strong>de</strong> papel. A mãe falou que pelo menos uma coisa ele tinha acertado porque assim não<br />

precisava usar nenhum copo imundo <strong>de</strong> hotel, lavou um saquinho na pia, enxugou com uma <strong>da</strong>s<br />

toalhas que a gente tinha levado, rasgou a ponta do saquinho e me <strong>de</strong>u, e aquilo foi a gran<strong>de</strong> coisa<br />

que conheci naquele dia <strong>de</strong> viagem.<br />

Depois <strong>de</strong> vazios eu e a Alice quisemos guar<strong>da</strong>r nossos saquinhos, mas a mãe falou que só serviam<br />

pra chamar baratas <strong>de</strong> noite. Quando o pai sentou na cama com um jornal que falava do Palmeiras,<br />

a mãe falou que ele tinha que man<strong>da</strong>r o homem trazer logo o tal berço pra Alice, e tinha que<br />

buscar um travesseiro pra mim no quarto <strong>da</strong> Linalva. O pai saiu parecendo que ia explodir ou<br />

então murchar até virar um rato no chão, e a mãe ficou reclamando <strong>da</strong> falta <strong>de</strong> cabi<strong>de</strong>s.<br />

Quando o berço já estava no nosso quarto e a Linalva no quarto <strong>de</strong>la, eu e a Alice <strong>de</strong> pijama já<br />

<strong>de</strong>itando, a mãe falou pro pai fechar a janela que ia entrar pernilongo. Ele disse que se ela quisesse<br />

morrer abafa<strong>da</strong> ele ia dormir em outro quarto, mas acabou fechando a janela e dizendo que ia<br />

sair. Ela falou que ele podia voltar bem tar<strong>de</strong> e ele falou que ia era pra um lugar on<strong>de</strong> mulher<br />

sabe tratar um homem, ela disse que ele podia ficar lá pra sempre e ele saiu batendo a porta.<br />

Ela acen<strong>de</strong>u um abajur no criado-mudo e falou que aquilo parecia quarto não sei do quê, tinha<br />

até abajur cor-<strong>de</strong>-rosa. Eu perguntei quarto do quê, ela disse que eu <strong>de</strong>via era ficar quieto e<br />

dormir que a Alice já estava no segundo sono.<br />

No dia seguinte buzinaram não sei pra quem e eu acor<strong>de</strong>i. A mãe estava senta<strong>da</strong> na cama <strong>de</strong><br />

casal com um mata-mosquito na mão, tão igual ao <strong>de</strong> casa que fui ver e era ele mesmo com as<br />

marcas que eu tinha feito pra ca<strong>da</strong> mosquito que matei numa tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> castigo na <strong>de</strong>spensa.<br />

M1U3T6<br />

5


Quando entramos no carro o pai e a mãe ain<strong>da</strong> discutiam a questão dos pernilongos, ele dizendo<br />

que <strong>de</strong> luz acesa não dormia e ela que não dormia com pernilongo no ouvido. Ele dizendo que,<br />

agora, se você pensa que vamos encontrar casa pra alugar com ar-condicionado, po<strong>de</strong> tirar o<br />

cavalo <strong>da</strong> chuva. E ela respon<strong>de</strong>ndo que é só você não ficar abrindo janela que não entra pernilongo.<br />

E ele dizendo que esse negócio <strong>de</strong> pernilongo você pegou <strong>de</strong> uns tempos pra cá, porque na<br />

viagem <strong>de</strong> casamento, por exemplo, sempre dormi <strong>de</strong> janela aberta e nunca ouvi reclamação.<br />

E ela respon<strong>de</strong>ndo que acontece que naquele tempo era besta feito Jó, teve dia <strong>de</strong> amanhecer<br />

com o corpo empipocado <strong>de</strong> coceira, o braço em carne viva <strong>de</strong> tanto coçar. E ele dizendo que,<br />

se fosse assim, esse povo <strong>da</strong> roça já tinha morrido <strong>de</strong> pernilongo, borrachudo, mutuca, muriçoca.<br />

E ela respon<strong>de</strong>ndo que, bom, eu nunca vivi na roça nem tenho o couro grosso <strong>da</strong> sua família.<br />

De modo que começaram a discutir os hábitos e os <strong>de</strong>feitos <strong>da</strong>s famílias <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um, as sogras<br />

e os cunhados e cunha<strong>da</strong>s, e aproveitei pra tirar fiapos do cochinil até abrir uma clareira do<br />

tamanho <strong>de</strong> um palmo. A Alice também começou a esfiapar lá na frente e a mãe disse que não<br />

podia, mas a Alice disse que podia porque eu também estava esfiapando atrás. Aí o pai e a mãe<br />

pararam <strong>de</strong> discutir pra examinar os estragos e concor<strong>da</strong>ram que eu era mesmo um capeta e<br />

que, no fim <strong>de</strong> contas, era eu que infernizava a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> todo mundo. Falei que não infernizava a<br />

vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> ninguém, que eu só queria viajar na frente e não <strong>de</strong>ixavam, e que a Alice ia sempre no<br />

melhor lugar, e acabei convencendo todo mundo que aquele era meu dia <strong>de</strong> ir na frente.<br />

Quando a Alice parou <strong>de</strong> chorar no banco <strong>de</strong> trás, fui <strong>de</strong>scobrindo que ali na frente havia tanta<br />

coisa a fazer como lá atrás, e que todos os botões do painel eram perigosos, não podiam ser<br />

puxados nem apertados nem tocados e eu <strong>de</strong>via esquecer aqueles botões para o resto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

<strong>de</strong> modo que abri o porta-luvas e a mãe quase se enfiou lá <strong>de</strong>ntro como se o carro tivesse<br />

brecado <strong>de</strong> repente, tirou <strong>de</strong> lá um revólver e começou a abrir <strong>de</strong>pressa a janela, o pai foi brecando<br />

e encostou o carro, ela jogou o revólver na ribanceira e falou que ele não abrisse a boca, que ele<br />

nem pensasse em abrir a boca, e eu aproveitei pra enfiar a mão no porta-luvas antes que ela<br />

pegasse a chave e fechasse.<br />

O pai abriu a boca quando o carro já estava ro<strong>da</strong>ndo <strong>de</strong> novo: o revólver tinha custado não sei<br />

quantos cruzeiros não sei quantos anos atrás, e agora ele queria ver se aparecesse um ladrão na<br />

casa <strong>da</strong> praia. A mãe falou que era preferível entregar tudo pra um ladrão do que arriscar uma<br />

criança <strong>de</strong>ssas com uma arma na mão, e começou a contar pra Linalva como tinha morrido um<br />

menino perto <strong>da</strong> casa <strong>de</strong>la quando era solteira, com um tiro na boca brincando com um revólver.<br />

Depois que ela acabou <strong>de</strong> contar o caso, perguntou o que eu tinha na boca e falei que era uma<br />

bala. A Alice falou que também queria bala e o pai garantiu que não tinha comprado bala pra<br />

ninguém no bar on<strong>de</strong> a gente tinha tomado café. Aí a mãe me abriu a boca na marra e tirou a<br />

bala, e foram discutindo se uma bala tem ou não tem perigo <strong>de</strong> explodir na boca <strong>de</strong> uma criança,<br />

e eu comecei a dizer que era muito bonito viajar no banco <strong>da</strong> frente porque assim a Alice não<br />

ia perceber como era muito melhor no banco <strong>de</strong> trás.<br />

Entramos em Apareci<strong>da</strong> e o pai rodou até a mãe escolher um restaurante <strong>de</strong> cara boa. Mas acabou<br />

não servindo porque os copos estavam manchados e um guar<strong>da</strong>napo tinha uma mancha amarela<br />

que a mãe logo <strong>de</strong>sconfiou.Voltamos para o carro e aproveitei pra passar pro banco <strong>de</strong> trás, a<br />

Alice sentou na frente e ficou procurando as vantagens que eu tinha falado. O pai <strong>de</strong>u a<br />

parti<strong>da</strong>, tocou o carro mas a mãe achou que o restaurante do lado, ali mesmo, servia bem<br />

pra nós, então o pai tornou a estacionar no mesmo lugar, <strong>de</strong>scemos e comemos uma comi<strong>da</strong><br />

M1U3T6<br />

6


intragável conforme o pai, muito limpinha e é isso que interessa conforme a mãe. Alice e eu<br />

aproveitamos pra <strong>de</strong>scobrir que num restaurante a gente podia ler o cardápio e pedir o que<br />

quisesse, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que fosse a mesma coisa que o pai e a mãe iam pedir <strong>de</strong>pois. Descobri que camarão<br />

<strong>de</strong>via ser comi<strong>da</strong> mais perigosa que maionese, e no entanto vinha do mar para on<strong>de</strong> a gente ia,<br />

e o mar me parecia uma coisa ca<strong>da</strong> vez mais ótima.<br />

Quando o pai pediu café, eu e a Alice pedimos pra ir numa praça que tinha em frente, Linalva<br />

ficou sem café pra ir cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> gente e, quando eu <strong>de</strong>scobri dois moleques com um jogo <strong>de</strong><br />

palitos que eu nunca tinha visto, o pai já entrou <strong>de</strong> novo no carro e começou a buzinar. Fomos<br />

entrando no carro e encostou um homem ven<strong>de</strong>ndo lembranças <strong>de</strong> Apareci<strong>da</strong>, tinha chaveiro <strong>de</strong><br />

montes, binóculos <strong>de</strong> fotografia, santinho, crucifixo, terço, tudo pendurado num cabo <strong>de</strong> vassoura<br />

e a Alice escolheu um espelhinho que era santinho do outro lado. O pai falou que aquilo era<br />

bobagem mas a mãe falou que não ia contrariar um gosto sagrado <strong>da</strong> menina, eu falei que já<br />

tinha visto um <strong>da</strong>queles espelhinhos mas com mulher pela<strong>da</strong> do outro lado. A mãe virou pro pai<br />

e perguntou o que ele preferia, uma filha iludi<strong>da</strong> com bobagem <strong>de</strong> religião ou um filho <strong>de</strong>pravado<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo. O pai falou que preferia um filho <strong>de</strong>pravado e ficou rindo, aí a mãe falou que eu<br />

também <strong>de</strong>via escolher uma lembrança <strong>de</strong> Apareci<strong>da</strong>, e fui apontando e o homem <strong>de</strong>samarrando<br />

do pau e dizendo o preço, até que escolhi o mais caro, uma estátua <strong>de</strong> Nossa Senhora em<br />

porcelana opaca conforme o homem, <strong>de</strong> gesso vagabundo conforme o pai. Aí o homem falou que<br />

o que valia era a <strong>de</strong>voção, o pai respon<strong>de</strong>u que então não valia na<strong>da</strong> mesmo. A Alice falou que a<br />

avó tinha falado que o pai ia morrer sofrendo porque não tinha religião. O pai perguntou que vó,<br />

mãe <strong>de</strong>le ou <strong>da</strong> mãe, e virou pra mãe dizendo que só podia sair <strong>da</strong> mãe <strong>de</strong>la uma besteira <strong>da</strong>quelas.<br />

E foi assim que voltamos pra estra<strong>da</strong> discutindo religião, até o pai falar que nunca mais <strong>de</strong>u peixe<br />

no rio on<strong>de</strong> pescaram a santa, aí a Linalva falou Deus me livre, credo em cruz, e o pai falou que<br />

a comi<strong>da</strong> tinha <strong>da</strong>do azia nele e a Linalva garantiu que era castigo <strong>de</strong> Deus. A mãe não <strong>de</strong>ixou o<br />

pai falar mais na<strong>da</strong> porque se falasse também tratasse <strong>de</strong> arranjar outra emprega<strong>da</strong>, e continuamos<br />

estra<strong>da</strong> afora.<br />

Alice teve enjôo e vomitou no colo <strong>da</strong> mãe, o pai teve que parar numa paisagem muito bonita<br />

<strong>de</strong> umas montanhas com um rio lá embaixo se entortando feito uma cobra.Tinha uma mina <strong>de</strong><br />

água que saía <strong>da</strong>s pedras e a mãe falou que ali, na natureza sem ninguém cui<strong>da</strong>r, nascia avenca e<br />

samambaia mais bonita que em estufa <strong>de</strong> rico. O pai falou que preferia ser rico e não ter avencas<br />

nem samambaias, mas um carro que nem um que passou e ia chegar muito antes <strong>da</strong> gente<br />

conforme o pai, ia acabar se matando numa curva conforme a mãe.<br />

Alice melhorou tão <strong>de</strong>pressa fora do carro, que quase <strong>de</strong>spenca na ribanceira uma hora que a<br />

mãe <strong>de</strong>scuidou, queria ver o que tinha lá embaixo. Aí o pai falou pra ela que lá embaixo tinha o<br />

mar, vamos lá ver o mar — e já foi entrando <strong>de</strong> novo no carro e continuamos estra<strong>da</strong> afora na<br />

direção do mar lá embaixo torto feito uma cobra.<br />

O pai saía duma curva e entrava em outra naquelas montanhas,Alice vomitou no colo <strong>da</strong> Linalva<br />

e a mãe falou — agora vai assim mesmo —, e fomos com o vestido gru<strong>da</strong>ndo na coxa <strong>da</strong><br />

Linalva e um cheirinho azedo que o vento não carregava. Quando as montanhas acabaram, veio<br />

<strong>de</strong> novo a estra<strong>da</strong> <strong>de</strong> sempre, tão igual que até a mãe perguntou se a gente não estava voltando.<br />

O pai riu e falou que, se a gente não parasse mais nem uma vez, tal hora essas crianças vão<br />

conhecer o mar. Aí eu perguntei se ele tinha algum compromisso no mar, porque ele sempre<br />

falava em tal hora, hora tal sem falta, quando tinha algum compromisso com alguém. Ele falou que<br />

M1U3T6<br />

7


eu não entendia essas coisas, que em viagem a gente tem que fazer o tempo ren<strong>de</strong>r, porque a<br />

menos <strong>de</strong> 80 por hora gasta muita gasolina, e eu empurrei o banco <strong>de</strong>le com o pé e fui <strong>de</strong>scobrindo<br />

<strong>de</strong> novo tudo que não podia fazer <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um carro. Mas já não tinha graça e acabei dormindo com<br />

o diabo no corpo, conforme a mãe, e com os ossos meio doendo conforme eu mesmo.<br />

Quando acor<strong>de</strong>i o pai tinha acabado <strong>de</strong> parar o carro e estava conversando com um homem na<br />

frente duma casa, numa rua <strong>de</strong> areia com muitas latas vazias. A mãe olhou pra mim e falou: esse<br />

moleque está com alguma coisa. Me botou a mão na testa, me avisou que ficasse quieto que<br />

estava queimando <strong>de</strong> febre, ficou ensinando a Linalva a fazer chá <strong>de</strong> alho contra resfriado.<br />

A Linalva perguntou se eu não ia ver médico, a mãe falou que era um resfriado à toa, culpou o<br />

pai porque apanhei chuva <strong>da</strong> janela, disse que era só eu guar<strong>da</strong>r em casa o dia seguinte e pronto.<br />

Perguntei se a gente não ia no mar, o pai veio vindo e enfiou a cabeça na janela, disse todo<br />

alegrão que o aluguel <strong>da</strong> casa era um absurdo mas a mãe achou que pelo menos tinha tela na<br />

janela contra pernilongos. De modo que a Linalva começou a <strong>de</strong>scarregar as malas com o pai,<br />

a mãe foi botar roupa numa cama pra eu dormir e ninguém me dizia on<strong>de</strong> estava o mar. A mãe<br />

me enfiou um comprimido na boca, o pai disse que a mãe ain<strong>da</strong> ia viciar esse moleque com<br />

esses calmantes, dormi e acor<strong>de</strong>i no outro dia com cheiro <strong>de</strong> café.<br />

A Linalva estava na cozinha fazendo café igual em casa, até o bule era o mesmo e a garrafa<br />

térmica. Eu e a Alice passamos o dia no jardim e na rua, com a mãe ou a Linalva olhando <strong>da</strong> janela<br />

todo minuto. O pai montava e <strong>de</strong>smontava cama, arrumava <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> priva<strong>da</strong>, consertava tela<br />

<strong>de</strong> janela, a mãe arrumava as roupas no guar<strong>da</strong>-roupa, a Linalva emprestou uma vassoura <strong>da</strong> casa<br />

vizinha e um rodinho com pano <strong>de</strong> chão, e o pai <strong>de</strong>sentupia pia, a mãe fez lista <strong>de</strong> compras e ele<br />

saiu pra comprar, mas foi sozinho porque disse que senão nem comprava as coisas nem cui<strong>da</strong>va<br />

<strong>de</strong> mim no supermercado, e a Linalva passou pano <strong>de</strong>ntro dos armários e guar<strong>da</strong>-roupas, amontoou<br />

as baratas mortas num canto, e a mãe <strong>de</strong>sinfetava tudo e reclamava como é que pu<strong>de</strong>ram <strong>de</strong>ixar<br />

uma casa naquele estado, e só sei que no fim do dia a mãe falou que tinha trabalhado mais que<br />

numa mu<strong>da</strong>nça, e o pai falou que nem sabia porque tinha inventado aqueles dias na praia.<br />

Alice e eu conhecemos todos os formigueiros <strong>da</strong> redon<strong>de</strong>za e per<strong>de</strong>mos muito tempo esperando<br />

sair <strong>da</strong> toca um bichinho, siri conforme a mãe, caranguejo conforme a Linalva e pituí conforme o<br />

pai. O bicho botava duas anteninhas pra fora do buraco, pareciam olhos saindo fora do corpo, via<br />

se eu e a Alice estávamos bem escondidos e então saía. A gente ia chegando perto, ele parava na<br />

areia, mexia as anteninhas e voltava pro buraco, sem pedra que conseguisse acertar o <strong>de</strong>sgraçado<br />

no caminho.<br />

Não vimos crianças, só umas <strong>de</strong> outra casa, que chegaram pro almoço e saíram <strong>de</strong>pois, todo<br />

mundo <strong>de</strong> maiô, os homens com as costas vermelhas e as mulheres com o corpo inteiro<br />

melecado <strong>de</strong> creme, as crianças com bóias e pés-<strong>de</strong>-pato e máscaras.<br />

No outro dia o pai pegou a gente logo cedo, viramos a esquina e lá na frente, no fim <strong>da</strong> rua,<br />

apareceu uma coisa azul. Fomos an<strong>da</strong>ndo e a coisa foi mexendo e às vezes embranquecia, o pai<br />

falou olha as on<strong>da</strong>s. Quando a rua acabou e aquilo já era a maior água que eu já tinha visto, entramos<br />

numa areia on<strong>de</strong> era preciso cui<strong>da</strong>do pra não pisar nos anteninhas, todos an<strong>da</strong>ndo fora dos<br />

buracos, tão gran<strong>de</strong>s que a Alice achou que eles podiam perfeitamente ficar <strong>de</strong>ntro dos buracos<br />

em vez <strong>de</strong> ficar saindo.<br />

M1U3T6<br />

8


E <strong>de</strong> repente erguemos a cabeça na frente do mar, Alice <strong>de</strong>sandou num choro que só parou no<br />

colo do pai. O coração batia junto com as on<strong>da</strong>s, não sei quanto tempo ficamos ali, o mundo<br />

estron<strong>da</strong>ndo, até que Alice foi acalmando e continuamos ali, o coração batendo junto com as<br />

on<strong>da</strong>s e um vento que parecia subir <strong>da</strong> água, molhado e cheiroso.<br />

A mãe chegou e esten<strong>de</strong>u uma toalha na areia, começou a tirar coisas <strong>da</strong> sacola e encheu a<br />

toalha. A Linalva ficou esquisita <strong>de</strong> vestido e calça compri<strong>da</strong> por baixo, foi molhar os pés e eu fui<br />

junto, mas a mãe foi me buscar pra passar creme, o pai começou a me avisar dos perigos do mar,<br />

a mãe concor<strong>da</strong>ndo e dizendo escuta teu pai, escuta bem o que o teu pai está dizendo.<br />

Quatro dias <strong>de</strong>pois eu tinha conhecido o mar.Tinha horário <strong>de</strong> entrar e <strong>de</strong> sair <strong>da</strong> água, horário<br />

<strong>de</strong> sol e horário <strong>de</strong> sombra, hora <strong>de</strong> passar creme e hora <strong>de</strong> tomar água, a fundura on<strong>de</strong> eu<br />

podia ir com a Linalva e a fundura até on<strong>de</strong> podia ir com o pai. A Alice <strong>de</strong>scobriu um arroio<br />

cheio <strong>de</strong> conchinhas, mas a mãe <strong>de</strong>sconfiou <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>de</strong>via vir aquela água e a Alice teve que acabar<br />

se conformando com as conchas quebra<strong>da</strong>s <strong>da</strong> praia. Em casa não podia ficar tela aberta, <strong>de</strong> janela<br />

ou <strong>de</strong> porta, e à noite as casas afun<strong>da</strong>vam na escuridão, a rua não tinha lâmpa<strong>da</strong>s e a criança<strong>da</strong><br />

não podia brincar fora <strong>de</strong> casa.<br />

Um velho me mostrou como se pesca com linha, garrafa e anzol, mas levei um dia sem pegar<br />

na<strong>da</strong>, só um beliscão forte no fim <strong>da</strong> tar<strong>de</strong>. O velho falou que no dia seguinte eu <strong>de</strong>certo ia tirar<br />

peixe, mas <strong>de</strong> noite o pai falou:<br />

— Uma semana <strong>de</strong> praia enjoa qualquer um.<br />

A mãe <strong>de</strong>u a idéia <strong>de</strong> visitar uns parentes numa ci<strong>da</strong><strong>de</strong> perto, assim a viagem <strong>de</strong> volta não vai<br />

cansar tanto essas crianças, a gente sai cedo pra pegar o almoço e… O pai se entusiasmou e <strong>de</strong>u<br />

a idéia <strong>de</strong> passarmos também não sei on<strong>de</strong>, e começaram os dois a riscar a mesa com uma faca:<br />

a gente pára aqui, dorme aqui, almoça aqui, dorme mais um dia aqui e visita fulano, <strong>de</strong>pois pára<br />

uns três dias na casa <strong>da</strong> tia fulana; e um ficava tirando a faca do outro pra riscar a mesa enquanto<br />

falavam, até que <strong>de</strong>ixaram na ma<strong>de</strong>ira um mapa, parecia uma espinha <strong>de</strong> peixe. A mãe levantou e<br />

começou a <strong>da</strong>r or<strong>de</strong>ns. Linalva pega aquilo, arruma isso, cadê a mala menor, e o pai saiu pra<br />

trocar o óleo do carro.<br />

Na varan<strong>da</strong> a gente ouvia, no vento, os anteninhas roendo as costelas do mar, on<strong>da</strong>s estron<strong>da</strong>ndo<br />

no lombo <strong>de</strong> mar, espuma em cima e todos os peixes e mistérios lá embaixo. O vento continuava<br />

com um cheiro molhado e quente, tão forte que parecia que o mar rebentava logo <strong>de</strong>pois <strong>da</strong><br />

varan<strong>da</strong>, e meu peito foi inchando cheio <strong>de</strong> sal, siris e conchas, bóias <strong>de</strong> cortiça, areia, até que<br />

<strong>de</strong>satei a chorar e o peito tornou a ficar pequeno <strong>de</strong>pois.<br />

No dia seguinte, às cinco horas <strong>da</strong> manhã, alguém começou a me sacudir. A mãe an<strong>da</strong>va pela casa<br />

perguntando se ninguém estava esquecendo alguma coisa, e o pai já estava lá fora, esquentando<br />

o motor.<br />

E a estação <strong>de</strong> mar acabou sendo a única que, nas mãos, não me <strong>de</strong>ixou marca nenhuma.<br />

M1U3T6<br />

9


Darcy Ribeiro *<br />

Darcy Ribeiro foi um brilhante antropólogo e escritor brasileiro e um gran<strong>de</strong> educador.<br />

Destacou-se pelo seu compromisso com a <strong>de</strong>fesa dos povos indígenas diante <strong>da</strong> expansão <strong>da</strong><br />

civilização mo<strong>de</strong>rna.<br />

Vi<strong>da</strong> e época<br />

Darcy Ribeiro nasceu na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> mineira <strong>de</strong> Montes Claros, em 1922, e viveu e trabalhou no Rio,<br />

em Brasília,Venezuela, Chile e Peru. Formou-se em Sociologia e Ciências Políticas em 1946, e<br />

começou a trabalhar no Serviço <strong>de</strong> Proteção ao Índio. Durante quase <strong>de</strong>z anos conviveu com<br />

as tribos indígenas <strong>da</strong> Amazônia, experiência que marcou a temática e o compromisso <strong>da</strong> sua<br />

obra posterior.<br />

Em 1959, foi um dos escolhidos por Juscelino Kubitschek para organizar a futura Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Brasília, <strong>da</strong> qual seria reitor em 1961.<br />

O presi<strong>de</strong>nte João Goulart o nomeou, em 1962, ministro <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> e Cultura; um ano <strong>de</strong>pois,<br />

passou a dirigir o Gabinete Civil <strong>da</strong> Presidência <strong>da</strong> República. Obrigado a se exilar após o golpe<br />

militar, em 1964, refugiou-se primeiro na Venezuela e, mais tar<strong>de</strong>, no Chile e no Peru. Em 1978<br />

regressou ao Brasil para participar ativamente <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> política do país, e foi senador pelo Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro em 1990. Morreu em Brasília em 1997.<br />

Obra<br />

Antropólogo e escritor.<br />

Época: século XX (1922-1997)<br />

Lugar on<strong>de</strong> viveu e trabalhou: Montes Claros, Rio, Brasília,Venezuela, Chile,<br />

Peru.<br />

M1U3T7<br />

A obra <strong>de</strong> Darcy Ribeiro abrange várias áreas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a educação até a literatura. Escreveu vários<br />

romances, como Maíra (1977) e Migo (1978), por exemplo. Entretanto, foram os seus estudos<br />

sobre os povos indígenas brasileiros que alcançaram maior repercussão nacional e internacional.<br />

Em obras como Línguas e culturas indígenas no Brasil (1957) retrata o modo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> nas<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s indígenas <strong>da</strong> Amazônia e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> protegê-las. O mesmo i<strong>de</strong>al se<br />

encontra na valiosa série <strong>de</strong> trabalhos reunidos sob o título geral <strong>de</strong> Estudos <strong>de</strong> Antropologia<br />

<strong>da</strong> Civilização. Neles, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar o genocídio contra os indígenas, investiga as origens <strong>da</strong>s<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s brasileira e latino-americana.<br />

Os trabalhos <strong>de</strong> Darcy Ribeiro são um símbolo <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa dos direitos dos povos indígenas na<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna.<br />

* Extraído <strong>de</strong>: Apren<strong>de</strong>ndo personagens. Conteúdos essenciais para o ensino fun<strong>da</strong>mental, <strong>de</strong> César Coll e Ana Teberosky. São Paulo, Ática, 2000.<br />

M1U3T7<br />

1


* Extraído <strong>de</strong>: Obra poética, Nova Aguilar, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1986<br />

Eros e Psique *<br />

Fernando Pessoa<br />

Conta a len<strong>da</strong> que dormia<br />

Uma Princesa encanta<strong>da</strong><br />

A quem só <strong>de</strong>spertaria<br />

Um Infante, que viria<br />

De além do muro <strong>da</strong> estra<strong>da</strong>.<br />

Ele tinha que, tentado,<br />

Vencer o mal e o bem,<br />

Antes que, já libertado,<br />

Deixasse o caminho errado<br />

Por o que à Princesa vem.<br />

A Princesa Adormeci<strong>da</strong>,<br />

Se espera, dormindo espera<br />

.<br />

Sonha em morte a sua vi<strong>da</strong>,<br />

E orna-lhe a fronte esqueci<strong>da</strong>,<br />

Ver<strong>de</strong>, uma grinal<strong>da</strong> <strong>de</strong> hera.<br />

Longe o Infante, esforçado,<br />

Sem saber que intuito tem,<br />

Rompe o caminho fa<strong>da</strong>do.<br />

Ele <strong>de</strong>la é ignorado.<br />

Ela para ele é ninguém.<br />

Mas ca<strong>da</strong> um cumpre o Destino<br />

Ela dormindo encanta<strong>da</strong>,<br />

Ele buscando-a sem tino<br />

Pelo processo divino<br />

Que faz existir a estra<strong>da</strong>.<br />

E, se bem que seja obscuro<br />

Tudo pela estra<strong>da</strong> fora,<br />

E falso, ele vem seguro,<br />

E, vencendo estra<strong>da</strong> e muro<br />

,<br />

Chega on<strong>de</strong> em sono ela mora.<br />

E, in<strong>da</strong> tonto do que houvera,<br />

À cabeça, em maresia,<br />

Ergue a mão, e encontra hera,<br />

E vê que ele mesmo era<br />

A princesa que dormia.<br />

M1U3T8<br />

M1U3T8<br />

1


Amostras <strong>de</strong> escrita para análise<br />

Natália<br />

briga<strong>de</strong>iro<br />

refrigerante<br />

bolo<br />

beijinho<br />

coxinha<br />

Natália<br />

Dr. Edmo<br />

Antonio (adulto)<br />

briga<strong>de</strong>iro<br />

pipoca<br />

suco<br />

bis<br />

Odirley<br />

ma rim bondo<br />

for mi ga<br />

ur so<br />

rã<br />

Alini<br />

M1U3T9<br />

não vou trabalhar amanhã porque o grêmio tem que reunir<br />

Odirlei<br />

eu gosto <strong>de</strong> bis<br />

M1U3T9<br />

1


M1U3T9<br />

2<br />

ri car do<br />

Daiana<br />

“in” ga ne i “u” bo bo na cas ca do/o vo<br />

jo a ni nha<br />

ca cho rro<br />

ga to<br />

Ricardo<br />

quem ca i u ca i u pri me i ro “di” a bri “u”<br />

Fábia<br />

lapiseira<br />

ca<strong>de</strong>rno<br />

livro<br />

giz<br />

Ricardo Patrick Lopes Oliveira<br />

carrinho novo<br />

bicicleta<br />

motoca<br />

Ricardo Patrick<br />

Ricardo


Fabio<br />

briga<strong>de</strong>iro<br />

pipoca<br />

suco<br />

bis<br />

eu gosto<br />

<strong>de</strong> pipoca<br />

Fábio<br />

Rodrigo<br />

bri ga <strong>de</strong>i ro<br />

pi po ca<br />

su co<br />

bis<br />

Talita<br />

M1U3T9<br />

3


M1U3T10<br />

Contribuições à prática pe<strong>da</strong>gógica -1<br />

Este texto não integra a Cloetânea <strong>de</strong> <strong>Textos</strong> disponível na Internet porque refere-se<br />

conteúdo dos ví<strong>de</strong>os que integram as uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s do Programa <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores<br />

Alfabetizadores e, portanto, só fazem sentido para os participantes do Curso.<br />

M1U3T10<br />

1


Consi<strong>de</strong>rações sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do<br />

Programa Escrever para Apren<strong>de</strong>r *<br />

As propostas <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> abaixo são acompanha<strong>da</strong>s <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> "ficha técnica", na qual<br />

estão relacionados objetivos e características <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, indicações metodológicas e outras<br />

informações úteis — entre elas, algumas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> modificação <strong>da</strong> proposta para torná-la<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> aos alunos já alfabetizados.<br />

Uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> se transforma em outra se, por exemplo, <strong>de</strong> individual passa a ser em dupla, ou<br />

realiza<strong>da</strong> com to<strong>da</strong> a classe — e vice-versa. O mesmo ocorre se for feita com aju<strong>da</strong> ou sem aju<strong>da</strong>,<br />

com ou sem consulta, com ou sem rascunho, <strong>de</strong> uma só vez ou em duas ou mais vezes, no<br />

ca<strong>de</strong>rno ou em papel especial para ser exposto num mural, com letras móveis, com cartões,<br />

na lousa, no computador ou escrito a lápis...<br />

Escrita <strong>de</strong> uma canção conheci<strong>da</strong><br />

Tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>: escrita<br />

Duração aproxima<strong>da</strong>: 20 minutos<br />

Objetivo<br />

Que os alunos possam avançar na reflexão sobre o sistema <strong>de</strong> escrita.<br />

Desafios colocados para os alunos<br />

• Escolher quantas e quais letras serão utiliza<strong>da</strong>s.<br />

• Refletir sobre escolhas diferentes para a mesma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> (quando a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> for em dupla<br />

e os dois colegas fazem opções diferentes sobre quantas e quais letras utilizar).<br />

• Interpretar a própria escrita (ler o que escreveu), justificando para si mesmo e para os outros<br />

as escolhas feitas ao escrever.<br />

Procedimentos didáticos específicos <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

O professor precisa:<br />

M1U3T11<br />

1. Garantir que os alunos saibam o texto <strong>de</strong> memória (isso não significa conhecer a escrita do<br />

texto <strong>de</strong> memória — apenas <strong>de</strong>vem saber cantá-lo).<br />

2. Organizar agrupamentos heterogêneos produtivos, em função do que os alunos sabem sobre<br />

a escrita e sobre os conteúdos <strong>da</strong> tarefa que <strong>de</strong>vem realizar (a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser feita<br />

perfeitamente em duplas).<br />

* As ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s sugeri<strong>da</strong>s neste material fazem sentido no contexto <strong>de</strong> uma abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> alfabetização como a proposta neste Curso -<br />

<strong>de</strong>scontextualiza<strong>da</strong>s elas po<strong>de</strong>m ser pouco úteis ou mesmo <strong>de</strong> difícil operacionalização.<br />

M1U3T11<br />

1


3. Esclarecer as diferentes funções do trabalho em dupla: um escreve e o outro dita, ca<strong>da</strong> um<br />

contribuindo com o outro.<br />

4. Certificar-se <strong>de</strong> que os alunos não consultam o texto (no caso <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rem ter acesso ao texto<br />

escrito, no Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> <strong>Textos</strong> ou em um cartaz); isto transformaria a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> em uma situação<br />

<strong>de</strong> cópia, que não é a proposta.<br />

5.Ajustar o nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio às possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos alunos, para que realmente tenham problemas<br />

a resolver.<br />

6. Garantir a máxima circulação <strong>de</strong> informações, promovendo a socialização <strong>da</strong>s produções escritas.<br />

Procedimentos dos alunos<br />

Os alunos precisam:<br />

1. Saber o texto <strong>de</strong> cor.<br />

2. Escrever o texto em dupla, consi<strong>de</strong>rando as diferentes funções dos integrantes — um escreve<br />

e o outro dita.<br />

3. Discutir as diferentes formas <strong>de</strong> resolver a tarefa.<br />

4. Socializar os resultados do trabalho.<br />

A<strong>de</strong>quação <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rando o conhecimento dos alunos<br />

Alunos com escrita não-alfabética:<br />

• Os alunos com escrita silábica, por exemplo, que já fazem uso do conhecimento sobre o valor<br />

sonoro <strong>da</strong>s letras, po<strong>de</strong>m fazer parceria com alunos com escrita silábica que fazem pouco ou<br />

nenhum uso do valor sonoro, com alunos <strong>de</strong> escrita silábico-alfabética ou <strong>de</strong> escrita pré-silábica.<br />

Nessas parcerias po<strong>de</strong>mos propor que:<br />

• Os alunos com escrita silábica, que fazem pouco ou nenhum uso do valor sonoro, escrevam,<br />

enquanto os alunos com escrita silábica, que já fazem uso do valor sonoro <strong>da</strong>s letras, ditam.<br />

• Os alunos com escrita pré-silábica ditem e os outros parceiros escrevam.<br />

• Os alunos com escrita silábica, que já fazem uso do valor sonoro <strong>da</strong>s letras, escrevam, enquanto<br />

os alunos com escrita silábico-alfabética ditam.<br />

M1U3T11<br />

2


Saiba que<br />

• É fun<strong>da</strong>mental que os alunos com escrita pré-silábica não sejam agrupados entre si para<br />

realizar esse tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>: para eles, é importante a interação com alunos que já escrevem<br />

correspon<strong>de</strong>ndo partes do escrito a partes do falado.<br />

• Como a escola também é responsável pelos bens culturais <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong>, é necessário<br />

ampliar o repertório musical dos alunos (sejam crianças ou adultos) com produções <strong>de</strong><br />

compositores e cantores que são consi<strong>de</strong>rados expoentes <strong>da</strong> Música Popular Brasileira<br />

(Tom Jobim, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, João Gilberto, Dorival Caymmi,<br />

Ari Barroso, Pixinguinha,Arnaldo Antunes, Gal Costa, Elis Regina).<br />

Alunos com escrita alfabética:<br />

• Alunos com escrita alfabética po<strong>de</strong>m ser organizados em duplas para realizar a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

mesma forma, tendo que pensar nas questões ortográficas. Outra possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> é escrever o<br />

texto usando letras móveis - o professor <strong>de</strong>ve selecionar e entregar somente as letras que<br />

compõem a escrita <strong>da</strong> canção, tendo os alunos que se concentrar na escrita precisa <strong>da</strong>s palavras.<br />

Intervenção do professor<br />

O professor <strong>de</strong>ve verificar se todos compreen<strong>de</strong>ram o que foi proposto, organizar as duplas e<br />

indicar a função <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> integrante. Essa organização <strong>de</strong>ve partir do que o professor conhece<br />

sobre o que seus alunos sabem e os <strong>de</strong>safios que <strong>de</strong>ve propor a ca<strong>da</strong> um.<br />

É importante que o professor caminhe pela sala, observando como os alunos estão realizando a<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, verificando quais são as questões que estão se colocando. É importante problematizar<br />

suas respostas enquanto realizam a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, para que pensem ain<strong>da</strong> mais nas questões referentes<br />

à escrita.<br />

Quando os alunos com escrita não-alfabética tiverem dúvi<strong>da</strong>s em relação à escrita, vale a pena<br />

remetê-los, se possível, a palavras cuja forma lhes é conheci<strong>da</strong> — como por exemplo a lista dos<br />

nomes dos colegas. E quando os alunos com escrita alfabética tiverem dúvi<strong>da</strong>s em relação à<br />

ortografia, po<strong>de</strong>-se indicar o uso do dicionário, a consulta a uma lista <strong>de</strong> palavras que não<br />

po<strong>de</strong>m mais errar, organiza<strong>da</strong> por eles mesmos, ou a observação <strong>de</strong> como estão escritas em um<br />

<strong>de</strong>terminado texto.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, não é possível acompanhar todos os grupos <strong>de</strong> alunos numa mesma aula. Por isso,<br />

é importante que o professor organize um instrumento <strong>de</strong> registro em que anote quais alunos<br />

pô<strong>de</strong> acompanhar <strong>de</strong> perto no dia, mantendo um controle que lhe permita progressivamente<br />

intervir junto a todos.<br />

M1U3T11<br />

3


Escrita <strong>de</strong> listas<br />

No Programa 5 foram apresenta<strong>da</strong>s as seguintes ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s com listas:<br />

• Ditado <strong>de</strong> lista <strong>da</strong>s brinca<strong>de</strong>iras preferi<strong>da</strong>s.<br />

• Escrita <strong>de</strong> lista <strong>de</strong> componentes <strong>da</strong> cesta básica.<br />

• Ditado <strong>de</strong> lista <strong>de</strong> contos <strong>de</strong> assombração.<br />

Tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>: escrita<br />

Duração aproxima<strong>da</strong>: 20 minutos<br />

Objetivo<br />

• Que os alunos possam avançar na reflexão sobre o sistema <strong>de</strong> escrita.<br />

Desafios colocados para os alunos<br />

• Escolher quantas e quais letras serão utiliza<strong>da</strong>s.<br />

• Refletir sobre escolhas diferentes para a mesma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> (quando a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> for em dupla<br />

e um colega fizer opções diferentes do outro sobre quantas e quais letras utilizar).<br />

• Interpretar a própria escrita (ler o que escreveu), justificando para si mesmo e para os outros<br />

as escolhas feitas ao escrever.<br />

Procedimentos didáticos específicos <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

O professor precisa:<br />

1. Resgatar oralmente com os alunos a lista do que será ditado (brinca<strong>de</strong>iras preferi<strong>da</strong>s,<br />

componentes <strong>da</strong> cesta básica, contos <strong>de</strong> assombração, ou outras listas...).<br />

2. Garantir que todos tenham compreensão do que está sendo proposto.<br />

3. Organizar agrupamentos a<strong>de</strong>quados, em função do que os alunos sabem sobre a escrita e dos<br />

conteúdos <strong>da</strong> tarefa que <strong>de</strong>vem realizar.<br />

4. Ajustar o nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio às possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> agrupamento <strong>de</strong> alunos, para que realmente<br />

tenham problemas a resolver.<br />

• Garantir a máxima circulação <strong>de</strong> informação, promovendo a socialização <strong>da</strong>s escritas e <strong>da</strong>s<br />

estratégias utiliza<strong>da</strong>s.<br />

M1U3T11<br />

4


Procedimentos dos alunos<br />

Os alunos precisam:<br />

1. Resgatar oralmente, junto com a professora, as listas que serão dita<strong>da</strong>s (<strong>da</strong>s brinca<strong>de</strong>iras, <strong>da</strong><br />

cesta básica e dos contos <strong>de</strong> assombração, nesse caso).<br />

2. Escrever as listas dita<strong>da</strong>s, tendo que pensar em quantas e quais letras utilizar para escrever.<br />

3. Compartilhar suas escritas com os colegas e com a professora.<br />

A<strong>de</strong>quação <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rando o conhecimento dos alunos<br />

Tanto os alunos alfabetizados como os não-alfabetizados po<strong>de</strong>m realizar a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Para os que<br />

escrevem alfabeticamente, colocam-se prioritariamente questões relaciona<strong>da</strong>s à ortografia <strong>da</strong>s<br />

palavras, e para os que ain<strong>da</strong> não escrevem alfabeticamente, a situação <strong>de</strong> escrita exige pensar<br />

sobre como escrever, o que já coloca bons problemas para pensar, especialmente se estiverem<br />

agrupados criteriosamente.<br />

Saiba que<br />

• É fun<strong>da</strong>mental que os alunos com escrita pré-silábica não sejam agrupados entre si para realizar<br />

esse tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>: para eles, é importante a interação com alunos que já sabem produzir a<br />

escrita fonetiza<strong>da</strong>.<br />

• No caso <strong>da</strong> alfabetização <strong>de</strong> jovens e adultos, o tipo <strong>de</strong> lista <strong>de</strong>ve ser a<strong>de</strong>quado às características<br />

do grupo.<br />

Intervenção do professor<br />

O professor <strong>de</strong>ve caminhar pela sala, observando qual o procedimento que os alunos estão<br />

utilizando para realizar a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>. É importante colocar questões problematizadoras em função<br />

do que sabe que seus alunos pensam sobre a escrita.<br />

Quando os alunos tiverem dúvi<strong>da</strong>s, nesse tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, vale a pena remetê-los, se possível, a<br />

palavras cuja forma já conhecem, como por exemplo, a lista dos nomes <strong>da</strong> classe.<br />

É importante que no final <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> eles possam socializar suas produções.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, não é possível acompanhar todos os grupos <strong>de</strong> alunos numa mesma aula.<br />

Por isso, é importante que o professor organize um instrumento <strong>de</strong> registro em que anote<br />

quais alunos pô<strong>de</strong> acompanhar <strong>de</strong> perto no dia, mantendo um controle que lhe permita<br />

progressivamente intervir junto a todos.<br />

M1U3T11<br />

5


Escrita <strong>de</strong> texto informativo <strong>de</strong> divulgação científica para<br />

alunos <strong>de</strong> outras séries<br />

Tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>: Escrita<br />

Duração aproxima<strong>da</strong>: 30 minutos (elaboração <strong>da</strong> primeira versão do texto)<br />

Objetivos<br />

Que os alunos <strong>de</strong>senvolvam as capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>:<br />

1. Utilizar procedimentos <strong>de</strong> escrita <strong>de</strong> textos informativos.<br />

2. Escrever e revisar os textos produzidos.<br />

3. Compartilhar os conhecimentos sobre o tema estu<strong>da</strong>do.<br />

4. Organizar os conteúdos estu<strong>da</strong>dos, consi<strong>de</strong>rando a estrutura textual <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>.<br />

Procedimentos didáticos específicos <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

O professor precisa:<br />

1. Encaminhar a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, garantindo que todos tenham compreensão do que está sendo<br />

proposto.<br />

2. Garantir que os alunos tenham tido acesso a bons mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> texto informativo <strong>de</strong> divulgação<br />

científica, em várias outras situações <strong>de</strong> aprendizagem.<br />

3. Garantir que os alunos conheçam o conteúdo sobre o qual vão escrever.<br />

4. Organizar agrupamentos heterogêneos produtivos, em função do que os alunos sabem sobre a<br />

escrita e dos conteúdos <strong>da</strong> tarefa que <strong>de</strong>vem realizar (a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser feita perfeitamente<br />

em duplas).<br />

5. Esclarecer as diferentes funções no trabalho em dupla: um escreve e o outro dita, tendo que<br />

contribuir mutuamente.<br />

6. Propor, quando for o caso, que os alunos organizem um roteiro sobre o que sabem para a<br />

elaboração do texto.<br />

7. Ajustar o nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio às possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos alunos, para que realmente tenham problemas<br />

a resolver.<br />

8. Garantir que eles compreen<strong>da</strong>m que um texto não está pronto quando acabado pela primeira<br />

vez e que para se chegar a uma boa produção textual é importante: elaborar um roteiro, e<br />

utilizá-lo, para produzir a primeira versão; produzir outras versões em situações <strong>de</strong> revisão<br />

textual; e <strong>de</strong>pois escrever a versão final.<br />

9. Garantir a máxima circulação <strong>de</strong> informações, promovendo a socialização <strong>da</strong>s produções e <strong>da</strong>s<br />

estratégias utiliza<strong>da</strong>s.<br />

M1U3T11<br />

6


Procedimentos dos alunos<br />

Os alunos precisam:<br />

1. Definir (com a aju<strong>da</strong> do professor, se necessário) as funções no trabalho em dupla: quem<br />

escreve e quem dita.<br />

2. Resgatar o que sabem sobre o assunto e organizar um roteiro sobre o que querem escrever.<br />

3. Escrever o texto em dupla, consi<strong>de</strong>rando as diferentes funções <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>s para ca<strong>da</strong> um dos<br />

integrantes.<br />

4. Discutir a a<strong>de</strong>quação <strong>da</strong> linguagem e do tratamento dos conteúdos, consi<strong>de</strong>rando o tipo <strong>de</strong> texto.<br />

5. Socializar os resultados do trabalho com o grupo classe e com os alunos <strong>da</strong>s séries iniciais.<br />

A<strong>de</strong>quação <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rando o conhecimento dos alunos<br />

Alunos com escrita não-alfabética:<br />

• Os alunos com escrita silábica, que já fazem uso do valor sonoro <strong>da</strong>s letras, po<strong>de</strong>m fazer<br />

parceria com alunos com escrita silábica que fazem pouco ou nenhum uso do valor sonoro,<br />

com alunos <strong>de</strong> escrita silábico-alfabética ou <strong>de</strong> escrita pré-silábica.<br />

Nessas parcerias po<strong>de</strong>mos propor que:<br />

1. Os alunos com escrita silábica, que já fazem uso do valor sonoro <strong>da</strong>s letras, escrevam enquanto<br />

os alunos com escrita silábica, que fazem pouco ou nenhum uso do valor sonoro, ditam.<br />

2. Os alunos com escrita pré-silábica ditem e o outros parceiros escrevam.<br />

3. Os alunos com escrita silábico-alfabética escrevam e os alunos com escrita silábica, que já<br />

fazem uso do valor sonoro <strong>da</strong>s letras, ditem.<br />

Saiba que<br />

• É fun<strong>da</strong>mental que os alunos com escrita pré-silábica não sejam agrupados entre si para realizar<br />

esse tipo ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>: para eles, é importante a interação com alunos que já sabem que a escrita<br />

representa a fala, e como isso ocorre.<br />

• Esse tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> também é a<strong>de</strong>quado para a alfabetização <strong>de</strong> jovens e adultos.<br />

M1U3T11<br />

7


Alunos com escrita alfabética:<br />

Alunos com escrita alfabética po<strong>de</strong>m ser organizados em duplas e realizar a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> mesma<br />

forma; tal como os outros, precisarão pensar na seleção dos conteúdos científicos estu<strong>da</strong>dos e<br />

na escrita do texto consi<strong>de</strong>rando a estrutura textual, além <strong>de</strong> terem também as questões<br />

ortográficas para resolver.<br />

Intervenção do professor<br />

O professor <strong>de</strong>ve verificar se todos compreen<strong>de</strong>ram o que foi proposto, organizar as duplas e<br />

indicar a função <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> integrante. Essa organização <strong>de</strong>ve partir do que o professor conhece<br />

sobre o que seus alunos sabem e dos <strong>de</strong>safios que necessita propor para ca<strong>da</strong> um.<br />

O professor <strong>de</strong>ve caminhar pela sala, observando se os alunos estão cumprindo suas funções na<br />

dupla e se estão contribuindo entre si. É importante que enquanto os alunos escrevem o professor<br />

verifique suas produções, propondo que leiam os textos para po<strong>de</strong>r levantar questões em<br />

relação à a<strong>de</strong>quação <strong>da</strong> estrutura textual, dos conteúdos científicos e <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong>s palavras.<br />

Quando os alunos com escrita não-alfabética tiverem dúvi<strong>da</strong>s em relação à escrita, vale a pena<br />

remetê-los, se possível, a palavras cuja forma conhecem, como por exemplo a lista dos nomes <strong>da</strong><br />

classe. E quando os alunos com escrita alfabética tiverem dúvi<strong>da</strong>s em relação à ortografia, po<strong>de</strong>-se<br />

indicar o uso do dicionário, a consulta a uma lista <strong>de</strong> palavras que não po<strong>de</strong>m mais errar, organiza<strong>da</strong><br />

por eles mesmos, ou a verificação <strong>de</strong> como estão escritas em um texto científico estu<strong>da</strong>do.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, não é possível acompanhar todos os grupos <strong>de</strong> alunos numa mesma aula, por isso<br />

é importante que o professor organize um instrumento <strong>de</strong> registro em que anote quais alunos<br />

pô<strong>de</strong> acompanhar <strong>de</strong> perto no dia, mantendo um controle que lhe permita progressivamente<br />

intervir junto a todos.<br />

M1U3T11<br />

8


Leitura orienta<strong>da</strong> do texto:<br />

M1U3T12<br />

“Como se apren<strong>de</strong> a ler e escrever ou,<br />

prontidão, um problema mal colocado”<br />

1. Localizar no texto e grifar: o trecho que mostra a hipótese em que, para a criança, a escrita<br />

ain<strong>da</strong> não é uma representação do falado.<br />

2. Observar a escrita <strong>de</strong> Ednil<strong>da</strong> em relação à <strong>de</strong> Reginaldo: o que <strong>de</strong>termina o avanço <strong>da</strong><br />

escrita <strong>de</strong> Ednil<strong>da</strong>?<br />

3. Observar o que as primeiras escritas <strong>de</strong> Cleonil<strong>da</strong>, Lourivaldo e Daniel têm <strong>de</strong> comum e<br />

diferente ao mesmo tempo.<br />

4. Procurar enten<strong>de</strong>r por que a hipótese silábica representa um salto qualitativo para quem está<br />

apren<strong>de</strong>ndo a escrever.<br />

5. Fazer uma síntese, organizando as informações mais importantes do texto que possam<br />

favorecer o trabalho do professor e a aprendizagem do aluno no processo <strong>de</strong> alfabetização.<br />

M1U3T12<br />

1


Morte e vi<strong>da</strong> Severina *<br />

— Muito bom dia, senhora,<br />

que nessa janela está;<br />

sabe dizer se é possível<br />

algum trabalho encontrar?<br />

— Trabalho aqui nunca falta<br />

a quem sabe trabalhar;<br />

o que fazia o compadre<br />

na sua terra <strong>de</strong> lá?<br />

— Pois sempre fui lavrador,<br />

lavrador <strong>de</strong> terra má;<br />

não há espécie <strong>de</strong> terra<br />

que eu não possa cultivar.<br />

— Isso aqui <strong>de</strong> na<strong>da</strong> adianta,<br />

pouco existe o que lavrar;<br />

mas diga-me, retirante,<br />

que mais fazia por lá?<br />

— Também lá na minha terra<br />

<strong>de</strong> terra mesmo pouco há;<br />

mas até a calva <strong>da</strong> pedra<br />

sinto-me capaz <strong>de</strong> arar.<br />

— Também <strong>de</strong> pouco adianta,<br />

nem pedra há aqui <strong>de</strong> amassar;<br />

diga-me ain<strong>da</strong>, compadre,<br />

que mais fazia por lá?<br />

— Conheço to<strong>da</strong>s as roças<br />

que nesta chã po<strong>de</strong>m <strong>da</strong>r:<br />

o algodão, a mamona,<br />

a pita, o milho, o caroá.<br />

João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto<br />

* Extraído <strong>de</strong>: Poesias completas (1940-1965). 3ª. ed, Rio <strong>de</strong> Janeiro, José Olympio, 1979, p. 212-7<br />

M1U4T1<br />

— Esses roçados o banco<br />

já não quer financiar;<br />

— Mas diga-me, retirante<br />

sabe benditos rezar?<br />

sabe cantar excelências,<br />

<strong>de</strong>funtos encomen<strong>da</strong>r?<br />

sabe tirar la<strong>da</strong>inhas,<br />

sabe mortos enterrar?<br />

— Agora se me permite<br />

minha vez <strong>de</strong> perguntar:<br />

como a senhora, comadre,<br />

po<strong>de</strong> manter o seu lar?<br />

— Vou explicar rapi<strong>da</strong>mente,<br />

logo compreen<strong>de</strong>rá:<br />

como aqui a morte é tanta,<br />

vivo <strong>de</strong> a morte aju<strong>da</strong>r.<br />

— E ain<strong>da</strong> se me permite<br />

que lhe volte a perguntar:<br />

É aqui uma profissão<br />

trabalho tão singular?<br />

— É, sim, uma profissão<br />

e a melhor <strong>de</strong> quantas há:<br />

sou <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a região<br />

rezadora titular.<br />

— E ain<strong>da</strong> se me permite<br />

mais uma vez in<strong>da</strong>gar:<br />

é boa essa profissão<br />

M1U4T1<br />

1


M1U4T1<br />

2<br />

em que a comadre ora está?<br />

— De um raio <strong>de</strong> muitas léguas<br />

vem gente aqui me chamar;<br />

a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é que não pu<strong>de</strong><br />

queixar-me ain<strong>da</strong> <strong>de</strong> azar.<br />

— E se pela última vez<br />

me permite perguntar:<br />

não existe outro trabalho<br />

para mim neste lugar?<br />

— Como aqui a morte é tanta<br />

só é possível trabalhar<br />

nestas profissões que fazem<br />

<strong>da</strong> morte ofício ou bazar.<br />

Imagine que outra gente<br />

<strong>de</strong> profissão similar,<br />

farmacêuticos, coveiros,<br />

doutor <strong>de</strong> anel no anular,<br />

remando contra a corrente<br />

<strong>da</strong> gente que baixa ao mar,<br />

retirantes às avessas,<br />

sobem do mar para cá.<br />

Só os roçados <strong>da</strong> morte<br />

compensam aqui cultivar,<br />

e cultivá-los é fácil:<br />

simples questão <strong>de</strong> plantar;<br />

não se precisa <strong>de</strong> limpa,<br />

<strong>de</strong> adubar nem regar;<br />

as estalagens e as pragas<br />

fazem-nos mais prosperar;<br />

e dão lucro imediato;<br />

nem é preciso esperar<br />

pela colheita: recebe-se<br />

na hora mesma <strong>de</strong> semear.


Um eterno principiante *<br />

Entrevista <strong>da</strong><strong>da</strong> por Fernando Sabino a Áurea Lopes<br />

M1U4T2<br />

O domínio <strong>da</strong> palavra é uma arte ou uma questão <strong>de</strong> sobrevivência? Na entrevista, o mestre Fernando<br />

Sabino respon<strong>de</strong>u assim a essa pergunta: — Sempre que me sento para escrever sou um principiante.<br />

Por isso às vezes passo horas, dias, à procura <strong>da</strong> palavra a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> ou do enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> uma frase.<br />

É difícil acreditar que essa confissão tenha vindo <strong>de</strong> um mestre <strong>da</strong>s letras, autor <strong>de</strong> 28 livros, escritor<br />

profissional. Mas o mineiro Fernando Sabino explica: essa revelação é na<strong>da</strong> mais, na<strong>da</strong> menos que<br />

a essência <strong>de</strong> tudo o que ele apren<strong>de</strong>u em seus 68 anos vividos como professor, jornalista, adido<br />

cultural e cineasta.<br />

Enquanto hoje os jovens esgrimem suas canetas inseguras contra a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se expressar, o<br />

artesão <strong>de</strong> O encontro marcado e O gran<strong>de</strong> mentecapto confirma como é árdua essa luta.<br />

Nesta entrevista exclusiva, o Sabino que foi pupilo <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e parceiro <strong>de</strong> noita<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />

Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Manuel Ban<strong>de</strong>ira e Vinícius <strong>de</strong> Moraes fala sobre a arte <strong>de</strong> escrever.<br />

Alertando para a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> saber se manifestar com clareza para po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r idéias, imagina<br />

também como seria bom se os estu<strong>da</strong>ntes fossem levados a apreciar os prazeres <strong>da</strong> leitura, em vez <strong>de</strong><br />

obrigados a dissecar um livro.<br />

Áurea: Há trinta anos era publicado seu primeiro livro. Hoje você é um escritor consagrado, que<br />

vive <strong>da</strong> arte. Mas quando você sonhou pela primeira vez que isso po<strong>de</strong>ria acontecer? Quando<br />

nasceu o escritor?<br />

Sabino: Eu queria ser escritor <strong>de</strong>s<strong>de</strong> menino. Quando assistia a um filme ou lia uma história e <strong>de</strong>pois<br />

ia contar para os amigos, eu sempre mu<strong>da</strong>va alguma coisa. Inventava episódios, trocava o final, criava<br />

personagens, enfim, enriquecia o enredo a meu gosto. Costumo dizer que "aju<strong>da</strong>va" o autor. Com 11,<br />

12 anos eu <strong>de</strong>vorava romances policiais e passei a "colaborar" com Edgard Wallace, Sax Rommer, S.S.<br />

Dine. Foi então que me animei a criar meu próprio <strong>de</strong>tetive, protagonista <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> histórias<br />

escritas nas folhas <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>rnos escolares.<br />

Áurea: Como muita gente, você começou a escrever porque gostava <strong>de</strong> ler. A leitura é o combustível<br />

do escritor? Para escrever bem é preciso ler bastante?<br />

Sabino: Eu não diria que é o único combustível do autor, mas contribui, sem dúvi<strong>da</strong>, para a boa formação<br />

literária. Eu, por exemplo, nasci com gosto pela leitura.Aos 18 anos, fiz um trato comigo mesmo <strong>de</strong> ler um livro<br />

por dia. E tinha que ler do começo até o fim, riscando todo o livro, fazendo anotações. Por causa disso fiquei<br />

condicionado: até hoje me sinto culpado quando pulo um parágrafo ou uma página <strong>de</strong> um texto. Eu tinha<br />

o hábito <strong>de</strong> ir à biblioteca e pedir os autores clássicos. Muita coisa nem entendia, mas continuava lendo.<br />

Áurea: Em geral, quem não é escritor ou jornalista acha que é uma tarefa difícil. Qual é o seu<br />

segredo para já ter escrito quase trinta livros?<br />

* Extraí<strong>da</strong> <strong>de</strong>: revista Synthesis, ano 1, número 1, São Paulo, Centro <strong>de</strong> Estudos <strong>de</strong> <strong>Educação</strong> Tecnológica Paula Souza, Governo do Estado <strong>de</strong> São Paulo.<br />

M1U4T2<br />

1


Sabino: Mas eu também acho que escrever é difícil! Tenho problemas até para man<strong>da</strong>r um telegrama <strong>de</strong><br />

pêsames — peço aju<strong>da</strong> a minha mulher. Outro dia escrevi três vezes um bilhete para a emprega<strong>da</strong>:<br />

troquei palavras, acrescentei vírgulas, foi o maior esforço para ser claro, para me fazer enten<strong>de</strong>r.<br />

Áurea: Então você também, como um adolescente diante <strong>da</strong> prova <strong>de</strong> re<strong>da</strong>ção, sofre para fazer<br />

um texto?<br />

Sabino: Sim, claro. Mas é preciso fazer uma distinção. Uma coisa é redigir; outra coisa é escrever.<br />

Escrever é uma arte, exige vocação. Como o dom <strong>de</strong> pintar, compor… É a forma que eu encontro <strong>de</strong> me<br />

manifestar, <strong>de</strong> potencializar o meu talento. Só que nem todo mundo é escritor. Você também se manifesta<br />

na engenharia, na medicina, no teclado <strong>de</strong> um computador. E aí não é necessário saber escrever, mas<br />

redigir. Redigir é obrigatório. Qualquer pessoa <strong>de</strong>ve apren<strong>de</strong>r a redigir para se expressar com clareza e<br />

correção, para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r com força suas idéias.<br />

Áurea: Você mostrou a diferença entre escrever e redigir. E as semelhanças, existem? O que há<br />

em comum entre um cronista e uma secretária que prepara memorandos?<br />

Sabino: Bem, o principal é que os dois usam o mesmo instrumento: a língua. E <strong>de</strong>vem ter domínio<br />

sobre ela <strong>de</strong> acordo com suas necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Em tudo o que escrevo não faço outra coisa senão revelar, me<br />

expor, contar aquilo que vivi, que aconteceu e chegou a meu conhecimento, sempre sob a lente <strong>da</strong> minha<br />

maneira <strong>de</strong> imaginar e reciclar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Acho que isso po<strong>de</strong> valer um pouco para todos. Com exceção<br />

<strong>de</strong> textos estritamente comerciais, você também po<strong>de</strong> pôr sua experiência e seu modo <strong>de</strong> enxergar as<br />

coisas numa re<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> vestibular, numa carta, num memorando para <strong>da</strong>r instruções ou no discurso<br />

para o seminário.<br />

Áurea: Além <strong>de</strong> boa dose <strong>de</strong> inspiração, escrever exige técnicas? Existem fórmulas para se<br />

construir um bom texto?<br />

Sabino: Não há fórmulas, mas bom senso, o uso apropriado <strong>de</strong> regras, um trabalho árduo <strong>de</strong> buscar a<br />

expressão a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>. Para escrever O encontro marcado refiz o original três vezes; <strong>de</strong> 1.300<br />

páginas, aprovei só 320. Acredito que escrever seja basicamente cortar. Cortar o supérfluo, eliminar<br />

repetições, ecos, cacógrafos, redundâncias, lugares-comuns. Na hora <strong>de</strong> escolher entre duas expressões,<br />

fico com a mais simples. Nunca esqueço que uma oração tem sujeito, predicado e complemento. E ain<strong>da</strong> que<br />

me <strong>de</strong>svie um pouco <strong>de</strong>ssa or<strong>de</strong>m, procuro sempre não a per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista. As regras <strong>de</strong> estilo, para mim,<br />

continuam as mesmas: clareza, concisão e simplici<strong>da</strong><strong>de</strong>. Eu me divertia muito escrevendo, até que<br />

<strong>de</strong>scobri a diferença entre escrever bem e escrever mal. Depois <strong>de</strong>scobri a diferença entre escrever<br />

bem e a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira arte. Foi um choque.<br />

Áurea: As re<strong>da</strong>ções <strong>de</strong> estu<strong>da</strong>ntes vestibulandos são uma constatação <strong>de</strong> que os jovens <strong>de</strong> hoje<br />

não têm muita intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a escrita e conseqüentemente com a leitura.Você acha que a escola<br />

tem responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre isso? O professor po<strong>de</strong> mu<strong>da</strong>r esse quadro sombrio?<br />

Sabino: Acho que sim. O professor tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> criar e <strong>de</strong>struir um talento. No curso ginasial eu<br />

dirigia um jornalzinho e me interessava pelo estudo <strong>da</strong> língua, estimulado pelo professor Cláudio Brandão<br />

— um humanista, segundo a tradição mineira, tradutor <strong>de</strong> grego e latim. Passei a gostar <strong>de</strong> filologia,<br />

etimologia, semântica, por pouco não viro gramático. Aos 14 anos disparei a escrever contos com pretensão<br />

literária e vivia perseguindo um outro professor <strong>de</strong> português, enchendo sua pasta e sua paciência com<br />

contos. Daí eu achar que o professor pesa muito. O problema é que hoje ele indica o estu<strong>da</strong>nte na<br />

arte <strong>de</strong> dissecar um livro, quando <strong>de</strong>veria ensiná-lo a gozar a leitura. Em vez <strong>de</strong> extenuantes relatórios<br />

interpretativos, é fun<strong>da</strong>mental perguntar o que agradou na obra, que mensagem ela transmitiu, que<br />

emoção ela passou.<br />

M1U4T2<br />

2


Aeroporto *<br />

Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Viajou meu amigo Pedro. Fui levá-lo ao Galeão, on<strong>de</strong> esperamos três horas o seu quadrimotor.<br />

Durante esse tempo, não faltou assunto para nos entretermos, embora não falássemos <strong>da</strong> vã e<br />

numerosa matéria atual. Sempre tivemos muito assunto, e não <strong>de</strong>ixamos <strong>de</strong> explorá-la a fundo.<br />

Embora Pedro seja extremamente parco <strong>de</strong> palavras e, a bem dizer, não se digne pronunciar<br />

nenhuma. Quando muito, emite sílabas; o mais é conversa <strong>de</strong> gestos e expressões, pelos quais se<br />

faz enten<strong>de</strong>r admiravelmente. É o seu sistema.<br />

Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspe<strong>de</strong> ameno. Sorria para os moradores, com<br />

ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta, porque ostensiva. A vista <strong>da</strong> pessoa<br />

humana lhe dá prazer. Seu sorriso foi logo consi<strong>de</strong>rado sorriso especial, revelador <strong>de</strong> suas intenções<br />

para com o mundo oci<strong>de</strong>ntal e o oriental e em particular o nosso trecho <strong>de</strong> rua. Fornecedores,<br />

vizinhos e <strong>de</strong>sconhecidos, gratificados com esse sorriso (encantador, apesar <strong>da</strong> falta <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes),<br />

abonam a classificação.<br />

Devo admitir que Pedro, como visitante, nos <strong>de</strong>u trabalho: tinha horários especiais, comi<strong>da</strong>s<br />

especiais, roupas especiais, sabonetes especiais, criados especiais. Mas sua simples presença e seu<br />

sorriso compensariam providências e privilégios maiores. Recebia tudo com naturali<strong>da</strong><strong>de</strong>, sabendo-se<br />

merecedor <strong>da</strong>s distinções, e ninguém se lembraria <strong>de</strong> achá-lo egoísta ou inoportuno. Suas horas<br />

<strong>de</strong> sono — e lhe apraz dormir não só à noite como principalmente <strong>de</strong> dia — eram<br />

respeita<strong>da</strong>s como ritos sacros a ponto <strong>de</strong> não ousarmos erguer a voz para não acordá-lo.<br />

Acor<strong>da</strong>ria sorrindo, como <strong>de</strong> costume, e não se zangaria com a gente, porém é que não nos<br />

perdoaríamos o corte <strong>de</strong> seus sonhos. Assim, por conta <strong>de</strong> Pedro, <strong>de</strong>ixamos <strong>de</strong> ouvir muito<br />

concerto para violino e orquestra, <strong>de</strong> Bach, mas também nossos olhos e ouvidos se forraram<br />

à tortura <strong>da</strong> TV. An<strong>da</strong>ndo na ponta dos pés, ou <strong>de</strong>scalços, levamos tropeções no escuro, mas<br />

sendo por amor <strong>de</strong> Pedro não tinha importância.<br />

Objeto que visse em nossa mão, requisitava-o. Gosta <strong>de</strong> óculos alheios (e não os usa), relógios<br />

<strong>de</strong> pulso, copos, xícaras e vidros em geral, artigos <strong>de</strong> escritório, botões simples ou <strong>de</strong> punho. Não<br />

é colecionador; gosta <strong>da</strong>s coisas para pegá-las, mirá-las e (é seu costume ou sua mania, que se há<br />

<strong>de</strong> fazer) pô-las na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume, porém duvido que<br />

mantenha este juízo diante <strong>de</strong> Pedro, <strong>de</strong> seu sorriso sem malícia e <strong>de</strong> suas pupilas azuis — porque<br />

me esquecia <strong>de</strong> dizer que tem olhos azuis, cor que afasta qualquer suspeita ou acusação<br />

apressa<strong>da</strong> sobre a razão íntima <strong>de</strong> seus atos.<br />

Po<strong>de</strong>ria acusá-lo <strong>de</strong> incontinência, porque não sabia distinguir entre os cômodos, e o que lhe<br />

ocorria fazer, fazia em qualquer parte? Zangar-me com ele porque <strong>de</strong>struiu a lâmpa<strong>da</strong> do escritório?<br />

Não. Jamais me voltei para Pedro que ele não me sorrisse; tivesse eu um impulso <strong>de</strong> irritação, e me<br />

sentiria <strong>de</strong>sarmado com a sua azul maneira <strong>de</strong> olhar-me. Eu sabia que essas coisas eram indiferentes<br />

à nossa amiza<strong>de</strong> — e, até, que a nossa amiza<strong>de</strong> lhes conferia caráter necessário, <strong>de</strong> prova;<br />

ou gratuito, <strong>de</strong> poesia e jogo.<br />

Viajou meu amigo Pedro. Fico refletindo na falta que faz um amigo <strong>de</strong> um ano <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> a seu<br />

companheiro já vivido e puído. De repente o aeroporto ficou vazio.<br />

* Extraído <strong>de</strong>: Ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> balanço, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1976, p. 61, 62.<br />

M1U4T3<br />

M1U4T3<br />

1


Existe vi<strong>da</strong> inteligente<br />

no período pré-silábico?<br />

Telma Weisz<br />

M1U4T4<br />

As propostas pe<strong>da</strong>gógicas <strong>de</strong> alfabetização que vêm sendo elabora<strong>da</strong>s tendo como referência<br />

teórica o construtivismo interacionista piagetiano e, mais especificamente, a psicogênese <strong>da</strong> língua<br />

escrita <strong>de</strong>scrita por Emilia Ferreiro e Ana Teberosky 1 têm cumprido o papel <strong>de</strong> divulgar um<br />

corpo <strong>de</strong> idéias — cuja origem é a pesquisa em psicolingüística —, <strong>de</strong>ntre as quais uma <strong>da</strong>s<br />

mais importantes é a <strong>de</strong> que as crianças, em seu processo <strong>de</strong> alfabetização, constroem hipóteses<br />

sobre o que a escrita representa. Hipóteses estas que evoluem <strong>de</strong> uma etapa inicial, em que a<br />

escrita ain<strong>da</strong> não é uma representação do falado (hipótese pré-silábica) para uma etapa em que<br />

ela representa a fala por correspondência silábica (hipótese silábica) e, por fim, chegando a uma<br />

correspondência alfabética, esta sim a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> à escrita em português.<br />

O que tanto este texto como o programa <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o ao qual ele está vinculado 2 se propõem a<br />

oferecer é uma compreensão um pouco mais elabora<strong>da</strong> do que pensa o aprendiz nessa fase<br />

inicial do processo <strong>de</strong> aquisição <strong>da</strong> escrita. E, principalmente, combater uma visão negativa que<br />

se difundiu com relação ao período pré-silábico. Negativa no sentido <strong>de</strong> olhar para as escritas<br />

<strong>de</strong>sse período vendo não o que elas já têm, e sim o que lhes falta. Provavelmente porque qualquer<br />

forma <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r diferenças entre competências seja inadverti<strong>da</strong>mente assimila<strong>da</strong> à tradição<br />

pe<strong>da</strong>gógica <strong>de</strong> classificar os alunos em "fracos", "médios" e "fortes".<br />

Em um texto que consi<strong>de</strong>ramos <strong>de</strong> síntese <strong>de</strong> suas pesquisas sobre a aquisição <strong>da</strong> escrita, 3 Emilia<br />

Ferreiro assim apresentou essa evolução, organiza<strong>da</strong> em três gran<strong>de</strong>s períodos:<br />

• O primeiro período caracteriza-se pela busca <strong>de</strong> parâmetros <strong>de</strong> diferenciação entre as marcas<br />

gráficas figurativas e as marcas gráficas não-figurativas, assim como pela formação <strong>de</strong> séries <strong>de</strong> letras<br />

como objetos substitutos, e pela busca <strong>de</strong> condições <strong>de</strong> interpretação <strong>de</strong>sses objetos substitutos.<br />

• O segundo período é caracterizado pela construção <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> diferenciação entre o<br />

enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> letras, baseando-se alterna<strong>da</strong>mente em eixos <strong>de</strong> diferenciação qualitativos<br />

e quantitativos.<br />

• O terceiro período é o que correspon<strong>de</strong> à fonetização <strong>da</strong> escrita, que começa por um período<br />

silábico e culmina em um período alfabético.<br />

As três primeiras crianças do ví<strong>de</strong>o Construção <strong>da</strong> escrita: primeiros passos, Caroline (5;1), 4 Johnny<br />

William (4;8) e Guilherme Cruz (6;3), apresentam escritas características do primeiro período.<br />

A escrita <strong>de</strong> Caroline (ver Figura 1) — com exceção do seu nome — é forma<strong>da</strong> por garatujas<br />

1 Emilia Ferreira & Ana Teberosky: Psicogênese <strong>da</strong> Língua Escrita, Porto Alegre,Artes Médicas, 1985<br />

2 Construção <strong>da</strong> escrita: primeiros passos.<br />

3 Emília Ferreiro.“A escrita antes <strong>da</strong>s letras”. In Hermine Sinclair (ed.) A produção <strong>de</strong> notações na criança,São Paulo, Cortez Editora, 1990.<br />

4 Daqui em diante a i<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s crianças será indica<strong>da</strong> <strong>da</strong> seguinte forma: 5;1, que significa 5 anos e 1 mês.<br />

M1U4T4<br />

1


que parecem imitar a escrita cursiva adulta. A <strong>de</strong> Johnny William (ver Figura 2), que já utiliza<br />

letras convencionais, também com exceção do seu nome, é forma<strong>da</strong> por uma única grafia para<br />

ca<strong>da</strong> item escrito.<br />

Figura 1<br />

Figura 2<br />

Guilherme Cruz (ver Figura 3) produz um tipo <strong>de</strong> escrita cuja principal característica é o fato <strong>de</strong><br />

só ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> completa quando alcança o limite do papel. É interessante observar que, apesar<br />

<strong>de</strong> ele escrever com tantas letras, a quase totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>las vem <strong>da</strong> mesma fonte: o seu nome.<br />

Figura 3<br />

M1U4T4<br />

2<br />

briga<strong>de</strong>iro<br />

Escrita <strong>de</strong> Caroline<br />

Escrita <strong>de</strong> Johnny William<br />

bolo<br />

Johnny William<br />

refrigerante bexiga<br />

sanduíche<br />

Escrita <strong>de</strong> Guilherme Cruz


O que marca o início do segundo período é o estabelecimento <strong>de</strong> condições formais <strong>de</strong> "legibili<strong>da</strong><strong>de</strong>",<br />

<strong>de</strong> "interpretabili<strong>da</strong><strong>de</strong>" <strong>de</strong> um texto. 5 Para que a criança consi<strong>de</strong>re que um texto (uma<br />

série qualquer <strong>de</strong> letras) serve para ler, as condições ou critérios são:<br />

• Que a série <strong>de</strong> letras seja forma<strong>da</strong> por uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> mínima <strong>de</strong> caracteres, em geral em torno<br />

<strong>de</strong> três.<br />

• Que a série <strong>de</strong> letras seja forma<strong>da</strong> por letras varia<strong>da</strong>s. Isto é, que não sejam letras repeti<strong>da</strong>s.<br />

A língua portuguesa escrita tem muitas palavras compostas por apenas uma ou duas letras. No<br />

entanto, em seu processo <strong>de</strong> aprendizagem <strong>da</strong> escrita, to<strong>da</strong>s as crianças constroem uma hipótese<br />

que contraria frontalmente a informação que o meio oferece. Elas têm a firme convicção <strong>de</strong> que<br />

pondo apenas uma ou duas letras não é possível escrever, ou como elas explicam: "não vai estar<br />

escrito na<strong>da</strong>" ou "não vai <strong>da</strong>r pra ler na<strong>da</strong>". De on<strong>de</strong> será que vem essa convicção? Vem <strong>de</strong> uma<br />

exigência lógica <strong>de</strong> estabelecer diferenças entre a parte (a letra) e o todo (o escrito). Esse tipo<br />

<strong>de</strong> exigência lógica é o que Piaget chamou <strong>de</strong> "erro construtivo", e é necessário para que a aprendizagem<br />

aconteça. Quando se trabalha com uma concepção empirista tradicional, que vê a aprendizagem<br />

como uma acumulação <strong>de</strong> informações, a idéia <strong>de</strong> que para apren<strong>de</strong>r a ler é preciso<br />

construir uma hipótese que contraria a informação recebi<strong>da</strong> é absur<strong>da</strong>. No entanto, quando a<br />

pesquisa é realiza<strong>da</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um marco teórico construtivista-interacionista, cria-se o espaço<br />

para que idéias como essa se expressem.<br />

O outro critério, também <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m lógica, que aparece nesse segundo período é o <strong>de</strong> varie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> caracteres. A idéia <strong>de</strong> que se possa escrever repetindo a mesma letra é vista como logicamente<br />

inaceitável. Se observarmos a escrita produzi<strong>da</strong> pelas crianças nas entrevistas do ví<strong>de</strong>o, veremos<br />

que as que produzem seqüências <strong>de</strong> letras jamais escrevem duas letras iguais, uma ao lado <strong>da</strong><br />

outra. Mesmo Guilherme Cruz (ver Figura 3), que ain<strong>da</strong> nem controla a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> grafias,<br />

cui<strong>da</strong> para que isso não aconteça. Apenas duas crianças escrevem, uma única vez, duas letras<br />

iguais contíguas. Uma é Guilherme, a última criança entrevista<strong>da</strong>, cuja escrita será analisa<strong>da</strong> mais<br />

à frente; a outra é Bruna (ver Figura 6). Na escrita <strong>de</strong> "presentes", ela grafou inicialmente: O E R<br />

V — A A. No entanto, assim que se dá conta do que fez, "corrige" sua escrita introduzindo um I<br />

entre os dois As.<br />

Para compreen<strong>de</strong>r como é importante investigar como a criança pensa, basta ver o que se acreditava<br />

que fosse fácil ou difícil quando só dispúnhamos do nosso olhar já alfabetizado para <strong>de</strong>cidir.<br />

As cartilhas estão cheias <strong>de</strong> textos escritos com palavras com poucas letras e com letras<br />

repeti<strong>da</strong>s. Na esperança <strong>de</strong> facilitar, criávamos dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>snecessárias.<br />

Os critérios <strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> mínima e <strong>de</strong> variação interna <strong>de</strong>finem, no nível <strong>da</strong> organização interna<br />

<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> escrita, os dois eixos <strong>de</strong> diferenciação <strong>de</strong>ntro dos quais as crianças irão construindo suas<br />

hipóteses: um eixo <strong>de</strong> diferenciação quantitativo e um eixo <strong>de</strong> diferenciação qualitativo. Para<br />

compreen<strong>de</strong>r melhor o que vem a ser isso, vamos analisar duas amostras <strong>de</strong> escrita <strong>de</strong> duas<br />

diferentes crianças:<br />

5<br />

Para saber mais sobre as pesquisas que permitem que compreen<strong>de</strong>r que as crianças pensam <strong>de</strong>ssa forma, leia o capítulo 2 (“Os aspectos formais<br />

do grafismo e sua interpretação”) do livro Psicogênese <strong>da</strong> língua escrita, <strong>de</strong> Emilia Ferreiro e Ana Teberosky.<br />

M1U4T4<br />

3


Natália<br />

A L N I (Natália)<br />

A L N I (briga<strong>de</strong>iro)<br />

A L N I (refrigerante)<br />

A L N I (bolo)<br />

A L N I (beijinho)<br />

Natália repete a mesma série <strong>de</strong> letras tanto para seu nome como para briga<strong>de</strong>iro, refrigerante,<br />

bolo, beijinho e coxinha.As letras que usa são as do seu nome.A escrita produzi<strong>da</strong> por Natalia<br />

aten<strong>de</strong> às duas exigências: a <strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> — ela escreve sempre com quatro letras, o que<br />

garante tanto o mínimo como um máximo — e a <strong>de</strong> varie<strong>da</strong><strong>de</strong>: ela não repete nenhuma letra.<br />

Nem mesmo o A, que ocorre três vezes em seu nome. Para as crianças que escrevem como<br />

Natália, o significado <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> escrita é <strong>de</strong>terminado pela intenção do autor.<br />

Fábio<br />

1ª escrita 2ª escrita<br />

F A B I O (Fábio) F A B I O (Fábio)<br />

A B I O F (briga<strong>de</strong>iro) A B I O E (briga<strong>de</strong>iro)<br />

F A B… (pipoca) E A B I O (pipoca)<br />

B I E O (suco)<br />

I B I O E (bis)<br />

Fábio (que não foi entrevistado para esse ví<strong>de</strong>o) também escreve com as letras do seu nome,<br />

mas pensa que se puser as mesmas letras, na mesma or<strong>de</strong>m, escreverá a mesma coisa. Isso faz<br />

com que ele crie uma estratégia para garantir que as letras, apesar <strong>de</strong> serem as mesmas, estarão em<br />

diferentes posições: ele passa a primeira letra para o lugar <strong>da</strong> última e/ou a última para o lugar<br />

<strong>da</strong> primeira. Acontece que essa estratégia acaba sendo uma armadilha, fato que ele percebe na<br />

terceira letra <strong>de</strong> "pipoca" (F A B…), quando se dá conta <strong>de</strong> que está repetindo a escrita <strong>de</strong> seu<br />

nome e diz para a entrevistadora: "Não, tá errado!". É interessante observar as providências que<br />

ele toma para que isso não mais aconteça. Em primeiro lugar acrescenta uma barra ao F do fim<br />

<strong>de</strong> "briga<strong>de</strong>iro" e do início <strong>de</strong> "pipoca", transformando-os em E. Em segundo lugar, não usa mais<br />

a letra F em nenhuma escrita que não seja a do seu nome. Na escrita seguinte, "suco", produz<br />

uma diferença no eixo quantitativo: escreve com menos uma letra. E, na que se segue (bis), cria<br />

diferenças tanto no eixo quantitativo (aumenta novamente uma letra) como no eixo qualitativo<br />

(repete a letra I).<br />

M1U4T4<br />

4


A comparação <strong>da</strong>s escritas <strong>de</strong> Natália e Fábio mostra uma evolução cuja natureza é importante<br />

compreen<strong>de</strong>r. Os critérios <strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> mínima e <strong>de</strong> varie<strong>da</strong><strong>de</strong> necessária utilizados<br />

por Natália são critérios absolutos, e não relativos. Eles não permitem comparar as escritas<br />

entre si, apenas estabelecer que ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las seja consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> legível, interpretável<br />

(ain<strong>da</strong> que quem <strong>de</strong>ci<strong>da</strong> isso não saiba ler). Fábio também utiliza os critérios <strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

mínima e varie<strong>da</strong><strong>de</strong> necessária como Natália. Mas para ele essas diferenciações são insuficientes.<br />

Ele exige também que nomes diferentes tenham escritas diferentes. Da exigência<br />

<strong>de</strong> diferenciação interna à exigência <strong>de</strong> diferenciação entre duas ou mais escritas 6 vai<br />

uma longa e importante caminha<strong>da</strong>. Essa capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir intencionalmente<br />

escritas diferentes entre si aparece em to<strong>da</strong>s as crianças entrevista<strong>da</strong>s no ví<strong>de</strong>o<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Natalia.<br />

Nós, alfabetizados, sabemos que as diferenças entre as escritas correspon<strong>de</strong>m a diferenças na<br />

sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s palavras. No entanto, enquanto as crianças ain<strong>da</strong> não estabelecem uma correspondência<br />

termo a termo entre o falado e o escrito, têm <strong>de</strong> procurar outras soluções. Bruna nos<br />

mostra como os esforços para diferenciar as escritas po<strong>de</strong>m levar a soluções surpreen<strong>de</strong>ntes<br />

(como vemos quando ela escreve "briga<strong>de</strong>iro" com poucas letras porque é pequeno e "bolo"<br />

com muitas porque é gran<strong>de</strong>). No entanto, essa é a única diferenciação <strong>de</strong>sse tipo que apareceu<br />

na escrita <strong>de</strong> Bruna. Para escrever "bexiga", "guaraná" e "presentes" ela cui<strong>da</strong> apenas que as três<br />

escritas sejam diferentes entre si. Sem procurar no objeto cujo nome quer escrever algum atributo<br />

— seja tamanho ou outro qualquer — para estabelecer diferenças entre as escritas, como fez<br />

com o par briga<strong>de</strong>iro/bolo.<br />

Com Beatriz,Talita, Stephanie e Guilherme Figueiredo po<strong>de</strong>mos observar as crianças procurando<br />

compreen<strong>de</strong>r a relação entre o todo escrito e suas partes, as letras.<br />

Beatriz, por exemplo, escreve A T I O para "gelatina" e solicita<strong>da</strong> a interpretar progressivamente<br />

produz:<br />

A A T A T I A T I O<br />

na<strong>da</strong> gelatina (mas ain<strong>da</strong> falta) gelatina (mas ain<strong>da</strong> falta) gelatina<br />

Como se po<strong>de</strong> observar, Beatriz não consi<strong>de</strong>ra a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> recortar a palavra, <strong>de</strong> tomar<br />

um fragmento <strong>de</strong>la para fazer correspon<strong>de</strong>r às partes do escrito que vão sendo apresenta<strong>da</strong>s.<br />

Diante <strong>da</strong> primeira letra apresenta<strong>da</strong> isola<strong>da</strong>mente ela — coerentemente com sua exigência <strong>de</strong><br />

quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> mínima <strong>de</strong> grafias — pensa que ain<strong>da</strong> não está escrito na<strong>da</strong>. Com duas letras, no<br />

entanto, já se po<strong>de</strong> ler "gelatina". Mas isso não significa que a escrita esteja completa.<br />

6<br />

Para saber mais sobre essa questão leia: “Informação e assimilação no início <strong>da</strong> alfabetização”, capítulo do livro Alfabetização em processo, <strong>de</strong><br />

Emilia Ferreiro.<br />

M1U4T4<br />

5


Talita, diferentemente <strong>de</strong> Beatriz, parece ter claro que a uma incompletu<strong>de</strong> na escrita <strong>de</strong>ve<br />

correspon<strong>de</strong>r uma incompletu<strong>de</strong> sonora. É interessante observar como ela vai ajustando sua<br />

interpretação cui<strong>da</strong>dosamente, para evitar o que lhe aconteceu na leitura <strong>de</strong> "bolo".<br />

AIEF A I A I E A I E F<br />

(briga<strong>de</strong>iro) bi b r i briga<strong>de</strong>iro<br />

XNMG X X N X N M X N M G<br />

(bo lo) bo bo-lo bo-lo-bo bo-lo bo-lo<br />

OTSH O O T O T S O T S H<br />

(coxinha) co c o c o x i coxinha<br />

JAWF J J A J A W J A W F<br />

(beijinho) be be-ji be - ji - o beijinho<br />

YVNO Y Y V Y V N YVNO<br />

(guaraná) gua g u a – r a gua – ra – ná guaraná<br />

Em geral as crianças avançam até a correspondência silábica no eixo quantitativo, e só <strong>de</strong>pois<br />

realizam um avanço correspon<strong>de</strong>nte na análise qualitativa. Isto é, elas costumam primeiro construir<br />

um esquema <strong>de</strong> correspondência sonora que dê conta <strong>de</strong> quantas letras são necessárias, para só<br />

<strong>de</strong>pois se preocuparem com quais letras usar. Não é o caso <strong>de</strong> Stephanie. Ela parece estar<br />

construindo os dois esquemas ao mesmo tempo e, aparentemente, o que fica difícil é<br />

coor<strong>de</strong>nar os dois esquemas em construção. Quando ela escreve com caneta no papel produz:<br />

OSTPNO (bolo) BIEPNAOMO (briga<strong>de</strong>iro) BANSSO (beijinho)<br />

Solicita<strong>da</strong> a escrever com letras móveis e a interpretar parte por parte o que havia escrito,<br />

escreve I J O K D (escon<strong>de</strong>-escon<strong>de</strong>) que interpreta assim:<br />

I I J I J O I J O K I J O K D<br />

i is-con is-con-di is-con-dis-con is-con-dis-con-<strong>de</strong><br />

Guilherme Figueiredo, que também se ocupa dos dois eixos <strong>de</strong> análise — o quantitativo e o qualitativo<br />

—, mostra uma interessante progressão ao longo <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> com letras móveis. Escreveu:<br />

TUIOIO T TU TU I TU I O TU I O I TU I O I O<br />

(futebol) tê f u fu - ti fu - ti-bo fu - ti-bo-u fu - ti-bo-u-ô<br />

TEOIO (pneu) que foi "corrigindo" à medi<strong>da</strong> que o esforço <strong>de</strong> fazer correspon<strong>de</strong>r ia explicitando<br />

as contradições, no final ficou:<br />

TEUO T T E T E U T E U O<br />

(pneu) tê pe-ne pe-ne-u pe-ne-u-ô<br />

M1U4T4<br />

6


E, finalmente, na escrita <strong>de</strong> "vi<strong>de</strong>ogame", vemos Guilherme antecipar quantas e quais letras<br />

precisaria para escrever.Tão satisfeito, que nem se importou <strong>de</strong> escrever duas letras iguais, uma<br />

ao lado <strong>da</strong> outra:<br />

I O E E<br />

vi- dio- guei-me<br />

As crianças cujas produções analisamos nos mostram que a passagem <strong>da</strong> escrita não-fonetiza<strong>da</strong><br />

— que conhecemos como pré-silábica — para a escrita fonetiza<strong>da</strong> inicial — que conhecemos<br />

como silábica — não acontece bruscamente. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é fruto <strong>de</strong> uma longa e trabalhosa reflexão.<br />

As idéias que as crianças constroem sobre a escrita mostram uma progressão marca<strong>da</strong> por uma<br />

lógica que po<strong>de</strong> parecer estranha para os que já sabem ler e escrever. Um percurso lógico que<br />

passa pela constituição <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> diferenciação.<br />

Num primeiro momento, buscando diferenciar o escrito do não-escrito. Depois, num segundo<br />

momento, a parte do todo. É o que fazem quando não aceitam que se possa escrever com as<br />

mesmas letras repeti<strong>da</strong>s, ou com poucas letras. O que, sabemos, não é real no português. Não é<br />

real, mas é lógico. Pois elas pensam que o todo — o escrito — e as suas partes — as letras —<br />

não <strong>de</strong>vem ser a mesma coisa.<br />

Ain<strong>da</strong> nesse segundo momento, as crianças têm <strong>de</strong> resolver o problema <strong>de</strong> como garantir que<br />

coisas iguais sejam escritas <strong>de</strong> forma igual e, principalmente, como escrever diferentemente<br />

coisas diferentes.<br />

A partir <strong>da</strong>í começam a construir uma compreensão <strong>de</strong> que a ca<strong>da</strong> aumento nas grafias <strong>de</strong>ve<br />

correspon<strong>de</strong>r uma progressão nas partes do falado. A construção <strong>de</strong>ssa correspondência leva<br />

à fonetização <strong>da</strong> escrita.<br />

Avançar em direção a um sistema <strong>de</strong> representação silábica implica que as crianças comecem a se<br />

perguntar que significado tem ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s letras em relação à palavra escrita com significado.<br />

Em outras palavras, têm <strong>de</strong> se perguntar qual é a relação entre o todo e suas partes.A resolução<br />

<strong>de</strong>sse problema está, certamente, liga<strong>da</strong> a um problema mais geral: o que é que a escrita representa? 7<br />

Quando a criança tem oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> exercer a escrita segundo suas idéias, <strong>de</strong> pôr em jogo o<br />

que pensa sobre a escrita, com freqüência vai se aproximando pouco a pouco <strong>da</strong> fonetização <strong>da</strong><br />

escrita. Porque, ao contrário do que se imaginava, fonetização <strong>da</strong> escrita não é fruto <strong>de</strong> um estalo,<br />

e sim <strong>de</strong> uma longa e laboriosa construção.<br />

7<br />

Sofia Vernón Carter. El processo <strong>de</strong> construcción <strong>de</strong> la correspon<strong>de</strong>ncia sonora en la escritura (en la transición entre los periodos pré-silábico y el silábico).<br />

Die-Cinestov, México, 1997.<br />

M1U4T4<br />

7


M1U4T5<br />

Por que e como saber o que sabem os alunos<br />

Dizer que é preciso saber o que os alunos já sabem para po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>cidir o que e como ensiná-los<br />

parece uma obvie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mas, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>da</strong> concepção <strong>de</strong> aprendizagem que orienta a ação do<br />

professor, não é tão óbvio assim.<br />

Se o professor tem por referência a concepção empirista-associacionista <strong>de</strong> aprendizagem,<br />

basta-lhe verificar a matéria <strong>da</strong><strong>da</strong> pelo professor do ano anterior e seguir adiante. No caso<br />

dos alunos <strong>da</strong> série inicial, isto nem sequer é necessário: se não houve ensino anterior, por<br />

suposto os alunos na<strong>da</strong> sabem.<br />

No entanto, se nossa concepção é construtivista-interacionista, a coisa mu<strong>da</strong> <strong>de</strong> figura. Essa<br />

visão do processo <strong>de</strong> aprendizagem não supõe que o aluno sabe apenas o que lhe é formalmente<br />

ensinado. Nela o aprendiz é visto como um sujeito que tem um papel ativo em sua aprendizagem.<br />

Um sujeito que pensa todo o tempo, que se coloca questões, que estabelece relações. Elabora a<br />

informação que o meio lhe oferece — o professor inclusive — para construir esquemas<br />

interpretativos próprios.<br />

Se o professor <strong>de</strong>senvolve sua prática tendo por referência teórica a idéia <strong>de</strong> que o conhecimento<br />

é construído pelo aluno em situações <strong>de</strong> interação, ele precisa dispor <strong>de</strong> estratégias que aju<strong>de</strong>m a<br />

compreen<strong>de</strong>r o que ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong> seus alunos já sabe.<br />

No caso <strong>da</strong> alfabetização, é essencial que o professor <strong>de</strong>scubra o que ca<strong>da</strong> aluno pensa sobre<br />

como funciona o sistema <strong>de</strong> escrita. Para isso é necessário em primeiro lugar que o professor<br />

estu<strong>de</strong> — se possível diretamente <strong>da</strong>s fontes — discuta com seus pares e construa para si mesmo<br />

o conhecimento hoje disponível sobre as hipóteses, as idéias que as crianças — e também os<br />

adultos — constroem em seu esforço para apren<strong>de</strong>r a ler e a escrever. Infelizmente, quando isso<br />

não acontece <strong>da</strong> forma a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>, o que vemos são equívocos que po<strong>de</strong>m causar problemas.<br />

Alguns inaceitáveis, como pensar que silábicos são alunos que lêem <strong>de</strong> forma silaba<strong>da</strong>. Ou que<br />

pré-silábicos são alunos que escrevem com muitos erros <strong>de</strong> ortografia.<br />

Sem um conhecimento pelo menos básico <strong>da</strong> psicogênese <strong>da</strong> língua escrita, não é possível<br />

<strong>de</strong>scobrir o que sabem e o que não sabem os alunos. Mas, se esse conhecimento está disponível,<br />

o professor po<strong>de</strong> montar seus próprios instrumentos diagnósticos. Por exemplo, se ele propõe<br />

para a classe to<strong>da</strong> uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> em que os alunos têm que escrever, apesar <strong>de</strong> ain<strong>da</strong> não estarem<br />

alfabetizados, é interessante que ele observe um aluno <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> vez realizando a tarefa. Que ele<br />

peça para o aluno que está sendo observado ler o que escreveu. Recomen<strong>da</strong>-se que o professor<br />

tenha um ca<strong>de</strong>rno com um bom espaço, algumas páginas, reservado para ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong> seus alunos.<br />

Nele <strong>de</strong>vem constar suas observações, ao longo <strong>de</strong> todo o ano escolar, sobre ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les.<br />

Inclusive suas idéias sobre como funciona o sistema <strong>de</strong> escrita <strong>de</strong>vem ser anota<strong>da</strong>s, reproduzindo<br />

algumas escritas com suas respectivas leituras, sempre com a <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> observação, para po<strong>de</strong>r ter<br />

uma visão <strong>de</strong> processo.<br />

Mas sempre existem alguns alunos sobre quem o professor tem dúvi<strong>da</strong>s, cujas hipóteses lhe<br />

escapam em situações <strong>de</strong> simples observação. Nesse caso, o professor precisa construir uma<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> específica para realizar individualmente com ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>sses alunos, <strong>de</strong> forma a <strong>de</strong>scobrir<br />

o que é que ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les já sabe e o que não sabe. Para isso vamos sugerir aqui uma situação<br />

<strong>de</strong> ditado que po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> aju<strong>da</strong> para o professor, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ele compreen<strong>da</strong> os critérios.<br />

<strong>de</strong>ntro dos quais a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> foi elabora<strong>da</strong>. A idéia é ditar uma pequena lista 1 <strong>de</strong> quatro palavras<br />

com as seguintes características: a primeira palavra <strong>de</strong>ve ser polissílaba, a segun<strong>da</strong> trissílaba, a<br />

1<br />

Uma lista é uma série <strong>de</strong> palavras que pertencem a uma mesmo compo semântico. Por exemplo, uma lista <strong>de</strong> compras, dos ingredientes <strong>de</strong><br />

uma receita, dos animais do Jardim Zoológico, <strong>da</strong>s coisas gostosas que tinha no aniversário etc.<br />

M1U4T5<br />

1


terceira dissílaba e a quarta monossílaba. Outra característica importante <strong>da</strong>s palavras <strong>da</strong> lista a<br />

ser dita<strong>da</strong> é que nas sílabas contíguas não se repitam as mesmas vogais. E por que o número <strong>de</strong><br />

sílabas, e a não proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sílabas com a mesma vogal, é importante?<br />

Como vimos nos ví<strong>de</strong>os Construção <strong>da</strong> escrita e Construção <strong>da</strong> escrita: primeiros passos, ain<strong>da</strong> em<br />

uma fase bem inicial do processo <strong>de</strong> aquisição, as crianças estabelecem duas exigências para que<br />

algo esteja a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>mente escrito: uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> mínima <strong>de</strong> letras (em torno <strong>de</strong> três letras)<br />

e varie<strong>da</strong><strong>de</strong>, isto é, que as letras não sejam repeti<strong>da</strong>s. Essas duas exigências acompanham as<br />

crianças ao longo <strong>de</strong> seu processo <strong>de</strong> alfabetização. Portanto, se o professor dita para um aluno<br />

cuja hipótese <strong>de</strong> escrita é silábica e cuja análise qualitativa <strong>da</strong> pauta sonora está foca<strong>da</strong> nas<br />

vogais (situação bastante comum) palavras com poucas sílabas e forma<strong>da</strong>s por sílabas <strong>de</strong> mesma<br />

vogal, é provável que o aluno fique bloqueado e se recuse a escrever. Pois ele teria que escrever,<br />

por exemplo, para "vaca", AA ou para "bolo", OO, o que para uma criança que pensa <strong>de</strong>ssa<br />

forma seria ilógico e incoerente.<br />

Por isso, a escolha <strong>da</strong>s palavras <strong>da</strong> lista é importante, principalmente a primeira. Pois é ela que<br />

nos dá as primeiras pistas sobre o que o aluno pensa. Algumas crianças exigem um mínimo <strong>de</strong><br />

quatro letras, outras três, ou mesmo duas, mas nenhuma criança aceita (a não ser que esteja em<br />

um momento muito inicial do processo, como vimos com Johnny William 2 ), escrever uma palavra<br />

com apenas uma letra. Se a lista não fosse em or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>crescente po<strong>de</strong>ríamos correr o risco <strong>de</strong><br />

ditar um dissílabo para um aluno que escreve silabicamente, mas tem como quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> mínima<br />

três letras, por exemplo, e com isso perturbá-lo a ponto <strong>de</strong> alterar o comportamento <strong>de</strong>le na<br />

entrevista. O número <strong>de</strong>crescente <strong>de</strong> sílabas nas palavras <strong>da</strong> lista permite também que o professor<br />

<strong>de</strong>scubra qual o número mínimo <strong>de</strong> letras que seu aluno aceita escrever.<br />

Durante a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, o professor precisa tomar alguns cui<strong>da</strong>dos. Em primeiro lugar, ele <strong>de</strong>ve<br />

evitar escandir as palavras, isto é,ditá-las marcando as sílabas. Deve solicitar a leitura do aluno<br />

assim que este <strong>de</strong>r por termina<strong>da</strong> a escrita <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> item <strong>da</strong> lista. Essa leitura é tão ou mais<br />

importante do que a própria escrita pois é ela que permite ao professor verificar se o<br />

aluno estabelece algum tipo <strong>de</strong> correspondência entre partes do falado e partes do escrito.<br />

E, evi<strong>de</strong>ntemente, é importante não corrigir o que o aluno escrever, pois o que queremos<br />

é saber exatamente como ele pensa.<br />

Essa entrevista individual, bem semelhante às que aparecem nos ví<strong>de</strong>os Construção <strong>da</strong> escrita e<br />

Construção <strong>da</strong> escrita: primeiros passos <strong>de</strong>ve se manter sempre como instrumento do professor; sua<br />

única função <strong>de</strong>ve ser a <strong>de</strong> aju<strong>da</strong>r o professor a se situar com relação ao percurso <strong>de</strong><br />

aprendizagem <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong> seus alunos, para po<strong>de</strong>r planejar a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>mente as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e<br />

para po<strong>de</strong>r organizar agrupamentos produtivos.<br />

O uso institucional <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> instrumento, no entanto, tem se mostrado extremamente<br />

perigoso. Isso acontece por duas razões, uma técnica e outra política.<br />

Vamos começar pelo problema <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m técnica. Esse não é um instrumento que se possa<br />

utilizar em massa. Para obter informações minimamente confiáveis, é necessário que a entrevista<br />

seja realiza<strong>da</strong> individualmente, por profissional com formação a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>. Se, como tem sido feito,<br />

a lista é dita<strong>da</strong> para a classe to<strong>da</strong> e o professor tenta adivinhar o que a criança pensou ao escrever<br />

apenas a partir do que está escrito no papel, po<strong>de</strong>-se afirmar que a maioria <strong>de</strong>ssas interpretações<br />

correspon<strong>de</strong> a invenções, sem qualquer valor diagnóstico.<br />

E se, além disso, esse material for usado para tomar <strong>de</strong>cisões que vão afetar a vi<strong>da</strong> escolar dos<br />

alunos — como a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> colocá-lo em uma classe "forte" ou "fraca", por exemplo —<br />

transforma-se em po<strong>de</strong>roso instrumento <strong>de</strong> exclusão social, pois "enquanto a língua escrita não<br />

estiver <strong>de</strong>mocraticamente distribuí<strong>da</strong> entre a população, o acesso à informação vincula<strong>da</strong> à língua<br />

escrita tampouco será acessível <strong>de</strong> uma maneira igualitária, e qualquer prova <strong>de</strong> conhecimento<br />

sobre a língua escrita, aplica<strong>da</strong> no começo do Ensino Fun<strong>da</strong>mental, terá um efeito discriminador". 3<br />

2<br />

Ver o ví<strong>de</strong>o Construção <strong>da</strong> escrita: primeiros passos.<br />

3<br />

Emilia Ferreiro, Cultura escrita e educação. Porto Alegre,Artes Médicas.<br />

M1U4T5<br />

2


Direitos imprescritíveis do leitor *<br />

Daniel Pennac<br />

Em matéria <strong>de</strong> leitura, nós, os leitores, nos conce<strong>de</strong>mos todos os direitos, a começar pelos que<br />

recusamos a essa gente jovem que preten<strong>de</strong>mos iniciar na leitura:<br />

1. O direito <strong>de</strong> não ler.<br />

2. O direito <strong>de</strong> pular páginas.<br />

3. O direito <strong>de</strong> não terminar um livro.<br />

4. O direito <strong>de</strong> reler.<br />

5. O direito <strong>de</strong> ler qualquer coisa.<br />

6. O direito ao bovarismo.<br />

7. O direito <strong>de</strong> ler em qualquer lugar.<br />

8. O direito <strong>de</strong> ler uma frase aqui e outra ali.<br />

9. O direito <strong>de</strong> ler em voz alta.<br />

10. O direito <strong>de</strong> calar. (…)<br />

Porque, se quisermos que um filho ou uma filha ou que os jovens leiam, é urgente lhes conce<strong>de</strong>r<br />

os direitos que proporcionamos a nós mesmos.<br />

O direito <strong>de</strong> não ler<br />

Como to<strong>da</strong> enumeração <strong>de</strong> "direitos" que se preze, esta dos direitos à leitura <strong>de</strong>veria começar<br />

pelo direito <strong>de</strong> não ser usado — no caso, o direito <strong>de</strong> não ler —, sem o que não se trataria <strong>de</strong><br />

uma lista <strong>de</strong> direitos, mas <strong>de</strong> uma viciosa armadilha.<br />

A maior parte dos leitores se conce<strong>de</strong> cotidianamente o direito <strong>de</strong> não ler. Sem macular nossa<br />

reputação, entre um bom livro e um telefilme ruim, o segundo muitas vezes ganha, mesmo que<br />

preferíssemos confessar ser o primeiro. Além disso, não lemos continuamente. Nossos períodos<br />

<strong>de</strong> leitura se alternam muitas vezes com longas dietas, on<strong>de</strong> até a visão <strong>de</strong> um livro <strong>de</strong>sperta os<br />

miasmas <strong>da</strong> indigestão.<br />

Mas o mais importante vem agora<br />

Estamos cercados <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas respeitáveis, às vezes diploma<strong>da</strong>s, às vezes<br />

"eminentes" — entre os quais alguns possuem mesmo belas bibliotecas —, mas que não lêem,<br />

* Extraído <strong>de</strong>: Como um romance,3ª.ed.Rocco, 1993.<br />

M1U4T6<br />

M1U4T6<br />

1


ou lêem tão pouco que não nos viria jamais a idéia <strong>de</strong> lhes oferecer um livro. Eles não lêem. Seja<br />

porque não sintam necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>, seja porque tenham coisas <strong>de</strong>mais para fazer (o que dá no mesmo<br />

é que essas outras coisas os obturam ou os obnubilam), seja porque alimentem um outro amor<br />

e o vivenciem <strong>de</strong> maneira absolutamente exclusiva. Enfim, essa gente não gosta <strong>de</strong> ler. Nem por<br />

isso eles são menos freqüentáveis, são mesmo muito agradáveis <strong>de</strong> se freqüentar. (Pelo menos<br />

não perguntam à queima-roupa nossa opinião sobre o último livro que lemos, nos livram <strong>de</strong> suas<br />

reservas irônicas sobre nosso romancista preferido e não nos consi<strong>de</strong>ram como alienados por<br />

não nos termos precipitado sobre o último Tal, que acaba <strong>de</strong> sair pela Editora Coisa e ao qual o<br />

crítico Duchmole fez os maiores elogios.) Eles são tão "humanos" quanto nós, perfeitamente<br />

sensíveis às <strong>de</strong>sgraças do mundo, atentos aos "direitos humanos" e preocupados em respeitálos<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> sua esfera <strong>de</strong> influência pessoal, o que já é muito. Mas eles não lêem. Direito <strong>de</strong>les.<br />

A idéia <strong>de</strong> que a leitura "humaniza o homem" é justa no seu todo, mesmo se ela pa<strong>de</strong>ce <strong>de</strong> algumas<br />

<strong>de</strong>primentes exceções.Tornamo-nos um pouco mais "humanos", enten<strong>da</strong>-se aí por um pouco mais<br />

solidários com a espécie (um pouco menos "animais"), <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> termos lido Tchecov.<br />

Mas evitemos vincular a esse teorema o corolário segundo o qual todo indivíduo que não lê<br />

po<strong>de</strong>ria ser consi<strong>de</strong>rado, em princípio, como um bruto potencial ou um absoluto cretino. Nesse<br />

caso, faremos a leitura passar por obrigação moral, o que é o começo <strong>de</strong> uma escala<strong>da</strong> que nos<br />

levará em segui<strong>da</strong> à "morali<strong>da</strong><strong>de</strong>" dos livros, em função <strong>de</strong> critérios que não terão qualquer<br />

respeito por essa outra liber<strong>da</strong><strong>de</strong> inalienável: a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> criar. E então os brutos seremos nós,<br />

por mais "leitores" que sejamos. E sabe Deus que não faltam brutos <strong>de</strong>ssa espécie, no mundo.<br />

Em outras palavras, a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever não saberia se acomo<strong>da</strong>r com o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> ler.<br />

O <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> educar consiste, no fundo, no ensinar as crianças a ler, iniciando-as na literatura,<br />

fornecendo-lhes meios <strong>de</strong> julgar livremente se elas sentem ou não a "necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> livros".<br />

Porque, se po<strong>de</strong>mos admitir que um indivíduo rejeite a leitura, é intolerável que ele seja rejeitado<br />

por ela.<br />

É uma tristeza imensa, uma solidão <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> solidão ser excluído dos livros – inclusive <strong>da</strong>queles<br />

que não nos interessam.<br />

M1U4T6<br />

2


Da utili<strong>da</strong><strong>de</strong> dos animais *<br />

Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

Terceiro dia <strong>de</strong> aula. A professora é um amor. Na sala, estampas colori<strong>da</strong>s mostram animais <strong>de</strong><br />

todos os feitios. É preciso querer bem a eles, diz a professora, com um sorriso que envolve to<strong>da</strong><br />

a fauna, protegendo-a. Eles têm direito à vi<strong>da</strong>, como nós, e além disso são muito úteis. Quem não<br />

sabe que o cachorro é o maior amigo <strong>da</strong> gente? Cachorro faz muita falta. Mas não é só ele, não.<br />

A galinha, o peixe, a vaca… Todos aju<strong>da</strong>m.<br />

— Aquele cabeludo ali, professora, também aju<strong>da</strong>?<br />

— Aquele? É o iaque, um boi <strong>da</strong> Ásia Central. Aquele serve <strong>de</strong> montaria e <strong>de</strong> burro <strong>de</strong> carga.<br />

Do pêlo se fazem perucas bacaninhas. E a carne, dizem que é gostosa.<br />

— Mas se serve <strong>de</strong> montaria, como é que a gente vai comer ele?<br />

— Bem, primeiro serve para uma coisa, <strong>de</strong>pois para outra.Vamos adiante. Este é o texugo. Se<br />

vocês quiserem pintar a pare<strong>de</strong> do quarto, escolham pincel <strong>de</strong> texugo. Parece que é ótimo.<br />

— Ele faz pincel, professora?<br />

— Quem, o texugo? Não, só fornece o pêlo. Para pincel <strong>de</strong> barba também, que o Artuzinho vai<br />

usar quando crescer.<br />

Artuzinho objetou que preten<strong>de</strong> usar barbeador elétrico.Além do mais, não gostaria <strong>de</strong> pelar o<br />

texugo, uma vez que <strong>de</strong>vemos gostar <strong>de</strong>le, mas a professora já explicava a utili<strong>da</strong><strong>de</strong> do canguru:<br />

— Bolsas, malas, maletas, tudo isso o couro do canguru dá pra gente. Não falando na carne.<br />

Canguru é utilíssimo.<br />

— Vivo, fessora?<br />

— A vicunha, que vocês estão vendo aí, produz… produz é maneira <strong>de</strong> dizer, ela fornece, ou por<br />

outra, com o pêlo <strong>de</strong>la nós preparamos ponchos, mantas, cobertores etc.<br />

— Depois a gente come a vicunha, né fessora?<br />

— Daniel, não é preciso comer todos os animais. Basta retirar a lã <strong>da</strong> vicunha, que torna a crescer…<br />

— E a gente torna a cortar? Ela não tem sossego, tadinha.<br />

— Vejam agora como a zebra é camara<strong>da</strong>. Trabalha no circo, e seu couro listrado serve para<br />

forro <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ira, <strong>de</strong> almofa<strong>da</strong> e para tapete.Também se aproveita a carne, sabem?<br />

* In:“As palavras que ninguém diz”. Coleção Mineiramente Drummond - Crônicas: Seleção Luzia <strong>de</strong> Maria. Record, 1997.<br />

M1U4T7<br />

M1U4T7<br />

1


— A carne também é listra<strong>da</strong>? Pergunta que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia riso geral.<br />

— Não riam <strong>da</strong> Betty, ela é uma garota que quer saber direito as coisas. Queri<strong>da</strong>, eu nunca vi<br />

carne <strong>de</strong> zebra no açougue, mas posso garantir que não é listra<strong>da</strong>. Se fosse, não <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> ser<br />

comestível por causa disso.<br />

— Ah, o pingüim? Este vocês já conhecem <strong>da</strong> praia do Leblon, on<strong>de</strong> costuma aparecer, trazido<br />

pela correnteza. Pensam que só serve para brincar? Estão enganados.Vocês <strong>de</strong>vem respeitar<br />

o bichinho. O excremento – não sabem o que é? O cocô do pingüim é um adubo maravilhoso:<br />

guano, rico em nitrato. O óleo feito com a gordura do pingüim…<br />

— A senhora disse que a gente <strong>de</strong>ve respeitar.<br />

— Claro. Mas o óleo é bom.<br />

— Do javali, professora, duvido que a gente lucre alguma coisa.<br />

— Pois lucra. O pêlo dá escovas <strong>de</strong> ótima quali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

— E o castor?<br />

— Pois quando voltar a mo<strong>da</strong> do chapéu para homens, o castor vai prestar muito serviço.Aliás, já<br />

presta, com a pele usa<strong>da</strong> para agasalhos. É o que se po<strong>de</strong> chamar um bom exemplo.<br />

— Eu, hem?<br />

— Dos chifres do rinoceronte, Belá,você po<strong>de</strong> encomen<strong>da</strong>r um vaso raro para o living <strong>de</strong> sua<br />

casa. Do couro <strong>da</strong> girafa, Luís Gabriel, po<strong>de</strong> tirar um escudo <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>ixando os pêlos <strong>da</strong><br />

cau<strong>da</strong> para Teresa fazer um bracelete genial. A tartaruga-marinha, meu Deus, é <strong>de</strong> uma utili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

que vocês não calculam. Comem-se os ovos e toma-se a sopa: uma <strong>de</strong>-lí-cia. O casco serve para<br />

fabricar pentes, cigarreiras, tanta coisa… O biguá é engraçado.<br />

— Engraçado como?<br />

— Apanha peixe pra gente.<br />

— Apanha e entrega, professora?<br />

— Não é bem assim.Você bota um anel no pescoço <strong>de</strong>le, e o biguá pega o peixe mas não po<strong>de</strong><br />

engolir. Então você tira o peixe <strong>da</strong> goela do biguá.<br />

— Bobo que ele é.<br />

— Não. É útil. Ai <strong>de</strong> nós se não fossem os animais que nos aju<strong>da</strong>m <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as maneiras. Por isso<br />

que eu digo: <strong>de</strong>vemos amar os animais, e não maltratá-los <strong>de</strong> jeito nenhum. Enten<strong>de</strong>u, Ricardo?<br />

— Entendi. A gente <strong>de</strong>ve amar, respeitar, pelar e comer os animais, e aproveitar bem o pêlo, o<br />

couro e os ossos.<br />

M1U4T7<br />

2


Maria Angula *<br />

Maria Angula era uma menina alegre e viva, filha <strong>de</strong> um fazen<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Cayambe. Era louca por<br />

uma fofoca e vivia fazendo intrigas com os amigos para jogá-los uns contra os outros. Por isso<br />

tinha fama <strong>de</strong> leva-e-traz, linguaru<strong>da</strong>, e era chama<strong>da</strong> <strong>de</strong> moleca fofoqueira.<br />

Assim viveu Maria Angula até os <strong>de</strong>zesseis anos, <strong>de</strong>cidi<strong>da</strong> a armar confusão entre os vizinhos, sem<br />

ter tempo para apren<strong>de</strong>r a cui<strong>da</strong>r e a preparar pratos saborosos.<br />

Quando Maria Angula se casou, começaram os seus problemas. No primeiro dia, o marido pediu-lhe<br />

que fizesse uma sopa <strong>de</strong> pão com miúdos, mas ela não tinha a menor idéia <strong>de</strong> como prepará-la.<br />

Queimando as mãos com uma mecha embebi<strong>da</strong> em gordura, acen<strong>de</strong>u o carvão e levou ao fogo um<br />

cal<strong>de</strong>irão com água, sal e colorau, 1 mas não conseguiu sair disso: não fazia idéia <strong>de</strong> como continuar<br />

Maria lembrou-se então <strong>de</strong> que na casa vizinha morava dona Merce<strong>de</strong>s, cozinheira <strong>de</strong> mão-cheia,<br />

e, sem pensar duas vezes, correu até lá.<br />

— Minha cara vizinha, por acaso a senhora sabe fazer sopa <strong>de</strong> pão com miúdos?<br />

— Claro, dona Maria. É assim: primeiro coloca-se o pão <strong>de</strong> molho em uma xícara <strong>de</strong> leite,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong>speja-se este pão no caldo e, antes que ferva, acrescentam-se os miúdos.<br />

— Só isso?<br />

— Só, vizinha.<br />

— Ah — disse Maria Angula —, mas isso eu já sabia!<br />

E voou para a sua cozinha a fim <strong>de</strong> não esquecer a receita.<br />

No dia seguinte, como o marido lhe pediu que fizesse um ensopado <strong>de</strong> batatas com toicinho, a<br />

história se repetiu:<br />

— Dona Merce<strong>de</strong>s, a senhora sabe como se faz o ensopado <strong>de</strong> batatas com toicinho?<br />

E como <strong>da</strong> outra vez, tão logo a sua boa amiga lhe <strong>de</strong>u to<strong>da</strong>s as explicações, Maria Angula exclamou:<br />

— Ah! É só? Mas isso eu já sabia! — E correu imediatamente para casa a fim <strong>de</strong> prepará-lo.<br />

Como isso acontecia to<strong>da</strong>s as manhãs, dona Merce<strong>de</strong>s acabou se enfezando. Maria Angula vinha<br />

sempre com a mesma história: "Ah, é assim que se faz o arroz com carneiro? Mas isso eu já<br />

sabia! Ah, é assim que se prepara a dobradinha? Mas isso eu já sabia!". Por isso a mulher <strong>de</strong>cidiu<br />

<strong>da</strong>r-lhe uma lição e, no dia seguinte…<br />

— Dona Mercedinha!<br />

M1U4T8<br />

* Extraído <strong>de</strong>: Contos <strong>de</strong> assombração,4ª.ed. Co-edição Latino-Americana. São Paulo, Ática, 1988.“Maria Angula” é um conto <strong>da</strong> tradição oral equatoriana.<br />

Esta versão foi escrita por Jorge Renón <strong>de</strong> La Torre a partir <strong>de</strong> um relato que lhe fez Maria Gomez, uma mulher <strong>de</strong> 70 anos, que vive<br />

no povoado <strong>de</strong> Otán. Jorge Renón <strong>de</strong> La Torre nasceu em Quito, em 1945, e já publicou contos, fábulas e obras <strong>de</strong> teatro infantil.<br />

1 Colorau: condimento <strong>de</strong> cor vermelha, no caso <strong>de</strong>ste conto, feito especialmente <strong>da</strong> semente do urucum, como man<strong>da</strong> o costume equatoriano,<br />

mas que po<strong>de</strong> ser feito também à base <strong>de</strong> pimentão, e que serve sobretudo para <strong>da</strong>r cor aos alimentos.<br />

M1U4T8<br />

1


— O que <strong>de</strong>seja, dona Maria?<br />

— Na<strong>da</strong>, queri<strong>da</strong>, só que meu marido quer comer no jantar um caldo <strong>de</strong> tripas e bucho e eu…<br />

— Ah, mas isso é fácil <strong>de</strong>mais! — disse dona Merce<strong>de</strong>s. E antes que Maria Angula a interrompesse,<br />

continuou:<br />

— Veja: vá ao cemitério levando um facão bem afiado. Depois espere chegar o último <strong>de</strong>funto do<br />

dia e, sem que ninguém a veja, retire as tripas e o estômago <strong>de</strong>le. Ao chegar em casa, lave-os<br />

muito bem e cozinhe-os com água, sal e cebolas. Depois que ferver uns <strong>de</strong>z minutos, acrescente<br />

alguns grãos <strong>de</strong> amendoim e está pronto. É o prato mais saboroso que existe.<br />

— Ah! — disse como sempre Maria Angula. — É só? Mas isso eu já sabia!<br />

E, num piscar <strong>de</strong> olhos, estava ela no cemitério, esperando pela chega<strong>da</strong> do <strong>de</strong>funto mais fresquinho.<br />

Quando já não havia mais ninguém por perto, dirigiu-se em silêncio à tumba escolhi<strong>da</strong>.Tirou a<br />

terra que cobria o caixão, levantou a tampa e… Ali estava o pavoroso semblante do <strong>de</strong>funto! Teve<br />

ímpetos <strong>de</strong> fugir, mas o próprio medo a <strong>de</strong>teve ali.Tremendo dos pés à cabeça, pegou o facão e<br />

cravou-o uma, duas, três vezes na barriga do finado e, com <strong>de</strong>sespero, arrancou-lhe as tripas e o<br />

estômago. Então voltou correndo para casa. Logo que conseguiu recuperar a calma, preparou a<br />

janta macabra que, sem saber, o marido comeu lambendo-se os beiços.<br />

Nessa mesma noite, enquanto Maria Angula e o marido dormiam, escutaram-se uns gemidos nas<br />

redon<strong>de</strong>zas. Ela acordou sobressalta<strong>da</strong>. O vento zumbia misteriosamente nas janelas, sacudindo-as,<br />

e <strong>de</strong> fora vinham uns ruídos muito estranhos, <strong>de</strong> meter medo a qualquer um.<br />

De súbito, Maria Angula começou a ouvir um rangido nas esca<strong>da</strong>s. Eram os passos <strong>de</strong> alguém que<br />

subia em direção ao seu quarto, com um an<strong>da</strong>r dificultoso e retumbante, e que se <strong>de</strong>teve diante<br />

<strong>da</strong> porta. Fez-se um minuto eterno <strong>de</strong> silêncio e logo <strong>de</strong>pois Maria Angula viu o resplendor<br />

fosforescente <strong>de</strong> um fantasma. Um grito surdo e prolongado paralisou-a.<br />

— Maria Angula, <strong>de</strong>volva as minhas tripas e o meu estômago, que você roubou <strong>da</strong> minha<br />

santa sepultura!<br />

Maria Angula sentou-se na cama, horroriza<strong>da</strong>, e, com os olhos esbugalhados <strong>de</strong> tanto medo, viu<br />

a porta se abrir, empurra<strong>da</strong> lentamente por essa figura luminosa e <strong>de</strong>scarna<strong>da</strong>.<br />

A mulher per<strong>de</strong>u a fala. Ali, diante <strong>de</strong>la, estava o <strong>de</strong>funto, que avançava mostrando-lhe o seu<br />

semblante rígido e o seu ventre esvaziado.<br />

— Maria Angula, <strong>de</strong>volva as minhas tripas e o meu estômago, que você roubou <strong>da</strong> minha<br />

santa sepultura!<br />

Aterroriza<strong>da</strong>, escon<strong>de</strong>u-se <strong>de</strong>baixo <strong>da</strong>s cobertas para não vê-lo, mas imediatamente sentiu umas<br />

mãos frias e ossu<strong>da</strong>s puxarem-na pelas pernas e arrastarem-na gritando:<br />

— Maria Angula, <strong>de</strong>volva as minhas tripas e o meu estômago, que você roubou <strong>da</strong> minha<br />

santa sepultura!<br />

Quando Manuel acordou, não encontrou mais a esposa e, muito embora tenha procurado por<br />

ela em to<strong>da</strong> parte, jamais soube do seu para<strong>de</strong>iro.<br />

M1U4T8<br />

2


M1U4T9<br />

Contribuições à prática pe<strong>da</strong>gógica-2<br />

Este texto não integra a <strong>Coletânea</strong> <strong>de</strong> <strong>Textos</strong> disponível na Internet porque refere-se<br />

ao conteúdo dos ví<strong>de</strong>os que integram as uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s do Programa <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores<br />

Alfabetizadores e, portanto, só fazem sentido para os participantes do Curso.<br />

M1U4T9<br />

1


O primeiro beijo *<br />

Clarice Lispector<br />

Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos an<strong>da</strong>vam<br />

tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.<br />

— Está bem, acredito que sou sua primeira namora<strong>da</strong>, fico feliz com isso. Mas me diga a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>: você<br />

nunca beijou uma mulher antes <strong>de</strong> me beijar?<br />

Ele foi simples:<br />

— Sim, já beijei antes uma mulher.<br />

— Quem era ela?, perguntou com dor.<br />

Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.<br />

O ônibus <strong>da</strong> excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio <strong>da</strong> garota<strong>da</strong> em<br />

algazarra, <strong>de</strong>ixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com <strong>de</strong>dos longos,<br />

finos e sem peso como os <strong>de</strong> uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir<br />

— era bom. A concentração no sentir era difícil no meio <strong>da</strong> balbúrdia dos companheiros.<br />

E mesmo a se<strong>de</strong> começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do<br />

motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vi<strong>da</strong>! Como <strong>de</strong>ixava a garganta seca.<br />

E nem sombra <strong>de</strong> água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois <strong>de</strong> reuni<strong>da</strong> na boca<br />

ar<strong>de</strong>nte engolia-a lentamente, outra vez e mais outra. Uma se<strong>de</strong> enorme maior do que<br />

ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.<br />

A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio-dia tornara-se quente e ári<strong>da</strong> e ao penetrar pelo<br />

nariz secava ain<strong>da</strong> mais a pouca saliva que pacientemente juntava.<br />

E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos <strong>da</strong>quele vento do <strong>de</strong>serto? Tentou por<br />

instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, talvez<br />

horas, enquanto sua se<strong>de</strong> era <strong>de</strong> anos.<br />

Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto <strong>da</strong> água, pressentia-a mais próxima, e<br />

seus olhos saltavam para fora <strong>da</strong> janela procurando a estra<strong>da</strong>, penetrando entre os arbustos,<br />

espreitando, farejando.<br />

O instinto animal <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le não errara: na curva inespera<strong>da</strong> <strong>da</strong> estra<strong>da</strong>, entre arbustos, estava…<br />

* O primeiro beijo e outros contos - Antologia, Editora Ática, 1998.<br />

M1U5T1<br />

M1U5T1<br />

1


o chafariz <strong>de</strong> on<strong>de</strong> brotava num filete a água sonha<strong>da</strong>.<br />

O ônibus parou, todos estavam com se<strong>de</strong> mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz<br />

<strong>de</strong> pedra, antes <strong>de</strong> todos.<br />

De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício <strong>de</strong> on<strong>de</strong> jorrava a água.<br />

O primeiro gole fresco <strong>de</strong>sceu, escorrendo pelo peito até a barriga.<br />

Era a vi<strong>da</strong> voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora<br />

podia abrir os olhos.<br />

Abriu-os e viu bem junto <strong>de</strong> sua cara dois olhos <strong>de</strong> estátua fitando-o e viu que era a estátua <strong>de</strong><br />

uma mulher e que era <strong>da</strong> boca <strong>da</strong> mulher que saía a água. Lembrou-se <strong>de</strong> que realmente ao<br />

primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.<br />

E soube então que havia colado sua boca na boca <strong>da</strong> estátua <strong>da</strong> mulher <strong>de</strong> pedra. A vi<strong>da</strong> havia<br />

jorrado <strong>de</strong>ssa boca, <strong>de</strong> uma boca para outra. Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia-se<br />

intrigado: mas não é <strong>de</strong> uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>…<br />

Olhou a estátua nua.<br />

Ele a havia beijado.<br />

Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le e tomou-lhe o<br />

corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva.<br />

Deu um passo para trás ou para a frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu<br />

que uma parte do seu corpo, sempre antes relaxa<strong>da</strong>, estava agora com uma tensão agressiva, e<br />

isso nunca lhe tinha acontecido.<br />

Estava <strong>de</strong> pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, <strong>de</strong> coração batendo fundo,<br />

espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vi<strong>da</strong> era inteiramente nova, era outra, <strong>de</strong>scoberta<br />

com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.<br />

Até que, vin<strong>da</strong> <strong>da</strong> profun<strong>de</strong>za <strong>de</strong> seu ser, jorrou <strong>de</strong> uma fonte oculta nele a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Que logo o<br />

encheu <strong>de</strong> susto e logo também <strong>de</strong> orgulho antes jamais sentido: ele…<br />

Ele se tornara homem.<br />

M1U5T1<br />

2


* Extraido <strong>de</strong>: Museu <strong>de</strong> tudo, 1975<br />

O artista inconfessável *<br />

João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto<br />

Fazer o que seja é inútil.<br />

Não fazer na<strong>da</strong> é inútil.<br />

Mas entre fazer e não fazer<br />

mais vale o inútil do fazer.<br />

Mas não, fazer para esquecer<br />

que é inútil: nunca o esquecer.<br />

Mas fazer o inútil sabendo<br />

que ele é inútil, e bem sabendo<br />

que é inútil e que seu sentido<br />

não será sequer pressentido,<br />

fazer: porque ele é mais difícil<br />

do que não fazer, e dificilmente<br />

se po<strong>de</strong>rá dizer<br />

com mais <strong>de</strong>sdém, ou então dizer<br />

mais direto ao leitor Ninguém<br />

que o feito o foi para ninguém.<br />

M1U5T2<br />

M1U5T2<br />

1


José Francisco Borges<br />

Em abril <strong>de</strong> 1500<br />

Quando Cabral ancorou<br />

Na praia em Porto Seguro<br />

Logo na terra pisou<br />

Os índios logo cercaram<br />

E ele assustou<br />

Cabral disse aos índios<br />

Estou cumprindo o meu papel<br />

E eu vou provar que sou<br />

Um forasteiro fiel<br />

Vou man<strong>da</strong>r ler pra vocês<br />

Uma história <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l<br />

Os índios ao ouvir gostaram<br />

Num tom alegre e sutil<br />

Não precisou usar armas<br />

A 22 <strong>de</strong> abril<br />

Do ano <strong>de</strong> 1500<br />

Foi <strong>de</strong>scoberto o Brasil<br />

E <strong>da</strong>í continuou<br />

A história <strong>de</strong>ste país<br />

Veio lá <strong>de</strong> Portugal<br />

A primeira diretriz<br />

Que até a in<strong>de</strong>pendência<br />

Bem poucos foram feliz<br />

O Brasil era na época<br />

Um reino <strong>da</strong> natureza<br />

Montanha e água limpa<br />

Índio em sua fortaleza<br />

As águas limpas espumando<br />

No topo <strong>da</strong> correnteza<br />

Depois que eles voltaram<br />

Quando chegaram em Lisboa<br />

Disseram ao seu rei<br />

A viagem não foi à toa<br />

Descobrimos um país<br />

Uma terra fértil e boa<br />

500 anos <strong>de</strong> Brasil<br />

(em versos <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>l)<br />

José Francisco Borges<br />

E o rei logo em segui<strong>da</strong><br />

Uma equipe escolheu<br />

Para habitar as terras<br />

sobre o domínio seu<br />

Vieram homem e mulher<br />

Com or<strong>de</strong>ns que o rei lhes <strong>de</strong>u<br />

E todos <strong>de</strong>sembarcaram<br />

Ao chegarem na Bahia<br />

Reinava uma esperança<br />

De serem felizes um dia<br />

E todos foram separados<br />

Pra ca<strong>da</strong> capitania<br />

E logo mais começou<br />

A gran<strong>de</strong> explosão<br />

De todo minério<br />

Prata, ouro e carvão<br />

E to<strong>da</strong>s pedras preciosas<br />

Que havia no chão<br />

O Brasil nasceu na Bahia<br />

Lá mesmo em Porto Seguro<br />

E levou centenas <strong>de</strong> anos<br />

Pra ter brasileiro puro<br />

E os primeiros protestos<br />

Pra melhorar o futuro<br />

O Brasil passou a ter<br />

O domínio dos portugueses<br />

Depois veio os espanhóis<br />

Os alemães e ingleses<br />

E ain<strong>da</strong> sofremos <strong>de</strong> guerra<br />

Na invasão dos holan<strong>de</strong>ses<br />

Foi mais <strong>de</strong> 300 anos<br />

Pra vir a in<strong>de</strong>pendência<br />

Os brasileiros lutando<br />

Com força e com paciência<br />

E ain<strong>da</strong> hoje se sofre<br />

Desses tempos a influência<br />

M1U5T3<br />

M1U5T3<br />

1


M1U5T3<br />

Falando em melhoramento<br />

Veio a nós a ferrovia<br />

Que transportava o minério<br />

Gente e mercadoria<br />

No tempo que os escravos<br />

Sonhavam com alforria<br />

O gran<strong>de</strong> Joaquim Nabuco<br />

E a princesa Isabel<br />

Em 1888<br />

Vendo o sofrer cruel<br />

Libertaram os escravos<br />

Daquela taça <strong>de</strong> fel<br />

Depois que muitos morreram<br />

Lutando por liber<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

A proclamação <strong>da</strong> república<br />

Foi a gran<strong>de</strong> novi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Veio a <strong>de</strong>mocracia<br />

O símbolo <strong>da</strong> igual<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

E foi aí que começou<br />

Ganância pelo po<strong>de</strong>r<br />

Os homens mais influentes<br />

Querendo se eleger<br />

Prometendo ao eleitor<br />

O que não po<strong>de</strong> fazer<br />

Com o po<strong>de</strong>r do voto livre<br />

Houve gran<strong>de</strong>s estadistas<br />

Em 1930<br />

Getúlio entre os otimistas<br />

se elegeu presi<strong>de</strong>nte<br />

lançou as leis trabalhistas<br />

Acabou com a anarquia<br />

Com cartéis e com ladrão<br />

Trouxe várias indústrias<br />

Pra melhora <strong>da</strong> nação<br />

Acabou o cangaceirismo<br />

Que assombrava o sertão<br />

Construiu mais ferrovia<br />

E estra<strong>da</strong> <strong>de</strong> ro<strong>da</strong>gem<br />

Fechou câmaras e senado<br />

Acabou a malandragem<br />

E sua história política<br />

Merece nossa homenagem<br />

Outro gran<strong>de</strong> personagem<br />

O presi<strong>de</strong>nta Juscelino<br />

Que construiu Brasília<br />

Da on<strong>de</strong> sai o <strong>de</strong>stino<br />

<strong>de</strong>sta imensa nação<br />

do sul ao solo nor<strong>de</strong>stino<br />

O gran<strong>de</strong> Tancredo Neves<br />

Que lutou pelas diretas<br />

2<br />

Defen<strong>de</strong>ndo os brasileiros<br />

De to<strong>da</strong>s horas incertas<br />

Morreu pela <strong>de</strong>mocracia<br />

Deixando as portas abertas<br />

Num colégio eleitoral<br />

Foi <strong>de</strong>sfeita a ditadura<br />

Elegeram José Sarney<br />

Ele honrou sua figura<br />

Protegendo o artesão<br />

O artista e a cultura<br />

Depois <strong>de</strong>le vieram outros<br />

Desfazer o que ele fez<br />

Durante suas gestões<br />

Artista não teve vez<br />

E aju<strong>da</strong> para cultura<br />

Po<strong>de</strong> vir, mas é talvez<br />

Apesar <strong>de</strong> muitas coisas<br />

Mas in<strong>da</strong> dou atenção<br />

Ao presi<strong>de</strong>nte atual<br />

Que dirige esta nação<br />

porque ele foi herói<br />

Acabando a inflação<br />

Lançou o plano real<br />

Enfrentando o precipício<br />

Mas trouxe muita alegria<br />

Para o povo no início<br />

Mas agora o <strong>de</strong>semprego<br />

Vem trazendo o sacrifício<br />

Aqui eu vou encerrando<br />

Estes versinhos que fiz<br />

Dando toques na história<br />

Desse imenso país<br />

Que ain<strong>da</strong> está muito longe<br />

Para o povo ser feliz<br />

Cui<strong>da</strong>mos em belas ações<br />

Cui<strong>da</strong>mos <strong>de</strong> trabalhar<br />

Cui<strong>da</strong>mos <strong>de</strong> ser honestos<br />

Cui<strong>da</strong>mos <strong>de</strong> estu<strong>da</strong>r<br />

Trabalho, estudo e cultura<br />

Faz o Brasil avançar<br />

Neste ano <strong>de</strong> 2000<br />

A 22 <strong>de</strong> abril<br />

É o gran<strong>de</strong> aniversário<br />

<strong>de</strong>ste torrão varonil<br />

Brin<strong>da</strong>mos 500 anos<br />

Do nosso amado Brasil.


Aspectos que <strong>de</strong>terminam uma<br />

boa situação <strong>de</strong> aprendizagem<br />

Caro professor, cara professora<br />

Nos últimos encontros, discutimos os processos <strong>de</strong> aprendizagem <strong>da</strong> escrita e assistimos a uma<br />

série <strong>de</strong> situações didáticas <strong>de</strong> alfabetização na sala <strong>de</strong> aula, apresenta<strong>da</strong>s no Programa Escrever<br />

para Apren<strong>de</strong>r. Muito bem. Agora, a proposta é refletir sobre os aspectos que <strong>de</strong>terminam uma<br />

boa situação <strong>de</strong> aprendizagem, utilizando como referência o que se pô<strong>de</strong> ver no programa.<br />

Vamos a elas...<br />

Quando nos referimos, neste curso, à "situação <strong>de</strong> aprendizagem", estamos falando <strong>de</strong> algo que<br />

resulta <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> planeja<strong>da</strong> pelo professor combina<strong>da</strong> com a intervenção pe<strong>da</strong>gógica realiza<strong>da</strong><br />

durante essa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, para incidir na aprendizagem dos alunos. O que assistimos no Programa<br />

Escrever para Apren<strong>de</strong>r foram cinco situações <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong> escrita: as propostas foram<br />

planeja<strong>da</strong>s; os <strong>de</strong>safios apresentados estavam ajustados às possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem dos<br />

alunos; as parcerias potencializaram seus esforços intelectuais colocando questões sobre a<br />

escrita para eles pensarem; as intervenções <strong>da</strong>s professoras foram problematizadoras, ou<br />

seja, colocaram bons problemas para serem resolvidos pelos alunos. São cui<strong>da</strong>dos como esses<br />

que po<strong>de</strong>m elevar uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> muito simples à condição <strong>de</strong> uma boa situação <strong>de</strong> aprendizagem.<br />

Não obstante, esses cui<strong>da</strong>dos e <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong>correm <strong>de</strong> quatro princípios didáticos * que utilizamos<br />

para <strong>de</strong>finir uma boa situação <strong>de</strong> aprendizagem e sobre os quais fazemos referência também nos<br />

programas. Uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> uma boa situação <strong>de</strong> aprendizagem quando:<br />

1. Os alunos precisam pôr em jogo tudo o que sabem e pensam sobre o conteúdo em torno do<br />

qual o professor organizou a tarefa.<br />

2. Os alunos têm problemas a resolver e <strong>de</strong>cisões a tomar em função do que se propõem a produzir.<br />

3. O conteúdo trabalhado mantém as suas características <strong>de</strong> objeto sociocultural real — por<br />

isso, no caso <strong>da</strong> alfabetização, a proposta é o uso <strong>de</strong> textos, e não <strong>de</strong> sílabas ou palavras soltas.<br />

4. A organização <strong>da</strong> tarefa garante a máxima circulação <strong>de</strong> informação possível entre os alunos<br />

— por isso as situações propostas <strong>de</strong>vem prever o intercâmbio, a interação entre eles.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, esses princípios didáticos fazem muito mais sentido quando consi<strong>de</strong>ramos a<br />

concepção <strong>de</strong> ensino e aprendizagem que orienta este curso. Conforme já discutimos em encontros<br />

*<br />

Telma Weisz In O diálogo entre o ensino e aprendizagem,São Paulo, Ática, 2000.<br />

M1U5T4<br />

M1U5T4<br />

1


anteriores, reconhecemos que os alunos são sujeitos intelectualmente ativos (pensam, comparam,<br />

refletem, categorizam, analisam, excluem, or<strong>de</strong>nam...), que procuram compreen<strong>de</strong>r o mundo que os<br />

ro<strong>de</strong>ia e que apren<strong>de</strong>m, basicamente, por meio <strong>de</strong> suas ações sobre os objetos do mundo, que<br />

se convertem em objetos do seu conhecimento.<br />

Os dois primeiros princípios dão forma didática à visão do aprendiz como sujeito que constrói<br />

seu próprio conhecimento e <strong>de</strong>man<strong>da</strong>m <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s propostas aos alunos a condição <strong>de</strong><br />

situações <strong>de</strong>safiadoras, ou seja, ao mesmo tempo difíceis e possíveis para o aluno.<br />

O progresso no conhecimento é obtido através <strong>da</strong> resolução <strong>de</strong> situações-problema, <strong>da</strong> superação<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>safios. Diante <strong>de</strong> um conteúdo não completamente assimilável o sujeito é levado a uma<br />

modificação <strong>de</strong> seus esquemas interpretativos, pois aqueles <strong>de</strong> que dispõe no momento não<br />

são suficientes para resolver algo que se apresenta como um <strong>de</strong>safio. Essas modificações<br />

<strong>de</strong>man<strong>da</strong>m esforços, não ocorrem facilmente, por isso enfrentamos o que a nós se coloca como<br />

um problema quando sentimos <strong>de</strong> fato necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>, quando atribuímos sentido à tarefa, a ponto<br />

<strong>de</strong> enfrentar os conflitos ocasionados pela insuficiência do conhecimento disponível naquele momento.<br />

Em suma, apren<strong>de</strong>mos à medi<strong>da</strong> que enfrentamos problemas e modificamos nossos esquemas<br />

interpretativos por meio <strong>de</strong> esforços intelectuais. Em outras palavras, apren<strong>de</strong>mos à medi<strong>da</strong> que<br />

os <strong>de</strong>safios colocados obrigam a pensar, a reorganizar o conhecimento que temos, a buscar mais<br />

informação, a refletir para buscar respostas.<br />

Reconhecer a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> intelectual dos alunos e a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> arranjar situações-problema<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s para pensarem são pontos <strong>de</strong>terminantes que balizam este curso.<br />

Nesse contexto, o <strong>de</strong>safio maior para o professor é saber o que seus alunos pensam e sabem<br />

para po<strong>de</strong>r ajustar as propostas, as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, ou seja, lançar problemas a<strong>de</strong>quados às suas<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem em ca<strong>da</strong> momento <strong>da</strong> escolari<strong>da</strong><strong>de</strong>. Como bem sabemos, a<br />

diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> é inevitável na sala <strong>de</strong> aula: teremos sempre alunos com níveis <strong>de</strong> compreensão<br />

e conhecimento diferentes e, por isso, o professor precisa conhecer, analisar e acompanhar o que<br />

eles produzem, para planejar as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e os agrupamentos, consi<strong>de</strong>rando os ritmos e possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

cui<strong>da</strong>ndo para que "a música não vibre alto <strong>de</strong>mais", ou que sequer seja ouvi<strong>da</strong> por eles.<br />

Vamos agora aprofun<strong>da</strong>r um pouco a reflexão sobre as boas situações <strong>de</strong> aprendizagem,<br />

analisando as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s apresenta<strong>da</strong>s no Programa 5, Escrever para Apren<strong>de</strong>r. Para tanto,<br />

utilizaremos os dois últimos princípios apresentados e, mais adiante, no Programa 8 (Ler para<br />

Apren<strong>de</strong>r), discutiremos melhor os dois primeiros.<br />

• O conteúdo trabalhado mantém as suas características <strong>de</strong> objeto sociocultural real — por isso,<br />

no caso <strong>da</strong> alfabetização, a proposta é o uso <strong>de</strong> textos, e não <strong>de</strong> sílabas ou palavras soltas.<br />

Já discutimos em encontros anteriores que a alfabetização é um processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong><br />

hipóteses sobre o funcionamento e as regras <strong>de</strong> geração do sistema alfabético <strong>de</strong> escrita; por<br />

isso, a estratégia necessária para o aluno se alfabetizar não é a memorização, mas a reflexão sobre<br />

a escrita. Isto quer dizer que o sistema alfabético <strong>de</strong> escrita é um conteúdo complexo, e para<br />

compreendê-lo não basta memorizar infinitas famílias silábicas, é preciso um processo sistemático<br />

<strong>de</strong> reflexão sobre suas características e sobre o seu funcionamento. Discutimos também que os<br />

M1U5T4<br />

2


alunos se alfabetizam à medi<strong>da</strong> que são convi<strong>da</strong>dos a escrever e a ler, mesmo quando ain<strong>da</strong> não o<br />

fazem convencionalmente (Contribuições à prática pe<strong>da</strong>gógica — Uni<strong>da</strong><strong>de</strong> 3, Parte II). Reconhecer<br />

a natureza conceitual do processo <strong>de</strong> alfabetização e a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> a língua entrar na escola <strong>da</strong><br />

mesma forma que existe vi<strong>da</strong> afora é condição para planejar boas situações <strong>de</strong> aprendizagem.<br />

No Programa Escrever para Apren<strong>de</strong>r, to<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s foram organiza<strong>da</strong>s a partir <strong>de</strong> textos:<br />

listas, canções e textos informativos. As ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s criaram um contexto real <strong>de</strong> reflexão, afinal<br />

os alunos tinham que pensar em como escrever e, nessa situação, o importante não é exatamente<br />

chegar à resposta correta, mas ampliar os recursos para se aproximar ca<strong>da</strong> vez mais <strong>da</strong> compreensão<br />

<strong>de</strong> como funciona a escrita convencional.<br />

O que hoje sabemos é que, para isso ocorrer, os textos são os melhores aliados — não só porque<br />

garantem a não <strong>de</strong>scaracterização do que é conteúdo <strong>da</strong> alfabetização, mas porque <strong>de</strong>terminados<br />

tipos <strong>de</strong> texto favorecem a reflexão sobre as características <strong>da</strong> escrita alfabética. Quando as crianças<br />

ain<strong>da</strong> não lêem e não escrevem convencionalmente, a prática tem mostrado que alguns textos são<br />

bastante a<strong>de</strong>quados para as situações <strong>de</strong> leitura e escrita: listas, canções, poesias, receitas, parlen<strong>da</strong>s,<br />

provérbios, adivinhas, pia<strong>da</strong>s, trava-língua, regras <strong>de</strong> instrução. Geralmente são textos curtos,<br />

em que os alunos têm possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> antecipar o escrito (receitas conheci<strong>da</strong>s, regras <strong>de</strong><br />

instruções, listas...), ou que sabem <strong>de</strong> cor (poesias, canções, provérbios, parlen<strong>da</strong>s...). No caso dos<br />

textos poéticos, a organização em versos, a presença <strong>de</strong> rimas e os ritmos que animam ca<strong>da</strong> um<br />

<strong>de</strong>les colaboram para que as crianças, embora não saibam ler no sentido convencional, possam<br />

ler esses textos.<br />

• A organização <strong>da</strong> tarefa garante a máxima circulação <strong>de</strong> informação possível entre os alunos.<br />

Esse princípio traz a importância <strong>de</strong> o professor conhecer o que os alunos sabem para planejar<br />

bons agrupamentos, parcerias que potencializem a aprendizagem.<br />

Vamos retomar algumas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s apresenta<strong>da</strong>s no Programa 5, para enten<strong>de</strong>r um pouco mais<br />

esse princípio.<br />

A ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> proposta pela professora Rosalin<strong>da</strong> (escrita <strong>de</strong> uma canção que os alunos sabiam <strong>de</strong><br />

cor) foi realiza<strong>da</strong> em duplas, porém não quaisquer duplas: ela procurou reunir os alunos com<br />

níveis <strong>de</strong> compreensão parecidos, para que pu<strong>de</strong>ssem pensar e tomar <strong>de</strong>cisões juntos. Isso só é<br />

possível porque Rosalin<strong>da</strong> conhece as idéias <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong> seus alunos sobre o sistema <strong>de</strong><br />

escrita, o que <strong>de</strong> fato estão pensando a esse respeito.<br />

Para acompanhar os avanços <strong>de</strong> seus alunos, ter claro o que sabem e o que não sabem e ajustar<br />

as propostas às suas necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem, ela criou um instrumento <strong>de</strong> registro, como<br />

ela mesma relata no Programa 5: "(...) para ca<strong>da</strong> dupla, eu sei o que perguntar, porque já sei o que<br />

eles sabem. É necessário conhecer o que as crianças estão pensando, por isso eu faço um registro<br />

para acompanhar o processo."<br />

Saber o que os alunos pensam permite dosar o nível <strong>de</strong> problematização durante a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, ou<br />

seja, colocar questões que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>iam novas reflexões, conforme disse Rosalin<strong>da</strong>: "Tem que<br />

saber o que perguntar para ca<strong>da</strong> dupla — se eles ain<strong>da</strong> não escrevem e não lêem convencionalmente,<br />

não posso fazer perguntas sobre ortografia".<br />

M1U5T4<br />

3


A dupla Samuel e Mateus, que vimos no programa, é um bom exemplo <strong>de</strong> interação como geradora<br />

<strong>de</strong> reflexão e <strong>de</strong> informação. Os dois haviam compreendido o funcionamento do sistema<br />

alfabético <strong>de</strong> escrita há pouco tempo e estavam às voltas com os problemas causados por esse<br />

conhecimento recente. Juntos, tinham que escrever a música "Atirei o pau no gato": enquanto<br />

Mateus não se preocupava em segmentar as palavras, Samuel, ao contrário, segmentava-as <strong>de</strong>mais.<br />

Dessa forma, tinham que tomar e negociar <strong>de</strong>cisões, expor seus argumentos e resolver os<br />

problemas colocados pelo texto.<br />

A ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> proposta pela professora Márcia (escrita <strong>de</strong> personagens utilizando letras móveis)<br />

também revelou o cui<strong>da</strong>do em agrupar alunos com idéias pareci<strong>da</strong>s sobre a escrita e com<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> trocar informações, como foi o caso do Diogo e do Luís. Márcia diz em seu<br />

<strong>de</strong>poimento que sabia que Diogo conhecia mais as letras e usava mais as consoantes, enquanto<br />

Luís utilizava mais as vogais, por isso imaginou que os dois pu<strong>de</strong>ssem se aju<strong>da</strong>r e trocar informações<br />

importantes durante a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Como vimos, a expectativa <strong>da</strong> professora se concretizou:<br />

a parceria foi mesmo muito boa. Diogo acabou <strong>de</strong>scobrindo que não é silabicamente que se escreve<br />

e Luís, por outro lado, ficou com um monte <strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong>s, um monte <strong>de</strong> problemas para pensar <strong>de</strong>pois.<br />

As interações, os agrupamentos, <strong>de</strong>vem ser pensados tanto do ponto <strong>de</strong> vista do que se po<strong>de</strong><br />

apren<strong>de</strong>r durante a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> como do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong>s questões que ca<strong>da</strong> aluno po<strong>de</strong> levar<br />

para pensar. Um outro fator importante a consi<strong>de</strong>rar, além do conhecimento que os alunos possuem,<br />

são suas características pessoais: seus traços <strong>de</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong>, por um lado, e a disposição<br />

<strong>de</strong> realizar ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em parceria com um <strong>de</strong>terminado colega, por outro. Às vezes, a tomar pelo<br />

nível <strong>de</strong> conhecimento, a dupla po<strong>de</strong>ria ser perfeita, mas o estilo pessoal <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um dos alunos<br />

indica que é melhor não juntá-los, pois o trabalho ten<strong>de</strong>ria a ser improdutivo.<br />

Além <strong>de</strong> contribuir com a aprendizagem dos alunos planejando ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s e formando<br />

agrupamentos produtivos, o professor também tem um papel fun<strong>da</strong>mental durante a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

quando circula pela classe e vai colocando perguntas que aju<strong>da</strong>m a pensar, pedindo que um ou<br />

outro leia, apresentando alguma informação útil. Márcia faz esse tipo <strong>de</strong> problematização durante<br />

a escrita <strong>da</strong> dupla Diogo e Luís em vários momentos, quando:<br />

• pe<strong>de</strong> para lerem;<br />

• pe<strong>de</strong> para um observar a leitura do outro;<br />

• pergunta por que sobram letras para Luís;<br />

• pergunta com que letra termina a palavra pai.<br />

• separa a letra M e a letra A para os dois <strong>de</strong>cidirem qual <strong>da</strong>s duas <strong>de</strong>ve vir antes para escrever "mato"...<br />

As ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s planeja<strong>da</strong>s <strong>de</strong> forma que o <strong>de</strong>safio esteja ajustado às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem<br />

dos alunos, os agrupamentos planejados criteriosamente, as intervenções realiza<strong>da</strong>s durante a<br />

realização <strong>da</strong> tarefa proposta configuram uma boa situação didática, na qual o ensino organiza<br />

e implementa uma situação <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong> fato.<br />

M1U5T4<br />

4


Roteiro para planejamento <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

ESCRITA DE UMA CANÇÃO CONHECIDA<br />

Duração aproxima<strong>da</strong>: _____________________<br />

Objetivo<br />

Que os alunos possam avançar na reflexão sobre o sistema <strong>de</strong> escrita.<br />

Problemas colocados para os alunos<br />

• Escolher quantas e quais letras serão utiliza<strong>da</strong>s.<br />

• Refletir sobre escolhas diferentes para a mesma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> (quando a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> for em dupla<br />

e os dois colegas fazem opções diferentes sobre quantas e quais letras utilizar).<br />

• Interpretar a própria escrita (ler o que escreveu), justificando para si mesmo e para os outros<br />

as escolhas feitas ao escrever.<br />

Procedimentos didáticos<br />

O professor precisa:<br />

M1U5T5<br />

1. Garantir que os alunos saibam o texto <strong>de</strong> memória (isso não significa conhecer a escrita do<br />

texto <strong>de</strong> memória - apenas <strong>de</strong>vem saber cantá-lo).<br />

2. Organizar agrupamentos heterogêneos produtivos, em função do que os alunos sabem sobre<br />

a escrita e sobre os conteúdos <strong>da</strong> tarefa que <strong>de</strong>vem realizar (a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong> perfeitamente<br />

ser feita em duplas).<br />

3. Esclarecer as diferentes funções do trabalho em dupla: um escreve e o outro dita, ca<strong>da</strong> um<br />

contribuindo com o outro.<br />

4. Certificar-se <strong>de</strong> que os alunos não consultam o texto (no caso <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rem ter acesso ao<br />

texto escrito, no Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> <strong>Textos</strong> ou em um cartaz); isto transformaria a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> em<br />

uma situação <strong>de</strong> cópia, que não é a proposta.<br />

5. Ajustar o nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio às possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos alunos, para que realmente tenham problemas<br />

a resolver.<br />

6. Garantir a máxima circulação <strong>de</strong> informações, promovendo a socialização <strong>da</strong>s produções escritas.<br />

M1U5T5<br />

1


Procedimentos dos alunos<br />

Os alunos precisam:<br />

1. Saber o texto <strong>de</strong> cor.<br />

2. Escrever o texto em dupla, consi<strong>de</strong>rando as diferentes funções dos integrantes — um escreve<br />

e o outro dita.<br />

3. Discutir as diferentes formas <strong>de</strong> resolver a tarefa.<br />

4. Socializar os resultados do trabalho.<br />

A<strong>de</strong>quação <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>rando o conhecimento dos alunos<br />

Agrupamentos<br />

Intervenção do professor<br />

M1U5T5<br />

2


Evolução <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong><br />

aluna Maiara<br />

Maiara é uma criança <strong>de</strong> 6 anos que freqüentou, em 1999, o 1 o ano do primeiro ciclo do Ensino<br />

Fun<strong>da</strong>mental na E.M.E.F. Professor Olavo Pezzotti, no município <strong>de</strong> São Paulo, situa<strong>da</strong> na zona<br />

oeste <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Freqüentou uma sala <strong>de</strong> aula com 30 alunos, dos quais 24 iniciaram o ano não-alfabetizados,<br />

assim como ela. Era uma classe piloto, que atendia crianças <strong>de</strong> 6 anos no 1 o ano. Sua professora<br />

solicitou que trouxesse a pasta <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, organiza<strong>da</strong> no 2 o estágio <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> Infantil, * e<br />

selecionou uma <strong>de</strong> suas produções, a que julgou representativa do que pensava sobre a escrita,<br />

uma lista <strong>de</strong> nomes <strong>de</strong> personagens <strong>da</strong> Turma <strong>da</strong> Mônica, à qual sua antiga professora anexara<br />

uma folha com as indicações <strong>de</strong> como Maiara havia lido o que escrevera.<br />

Escrita 1<br />

Outubro/98<br />

HTLVADEGLTIU<br />

Mônica<br />

BGIUKLPOSQI<br />

Cascão<br />

DEAIOBMEDQD<br />

Cebolinha<br />

M1U5T6<br />

Maiara já sabia que se usam seqüências <strong>de</strong> letras para escrever, que coisas diferentes <strong>de</strong>vem ter<br />

escritas diferentes, e que a escrita tem uma direção <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>; mas ain<strong>da</strong> não estabelecia correspondência<br />

entre segmentos do falado e segmentos do escrito.<br />

E o que sabia ela no início do ano <strong>de</strong> 1999? Para respon<strong>de</strong>r a essa pergunta, sua professora<br />

iniciou o trabalho com um diagnóstico <strong>da</strong> sala, preferindo realizar uma entrevista diagnóstica<br />

Na Prefeitura <strong>de</strong> São Paulo, a <strong>Educação</strong> Infantil é organiza<strong>da</strong> em três estágios: 1o estágio, alunos com 4 anos; 2o estágio, alunos <strong>de</strong> 5 anos; 3o *<br />

estágio,<br />

alunos <strong>de</strong> 6 anos.<br />

M1U5T6<br />

1


individual, para conhecer o que seus alunos sabiam sobre a escrita. Para i<strong>de</strong>ntificar a hipótese<br />

<strong>de</strong> escrita <strong>de</strong> Maiara foi importante solicitar que lesse as palavras. Analisando sua produção do<br />

final <strong>de</strong> fevereiro, observamos que: apesar <strong>de</strong>, na hora <strong>de</strong> ler atribuir uma sílaba a ca<strong>da</strong> letra, ain<strong>da</strong><br />

não usava esse conhecimento para antecipar quantas letras precisaria para escrever, ficando<br />

ain<strong>da</strong> presa à quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> letras que consi<strong>de</strong>rava a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> para escrever algo: em torno <strong>de</strong> 5,<br />

sendo o mínimo 4. Mas já <strong>de</strong>monstrava ter algum conhecimento sobre o valor sonoro convencional<br />

<strong>da</strong>s letras.<br />

Escrita 2<br />

Consi<strong>de</strong>rando o diagnóstico, a professora planejou seu trabalho em função do que os alunos<br />

já sabiam e do que <strong>de</strong>veriam apren<strong>de</strong>r sobre a escrita. Buscou promover situações que fossem<br />

difíceis e possíveis, inclusive para os já alfabetizados. Sua primeira ação foi organizar o espaço <strong>da</strong><br />

sala <strong>de</strong> aula, agrupando os alunos em duplas, pois sabia que apren<strong>de</strong>m mais e melhor quando<br />

trabalham em parceria. Procurou colocar os alunos com hipótese não-alfabética próximos a ela,<br />

para que pu<strong>de</strong>sse acompanhá-los mais <strong>de</strong> perto e intervir durante as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Sua proposta <strong>de</strong> trabalho garantia que as crianças participassem <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura e <strong>de</strong> escrita.<br />

Lia diariamente para seus alunos, trabalhava com projetos em que seu objetivo era contextualizar<br />

a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ler e escrever, proporcionava momentos <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong> gibis, livros, folhetos,<br />

realizava semanalmente uma ro<strong>da</strong> <strong>de</strong> troca <strong>de</strong> livros <strong>de</strong> literatura e propunha ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> escrita<br />

individual e em duplas e também <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> textos coletivos, nas quais ela era a escriba.<br />

Para o trabalho <strong>de</strong> reflexão sobre o sistema, selecionava os textos mais a<strong>de</strong>quados para aten<strong>de</strong>r<br />

à diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua classe e, então, formulava as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> maneira diferencia<strong>da</strong>, para que<br />

M1U5T6<br />

2<br />

26/02/1999<br />

D P M FK<br />

di no sau ro<br />

O E OL<br />

co e lho<br />

A LF AW<br />

ra po sa<br />

IQ FE<br />

ti gre<br />

OA FP<br />

on ça<br />

AE DR<br />

pa to<br />

EBRI<br />

cão


todos avançassem. Para os alunos <strong>de</strong> hipótese <strong>de</strong> escrita não-alfabética propunha, por exemplo,<br />

a or<strong>de</strong>nação <strong>da</strong>s palavras <strong>de</strong> uma música conheci<strong>da</strong> em que a tarefa era ler, ain<strong>da</strong> que <strong>de</strong> forma<br />

não convencional. Para os <strong>de</strong>mais, ora pedia que montassem um trecho <strong>da</strong> música com as letras<br />

móveis, que entregava na medi<strong>da</strong> exata – explicando que não po<strong>de</strong>riam faltar e nem sobrar –,<br />

ora solicitava que escrevessem o texto; essa tarefa colocava problemas relacionados a ortografia,<br />

segmentação <strong>da</strong>s palavras etc.<br />

As propostas para as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> escrita não eram diferencia<strong>da</strong>s, pois todos podiam realizá-las<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>da</strong> hipótese <strong>de</strong> escrita. Tinha preocupação em aproximar as condições <strong>de</strong><br />

produção <strong>da</strong>s situações reais que acontecem fora <strong>da</strong> escola, procurando <strong>de</strong>ixar claro o <strong>de</strong>stinatário,<br />

o tipo <strong>de</strong> texto a ser produzido e o assunto a ser tratado.<br />

Essas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s permitiam à professora i<strong>de</strong>ntificar os progressos <strong>da</strong>s crianças, não sendo necessário,<br />

a partir <strong>de</strong> então, realizar ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s diagnósticas mais formais. Arquivou, mensalmente, as produções<br />

mais significativas para documentar o processo <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> aluno. No caso <strong>de</strong> Maiara selecionou as<br />

produções abaixo e nelas é possível i<strong>de</strong>ntificar o seu avanço, num curto espaço <strong>de</strong> tempo.<br />

Escrita 3<br />

Abril/1999<br />

I C E A bicicleta<br />

bi ci cle ta<br />

A I O avião<br />

a vi ão<br />

A OU <strong>da</strong>do<br />

<strong>da</strong> do<br />

K I AO caminhão<br />

ca mi nhão<br />

A V I O cavalinho<br />

ca va li nho<br />

K A V O catavento<br />

ca ta ven to<br />

I AUA pião<br />

pi ão<br />

P E K peteca<br />

pe te ca<br />

Q N A caneta<br />

ca ne ta<br />

E Q I esqueiti<br />

es quei ti<br />

Escreva o nome <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> brinquedo<br />

que o Luiz usa para brincar.<br />

M1U5T6<br />

3


Comparando a escrita <strong>de</strong> fevereiro com a <strong>de</strong> abril, constatamos que: usa mais o conhecimento<br />

sobre o valor sonoro, já antecipa quantas letras vai precisar, com exceção dos dissílabos, como<br />

"<strong>da</strong>do" e "pião". Pois para ela a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> mínima, nesse momento é <strong>de</strong> três letras. Em maio seus<br />

progressos eram visíveis:<br />

Escrita 4<br />

Observamos que: ora usa letras para representar as sílabas e ora usa as letras para representar<br />

os fonemas. Oscila entre uma escrita silábica e uma escrita alfabética.<br />

No início <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro, já apresenta uma escrita alfabética, isto é, sabe que a escrita representa<br />

a pauta sonora e <strong>de</strong>scobriu a natureza <strong>de</strong>ssa relação. As letras representam os fonemas, e não as<br />

sílabas. Além <strong>de</strong> dominar as regras do sistema alfabético, Maiara também apren<strong>de</strong>u muito a<br />

respeito dos usos e <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong> escrita. Sua produção revela que é capaz <strong>de</strong> escrever um<br />

bilhete consi<strong>de</strong>rando as características <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> texto e sua função comunicativa.<br />

M1U5T6<br />

4<br />

RE I G RA I<br />

re fri ge ran te<br />

B AH DE O<br />

bri ga <strong>de</strong>i ro<br />

O I LA<br />

co xi nha<br />

BO LI O<br />

bo li nho<br />

E PA DI NA<br />

em pa di nha<br />

PA TEO<br />

pas tel<br />

PA TE<br />

pa tê<br />

Maio/1999<br />

BO LI O DE J Q L I<br />

bo li nho <strong>de</strong> cho co la te


Escrita 5<br />

Mamãe<br />

eu fui lá no<br />

parque <strong>da</strong> mônica<br />

não precisa ficar<br />

preocupa<strong>da</strong><br />

eu vou voltar logo<br />

uma hora <strong>da</strong> tar<strong>de</strong><br />

eu vou voltar<br />

com a minha amiga<br />

Vivian<br />

beijos<br />

Maiara<br />

Quando as crianças têm boas situações para pensar em como a escrita se organiza, é possível<br />

que avancem muito, pois é pensando sobre a escrita que elas constroem e reconstroem suas<br />

hipóteses.<br />

M1U5T6<br />

5


Ítaca<br />

Kaváfis *<br />

Se partires um dia rumo a Ítaca<br />

Faz votos <strong>de</strong> que o caminho seja longo<br />

Repleto <strong>de</strong> aventuras, repleto <strong>de</strong> saber.<br />

Nem Lestrigões nem os Ciclopes<br />

Nem o colérico Posseidon te intimi<strong>de</strong>m;<br />

Eles no teu caminho jamais encontrarás<br />

Se altivo for o teu pensamento, se sutil<br />

Emoção teu corpo e teu espírito toca.<br />

Nem Lestrigões nem os Ciclopes<br />

Nem o bravio Posseidon hás <strong>de</strong> ver,<br />

Se tu mesmo não os levares <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> alma<br />

Se tua alma não os puser diante <strong>de</strong> ti.<br />

Faz votos <strong>de</strong> que o caminho seja longo.<br />

Numerosas serão as manhãs <strong>de</strong> verão<br />

Nas quais, com que prazer, com que alegria,<br />

tu hás <strong>de</strong> encontrar pela primeira vez um porto<br />

para correr as lojas dos Fenícios<br />

e belas mercadorias adquirir:<br />

madrepérolas, corais, âmbares, ébanos<br />

e perfumes sensuais <strong>de</strong> to<strong>da</strong> espécie<br />

quanto houver <strong>de</strong> aromas <strong>de</strong>leitosos.<br />

A muitas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do Egito peregrina<br />

Para apren<strong>de</strong>r, para apren<strong>de</strong>r dos doutos.<br />

Tem todo o tempo Ítaca na mente.<br />

Estás pre<strong>de</strong>stinado a ali chegar<br />

Mas não apresses a viagem nunca.<br />

Melhor muitos anos levares <strong>de</strong> jorna<strong>da</strong><br />

E fin<strong>da</strong>res na ilha velho enfim.<br />

Rico <strong>de</strong> quanto ganhaste no caminho.<br />

Sem esperar riquezas que Ítaca te <strong>de</strong>sse.<br />

Uma bela viagem <strong>de</strong>u-te Ítaca.<br />

Sem ela não te ponhas a caminho.<br />

Mais do que isso não lhe cumpre <strong>da</strong>r-te<br />

Ítaca não te iludiu, se achas pobre.<br />

Tu te tornaste sábio, um homem <strong>de</strong> experiência<br />

E agora sabes o que significam Ítacas.<br />

M1U6T1<br />

* Kaváfis é um poeta grego contemporâneo. Esta poesia foi retita<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma antologia <strong>de</strong> seus poemas publicados pela Editora Nova Fronteira.<br />

M1U6T1<br />

1


As longas colheres *<br />

M1U6T2<br />

Uma vez, num reino não muito distante <strong>da</strong>qui, havia um rei que era famoso tanto por<br />

sua majesta<strong>de</strong> como por sua fantasia meio excêntrica.<br />

Um dia ele mandou anunciar por to<strong>da</strong> parte que <strong>da</strong>ria a maior e mais bela festa <strong>de</strong> seu<br />

reino.To<strong>da</strong> a corte e todos os amigos do rei foram convi<strong>da</strong>dos.<br />

Os convi<strong>da</strong>dos, vestidos nos mais ricos trajes, chegaram ao palácio, que resplan<strong>de</strong>cia com<br />

to<strong>da</strong>s as suas luzes.<br />

As apresentações transcorreram segundo o protocolo, e os espetáculos começaram:<br />

<strong>da</strong>nçarinos <strong>de</strong> todos os países se sucediam a estranhos jogos e aos divertimentos mais<br />

refinados.<br />

Tudo, até o mínimo <strong>de</strong>talhe, era só esplendor. E todos os convi<strong>da</strong>dos admiravam<br />

fascinados e proclamavam a magnificência do rei.<br />

Entretanto, apesar <strong>da</strong> primorosa organização <strong>da</strong> festa, os convi<strong>da</strong>dos começaram a<br />

perceber que a arte <strong>da</strong> mesa não estava representa<strong>da</strong> em parte alguma.<br />

Não se podia encontrar na<strong>da</strong> para acalmar a fome que todos sentiam mais duramente à<br />

medi<strong>da</strong> que as horas passavam.<br />

Essa falta logo se tornou incontrolável.<br />

Jamais naquele palácio nem em todo o país aquilo havia acontecido.<br />

A festa não parava <strong>de</strong> esforçar-se para atingir o auge, oferecendo ao público uma profusão<br />

<strong>de</strong> músicos maravilhosos e excelentes <strong>da</strong>nçarinos.<br />

Pouco a pouco o mal-estar dos espectadores se transformou numa sur<strong>da</strong> mas visível<br />

contrarie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Ninguém no entanto ousava elevar a voz diante <strong>de</strong> um rei tão notável.<br />

Os cantos continuaram por horas e horas. Depois foram distribuídos presentes, mas<br />

nenhum <strong>de</strong>les era comestível.<br />

*<br />

Extraído <strong>de</strong>: Grupo Grana<strong>da</strong> <strong>de</strong> Contadores <strong>de</strong> Histórias (seleção e tradução) & Nícia Grillo (coord.). Histórias <strong>da</strong> tradição Sufi. Edições<br />

Dervish/Instituto Tarika, 1993.<br />

M1U6T2<br />

1


Finalmente, quando a situação se tomou insustentável, e a fome, intolerável, o rei convidou<br />

seus hóspe<strong>de</strong>s a passarem para uma sala especial, on<strong>de</strong> uma refeição os aguar<strong>da</strong>va.<br />

Ninguém se fez esperar.Todos, como um conjunto harmonioso, correram em direção ao<br />

<strong>de</strong>licioso aroma <strong>de</strong> uma sopa que estava num enorme cal<strong>de</strong>irão no centro <strong>da</strong> mesa.<br />

Os convi<strong>da</strong>dos quiseram servir-se, mas gran<strong>de</strong> foi sua surpresa ao <strong>de</strong>scobrirem, no<br />

cal<strong>de</strong>irão, enormes colheres <strong>de</strong> metal, com mais <strong>de</strong> um metro <strong>de</strong> comprimento. E<br />

nenhum prato, nenhuma tigela, nenhuma colher <strong>de</strong> formato mais acessível.<br />

Houve tentativas, mas só provocaram gritos <strong>de</strong> dor e <strong>de</strong>cepção. Os cabos <strong>de</strong>smesurados<br />

não permitiam que o braço levasse à boca a beberagem suculenta, porque não se podiam<br />

segurar as escal<strong>da</strong>ntes colheres a não ser por uma pequena haste <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira em suas<br />

extremi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Desesperados, todos tentavam comer, sem resultado. Até que um dos convi<strong>da</strong>dos, mais<br />

esperto ou mais esfaimado, encontrou a solução: sempre segurando a colher pela haste<br />

situa<strong>da</strong> em sua extremi<strong>da</strong><strong>de</strong>, levou-a à… boca <strong>de</strong> seu vizinho, que pô<strong>de</strong> comer à vonta<strong>de</strong>.<br />

Todos o imitaram e se saciaram, compreen<strong>de</strong>ndo enfim que a única forma <strong>de</strong> alimentar-se,<br />

naquele palácio magnífico, era um servindo ao outro.<br />

M1U6T2<br />

2


Vó caiu na piscina *<br />

Noite na casa <strong>da</strong> serra, a luz apagou. Entra o garoto:<br />

— Pai, vó caiu na piscina.<br />

— Tudo bem, filho.<br />

O garoto insiste:<br />

— Escutou o que eu falei, pai?<br />

— Escutei, e <strong>da</strong>í? Tudo bem.<br />

— Cê não vai lá?<br />

— Não estou com vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> cair na piscina.<br />

— Mas ela tá lá…<br />

Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

— Eu sei, você já me contou. Agora <strong>de</strong>ixe seu pai fumar um cigarrinho <strong>de</strong>scansado.<br />

— Tá escuro, pai.<br />

M1U6T3<br />

— Assim até é melhor. Eu gosto <strong>de</strong> fumar no escuro. Daqui a pouco a luz volta. Se não voltar, dá<br />

no mesmo. Pe<strong>de</strong> a sua mãe pra acen<strong>de</strong>r a vela na sala. Eu fico aqui mesmo, sossegado.<br />

— Pai…<br />

— Meu filho, vá dormir. É melhor você <strong>de</strong>itar logo. Amanhã cedinho a gente volta pro Rio, e você<br />

custa muito a acor<strong>da</strong>r. Não quero atrasar a <strong>de</strong>sci<strong>da</strong> por sua causa.<br />

— Vó tá com uma vela.<br />

— Pois então? Tudo bem. Depois ela acen<strong>de</strong>.<br />

— Já tá acesa.<br />

— Se está acesa, não tem problema. Quando ela sair <strong>da</strong> piscina, pega a vela e volta direitinho pra casa.<br />

Não vai errar o caminho, a distância é pequena, e você sabe muito bem que sua avó não precisa <strong>de</strong> guia.<br />

*<br />

Extraído <strong>de</strong>: Vó caiu na piscina, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Record, 1997.<br />

M1U6T3<br />

1


— Por que cê não acredita no que eu digo?<br />

— Como não acredito? Acredito sim.<br />

— Cê não tá acreditando.<br />

— Você falou que a sua avó caiu na piscina, eu acreditei e disse. Que é que você queria que eu dissesse?<br />

— Não, pai, cê não acreditou ni mim.<br />

— Ah, você está me enchendo.Vamos acabar com isso. Eu acreditei, viu? Estou te dizendo que<br />

acreditei.<br />

Quantas vezes você quer que eu diga isso? Ou você acha que estou dizendo que acreditei mas<br />

estou mentindo? Fique sabendo que seu pai não gosta <strong>de</strong> mentir.<br />

— Não te chamei <strong>de</strong> mentiroso.<br />

— Não chamou, mas está duvi<strong>da</strong>ndo <strong>de</strong> mim. Bem, não vamos discutir por causa <strong>de</strong> uma bobagem.<br />

Sua avó caiu na piscina, e <strong>da</strong>í? É um direito <strong>de</strong>la. Não tem na<strong>da</strong> <strong>de</strong> extraordinário cair na<br />

piscina. Eu só não caio porque estou meio resfriado.<br />

— Ô, pai, cê é <strong>de</strong> morte!<br />

O garoto sai <strong>de</strong>solado. Aquele velho não compreen<strong>de</strong> mesmo na<strong>da</strong>. Daí a pouco chega a mãe:<br />

— Eduardo, você sabe que dona Marieta caiu na piscina?<br />

— Até você,Fátima? Não chega o Nelsinho vir com esta la<strong>da</strong>inha?<br />

— Eduardo, está escuro que nem breu, sua mãe tropeçou, escorregou e foi parar <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong><br />

piscina, ouviu? Está com a vela acesa na mão, pedindo que tirem ela <strong>de</strong> lá, Eduardo! Não po<strong>de</strong><br />

sair sozinha, está com a roupa encharca<strong>da</strong>, pesando muito, e se você não for <strong>de</strong>pressa ela vai ter<br />

uma coisa! Ela morre, Eduardo!<br />

— Como? Por que aquele diabo não me disse isto? Ele falou apenas que ela tinha caído na<br />

piscina, não explicou que ela tinha tropeçado, escorregado e caído!<br />

Saiu correndo, nem esperou a vela, tropeçou, quase que ia parar também <strong>de</strong>ntro d’ água:<br />

— Mamãe, me <strong>de</strong>sculpe! O menino não me disse na<strong>da</strong> direito. Falou só que a senhora caiu na<br />

piscina. Eu pensei que a senhora estava se banhando.<br />

— Está bem, Eduardo — disse dona Marieta, safando-se <strong>da</strong> água pela mão do filho, e sempre empunhando<br />

a vela que conseguira manter acesa. — Mas <strong>de</strong> outra vez você vai prestar mais atenção no<br />

sentido dos verbos, ouviu? Nelsinho falou direito, você é que teve um acesso <strong>de</strong> burrice, meu filho!<br />

M1U6T3<br />

2


M1U6T4<br />

O que está escrito e o que se po<strong>de</strong> ler:<br />

a interpretação <strong>de</strong> um texto<br />

associado a uma imagem<br />

Telma Weisz<br />

Como sabemos, as crianças constroem hipóteses sobre como se escreve, e muitos professores<br />

já ouviram falar disso. No entanto, parte importante e pouco conheci<strong>da</strong> <strong>da</strong>s investigações sobre<br />

a aquisição <strong>da</strong> escrita se refere ao que po<strong>de</strong>ríamos chamar hipóteses <strong>de</strong> leitura, isto é,são as idéias<br />

que as crianças constroem sobre o que está ou não grafado em um texto escrito e o que se<br />

po<strong>de</strong> ler ou não nele. As crianças, antes <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>rem a ler e escrever, constroem idéias e<br />

distinções que parecem estranhas aos nossos olhos alfabetizados.<br />

Em uma fase muito inicial, raramente observa<strong>da</strong> em grupos <strong>de</strong> classe média, encontram-se crianças<br />

para quem as letras ain<strong>da</strong> não são objetos substitutos (isto é, objetos cuja função é representar<br />

outros objetos). Emilia Ferreiro 1 comenta: "graças aos sujeitos menores <strong>de</strong> nossa amostra <strong>de</strong> classe<br />

baixa po<strong>de</strong>mos afirmar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sse nível". E reproduz entrevistas <strong>de</strong> crianças <strong>de</strong> 3 e 4 anos<br />

como, por exemplo, o diálogo abaixo:<br />

Martin (3 anos e 5 meses) observa conosco uma série <strong>de</strong> cartelas com <strong>de</strong>senhos, alguns dos<br />

quais trazem um texto:<br />

Entrevistador Criança<br />

O que é? (mostrando a imagem) Um boneco<br />

O que se po<strong>de</strong>ria ler aqui? (mostrando o texto) Letras<br />

Nas letras diz letras? (Concor<strong>da</strong>)<br />

Olha, e esta tem letras? (mostrando imagem sem texto) (Nega)<br />

O que é? Um boneco<br />

Vou colocar letras. Nas letras… o que estou pondo? Letras<br />

Letras que dizem o quê? Letras<br />

1<br />

No artigo “Os processos construtivos <strong>de</strong> apropriação <strong>da</strong> escrita”. In: Os processos <strong>de</strong> leitura e escrita: novas perspectivas, p. 108.<br />

M1U6T4<br />

1


Na primeira parte do ví<strong>de</strong>o O que Está Escrito e o que se Po<strong>de</strong> Ler, Ricardo Patrick (5 anos e 6<br />

meses) — para quem imagens e textos po<strong>de</strong>m compartilhar o mesmo espaço sem que isso<br />

indique que haja qualquer relação entre ambos — nos dá a seguinte interpretação para a cartela<br />

na qual há uma imagem <strong>de</strong> um relógio acompanha<strong>da</strong> <strong>de</strong> texto on<strong>de</strong> está escrito: "relógio".<br />

R E L Ó G I O<br />

| | | | | | |<br />

1 a interpretação: ce qua ô cá ce qua u<br />

2 a interpretação: cá ô ce cá ô/ce a cá<br />

3 a interpretação: cá ê qui ô cá e lis<br />

Para Ricardo Patrick, as letras são apenas letras. O que ele já sabe é que elas têm nome. E quando<br />

lhe perguntam o que está escrito nelas, o que "dizem" as letras, faz com que elas "digam" nomes<br />

<strong>de</strong> letras, ou melhor, "nomes" que parecem <strong>de</strong> letras.<br />

Depois que as letras se tornam objetos substitutos, as crianças costumam pensar que qualquer<br />

coisa que esteja escrita perto <strong>de</strong> uma figura <strong>de</strong>ve ser o nome <strong>da</strong> figura. Elas imaginam também<br />

que, se em uma caixa <strong>de</strong> remédio há algo escrito, <strong>de</strong>ve ser "remédio" ou, quem sabe, "pílulas".A<br />

hipótese <strong>de</strong> que o que está escrito junto <strong>de</strong> uma imagem <strong>de</strong>ve ser seu nome fica evi<strong>de</strong>nte quando<br />

perguntamos a crianças que não sabem ler o que se vê em uma figura e elas respon<strong>de</strong>m: "uma<br />

bola" (ou "uma boneca", ou "uma bicicleta" …), e quando perguntamos o que está escrito junto<br />

<strong>da</strong> bola ela diz apenas "bola" (ou "boneca", ou "bicicleta", omitindo o artigo in<strong>de</strong>finido). Essa<br />

distinção sutil é sistemática e caracteriza o que Emilia Ferreiro chamou a "hipótese do nome".<br />

Isto é, que no início as crianças pensam que o que se escreve são apenas os nomes.<br />

Investigando essas idéias infantis ela <strong>de</strong>scobriu coisas interessantes: 2<br />

Uma <strong>da</strong>s primeiras idéias que as crianças elaboram em relação ao significado <strong>de</strong> uma seqüência<br />

<strong>de</strong> letras é a seguinte: as letras representam o nome dos objetos. Santiago, um menino <strong>de</strong> 3 anos<br />

pertencente à classe média, a mais jovem <strong>da</strong>s crianças que acompanhamos longitudinalmente,<br />

foi quem fez explicitamente essa afirmação. Enquanto olhava um novo carrinho <strong>de</strong> brinquedo,<br />

<strong>de</strong>scobriu as letras impressas no objeto e, apontando para essas letras, disse: "Aqui estão as letras.<br />

Elas dizem o que é". O texto escrito na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> dizia "México", mas Santiago achou que<br />

estava escrito "carro". De modo semelhante, as crianças acham que as letras impressas em uma<br />

lata <strong>de</strong> leite dizem "leite"; que as letras em um relógio dizem "relógio", e assim por diante. O<br />

significado <strong>de</strong> um texto escrito é, portanto, inteiramente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do contexto. Se o contexto<br />

for um livro com figuras, imagina-se que as letras "digam" o nome dos objetos ilustrados. A<br />

proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> espacial entre a escrita e as gravuras é a informação relevante que as crianças procuram<br />

para <strong>de</strong>scobrir qual dos textos escritos po<strong>de</strong>ria "dizer" o nome <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> objeto ilustrado.<br />

2<br />

Experimento <strong>de</strong>scrito no artigo <strong>de</strong> Emilia Ferreiro "A interpretação <strong>da</strong> escrita antes <strong>da</strong> leitura convencional", capítulo do livro Alfabetização<br />

em processo, <strong>da</strong> Editora Cortez. Usaremos a seguir vários fragmentos <strong>de</strong>sse artigo para aju<strong>da</strong>r a explicar as idéias <strong>da</strong> autora e os resultados<br />

<strong>de</strong>ssas investigações.<br />

M1U6T4<br />

2


Em um grupo <strong>de</strong> crianças entre 3 e 5 anos, <strong>de</strong> diferentes origens sociais, que a pesquisadora<br />

acompanhou durante dois anos, realizando entrevistas individuais a ca<strong>da</strong> dois meses, apresentou-se<br />

às crianças um conjunto <strong>de</strong> cartões com imagens e um conjunto <strong>de</strong> cartelas com textos escritos.<br />

Nenhuma <strong>da</strong>s crianças sabia ler ou conhecia <strong>de</strong> memória a forma do que estava escrito nas<br />

cartelas. Solicitava-se a elas que pareassem as figuras com os escritos que "combinassem" com<br />

elas. Depois se pedia a ca<strong>da</strong> criança que dissesse o que estava escrito em ca<strong>da</strong> uma.<br />

As crianças […] <strong>de</strong>ixam evi<strong>de</strong>nte que o significado atribuído ao escrito (texto) <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> inteiramente<br />

do contexto: o significado do texto mu<strong>da</strong> tantas vezes quantas varia o contexto. Por<br />

exemplo, se um <strong>de</strong>terminado texto tiver sido colocado em relação à imagem <strong>de</strong> uma girafa, "ele<br />

diz girafa", mas o mesmo texto escrito po<strong>de</strong> "dizer" outros nomes ("leão", "cavalo" etc., se o<br />

conjunto <strong>de</strong> cartões ilustrados for um conjunto <strong>de</strong> animais). O mesmo texto escrito po<strong>de</strong><br />

"dizer" novamente "girafa" se for outra vez colocado nas proximi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>quela imagem. […]<br />

É <strong>de</strong>ssa forma que pensam Johnny William (4 anos e 8 meses), Cássio (5 anos e 9 meses) e<br />

Guilherme Pereira (5 anos e 6 meses). 3 Eles nos aju<strong>da</strong>m a compreen<strong>de</strong>r um momento <strong>da</strong> evolução<br />

em que as letras já alcançaram sua condição <strong>de</strong> objeto que representa outro e as crianças já<br />

construíram uma hipótese interessante: um conjunto <strong>de</strong> letras que acompanha um <strong>de</strong>senho ou<br />

uma foto <strong>de</strong>ve ser a escrita do nome <strong>da</strong>quilo que aparece na imagem.<br />

No entanto, para as crianças que pensam como Johnny William, Cássio e Guilherme Pereira, a<br />

escrita ain<strong>da</strong> não adquiriu uma quali<strong>da</strong><strong>de</strong> que lhe é fun<strong>da</strong>mental: a estabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, a permanência.<br />

Como nos explicou Guilherme Pereira, se o conjunto <strong>de</strong> letras on<strong>de</strong> estava escrito o nome do<br />

leão vai para junto <strong>da</strong> figura do elefante, "vira" o nome do elefante. E, quando o nome atribuído<br />

antes ao elefante vai para perto <strong>da</strong> figura do macaco, "vira" o nome do macaco.<br />

Essa total <strong>de</strong>pendência do texto com relação ao contexto é ultrapassa<strong>da</strong> — como vemos com<br />

Bruna, Murilo e Karine — e, quando isso acontece, as crianças ficam até um tanto surpreendi<strong>da</strong>s<br />

com o inusitado <strong>da</strong> pergunta. 4 A partir <strong>de</strong> então, com a "hipótese do nome" bem estabeleci<strong>da</strong>,<br />

as crianças começam a ter a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar algumas proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s do próprio texto<br />

escrito em relação com a imagem. Esse é o caso <strong>de</strong> Guilherme Cruz 5 que, diante <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>r conta dos três segmentos que ele reconhece no texto "esta bolsa é minha", associado à imagem<br />

<strong>de</strong> uma bolsa, interpreta-o como:<br />

ESTA BOLSA É MINHA<br />

| | |<br />

mo chi la<br />

Já Stephanie, 6 que também leva em conta que o texto, além <strong>de</strong> estar escrito em duas linhas, é<br />

composto por várias partes, atribui a ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las um nome diferente — mas sempre um<br />

nome.Todos, <strong>de</strong> alguma forma, relacionados ao que está representado na imagem. Diante <strong>de</strong> uma<br />

cartela on<strong>de</strong> se vê o <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> uma paisagem com peixes, árvores, casas etc., Stephanie produz<br />

a seguinte interpretação para o texto:<br />

Que vimos no ví<strong>de</strong>o O que Está Escrito e o que se Po<strong>de</strong> Ler:1a 3<br />

parte.<br />

4 I<strong>de</strong>m.<br />

5 I<strong>de</strong>m.<br />

6<br />

I<strong>de</strong>m<br />

OS PEIXES ESTÃO<br />

| |<br />

peixes árvore<br />

M1U6T4<br />

3


NADANDO NO RIO<br />

| |<br />

casa planta<br />

E, finalmente, além <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s quantitativas, as crianças, ain<strong>da</strong> antes <strong>de</strong> serem capazes <strong>de</strong><br />

ler convencionalmente, po<strong>de</strong>m começar a consi<strong>de</strong>rar também as proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s qualitativas do<br />

texto.Tanto para aju<strong>da</strong>r a antecipar o significado do que está escrito, quanto para verificar a a<strong>de</strong>quação<br />

<strong>de</strong> suas antecipações. Como vemos Camila 7 fazer diante <strong>da</strong> imagem <strong>de</strong> um morango e do texto:<br />

ADORO MORANGO<br />

| |<br />

salgado morango<br />

O que será que faz Camila ler salgado em "adoro"? É o fato <strong>de</strong> que, quando ela escreve, produz<br />

escritas silábicas usando principalmente as vogais. É por isso que ela imagina que "salgado" po<strong>de</strong><br />

começar com "a".<br />

Se o professor não conhece as hipóteses infantis sobre o sistema <strong>de</strong> escrita 8 ,não tem como<br />

interpretar o que Camila fez a não ser tratando suas respostas como tolice ou erro. Compreen<strong>de</strong>r<br />

a evolução <strong>da</strong>s idéias infantis sobre a escrita e sobre a leitura é muito importante. São<br />

essas informações — que só a investigação propicia — que lhe permitem ultrapassar as limitações<br />

do nosso olhar alfabetizado e consi<strong>de</strong>rar o ponto <strong>de</strong> vista do aluno.<br />

Para saber mais sobre este tema leia:<br />

Emilia Ferreiro. "Os processos construtivos <strong>de</strong> apropriação <strong>da</strong> escrita". In: Emilia Ferreiro &<br />

Margarita Gomes Palácio. Os processos <strong>de</strong> leitura e escrita: novas perspectivas. Porto Alegre,<br />

Artes Médicas, 1987.<br />

"Leitura com imagem", capítulo do livro Psicogênese <strong>da</strong> língua escrita, <strong>de</strong> Emilia Ferreiro e Ana<br />

Teberosky. Porto Alegre,Artes Médicas.<br />

7 I<strong>de</strong>m<br />

8<br />

Ver ví<strong>de</strong>os Construção <strong>da</strong> Escrita e Construção <strong>da</strong> Escrita: Primeiros Passos.<br />

M1U6T4<br />

4


O que está escrito e o que se po<strong>de</strong> ler:<br />

as relações entre o texto, como<br />

totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e suas partes<br />

Telma Weisz<br />

Uma <strong>da</strong>s idéias mais surpreen<strong>de</strong>ntes (surpreen<strong>de</strong>ntes para nosso olhar alfabetizado, é claro)<br />

construí<strong>da</strong>s pelas crianças no início <strong>de</strong> seu contato com o mundo <strong>da</strong> escrita é a distinção entre<br />

"o que está escrito" e "o que se po<strong>de</strong> ler".<br />

A idéia <strong>de</strong> que se escreve tudo o que se fala não é prévia à alfabetização. Pelo contrário, <strong>de</strong>scobrir<br />

que é necessário escrever tudo, sem omitir na<strong>da</strong>, requer bastante experiência com a língua<br />

escrita. Emilia Ferreiro e colaboradores realizaram experimentos com crianças <strong>de</strong> diferentes<br />

países, diferentes línguas, diferentes i<strong>da</strong><strong>de</strong>s e classes sociais buscando compreen<strong>de</strong>r a natureza e<br />

a evolução <strong>de</strong>ssa distinção entre "o que está escrito" e "o que se po<strong>de</strong> ler". E observaram que,<br />

em torno dos quatro ou cinco anos, crianças urbanas costumam pensar que apenas os substantivos<br />

precisam estar escritos para que se possa ler um enunciado. Como quando uma criança<br />

<strong>de</strong>senha por exemplo um menino jogando bola: o que aparece no <strong>de</strong>senho é o menino e a bola,<br />

tudo o mais é inferido por quem o interpreta quando olha para o <strong>de</strong>senho e diz: "o menino está<br />

jogando bola".<br />

Vejamos um exemplo concreto para aju<strong>da</strong>r a compreen<strong>de</strong>r: 1<br />

1<br />

M1U6T5<br />

Apresentamos e lemos para a criança a oração: "a menina comprou um caramelo".A criança a<br />

repete corretamente (repetindo inclusive o assinalar contínuo que acabamos <strong>de</strong> fazer). Se lhe<br />

perguntarmos on<strong>de</strong> está escrito "menina" ou "caramelo" não terá dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s em assinalar<br />

alguma <strong>da</strong>s palavras escritas (não importa no momento saber se a indicação é ou não correta),<br />

mas não lhe ocorrerá que o verbo, e muito menos os artigos, estejam escritos. De acordo com<br />

a análise realiza<strong>da</strong> pelas crianças <strong>de</strong>sse nível, existem partes escritas em <strong>de</strong>masia, e bastaria apenas<br />

duas palavras: "menina" e "caramelo" para se po<strong>de</strong>r ler uma oração completa. O que falta<br />

não é a memória imediata (já que a criança consegue repetir a oração quando lhe perguntamos:<br />

"o que dizia o texto todo?"). É um problema <strong>de</strong> contraste <strong>de</strong> concepções. Para po<strong>de</strong>r utilizar a<br />

informação ofereci<strong>da</strong> pelo adulto (quando lê o texto para ela), a criança <strong>de</strong>veria partir <strong>da</strong>s<br />

suposições básicas <strong>de</strong> nosso sistema escrito: que to<strong>da</strong>s as palavras ditas estão escritas, e que a<br />

or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> escrita correspon<strong>de</strong> à or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> enunciação.<br />

Transcrita <strong>de</strong> “A compreensão do sistema <strong>de</strong> escrita: construções originais <strong>da</strong> criança e informação específica dos adultos”,capítulos do livro<br />

Reflexões sobre a alfabetização, <strong>de</strong> Emilia Ferreiro, Cortez Editora.<br />

M1U6T5<br />

1


É interessante observar que as idéias <strong>da</strong>s crianças sobre "o que está escrito" e "o que se po<strong>de</strong><br />

ler" evoluem em direção à correspondência termo a termo entre o falado e o escrito, não<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo para isso <strong>da</strong> <strong>de</strong>cifração ou do conhecimento <strong>da</strong>s letras. Essa é uma evolução<br />

conceitual e acredita-se que esteja relaciona<strong>da</strong> com as oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> contato com a escrita.<br />

Retiramos do mesmo artigo citado acima a transcrição <strong>de</strong> três entrevistas que nos parecem muito<br />

esclarecedoras. A oração que nos servirá <strong>de</strong> exemplo é: "Papai martelou a tábua".<br />

Entrevistador Erick (6 anos)<br />

(Lê a oração.) O que diz? "Papai martelou a tábua"<br />

Diz tábua em algum lugar? (Repassa o texto com o <strong>de</strong>do indicador,<br />

repetindo para si a oração e logo mostra tábua)<br />

Diz papai em algum lugar? (Mostra papai sem pestanejar)<br />

O que diz aqui? (martelou) (Repassa o texto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo, como<br />

antes) "Martelou"<br />

E aqui? (a) (Repete o mesmo procedimento) "A"<br />

Como vemos, Erick consegue atribuir ca<strong>da</strong> parte fala<strong>da</strong> a uma parte escrita apesar <strong>de</strong> não saber ler.<br />

M1U6T5<br />

Entrevistador Silvia (6 anos)<br />

(Lê a oração.) O que diz? "Papai martelou a tábua."<br />

On<strong>de</strong> está escrito papai? Aqui (papai).<br />

E aqui? (aponta "martelou") "Martelou"<br />

E aqui? ("tábua") "Tábua"<br />

E aqui? ("a") "Tá"<br />

Eu escrevi: papai martelou a tábua. Sim, papai martelou a tábua.<br />

Então o que diz aqui? (mostra "papai") "Papai"<br />

Aqui? ("tábua") "Tábua"<br />

E aqui? ("a") "Tá"<br />

2


Sílvia consegue atribuir o verbo (martelou) a sua escrita, mas lhe parece inadmissível que algo<br />

possa estar escrito em um segmento com apenas uma letra. Imagina então que essa letra possa<br />

ser um pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> um dos substantivos, no caso o "ta", <strong>de</strong> tábua.<br />

Entrevistador Laura (6 anos)<br />

(Lê a oração.) O que diz? "Papai martelou a tábua."<br />

Diz papai em algum lugar? Aqui (mostra "papai").<br />

Diz tábua em algum lugar? Aqui ("tábua").<br />

O que diz aqui? (mostra "martelou") "Martelo"<br />

E aqui? ("a") …<br />

O que diz o texto todo? "Papai martelou a tábua."<br />

On<strong>de</strong> está escrito "tábua"? Mostra "tábua".<br />

O que diz aí? "Tábua"<br />

E aqui? ("a") …<br />

Diz algo ou não diz na<strong>da</strong>? Não, não diz na<strong>da</strong>.<br />

Por quê? Tem uma letra só.<br />

Mas para Laura apenas os nomes estão escritos.Tanto que não teve dúvi<strong>da</strong>s em transformar o verbo<br />

"martelou" no substantivo "martelo". Esse não foi um procedimento particular <strong>de</strong> uma criança. No<br />

caso <strong>de</strong>sse enunciado várias crianças que estavam nesse momento do processo transformaram<br />

"martelou" em "martelo", uma solução engenhosa para resolver a questão ali, naquele momento.<br />

Essa questão — a distinção entre "o que está escrito" e "o que se po<strong>de</strong> ler" — evolui, evi<strong>de</strong>ntemente,<br />

na direção inversa à <strong>da</strong> apresentação <strong>da</strong>s entrevistas. Erick é mais avançado que Silvia e<br />

esta, que Laura. No entanto, os três têm a mesma i<strong>da</strong><strong>de</strong>. Estamos enfatizando esse fato para marcar<br />

que na evolução <strong>da</strong>s idéias sobre a escrita a i<strong>da</strong><strong>de</strong> conta menos que o tempo <strong>de</strong> participação em<br />

situações e ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em que a escrita está presente, direta ou indiretamente. Se a i<strong>da</strong><strong>de</strong> fosse<br />

a variável mais importante, não existiriam adultos analfabetos.<br />

No ví<strong>de</strong>o O que está escrito e o que se po<strong>de</strong> ler, 2 a parte, temos uma ilustração <strong>da</strong> evolução<br />

<strong>de</strong>ssas hipóteses através <strong>da</strong> seqüenciação <strong>da</strong>s entrevistas <strong>de</strong> sete crianças. Nelas vemos<br />

inicialmente Ricardo Patrick consi<strong>de</strong>rar todos os fragmentos (para nós, "palavras") do texto, mesmo<br />

os <strong>de</strong> poucas letras, e atribuir a ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les, reitera<strong>da</strong>mente, um dos substantivos <strong>da</strong> frase:<br />

M1U6T5<br />

3


1) Ricardo Patrick: OS MENINOS GOSTAM DE BRINCAR DE CARRINHO<br />

| meninos carrinhos | carrinhos | carrinhos<br />

meninos meninos meninos<br />

No entanto, parece que essa possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar todos os "pe<strong>da</strong>ços" do texto escrito só<br />

vai reaparecer no final <strong>de</strong>ssa série evolutiva:<br />

2) Daiara: A MENINA EM UM MONTE DE BONECA<br />

menina boneca<br />

3) Fernando Gaspar: A MÃE E O MENINO BRINCAM DE DIGIMON<br />

mamãe brincam menino digimon<br />

4) Sharon: A MENINA BRINCA COM O URSINHO<br />

menina brinca com ur- sinho<br />

5) Luís Henrique: TODOS OS MENINOS GOSTAM DE MORANGO<br />

todos?? meninos gostam?? morango<br />

6) Bárbara: A MENINA ARRANCOU O DENTE SOZINHA (1 a tentativa)<br />

a menina arrancou <strong>de</strong>nte sozinha<br />

A MENINA ARRANCOU O DENTE SOZINHA (2 a tentativa)<br />

a menina arrancou o <strong>de</strong>nte sozinha<br />

7) Camila: A MENINA BRINCA DE CASINHA COM AS AMIGAS<br />

a menina brinca <strong>de</strong> casinha com as amigas<br />

Estranho, não? Mas essa aparente contradição nos permite discutir uma questão que tem a ver<br />

com as diferenças entre a compreensão que temos atualmente do processo <strong>de</strong> alfabetização,<br />

como uma aprendizagem <strong>de</strong> natureza conceitual, e a anterior, quando pensávamos que era uma<br />

aprendizagem essencialmente perceptual.<br />

M1U6T5<br />

4


Observando a forma pela qual as seis últimas crianças atribuíram as partes do falado aos<br />

segmentos escritos, po<strong>de</strong>ríamos pensar que a evolução <strong>da</strong>s respostas mostra uma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

percepção <strong>da</strong> separação entre as palavras do texto. No entanto, observando a atribuição feita<br />

por Ricardo Patrick, a primeira criança, vemos que não é possível. O problema <strong>da</strong>s seis crianças<br />

seguintes é como compatibilizar as partes do enunciado oral que elas acham que <strong>de</strong>vem estar<br />

escritas e a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> segmentos gráficos que encontram no texto. Elas não têm nenhuma<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> para perceber, mas têm enormes problemas para interpretar. Só Ricardo Patrick pensa<br />

que apesar <strong>de</strong> "meninos" e "carrinhos" aparecerem ca<strong>da</strong> um uma única vez no enunciado ("Os<br />

meninos gostam <strong>de</strong> brincar <strong>de</strong> carrinho"), po<strong>de</strong>m estar escritos várias vezes e <strong>de</strong> diferentes formas.<br />

Nenhuma <strong>da</strong>s outras aceitaria essa idéia.A necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> agrupar segmentos gráficos — <strong>de</strong> juntar<br />

os pequenos aos gran<strong>de</strong>s — para interpretá-los tem a ver com duas questões <strong>de</strong> natureza<br />

estritamente conceitual: a hipótese <strong>de</strong> que nem tudo o que se lê precisa estar escrito <strong>de</strong> forma<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte; e a hipótese <strong>de</strong> que existe uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> mínima <strong>de</strong> letras (em torno <strong>de</strong> três)<br />

exigi<strong>da</strong> para consi<strong>de</strong>rar algo a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>mente escrito. 2 As crianças precisam resolver conceitualmente<br />

essas contradições para po<strong>de</strong>r consi<strong>de</strong>rar to<strong>da</strong>s as partes do texto gráfico. Pintar com lápis <strong>de</strong> cor<br />

os espaços entre as palavras para ajudá-los a "perceber" não faria qualquer diferença. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> interpretação vão sendo resolvi<strong>da</strong>s à medi<strong>da</strong> que vão avançando em direção à<br />

idéia <strong>de</strong> que se escreve tudo o que se fala, na or<strong>de</strong>m em que se fala.<br />

As idéias infantis que <strong>de</strong>screvemos aqui são construções originais <strong>da</strong>s crianças e dão inúmeras<br />

pistas ao leitor atento sobre por que é importante oferecer-lhe a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>frontar-se<br />

com textos nos quais ela sabe o que está escrito. Colocá-la freqüentemente nesse tipo <strong>de</strong> situação<br />

é oferecer-lhe oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s para pensar sobre a escrita, elaborar hipóteses, testá-las e<br />

reconstruí-las progressivamente, apoiando-a em seu esforço para apren<strong>de</strong>r a ler e escrever.<br />

Para saber mais sobre esse tema leia:<br />

Emilia Ferreiro. "A compreensão do sistema <strong>de</strong> escrita: construções originais <strong>da</strong> criança<br />

e informação específica dos adultos", capítulo do livro Reflexões sobre a alfabetização,<br />

Cortez Editora.<br />

"A interpretação <strong>da</strong> escrita antes <strong>da</strong> leitura convencional", capítulo do livro Alfabetização<br />

em processo, Cortez Editora.<br />

Emilia Ferreiro & Ana Teberosky. "Leitura sem imagem: a interpretação dos fragmentos <strong>de</strong><br />

um texto", capítulo do livro Psicogênese <strong>da</strong> língua escrita, Editora Artes Médicas.<br />

2<br />

Ver ví<strong>de</strong>os Construção <strong>da</strong> escrita e Construção <strong>da</strong> escrita: primeiros passos.<br />

M1U6T5<br />

5


Entrevistando um professor<br />

Professor, leia o fragmento abaixo e respon<strong>da</strong> às questões propostas.<br />

As crianças constroem hipóteses sobre como se escreve, e muitos professores já ouviram falar<br />

disso. No entanto, parte importante e pouco conheci<strong>da</strong> <strong>da</strong>s investigações sobre a aquisição <strong>da</strong><br />

escrita se refere ao que po<strong>de</strong>ríamos chamar "hipóteses <strong>de</strong> leitura", isto é, as idéias que as crianças<br />

constroem sobre o que está ou não grafado em um texto escrito, e o que se po<strong>de</strong> ler ou não<br />

nele. As crianças, antes <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a ler e escrever, constroem idéias e distinções que parecem<br />

estranhas aos nossos olhos alfabetizados.<br />

Telma Weisz, In: O que Está Escrito e o que se Po<strong>de</strong> Ler<br />

1.Você acha possível que crianças construam hipóteses a respeito <strong>da</strong> leitura, assim como fazem<br />

com a escrita? Justifique.<br />

Se sua resposta for negativa, avance para a pergunta 3<br />

M1U6T6<br />

2. Se sua resposta anterior foi afirmativa, quais idéias sobre a leitura você acredita que as crianças<br />

têm antes <strong>de</strong> ler e escrever convencionalmente?<br />

M1U6T6<br />

1


3.Analise a situação abaixo:<br />

"Fábio, <strong>de</strong> 5 anos, olhando um carrinho <strong>de</strong> brinquedo, aponta para as letras impressas num<br />

a<strong>de</strong>sivo do carrinho e diz:‘aqui tá escrito carrinho’. O texto na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> diz ‘ambulância’."<br />

O que leva Fábio a pensar que está escrito "carrinho"?<br />

M1U6T6<br />

2


Orientação <strong>de</strong> leitura dos<br />

textos M1U6T4 e M1U6T5<br />

M1U6T7<br />

1. Durante a primeira leitura, procure i<strong>de</strong>ntificar os aspectos que mais lhe chamaram a atenção.<br />

Sublinhe-os.<br />

2. Faça uma segun<strong>da</strong> leitura do texto, lendo parágrafo por parágrafo, e escreva para ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les<br />

uma palavra ou uma frase que sintetize qual é a informação mais relevante conti<strong>da</strong> ali. Anote no<br />

Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Registro, lembrando <strong>de</strong> iniciar com um título, <strong>de</strong> modo que as anotações fiquem<br />

contextualiza<strong>da</strong>s.<br />

3. Durante a semana, converse com algumas parceiras <strong>de</strong> trabalho sobre as reflexões e dúvi<strong>da</strong>s<br />

suscita<strong>da</strong>s pelo texto.<br />

M1U6T7<br />

1


A linha mágica *<br />

Era uma vez uma viúva que tinha um filho chamado Pedro. O menino era forte e são, mas não<br />

gostava <strong>de</strong> ir à escola e passava o tempo todo sonhando acor<strong>da</strong>do.<br />

— Pedro, com o que você está sonhando a uma hora <strong>de</strong>ssas? — perguntava-lhe a professora.<br />

Estava pensando no que serei quando crescer — respondia ele.<br />

— Seja paciente. Há muito tempo para pensar nisso. Depois <strong>de</strong> crescido, nem tudo é divertimento,<br />

sabe? — dizia ela.<br />

Mas Pedro tinha dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s para apreciar qualquer coisa que estivesse fazendo no momento, e<br />

ansiava sempre pela próxima. No inverno, ansiava pelo retorno do verão; e no verão, sonhava<br />

com passeios <strong>de</strong> esqui e trenó, e com as fogueiras acesas durante o inverno. Na escola, ansiava<br />

pelo fim do dia, quando po<strong>de</strong>ria voltar para casa; e nas noites <strong>de</strong> domingo, suspirava dizendo:“Ah,<br />

se as férias chegassem logo!”. O que mais o entretinha era brincar com a amiga Lise. Era<br />

companheira tão boa quanto qualquer menino, e a ansie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Pedro não a afetava, ela não<br />

se ofendia.“Quando crescer, vou casar-me com ela”, dizia Pedro consigo mesmo.<br />

Costumava per<strong>de</strong>r-se em caminha<strong>da</strong>s pela floresta, sonhando com o futuro. Às vezes, <strong>de</strong>itava-se<br />

ao sol sobre o chão macio, com as mãos postas sob a cabeça, e ficava olhando o céu através <strong>da</strong>s<br />

copas altas <strong>da</strong>s árvores. Uma tar<strong>de</strong> quente, quando estava quase caindo no sono, ouviu alguém<br />

chamando por ele. Abriu os olhos e sentou-se.Viu uma mulher idosa em pé à sua frente.<br />

Ela trazia na mão uma bola pratea<strong>da</strong>, <strong>da</strong> qual pendia uma linha <strong>de</strong> se<strong>da</strong> doura<strong>da</strong>.<br />

— Olhe o que tenho aqui, Pedro — disse ela, oferecendo-lhe o objeto.<br />

— O que é isso? — perguntou, curioso, tocando a fina linha doura<strong>da</strong>.<br />

— É a linha <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> — retrucou a mulher. — Não toque nela e o tempo passará normalmente.<br />

Mas se <strong>de</strong>sejar que o tempo an<strong>de</strong> mais rápido, basta <strong>da</strong>r um leve puxão na linha e uma hora<br />

passará como se fosse um segundo. Mas <strong>de</strong>vo avisá-lo: uma vez que a linha tenha sido puxa<strong>da</strong>, não<br />

po<strong>de</strong>rá ser coloca<strong>da</strong> <strong>de</strong> volta <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> bola. Ela <strong>de</strong>saparecerá como uma nuvem <strong>de</strong> fumaça.<br />

A bola é sua. Mas se aceitar meu presente, não conte para ninguém; senão, morrerá no mesmo dia.<br />

Agora diga, quer ficar com ela?<br />

Pedro tomou-lhe <strong>da</strong>s mãos o presente, satisfeito. Era exatamente o que queria. Examinou-a. Era<br />

leve e sóli<strong>da</strong>, feita <strong>de</strong> uma peça só. Havia apenas um furo <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saía a linha brilhante. O menino<br />

colocou-a no bolso e foi correndo para casa. Lá chegando, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> certificar-se <strong>da</strong> ausência <strong>da</strong><br />

mãe, examinou-a outra vez. A linha parecia sair lentamente <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> bola, tão <strong>de</strong>vagar que<br />

*<br />

Extraído <strong>de</strong>: O livro <strong>da</strong>s virtu<strong>de</strong>s. 5. ed. Uma antologia <strong>de</strong> William J. Bennett. Nova Fronteira, 1995.<br />

M1U7T1<br />

M1U7T1<br />

1


era difícil perceber o movimento a olho nu. Sentiu vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>da</strong>r-lhe um rápido puxão, mas não<br />

teve coragem. Ain<strong>da</strong> não.<br />

No dia seguinte na escola, Pedro imaginava o que fazer com sua linha mágica. A professora o<br />

repreen<strong>de</strong>u por não se concentrar nos <strong>de</strong>veres.“Se ao menos”, pensou ele,“já fosse a hora <strong>de</strong><br />

ir para casa!” Tateou a bola pratea<strong>da</strong> no bolso. Se <strong>de</strong>sse apenas um pequeno puxão, logo o dia<br />

chegaria ao fim. Cui<strong>da</strong>dosamente, pegou a linha e puxou. De repente, a professora mandou que<br />

todos arrumassem suas coisas e fossem embora, organiza<strong>da</strong>mente. Pedro ficou maravilhado.<br />

Correu sem parar até chegar em casa. Como a vi<strong>da</strong> seria fácil agora! Todos seus problemas<br />

haviam terminado. Dali em diante, passou a puxar a linha, só um pouco, todos os dias.<br />

Entretanto, logo apercebeu-se que era tolice puxar a linha apenas um pouco todos os dias. Se<br />

<strong>de</strong>sse um puxão mais forte, o período escolar estaria concluído <strong>de</strong> uma vez. Ora, po<strong>de</strong>ria apren<strong>de</strong>r<br />

uma profissão e casar-se com Lise. Naquela noite, então, <strong>de</strong>u um forte puxão na linha, e acordou na<br />

manhã seguinte como aprendiz <strong>de</strong> um carpinteiro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Pedro adorou sua nova vi<strong>da</strong>, subindo<br />

em telhados e an<strong>da</strong>imes, erguendo e colocando a martela<strong>da</strong>s enormes vigas que ain<strong>da</strong> exalavam<br />

o perfume <strong>da</strong> floresta. Mas às vezes, quando o dia do pagamento <strong>de</strong>morava a chegar, <strong>da</strong>va um<br />

pequeno puxão na linha e logo a semana terminava, já era a noite <strong>de</strong> sexta-feira e ele tinha<br />

dinheiro no bolso.<br />

Lise também mu<strong>da</strong>ra-se para a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e morava com a tia, que lhe ensinava os afazeres do lar.<br />

Pedro começou a ficar impaciente acerca do dia em que se casariam. Era difícil viver tão perto e<br />

tão longe <strong>de</strong>la, ao mesmo tempo. Perguntou-lhe, então, quando po<strong>de</strong>riam se casar.<br />

No próximo ano — disse ela. — Eu já terei aprendido a ser uma boa esposa. Pedro tocou com<br />

os <strong>de</strong>dos a bola pratea<strong>da</strong> no bolso.<br />

— Ora, o tempo vai passar bem rápido — disse, com muita certeza.<br />

Naquela noite, não conseguiu dormir. Passou o tempo todo agitado, virando <strong>de</strong> um lado para<br />

outro na cama.Tirou a bola mágica que estava <strong>de</strong>baixo do travesseiro. Hesitou um instante; logo<br />

a impaciência o dominou, e ele puxou a linha doura<strong>da</strong>. Pela manhã, <strong>de</strong>scobriu que o ano já havia<br />

passado e que Lise concor<strong>da</strong>ra afinal com o casamento. Pedro sentiu-se realmente feliz.<br />

Mas antes que o casamento pu<strong>de</strong>sse realizar-se, recebeu uma carta com aspecto <strong>de</strong> documento<br />

oficial. Abriu-a, trêmulo, e leu a notícia <strong>de</strong> que <strong>de</strong>veria apresentar-se ao quartel do exército na<br />

semana seguinte para servir por dois anos. Mostrou-a, <strong>de</strong>sesperado, para Lise.<br />

— Ora — disse ela —,não há o que temer, basta-nos esperar. Mas o tempo passará rápido, você<br />

vai ver. Há tanto o que preparar para nossa vi<strong>da</strong> a dois!<br />

Pedro sorriu com galhardia, mas sabia que dois anos durariam uma eterni<strong>da</strong><strong>de</strong> para passar.<br />

Quando já se acostumara à vi<strong>da</strong> no quartel, entretanto, começou a achar que não era tão ruim<br />

assim. Gostava <strong>de</strong> estar com os outros rapazes, e as tarefas não eram tão árduas a princípio.<br />

Lembrou-se <strong>da</strong> mulher aconselhando-o a usar a linha mágica com sabedoria e evitou usá-la<br />

por algum tempo. Mas logo tornou a sentir-se irrequieto. A vi<strong>da</strong> no exército o entediava com<br />

M1U7T1<br />

2


tarefas <strong>de</strong> rotina e rígi<strong>da</strong> disciplina. Começou a puxar a linha para acelerar o an<strong>da</strong>mento <strong>da</strong><br />

semana a fim <strong>de</strong> que chegasse logo o domingo, ou o dia <strong>da</strong> sua folga. E assim se passaram os dois<br />

anos, como se fosse um sonho.<br />

Terminado o serviço militar, Pedro <strong>de</strong>cidiu não mais puxar a linha, exceto por uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

absoluta. Afinal, era a melhor época <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, conforme todos lhe diziam. Não queria que<br />

acabasse tão rápido assim. Mas ele <strong>de</strong>u um ou dois pequenos puxões na linha, só para antecipar<br />

um pouco o dia do casamento.Tinha muita vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar para Lise seu segredo; mas sabia<br />

que, se contasse, morreria.<br />

No dia do casamento, todos estavam felizes, inclusive Pedro. Ele mal podia esperar para mostrar-lhe<br />

a casa que construíra para ela. Durante a festa, lançou um rápido olhar para a mãe. Percebeu, pela<br />

primeira vez, que o cabelo <strong>de</strong>la estava ficando grisalho. Envelhecera rapi<strong>da</strong>mente. Pedro sentiu<br />

uma ponta <strong>de</strong> culpa por ter puxado a linha com tanta freqüência. Dali em diante, seria muito<br />

mais parcimonioso com seu uso, e só a puxaria se fosse estritamente necessário.<br />

Alguns meses mais tar<strong>de</strong>, Lise anunciou que estava esperando um filho. Pedro ficou entusiasmadíssimo,<br />

e mal podia esperar. Quando o bebê nasceu, ele achou que não iria querer mais na<strong>da</strong> na<br />

vi<strong>da</strong>. Mas sempre que o bebê adoecia ou passava uma noite em claro chorando, ele puxava a<br />

linha um pouquinho para que o bebê tornasse a ficar saudável e alegre.<br />

Os tempos an<strong>da</strong>vam difíceis. Os negócios iam mal e chegara ao po<strong>de</strong>r um governo que mantinha<br />

o povo sob forte arrocho e pesados impostos, e não tolerava oposição. Quem quer que fosse<br />

tido como agitador era preso sem julgamento, e um simples boato bastava para se con<strong>de</strong>nar um<br />

homem. Pedro sempre fora conhecido por dizer o que pensava, e logo foi preso e jogado numa<br />

ca<strong>de</strong>ia. Por sorte, trazia a bola mágica consigo e <strong>de</strong>u um forte puxão na linha. As pare<strong>de</strong>s <strong>da</strong><br />

prisão se dissolveram diante dos seus olhos e os inimigos foram arremessados à distância numa<br />

enorme explosão. Era a guerra que se insinuava, mas que logo acabou, como uma tempesta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

verão, <strong>de</strong>ixando o rastro <strong>de</strong> uma paz exauri<strong>da</strong>. Pedro viu-se <strong>de</strong> volta ao lar com a família. Mas era<br />

agora um homem <strong>de</strong> meia-i<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Durante algum tempo, a vi<strong>da</strong> correu sem percalços, e Pedro sentia-se relativamente satisfeito.<br />

Um dia, olhou para a bola mágica e surpreen<strong>de</strong>u-se ao ver que a linha passara <strong>da</strong> cor doura<strong>da</strong><br />

para a pratea<strong>da</strong>. Foi olhar-se no espelho. Seu cabelo começava a ficar grisalho e seu rosto<br />

apresentava rugas on<strong>de</strong> nem se podia imaginá-las. Sentiu um medo súbito e <strong>de</strong>cidiu usar a linha<br />

com mais cui<strong>da</strong>do ain<strong>da</strong> do que antes. Lise <strong>de</strong>ra-lhe outros filhos e ele parecia feliz como chefe<br />

<strong>da</strong> família que crescia. Seu modo imponente <strong>de</strong> ser fazia as pessoas pensarem que ele era algum<br />

tipo <strong>de</strong> déspota benevolente. Possuía um ar <strong>de</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> como se tivesse nas mãos o <strong>de</strong>stino<br />

<strong>de</strong> todos. Mantinha a bola mágica bem escondi<strong>da</strong>, resguar<strong>da</strong><strong>da</strong> dos olhos curiosos dos filhos,<br />

sabendo que se alguém a <strong>de</strong>scobrisse, seria fatal.<br />

Ca<strong>da</strong> vez tinha mais filhos, <strong>de</strong> modo que a casa foi ficando muito cheia <strong>de</strong> gente. Precisava<br />

ampliá-la, mas não contava com o dinheiro necessário para a obra.Tinha outras preocupações,<br />

também. A mãe estava ficando idosa e parecia mais cansa<strong>da</strong> com o passar dos dias. Não<br />

adiantava puxar a linha <strong>da</strong> bola mágica, pois isto só aceleraria a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> morte para ela.<br />

M1U7T1<br />

3


De repente, ela faleceu, e Pedro, parado diante do túmulo, pensou como a vi<strong>da</strong> passara tão rápido,<br />

mesmo sem fazer uso <strong>da</strong> linha mágica.<br />

Uma noite, <strong>de</strong>itado na cama, sem conseguir dormir, pensando nas suas preocupações, achou que<br />

a vi<strong>da</strong> seria bem melhor se todos os filhos já estivessem crescidos e com carreiras encaminha<strong>da</strong>s.<br />

Deu um fortíssimo puxão na linha, e acordou no dia seguinte vendo que os filhos já não estavam<br />

mais em casa, pois tinham arranjado empregos em diferentes cantos do país, e que ele e a mulher<br />

estavam sós. Seu cabelo estava quase todo branco e doíam-lhe as costas e as pernas quando subia<br />

uma esca<strong>da</strong> ou os braços quando levantava uma viga mais pesa<strong>da</strong>. Lise também envelhecera, e<br />

estava quase sempre doente. Ele não agüentava vê-la sofrer, <strong>de</strong> tal forma que lançava mão <strong>da</strong><br />

linha mágica ca<strong>da</strong> vez mais freqüentemente. Mas bastava ser resolvido um problema, e já outro<br />

surgia em seu lugar. Pensou que talvez a vi<strong>da</strong> melhorasse se ele se aposentasse.Assim, não teria<br />

que continuar subindo nos edifícios em obras, sujeito a lufa<strong>da</strong>s <strong>de</strong> vento, e po<strong>de</strong>ria cui<strong>da</strong>r <strong>de</strong> Lise<br />

sempre que ela adoecesse. O problema era a falta <strong>de</strong> dinheiro suficiente para sobreviver. Pegou<br />

a bola mágica, então, e ficou olhando. Para seu espanto, viu que a linha não era mais pratea<strong>da</strong>, mas<br />

cinza, e per<strong>de</strong>ra o brilho. Decidiu ir para a floresta <strong>da</strong>r um passeio e pensar melhor em tudo aquilo.<br />

Já fazia muito tempo que não ia àquela parte <strong>da</strong> floresta. Os pequenos arbustos haviam crescido,<br />

transformando-se em árvores frondosas, e foi difícil encontrar o caminho que costumava percorrer.<br />

Acabou chegando a um banco no meio <strong>de</strong> uma clareira. Sentou-se para <strong>de</strong>scansar e caiu em sono<br />

leve. Foi <strong>de</strong>spertado por uma voz que chamava-o pelo nome: “Pedro! Pedro!”.<br />

Abriu os olhos e viu a mulher que encontrara havia tantos anos e que lhe <strong>de</strong>ra a bola pratea<strong>da</strong><br />

com a linha doura<strong>da</strong> mágica. Aparentava a mesma i<strong>da</strong><strong>de</strong> que tinha no dia em questão, exatamente<br />

igual. Ela sorriu para ele.<br />

— E então, Pedro, sua vi<strong>da</strong> foi boa? — perguntou.<br />

— Não estou bem certo — disse ele — Sua bola mágica é maravilhosa. Jamais tive que suportar<br />

qualquer sofrimento ou esperar por qualquer coisa em minha vi<strong>da</strong>. Mas tudo foi tão rápido. Sinto como<br />

se não tivesse tido tempo <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r tudo que se passou comigo; nem as coisas boas, nem as ruins. E,<br />

agora falta tão pouco tempo! Não ouso mais puxar a linha, pois isto só an<br />

teciparia minha morte. Acho que seu presente não me trouxe sorte.<br />

— Mas que falta <strong>de</strong> gratidão! — disse a mulher — Como você gostaria que as coisas fossem<br />

diferentes?<br />

— Talvez se você tivesse me <strong>da</strong>do uma outra bola, que eu pu<strong>de</strong>sse puxar a linha para fora e para<br />

<strong>de</strong>ntro também.Talvez, então, eu pu<strong>de</strong>sse reviver as coisas ruins.<br />

A mulher riu-se. — Está pedindo muito! Você acha que Deus nos permite viver nossas vi<strong>da</strong>s mais <strong>de</strong><br />

uma vez? Mas posso conce<strong>de</strong>r-lhe um último <strong>de</strong>sejo, seu tolo exigente.<br />

— Qual? — perguntou ele.<br />

— Escolha — disse ela. Pedro pensou bastante.<br />

M1U7T1<br />

4


Depois <strong>de</strong> um bom tempo, disse:<br />

— Eu gostaria <strong>de</strong> tornar a viver minha vi<strong>da</strong>, como se fosse a primeira vez, mas sem sua bola mágica.<br />

Assim po<strong>de</strong>rei experimentar as coisas ruins <strong>da</strong> mesma forma que as boas sem encurtar sua duração, e<br />

pelo menos minha vi<strong>da</strong> não passará tão rápido e não per<strong>de</strong>rá o sentido como um <strong>de</strong>vaneio.<br />

— Assim seja — disse a mulher. — Devolva-me a bola.<br />

Ela esticou a mão e Pedro entregou-lhe a bola pratea<strong>da</strong>. Em segui<strong>da</strong>, ele se recostou e fechou os<br />

olhos, exausto.<br />

Quando acordou, estava na cama. Sua jovem mãe se <strong>de</strong>bruçava sobre ele, tentando acordá-lo<br />

carinhosamente.<br />

— Acor<strong>de</strong>, Pedro. Não vá chegar atrasado na escola.Você estava dormindo como uma pedra!<br />

Ele olhou para ela, surpreso e aliviado.<br />

— Tive um sonho horrível, mãe. Sonhei que estava velho e doente e que minha vi<strong>da</strong> passara como<br />

num piscar <strong>de</strong> olhos sem que eu sequer tivesse algo para contar.Nem ao menos algumas lembranças.<br />

A mãe riu-se e fez que não com a cabeça.<br />

— Isso nunca vai acontecer — disse ela. — As lembranças são algo que todos temos, mesmo<br />

quando velhos. Agora, an<strong>de</strong> logo, vá se vestir. A Lise está esperando por você,não <strong>de</strong>ixe que<br />

se atrase por sua causa.<br />

A caminho <strong>da</strong> escola em companhia <strong>da</strong> amiga, ele observou que estavam em pleno verão e que<br />

fazia uma lin<strong>da</strong> manhã, uma <strong>da</strong>quelas em que era ótimo estar vivendo. Em poucos minutos, estariam<br />

encontrando os amigos e colegas, e mesmo a perspectiva <strong>de</strong> enfrentar algumas aulas não parecia<br />

tão ruim assim. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, ele mal podia esperar.<br />

M1U7T1<br />

5


Um jornal é melhor do que uma revista. Um cume ou encosta é melhor do que uma rua.<br />

No início parece que é melhor correr do que an<strong>da</strong>r. É preciso experimentar várias vezes.<br />

Prega várias parti<strong>da</strong>s, mas é fácil <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r. Mesmo as crianças po<strong>de</strong>m achá-lo divertido.<br />

Uma vez com sucesso, as complicações são minimiza<strong>da</strong>s. Os pássaros raramente se apro-<br />

ximam. Muitas pessoas, às vezes, fazem-no ao mesmo tempo, contudo isso po<strong>de</strong> causar<br />

problemas. É preciso muito espaço. É necessário ter cui<strong>da</strong>do com a chuva, pois <strong>de</strong>strói<br />

tudo. Se não houver complicações, po<strong>de</strong> ser muito agradável. Uma pedra po<strong>de</strong> servir <strong>de</strong><br />

âncora. Se alguma coisa se partir, perdêmo-la e não teremos uma segun<strong>da</strong> chance.<br />

M1U7T2<br />

(Autor <strong>de</strong>sconhecido)<br />

M1U7T2<br />

1


Consi<strong>de</strong>rações sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

do programa Ler para apren<strong>de</strong>r *<br />

M1U7T3<br />

As propostas <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> a seguir são acompanha<strong>da</strong>s <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> "ficha técnica", na qual<br />

estão relaciona<strong>da</strong>s suas características, as indicações metodológicas e outras informações úteis<br />

– entre elas, algumas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> modificação <strong>da</strong> proposta para a<strong>de</strong>quá-la aos alunos já<br />

alfabetizados, uma vez que elas se <strong>de</strong>stinam especialmente àqueles que ain<strong>da</strong> não se alfabetizaram.<br />

Para enten<strong>de</strong>r melhor as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> planejar/recriar diferentes tipos <strong>de</strong> situação <strong>de</strong> ensino<br />

e aprendizagem, é importante consi<strong>de</strong>rar que uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> se transforma em outra se, por<br />

exemplo, <strong>de</strong> individual passar a ser em dupla, ou for realiza<strong>da</strong> com to<strong>da</strong> a classe – ou vice-versa.<br />

O mesmo ocorre se for feita com aju<strong>da</strong> ou sem aju<strong>da</strong>, com ou sem consulta, com ou sem<br />

rascunho, <strong>de</strong> uma só vez ou em mais vezes, no ca<strong>de</strong>rno ou em papel especial para ser exposto<br />

num mural, com letras móveis, com cartões, na lousa, no computador ou escrito a lápis...<br />

Segue abaixo a indicação <strong>de</strong> algumas intervenções consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s durante as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> leitura apresenta<strong>da</strong>s no programa e em outras do mesmo tipo.<br />

É importante que o professor circule pela sala observando quais procedimentos os alunos utilizam<br />

para realizar a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, e que coloque questões problematizadoras, a partir <strong>da</strong>s informações que<br />

possui sobre o que eles sabem. Isso significa fazer perguntas que aju<strong>de</strong>m a pensar, problematizar as<br />

respostas <strong>da</strong><strong>da</strong>s por eles, oferecer informações que possam fazê-los refletir, evitando sempre transformar<br />

esse tipo <strong>de</strong> intervenção numa in<strong>da</strong>gação ostensiva que se assemelhe a uma prova oral ou<br />

sabatina: a intenção não é testar os alunos, mas funcionar como um parceiro que aju<strong>de</strong> a apren<strong>de</strong>r.<br />

Sempre que for pertinente, é preciso socializar as respostas, discutindo como foram encontra<strong>da</strong>s.<br />

Nesse tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, se os alunos tiverem dúvi<strong>da</strong>s em relação à leitura <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s<br />

palavras, vale a pena, sempre que possível, remetê-los a outras palavras cuja forma conhecem:<br />

uma boa fonte <strong>de</strong> consulta é a lista dos nomes dos colegas, ou outros textos que também sirvam<br />

<strong>de</strong> referência nesse caso – textos que po<strong>de</strong>m estar escritos em cartazes afixados na classe, ou colados<br />

no ca<strong>de</strong>rno. A idéia não é, em absoluto, que o aluno copie as palavras, mas que possa utilizar<br />

a escrita convencional como referência para ler e escrever.<br />

Como não é possível ao professor acompanhar <strong>de</strong> perto todos os alunos num mesmo dia, é preciso<br />

então distribuir esse tipo <strong>de</strong> acompanhamento ao longo <strong>da</strong>s semanas. Para tanto, é muito útil organizar<br />

um instrumento <strong>de</strong> registro no qual constem a <strong>da</strong>ta, o nome dos alunos que forem observados<br />

mais criteriosamente, o tipo <strong>de</strong> questões coloca<strong>da</strong>s por eles e constata<strong>da</strong>s pelo professor etc.<br />

Trata-se <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> “mapa”, que facilita não só a documentação <strong>da</strong>s informações em relação à<br />

aprendizagem e ao <strong>de</strong>sempenho dos alunos, mas também o planejamento <strong>da</strong> intervenção junto a todos.<br />

Sabemos que o professor é um informante privilegiado na sala <strong>de</strong> aula, mas não é o único: se as<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e os agrupamentos forem bem planejados, os alunos também apren<strong>de</strong>rão muito uns<br />

*<br />

As ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s sugeri<strong>da</strong>s neste material fazem sentido no contexto <strong>de</strong> uma abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> alfabetização como a proposta neste Curso, <strong>de</strong>scontextualiza<strong>da</strong>s<br />

elas po<strong>de</strong>m ser pouco úteis ou mesmo <strong>de</strong> difícil operacionalização.<br />

M1U7T3<br />

1


com os outros, mesmo que o professor não consiga intervir diariamente com ca<strong>da</strong> um.<br />

Por outro lado, vale lembrar que a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> circular pela classe fazendo intervenções é<br />

facilita<strong>da</strong> pelo trabalho em grupo: quando se tem uma classe numerosa, com todos trabalhando<br />

individualmente, é muito mais difícil intervir com ca<strong>da</strong> um e, ao mesmo tempo, “controlar” a<br />

classe. Se o professor tem, por exemplo, 36 alunos divididos em 18 duplas que já sabem trabalhar<br />

em parceria, será preciso “controlar” 18 agrupamentos que ten<strong>de</strong>m a funcionar bem, e não 36<br />

alunos que o tempo todo requisitam apenas o professor. De mais a mais, com 18 duplas, é<br />

perfeitamente possível intervir com to<strong>da</strong>s a ca<strong>da</strong> uma ou duas semanas, no máximo – o que<br />

significa acompanhar mais <strong>de</strong> perto cerca <strong>de</strong> três agrupamentos por dia.<br />

Em relação aos critérios <strong>de</strong> agrupamento para ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s como as propostas no Programa 8<br />

(e nas <strong>de</strong>mais ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> alfabetização), é importante consi<strong>de</strong>rar o seguinte: não é nem um pouco<br />

produtivo o agrupamento <strong>de</strong> alunos que sabem mais ou menos as mesmas coisas, ou pensam <strong>de</strong><br />

forma muito pareci<strong>da</strong>. Isso se coloca especialmente em relação aos alunos com escrita présilábica<br />

– para eles, é importante a interação com colegas que já compreen<strong>de</strong>ram que a escrita<br />

representa a fala e fazem uso <strong>de</strong>sse conhecimento, o que eles ain<strong>da</strong> não conquistaram.<br />

Conforme vem sendo enfatizado em diferentes momentos do Curso, alguns princípios didáticos<br />

<strong>de</strong>vem ser orientadores <strong>da</strong>s situações <strong>de</strong> ensino e aprendizagem <strong>de</strong> modo geral – e são, portanto,<br />

orientadores também <strong>da</strong>s propostas apresenta<strong>da</strong>s no programa:<br />

• Ajustar o nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio às possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s cognitivas dos alunos, para que realmente tenham<br />

bons problemas a resolver;<br />

• Organizar agrupamentos produtivos, em função do conhecimento sobre o que os alunos<br />

sabem e do conteúdo <strong>da</strong> tarefa que <strong>de</strong>vem realizar;<br />

• Garantir a máxima circulação <strong>de</strong> informação, promovendo a socialização <strong>da</strong>s respostas e dos<br />

procedimentos utilizados pelos grupos.<br />

Por fim, vale ressaltar ain<strong>da</strong> duas questões:<br />

• O objetivo <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s essas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s é favorecer a reflexão dos alunos sobre o sistema<br />

alfabético <strong>de</strong> escrita por meio <strong>da</strong> leitura <strong>de</strong> textos (a respeito dos quais já dispõem <strong>de</strong><br />

algumas informações, tornando possível o uso <strong>de</strong> estratégias antecipatórias).<br />

• É fun<strong>da</strong>mental cui<strong>da</strong>r para que os textos <strong>de</strong>stinados à leitura dos alunos sejam sempre bem<br />

legíveis, especialmente quando são mimeografados.<br />

Leitura <strong>de</strong> listas<br />

No Programa 8 serão apresenta<strong>da</strong>s as seguintes ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s com listas:<br />

• Leitura <strong>de</strong> lista <strong>de</strong> títulos <strong>de</strong> histórias.<br />

• Leitura <strong>de</strong> lista <strong>de</strong> frutas.<br />

M1U7T3<br />

2


Tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>: Leitura<br />

Duração aproxima<strong>da</strong>: 20 minutos<br />

Desafios colocados aos alunos<br />

• Tentar ler antes <strong>de</strong> saber ler convencionalmente.<br />

• Utilizar o conhecimento sobre o valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras (quando já sabem), ou<br />

trabalhar em parceria com alunos que fazem uso do valor sonoro (quando não sabem).<br />

• Acionar estratégias <strong>de</strong> leitura que permitam <strong>de</strong>scobrir o que está escrito.<br />

Procedimentos didáticos específicos <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

O professor precisa:<br />

• Apresentar a lista aos alunos dizendo do que ela trata (frutas ou títulos <strong>de</strong> história, nesse caso);<br />

• Propor a tarefa aos alunos pedindo que localizem os nomes ou títulos solicitados.<br />

Procedimentos dos alunos<br />

Os alunos precisam<br />

• Ler o nome ou o título dita<strong>da</strong> pelo professor.<br />

• Discutir com seu parceiro.<br />

• Marcar a resposta.<br />

• Socializar para a classe.<br />

A<strong>de</strong>quação <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rando o conhecimento dos alunos<br />

Alunos com escrita não-alfabética:<br />

• Realizam a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> tal como está proposta, observando-se o seguinte: os alunos com escrita<br />

silábica, que já conhecem o valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras (e fazem uso <strong>de</strong>sse conhecimento,<br />

ain<strong>da</strong> que parcialmente), po<strong>de</strong>m ser agrupados com alunos com escrita silábica que<br />

<strong>de</strong>sconhecem o valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras e/ou fazem pouco uso <strong>de</strong>sse conhecimento.<br />

Po<strong>de</strong>m trabalhar também com alunos com escrita silábico-alfabética, ou escrita pré-silábica.<br />

Alunos com escrita alfabética:<br />

• Po<strong>de</strong>m ler autonomamente os nomes e títulos.<br />

• Po<strong>de</strong>m escrever os nomes e títulos ditados.<br />

M1U7T3<br />

3


• Po<strong>de</strong>m trabalhar em parceria com alunos com escrita não-alfabética, lendo os nomes e títulos<br />

para que os colegas procurem encontrar on<strong>de</strong> estão escritos – nesse caso, evi<strong>de</strong>ntemente, é<br />

preciso instruí-los para que não leiam os nomes e títulos na or<strong>de</strong>m apresenta<strong>da</strong>, pois <strong>de</strong>ssa<br />

forma a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria tornar-se mecânica.<br />

Leitura <strong>de</strong> poemas e parlen<strong>da</strong>s<br />

No Programa 8, serão apresenta<strong>da</strong>s as seguintes ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s com poemas e parlen<strong>da</strong>s:<br />

• Leitura do poema "A foca" <strong>de</strong> Vinícius <strong>de</strong> Moraes.<br />

• Leitura <strong>da</strong> parlen<strong>da</strong> "Cadê o toucinho…".<br />

• Leitura <strong>da</strong> parlen<strong>da</strong> "Um, dois, feijão com arroz…".<br />

Tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>: Leitura<br />

Duração aproxima<strong>da</strong>: 30 minutos<br />

Desafios colocados aos alunos<br />

• Tentar ler antes <strong>de</strong> saber ler convencionalmente.<br />

• Estabelecer correspondência entre partes do oral e partes do escrito, ajustando o que sabem<br />

<strong>de</strong> cor à escrita convencional.<br />

• Utilizar o conhecimento sobre o valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras (quando já sabem), ou<br />

trabalhar em parceria com alunos que fazem uso do valor sonoro (quando não sabem).<br />

• Acionar estratégias <strong>de</strong> leitura que permitam <strong>de</strong>scobrir o que está escrito e on<strong>de</strong>.<br />

Procedimentos didáticos específicos <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

O Professor precisa:<br />

• Garantir que os alunos saibam <strong>de</strong> cor o texto (não a sua escrita, mas sua forma oral);<br />

• Se os alunos tiverem acesso ao texto escrito, certificar-se <strong>de</strong> que não o consultem nesse<br />

momento, pois assim a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> se transformaria em uma situação <strong>de</strong> cópia, o que não é a<br />

proposta nesse caso.<br />

• Sempre que possível, é importante levar para a classe os livros <strong>de</strong> on<strong>de</strong> transcreveu os textos<br />

utilizados, para que os alunos conheçam seus portadores.<br />

M1U7T3<br />

4


Procedimentos dos alunos<br />

Os alunos precisam:<br />

• Saber o texto <strong>de</strong> cor;<br />

• Or<strong>de</strong>nar as partes do texto, ajustando o falado ao escrito;<br />

• Discutir suas hipóteses com os colegas;<br />

• Socializar os resultados <strong>de</strong> seu trabalho.<br />

A<strong>de</strong>quação <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rando o conhecimento dos alunos<br />

Alunos com escrita não-alfabética :<br />

Realizam a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> tal como está proposta, observando-se o seguinte: os alunos com escrita<br />

silábica, que já conhecem o valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras (e fazem uso <strong>de</strong>sse conhecimento,<br />

ain<strong>da</strong> que parcialmente), po<strong>de</strong>m ser agrupados com alunos com escrita silábica que <strong>de</strong>sconhecem<br />

o valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras e/ou fazem pouco uso <strong>de</strong>sse conhecimento. Po<strong>de</strong>m<br />

trabalhar também com alunos com escrita silábico-alfabética, ou escrita pré-silábica.<br />

Alunos com escrita alfabética:<br />

• Po<strong>de</strong>m escrever o texto no ca<strong>de</strong>rno.<br />

• Po<strong>de</strong>m receber letras soltas para escrever o texto (ou trechos <strong>de</strong>le, se for longo): nesse caso,<br />

o professor <strong>de</strong>ve informá-los que estão recebendo a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> exata <strong>de</strong> letras; portanto, no final<br />

<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, não po<strong>de</strong>m faltar nem sobrar letras. Muitas questões interessantes po<strong>de</strong>m surgir<br />

nesse momento, especialmente em relação à ortografia <strong>de</strong> algumas palavras: quando os alunos<br />

escrevem as palavras <strong>de</strong> forma erra<strong>da</strong>, <strong>de</strong>pois não conseguem trabalhar com as letras disponíveis,<br />

pois utilizaram letras que seriam necessárias, mas não as têm. Se, por exemplo, escreveram palavras<br />

que levam SS e RR com R e S, certamente sobrarão letras no final <strong>da</strong> montagem, obrigando-os<br />

a pensar nas razões disso.<br />

Saiba que<br />

• Como a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ve sempre ser planeja<strong>da</strong> e proposta consi<strong>de</strong>rando a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

realização dos alunos, o seu formato po<strong>de</strong> variar em função disso: os que ain<strong>da</strong> não escrevem<br />

alfabeticamente po<strong>de</strong>m, por exemplo, or<strong>de</strong>nar os versos ou então as palavras do texto, a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r<br />

do conhecimento que já possuem – or<strong>de</strong>nar versos é mais fácil do que or<strong>de</strong>nar palavras.<br />

• No caso <strong>da</strong> alfabetização <strong>de</strong> jovens e adultos, é preciso selecionar textos a<strong>de</strong>quados à faixa etária.<br />

No lugar <strong>de</strong> parlen<strong>da</strong>s, por exemplo, po<strong>de</strong>-se optar por poemas, provérbios ou canções.<br />

M1U7T3<br />

5


Intervenção do professor<br />

Nessa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, o professor po<strong>de</strong> levantar questões do seguinte tipo: solicitar que alguns alunos<br />

encontrem e apontem on<strong>de</strong> estão trechos do texto, como, por exemplo, "nariz" (do poema "A<br />

foca"); ou "toucinho" (<strong>da</strong> parlen<strong>da</strong> "Cadê o toucinho") etc. É interessante também, quando o aluno<br />

já localizou os substantivos e adjetivos, perguntar pelo verbo, advérbio e, quando todos estes<br />

elementos estiverem i<strong>de</strong>ntificados, perguntar o que po<strong>de</strong> estar escrito nos pequenos fragmentos<br />

<strong>de</strong> poucas letras (artigos, pronomes, conectivos).<br />

Leitura <strong>de</strong> uma receita <strong>de</strong> doce <strong>de</strong> banana<br />

Tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>: Leitura<br />

Duração aproxima<strong>da</strong>: 20 minutos<br />

Desafios colocados aos alunos<br />

• Tentar ler antes <strong>de</strong> saber ler convencionalmente.<br />

• Utilizar o conhecimento sobre o valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras (quando já sabem), ou<br />

trabalhar em parceria com alunos que fazem uso do valor sonoro (quando não sabem).<br />

• Acionar estratégias <strong>de</strong> leitura que permitam <strong>de</strong>scobrir o que está escrito.<br />

Procedimentos didáticos específicos <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

O professor precisa:<br />

• Apresentar a receita do doce <strong>de</strong> banana aos alunos;<br />

• Propor a tarefa aos alunos pedindo que completem as palavras que estão faltando nos ingredientes.<br />

• Sempre que possível, é importante levar para a classe um livro <strong>de</strong> receitas, para que os alunos<br />

conheçam melhor o tipo <strong>de</strong> portador <strong>de</strong>sses textos.<br />

Procedimentos dos alunos<br />

Os alunos precisam:<br />

• Localizar os ingredientes na lista, para completar as lacunas;<br />

• Discutir com o parceiro suas respostas, i<strong>de</strong>ntificando também a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> ingrediente;<br />

• Socializar para a classe sua <strong>de</strong>scoberta.<br />

M1U7T3<br />

6


A<strong>de</strong>quação <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rando o conhecimento dos alunos<br />

Alunos com escrita não-alfabética :<br />

Realizam a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> tal como está proposta, observando-se o seguinte: os alunos com escrita<br />

silábica, que já conhecem o valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras (e fazem uso <strong>de</strong>sse conhecimento,<br />

ain<strong>da</strong> que parcialmente), po<strong>de</strong>m ser agrupados com alunos com escrita silábica que <strong>de</strong>sconhecem<br />

o valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras e/ou fazem pouco uso <strong>de</strong>sse conhecimento. Po<strong>de</strong>m<br />

trabalhar também com alunos com escrita silábico-alfabética, ou escrita pré-silábica.<br />

Alunos com escrita alfabética :<br />

• Po<strong>de</strong>m ler autonomamente a receita e completá-la.<br />

• Po<strong>de</strong>m trabalhar em parceria com alunos com escrita não-alfabética, lendo o modo <strong>de</strong> preparar<br />

para que os <strong>de</strong>mais possam completar o texto com as palavras que faltam.<br />

Leitura <strong>da</strong> música "A casa" <strong>de</strong> Vinícius <strong>de</strong> Moraes<br />

Tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>: Leitura<br />

Duração aproxima<strong>da</strong>: 30 minutos<br />

Desafios colocados aos alunos<br />

• Tentar ler antes <strong>de</strong> saber ler convencionalmente.<br />

• Estabelecer correspondência entre partes do oral e partes do escrito.<br />

• Utilizar o conhecimento sobre o valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras (quando já sabem), ou<br />

trabalhar em parceria com alunos que fazem uso do valor sonoro (quando não sabem).<br />

• Acionar estratégias <strong>de</strong> leitura que permitam <strong>de</strong>scobrir o que está escrito e on<strong>de</strong>.<br />

Procedimentos didáticos específicos <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

O professor precisa:<br />

• Assegurar-se que a música é <strong>de</strong> conhecimento dos alunos e que a sabem <strong>de</strong> memória: eles não<br />

<strong>de</strong>vem memorizar o texto escrito, <strong>de</strong>vem saber cantar.<br />

M1U7T3<br />

7


Procedimentos dos alunos<br />

Os alunos precisam :<br />

• Conhecer a música;<br />

• Cantar a música buscando i<strong>de</strong>ntificar as partes do escrito;<br />

• Marcar on<strong>de</strong> o professor faz a pausa na música;<br />

• Socializar sua resposta.<br />

A<strong>de</strong>quação <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rando o conhecimento dos alunos<br />

Alunos com escrita não-alfabética:<br />

Realizam a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> tal como está proposta, observando-se o seguinte: os alunos com escrita<br />

silábica, que já conhecem o valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras (e fazem uso <strong>de</strong>sse<br />

conhecimento, ain<strong>da</strong> que parcialmente), po<strong>de</strong>m ser agrupados com alunos com escrita silábica<br />

que <strong>de</strong>sconhecem o valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras e/ou fazem pouco uso <strong>de</strong>sse conhecimento.<br />

Po<strong>de</strong>m trabalhar também com alunos com escrita silábico-alfabética, ou escrita pré-silábica.<br />

Alunos com escrita alfabética:<br />

• Po<strong>de</strong>m realizar a escrita <strong>da</strong> música pondo em jogo os conhecimentos sobre as questões ortográficas.<br />

Saiba que<br />

• É necessário ampliar o repertório musical dos alunos (sejam crianças ou adultos) com produções<br />

<strong>de</strong> reconhecidos compositores e cantores <strong>da</strong> Música Popular Brasileira – Tom Jobim, Caetano<br />

Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, João Gilberto, Dorival Caymi,Ari Barroso, Pixinguinha,<br />

Arnaldo Antunes, Gal Costa, Elis Regina etc.Afinal, é papel <strong>da</strong> escola assegurar aos alunos o acesso<br />

aos bens culturais, o que implica ampliar o repertório que eles possuem.<br />

Intervenção do professor<br />

O professor po<strong>de</strong> utilizar uma fita cassete, ou um CD com músicas que os alunos apreciem, ou<br />

cantar a música junto com eles.<br />

Os textos poéticos oferecem para os alunos várias pistas, que favorecem antecipações: principalmente<br />

o ritmo e a disposição gráfica em versos.<br />

No final <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, o professor po<strong>de</strong> pedir que os alunos com escrita alfabética ditem, para<br />

que ele escreva na lousa, a primeira estrofe <strong>da</strong> música. Para isso, po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r a seguinte orientação:<br />

"Vamos fazer <strong>de</strong> conta que eu só sei o nome <strong>da</strong>s letras. Por isso, vocês <strong>de</strong>vem me dizer com que<br />

letras <strong>de</strong>vo escrever, e tudo o mais que <strong>de</strong>vo fazer, para pôr na lousa o começo <strong>da</strong> música.Todos<br />

<strong>de</strong>vem acompanhar em seus textos o que está sendo ditado, e corrigir quando houver algo errado."<br />

M1U7T3<br />

8


É comum que os alunos já alfabetizados ditem o texto sem informar ao professor a separação<br />

entre as palavras, e que cometam erros ortográficos, uma vez que não receberam o texto fonte.<br />

Nesse momento, os <strong>de</strong>mais alunos, que são exatamente os que ain<strong>da</strong> não lêem convencionalmente,<br />

assumem o papel <strong>de</strong> informantes privilegiados, pois têm o texto em mãos.<br />

Cruzadinha<br />

Tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>: Leitura<br />

Duração aproxima<strong>da</strong>: 20 minutos<br />

Desafios colocados aos alunos<br />

• Tentar ler antes <strong>de</strong> saber ler convencionalmente.<br />

• Utilizar o conhecimento sobre o valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras (quando já sabem),<br />

ou trabalhar em parceria com alunos que fazem uso do valor sonoro (quando não sabem).<br />

• Acionar estratégias <strong>de</strong> leitura que permitam antecipar o que está escrito.<br />

Procedimentos didáticos específicos <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

O professor precisa:<br />

• Explicar e <strong>de</strong>monstrar na lousa como é que se preenche uma cruzadinha, se os alunos ain<strong>da</strong><br />

não tiverem familiari<strong>da</strong><strong>de</strong> com a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

• Sempre que possível, levar revistas <strong>de</strong> cruzadinhas (que são vendi<strong>da</strong>s em bancas <strong>de</strong> jornal e<br />

livrarias), para que os alunos conheçam e manuseiem esse portador <strong>de</strong> texto.<br />

Procedimentos dos alunos<br />

Os alunos precisam<br />

• Observar to<strong>da</strong>s as figuras;<br />

• Escolher uma para iniciar o preenchimento;<br />

• Contar o número <strong>de</strong> quadradinhos correspon<strong>de</strong>nte à figura escolhi<strong>da</strong> – assim saberão quantas<br />

letras tem a palavra a ser procura<strong>da</strong>;<br />

• Consultar a lista <strong>de</strong> palavras 1 para <strong>de</strong>scobrir qual é a certa;<br />

• Socializar as respostas encontra<strong>da</strong>s.<br />

1<br />

As cruzadinhas só são ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s viáveis para os alunos não-alfabetizados se tiverem uma lista <strong>de</strong> palavras para consulta, conforme aparece no<br />

programa <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o.<br />

M1U7T3<br />

9


A<strong>de</strong>quação <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rando o conhecimento dos alunos<br />

Alunos com escrita não-alfabética<br />

Realizam a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> tal como está proposta, observando-se o seguinte: os alunos com escrita<br />

silábica, que já conhecem o valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras (e fazem uso <strong>de</strong>sse conhecimento,<br />

ain<strong>da</strong> que parcialmente), po<strong>de</strong>m ser agrupados com alunos com escrita silábica que <strong>de</strong>sconhecem<br />

o valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras e/ou fazem pouco uso <strong>de</strong>sse conhecimento. Po<strong>de</strong>m<br />

trabalhar também com alunos com escrita silábico-alfabética, ou escrita pré-silábica.<br />

Alunos com escrita alfabética<br />

• A cruzadinha <strong>de</strong>ve ser utiliza<strong>da</strong> como ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> escrita: nesse caso, a tarefa consiste em<br />

escrever as palavras, e não em encontrá-las na lista (portanto a lista não <strong>de</strong>ve existir na folha<br />

que esses alunos recebem). As principais questões que se colocam aos alunos são ortográficas.<br />

Esse tipo <strong>de</strong> proposta é também produtiva quando os agrupamentos são formados por alunos<br />

com escrita silábico-alfabética.<br />

Saiba que<br />

• É preciso cui<strong>da</strong>r para que as cruzadinhas sejam sempre bem níti<strong>da</strong>s: letras e quadrinhos não<br />

muito pequenos e <strong>de</strong>senhos bem feitos, para que os alunos não se confun<strong>da</strong>m.<br />

• No caso <strong>da</strong> alfabetização <strong>de</strong> jovens e adultos, o tipo <strong>de</strong> cruzadinha precisa ser a<strong>de</strong>quado à faixa etária.<br />

Intervenção do professor<br />

Nesse tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, é importante problematizar as escolhas feitas pelos alunos que só<br />

prestaram atenção, por exemplo, nas letras do início <strong>da</strong> palavra – e que por isso selecionaram<br />

palavras ina<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s –, levando-os a observar também as letras finais ou intermediárias.<br />

M1U7T3<br />

10


Número <strong>de</strong> participantes: In<strong>de</strong>ter___na___<br />

Local a<strong>de</strong>quado: Ao ar li___<br />

Material necessário: ___<strong>da</strong><br />

Cabo-<strong>de</strong>-guerra<br />

Regra do jo___<br />

As ___anças, em duas colu___ frente a ____te, seguram uma cor___. No ponto em que<br />

as ____lunas se tocam será tra___<strong>da</strong> uma linha perpendicular aos jo___do___ . A uma<br />

dis___cia <strong>de</strong> 4 me__ do últi___ jogador <strong>de</strong> ____<strong>da</strong> colu___ risca-se a li____ <strong>da</strong> vitória.<br />

Dado o ____nal <strong>de</strong> i___cio, os jogadores puxam a ___<strong>da</strong> esforçando-se em arras___<br />

os _____sários até a li__ <strong>de</strong> vitó___. Se___ consi<strong>de</strong>rado ___cedor o partido que atin-<br />

gir essa li___.<br />

M1U7T4<br />

M1U7T4<br />

1


Vollmilchschokola<strong>da</strong> mit gerösteten Man<strong>de</strong>lstücken — Zutaten:<br />

Zucker, Vollmilck, kakaobutter, geröstete Ma<strong>de</strong>in, kakaomasse,<br />

Emulgator Lecithin, Vanillinaroma, min<strong>de</strong>stens haltarbis: siene<br />

Prägung. In <strong>de</strong>r Vollmichschokola<strong>de</strong>: Kakao30% min<strong>de</strong>stens.<br />

Nettogewicht 37 g. Hergesteltt in <strong>de</strong> USA.<br />

Hertellungs<strong>da</strong>tum: 04 04<br />

Min<strong>de</strong>stens haltbar bis: 04 04 01<br />

M1U7T5<br />

M1U7T5<br />

1


Fusilli ai 4 formaggi<br />

Zubereitungszeit: 25 min<br />

Zutoten (4 Personen)<br />

500 g Fusilli<br />

50 g Schweizer Emmentholer Suisse<br />

50 g geriebener Parmesonköse<br />

50 g Mozzarella<br />

50 g Gorgonzola<br />

150 g Rohm<br />

30 g <strong>de</strong> Butter<br />

Salz<br />

Peppar<br />

Parmesan reiben, die on<strong>de</strong>ren Köse in Kleine Würfel schnei<strong>de</strong>n. Die Butter<br />

in einer Pfanne erhitzen und Gorgonzola und Emmentholerwürfel<br />

hinzufügen. Erwa eine Minute zieben lossen, <strong>de</strong>n Rohm dorüber gieben<br />

und mir Salz und Pfeffer würzen. Die Fusilli in reichlich Salzwosser<br />

bibfest garen, abgieben und mit <strong>de</strong>r Souce vermischen, Mozzarella und<br />

Parmeson unterrübren und sofort servieren.<br />

M1U7T6<br />

M1U7T6<br />

1


Alfabetização *<br />

M1U7T7<br />

Para apren<strong>de</strong>r a ler e a escrever é preciso pensar sobre a escrita, pensar sobre o que a escrita<br />

representa e como ela representa graficamente a linguagem.<br />

Algumas situações didáticas favorecem especialmente a análise e a reflexão sobre o sistema<br />

alfabético <strong>de</strong> escrita e a correspondência fonográfica. São ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que exigem uma atenção à<br />

análise – tanto quantitativa como qualitativa – <strong>da</strong> correspondência entre segmentos falados e<br />

escritos. São situações privilegia<strong>da</strong>s <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> epilingüística, em que, basicamente, o aluno precisa:<br />

• ler, embora ain<strong>da</strong> não saiba ler;<br />

• escrever, apesar <strong>de</strong> ain<strong>da</strong> não saber escrever.<br />

Em ambas é necessário que ele ponha em jogo tudo o que sabe sobre a escrita, para po<strong>de</strong>r realizá-las.<br />

Nas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> "leitura" o aluno precisa analisar todos os indicadores disponíveis para<br />

<strong>de</strong>scobrir o significado do escrito e po<strong>de</strong>r realizar a "leitura" <strong>de</strong> duas formas:<br />

• pelo ajuste <strong>da</strong> "leitura" do texto, que conhece <strong>de</strong> cor, aos segmentos escritos;<br />

• pela combinação <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> antecipação (a partir <strong>de</strong> informações obti<strong>da</strong>s no contexto,<br />

por meio <strong>de</strong> pistas) com índices providos pelo próprio texto, em especial os relacionados à<br />

correspondência fonográfica.<br />

Mas não é qualquer texto que, além <strong>de</strong> permitir esse tipo <strong>de</strong> "leitura", garante que o esforço <strong>de</strong><br />

atribuir significado às partes escritas coloque problemas que aju<strong>de</strong>m o aluno a refletir e a apren<strong>de</strong>r.<br />

No primeiro caso, os textos mais a<strong>de</strong>quados são as quadrinhas, parlen<strong>da</strong>s e canções que, em geral,<br />

se sabe <strong>de</strong> cor; e, no segundo, as embalagens comerciais, os anúncios, os folhetos <strong>de</strong> propagan<strong>da</strong><br />

e <strong>de</strong>mais portadores <strong>de</strong> texto que possibilitem suposições <strong>de</strong> sentido a partir do conteúdo, <strong>da</strong><br />

imagem ou foto, do conhecimento <strong>da</strong> marca ou do logotipo, isto é, <strong>de</strong> qualquer elemento do texto<br />

ou do seu entorno que permita ao aluno imaginar o que po<strong>de</strong>ria estar aí escrito.<br />

*<br />

Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Portuguesa, 1ª a 4ª série. Brasília, MEC, 1997, p. 82-84.<br />

M1U7T7<br />

1


Estudos em diferentes línguas têm mostrado que, <strong>de</strong> uma correspondência inicial pouco diferencia<strong>da</strong>,<br />

o alfabetizando progri<strong>de</strong> em direção a um procedimento <strong>de</strong> análise em que passa a fazer<br />

correspon<strong>de</strong>r recortes do falado a recortes do escrito. Essa correspondência passa por um<br />

momento silábico – em que, ain<strong>da</strong> que nem sempre com consistência, atribui uma letra a uma<br />

sílaba –, antes <strong>de</strong> chegar a compreen<strong>de</strong>r o que realmente ca<strong>da</strong> letra representa.<br />

Nas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> escrita aqui referi<strong>da</strong>s, o aluno que ain<strong>da</strong> não sabe escrever convencionalmente<br />

precisa esforçar-se para construir procedimentos <strong>de</strong> análise e encontrar formas <strong>de</strong> representar<br />

graficamente aquilo que se propõe escrever. É por isso que essa é uma boa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

alfabetização: havendo informação disponível e espaço para reflexão sobre o sistema <strong>de</strong> escrita,<br />

os alunos constroem os procedimentos <strong>de</strong> análise necessários para que a alfabetização se realize.<br />

As propostas <strong>de</strong> escrita mais produtivas são as que permitem aos alunos monitorar sua própria<br />

produção, ao menos parcialmente. A escrita <strong>de</strong> listas1 ou quadrinhas que se sabe <strong>de</strong> cor permite,<br />

por exemplo, que a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> seja realiza<strong>da</strong> em grupo e que os alunos precisem se pôr <strong>de</strong> acordo<br />

sobre quantas e quais letras irão usar para escrever. Cabe ao professor que dirige a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

escolher o texto a ser escrito e <strong>de</strong>finir os parceiros em função do que sabe acerca do conhecimento<br />

que ca<strong>da</strong> aluno tem sobre a escrita, bem como, orientar a busca <strong>de</strong> fontes <strong>de</strong> consulta, colocar<br />

questões que apóiem a análise e oferecer informação específica sempre que necessário.<br />

1<br />

Listas são textos formados por palavras ou pequenos enunciados, dispostos um embaixo do outro, que <strong>de</strong>finem um campo semântico e têm<br />

uma função pragmática. Por exemplo, uma lista <strong>de</strong> compras, dos livros do acervo <strong>da</strong> classe, dos ingredientes para uma receita, etc.<br />

M1U7T7<br />

2


Para ensinar a ler *<br />

Rosaura Soligo<br />

M1U7T8<br />

Durante séculos, em alguns países, alguns poucos escravos apren<strong>de</strong>ram a ler, em condições<br />

extremamente adversas, às vezes arriscando a própria vi<strong>da</strong> para um aprendizado que, <strong>de</strong>vido às<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s, acabava levando vários anos.<br />

Hoje, às vésperas do século 21, o Brasil é um país em que cerca <strong>de</strong> 44 por cento <strong>da</strong>s crianças<br />

<strong>de</strong> 1ª série ain<strong>da</strong> são reti<strong>da</strong>s no final do ano porque não conseguem apren<strong>de</strong>r a ler. E em que o<br />

tempo médio dos que conseguem finalizar o ensino fun<strong>da</strong>mental é <strong>de</strong> 11,2 anos, quando <strong>de</strong>veria<br />

ser <strong>de</strong> apenas oito. Inúmeros especialistas em dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem afirmam que<br />

pouquíssimos adolescentes e crianças possuem comprometimento cognitivo real, ou seja, não<br />

são capazes <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r os conteúdos escolares como os outros. Então, se a esmagadora maioria<br />

<strong>da</strong>s crianças po<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r, é preciso consi<strong>de</strong>rar que há um sério comprometimento nas práticas<br />

<strong>de</strong> ensino; ou seja, a escola não está conseguindo cumprir seu mais antigo papel: ensinar a ler e<br />

escrever. É preciso socializar ca<strong>da</strong> vez mais os conhecimentos disponíveis a respeito dos processos<br />

<strong>de</strong> aprendizagem: quanto melhor o professor enten<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> construção do conhecimento,<br />

mais eficiente será seu trabalho. Afinal, ensinar <strong>de</strong> fato é fazer apren<strong>de</strong>r.<br />

Os saltos do olhar<br />

A compreensão <strong>da</strong> leitura <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> relação entre os olhos e o cérebro, processo que há longo<br />

tempo os estudiosos procuram enten<strong>de</strong>r. Nas últimas três déca<strong>da</strong>s houve um avanço significativo<br />

nesse campo, mas ain<strong>da</strong> não se conseguiu <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>r inteiramente a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> do ato <strong>de</strong> ler.<br />

Há mais <strong>de</strong> cem anos se <strong>de</strong>scobriu que, ao ler, nossos olhos não <strong>de</strong>slizam linearmente sobre o<br />

texto impresso: eles dão saltos, em uma veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 200 graus por segundo, três ou<br />

quatro vezes por segundo. É certo que, durante esses saltos, acontece um tipo <strong>de</strong> adivinhação,<br />

pois os olhos não estão <strong>de</strong> fato vendo tudo. O tempo <strong>de</strong> fixação dos olhos a ca<strong>da</strong> vez é <strong>de</strong> cerca<br />

<strong>de</strong> 50 milésimos <strong>de</strong> segundo e a distância entre as fixações <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> ofereci<strong>da</strong><br />

pelo material lido.<br />

O que os olhos vêem <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> muito do conhecimento do assunto. Quando lemos um texto<br />

cuja linguagem é fácil, ou cujo conteúdo é conhecido, po<strong>de</strong>mos ler em silêncio até 200 palavras<br />

*<br />

In Ca<strong>de</strong>rnos <strong>da</strong> TV Escola - Português, MEC/SEED, 2000.<br />

M1U7T8<br />

1


por minuto — a leitura em voz alta <strong>de</strong>mora mais, pois o movimento dos olhos é mais rápido<br />

que a emissão <strong>de</strong> palavras.<br />

O processo <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> várias condições: a habili<strong>da</strong><strong>de</strong> e o<br />

estilo pessoal do leitor, o objetivo <strong>da</strong> leitura, o nível <strong>de</strong> conhecimento<br />

prévio do assunto tratado e o nível <strong>de</strong> complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> oferecido pelo<br />

texto.<br />

Em um mesmo espaço <strong>de</strong> tempo, os olhos irão captar <strong>de</strong> forma diferente a mesma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> letras, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>da</strong> maneira pela qual elas são apresenta<strong>da</strong>s: ao acaso, na forma <strong>de</strong> palavras,<br />

ou compondo um texto. Quanto mais os olhos pu<strong>de</strong>rem se apoiar no significado, ou seja, naquilo<br />

que faz sentido para quem vê, maior a eficácia <strong>da</strong> leitura.<br />

Você sabia?<br />

Em um mesmo intervalo <strong>de</strong> tempo, os olhos captam:<br />

• aproxima<strong>da</strong>mente 5 letras, em uma seqüência apresenta<strong>da</strong> ao acaso;<br />

• cerca <strong>de</strong> 10 a 12 letras, em palavras avulsas conheci<strong>da</strong>s;<br />

• cerca <strong>de</strong> 25 letras (mais ou menos cinco palavras), quando se trata <strong>de</strong> um<br />

texto com significado.<br />

O psicolingüista Frank Smith relativiza o po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> visão ao afirmar: sempre <strong>da</strong>mos <strong>de</strong>masiado<br />

crédito aos olhos por enxergarem. Freqüentemente seu papel na leitura é supervalorizado. Os<br />

olhos não vêem, absolutamente, em um sentido literal. O cérebro <strong>de</strong>termina o que e como<br />

vemos. As <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> percepção do cérebro estão basea<strong>da</strong>s apenas em parte na informação<br />

colhi<strong>da</strong> pelos olhos, imensamente aumenta<strong>da</strong>s pelo conhecimento que o cérebro já possui.<br />

Em outras palavras, po<strong>de</strong>ríamos dizer que a gente vê o que a gente sabe.<br />

Dois fatores <strong>de</strong>terminam a leitura: o texto impresso, que é visto pelos olhos, e aquilo que está<br />

"por trás" dos olhos: o conhecimento prévio do leitor.<br />

Uma criança ain<strong>da</strong> não alfabetiza<strong>da</strong> po<strong>de</strong> ter as melhores informações a respeito do assunto<br />

tratado em um texto, mas, mesmo assim, não será capaz <strong>de</strong> ler, pois não dispõe dos recursos <strong>de</strong><br />

M1U7T8<br />

2


<strong>de</strong>codificação necessários à leitura. Ela tem conhecimento prévio, mas não é capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>r<br />

a informação capta<strong>da</strong> pelos olhos.<br />

O contrário também ocorre: às vezes o leitor domina perfeitamente a linguagem escrita, mas,<br />

por falta <strong>de</strong> familiari<strong>da</strong><strong>de</strong> com o assunto tratado, acaba não conseguindo compreen<strong>de</strong>r o texto<br />

que tem diante dos olhos.<br />

O conhecimento prévio necessário à leitura, no entanto, não se resume ao conhecimento do<br />

assunto tratado pelo texto: envolve também o que se sabe acerca <strong>da</strong> linguagem e <strong>da</strong> própria leitura.<br />

Saber como os textos se organizam e que características têm, saber para que servem os títulos<br />

e admitir que não é preciso conhecer o significado <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as palavras para compreen<strong>de</strong>r uma<br />

mensagem escrita é tão importante para a leitura como ter intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> com o conteúdo tratado.<br />

O "fácil" e o "difícil" <strong>de</strong> ler têm a ver com tudo isso.<br />

Ler vem antes <strong>de</strong> escrever<br />

Não existe uma i<strong>da</strong><strong>de</strong> i<strong>de</strong>al para o aprendizado <strong>da</strong> leitura. Há crianças que apren<strong>de</strong>m a ler muito<br />

cedo, em geral porque a leitura passa a ter tanta importância para elas que não conseguem ficar<br />

sem saber.<br />

Veja um <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sses leitores precoces, o escritor Alberto Manguel:<br />

Aos 4 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>scobri pela primeira vez que podia ler […]. Só aprendi a escrever muito<br />

tempo <strong>de</strong>pois, aos 7 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>. Talvez pu<strong>de</strong>sse viver sem escrever, mas não creio que pu<strong>de</strong>sse<br />

viver sem ler. Ler — <strong>de</strong>scobri — vem antes <strong>de</strong> escrever.<br />

Muitos leitores precoces não têm características peculiares, como inteligência acima <strong>da</strong> média<br />

ou privilégios sociais. Mas têm outro tipo <strong>de</strong> privilégio: consi<strong>de</strong>rar a leitura um valor e se acharem<br />

capazes <strong>de</strong> ler.<br />

No Brasil, há muito tempo se consi<strong>de</strong>ra que a iniciação à leitura <strong>de</strong>ve ocorrer apenas aos 7 anos.<br />

Por isso, quando <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>da</strong> escola para apren<strong>de</strong>r, nossas crianças começam a ler muito tar<strong>de</strong>.<br />

As crianças apren<strong>de</strong>m a ler participando <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> uso <strong>da</strong> escrita junto com pessoas que<br />

dominam esse conhecimento. Apren<strong>de</strong>m a ler quando acham que po<strong>de</strong>m fazer isso. É difícil uma<br />

criança apren<strong>de</strong>r a ler quando se espera <strong>de</strong>la o fracasso. É difícil, também, ela apren<strong>de</strong>r a ler se<br />

não achar finali<strong>da</strong><strong>de</strong> na leitura.<br />

M1U7T8<br />

3


Todos que lêem, lêem para aten<strong>de</strong>r a uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> pessoal: saber quais são as notícias do<br />

dia, que novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s a revista traz, qual é a receita do prato, como montar um equipamento, quais<br />

as regras <strong>de</strong> um jogo, obter novos conhecimentos, apreen<strong>de</strong>r os encantos <strong>de</strong> um poema ou as<br />

emoções <strong>de</strong> um livro <strong>de</strong> aventuras.<br />

A leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo <strong>de</strong> construção do significado<br />

do texto a partir do que está buscando nele, do conhecimento que já possui a respeito do<br />

assunto, do autor e do que sabe sobre a língua — características do gênero, do portador, do<br />

sistema <strong>de</strong> escrita… Ninguém po<strong>de</strong> extrair informações do texto escrito <strong>de</strong>codificando letra<br />

por letra, palavra por palavra.<br />

Se você analisar sua própria leitura, vai constatar que a <strong>de</strong>codificação é apenas um dos<br />

procedimentos que utiliza para ler: a leitura fluente envolve uma série <strong>de</strong> outras estratégias, isto<br />

é, <strong>de</strong> recursos para construir significado; sem elas, não é possível alcançar rapi<strong>de</strong>z e proficiência.<br />

Uma estratégia <strong>de</strong> leitura é um amplo esquema para obter, avaliar e<br />

utilizar informação. Há estratégias <strong>de</strong> seleção, <strong>de</strong> antecipação, <strong>de</strong> inferência<br />

e <strong>de</strong> verificação.<br />

Estratégias <strong>de</strong> seleção: permitem que o leitor se atenha apenas aos índices úteis, <strong>de</strong>sprezando<br />

os irrelevantes. Ao ler, fazemos isso o tempo todo: nosso cérebro "sabe", por exemplo, que não<br />

precisa se <strong>de</strong>ter na letra que vem após o "q", pois certamente será "u"; ou que nem sempre é o<br />

caso <strong>de</strong> se fixar nos artigos, pois o gênero está <strong>de</strong>finido pelo substantivo.<br />

Estratégias <strong>de</strong> antecipação: tornam possível prever o que ain<strong>da</strong> está por vir, com base em<br />

informações explícitas e em suposições. Se a linguagem não for muito rebusca<strong>da</strong> e o conteúdo<br />

não for muito novo, nem muito difícil, é possível eliminar letras em ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s palavras escritas<br />

em um texto, e até mesmo uma palavra a ca<strong>da</strong> cinco outras, sem que a falta <strong>de</strong> informações<br />

prejudique a compreensão. Além <strong>de</strong> letras, sílabas e palavras, antecipamos significados.<br />

O gênero, o autor, o título e muitos outros índices nos informam o que é possível que encontremos<br />

em um texto. Assim, se formos ler uma história <strong>de</strong> Monteiro Lobato chama<strong>da</strong> Viagem ao céu, é<br />

previsível que encontraremos <strong>de</strong>terminados personagens, certas palavras do campo <strong>da</strong> astronomia<br />

e que, certamente, alguma travessura acontecerá.<br />

M1U7T8<br />

4


Estratégias <strong>de</strong> inferência: permitem captar o que não está dito no texto <strong>de</strong> forma explícita.<br />

A inferência é aquilo que "lemos", mas não está escrito. São adivinhações basea<strong>da</strong>s tanto em pistas<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>s pelo próprio texto como em conhecimentos que o leitor possui. Às vezes essas inferências<br />

se confirmam, e às vezes não; <strong>de</strong> qualquer forma, não são adivinhações aleatórias.<br />

Além do significado, inferimos também palavras, sílabas ou letras. Boa parte do conteúdo <strong>de</strong> um<br />

texto po<strong>de</strong> ser antecipa<strong>da</strong> ou inferi<strong>da</strong> em função do contexto: portadores, circunstâncias <strong>de</strong><br />

aparição ou proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s do texto.<br />

O contexto, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, contribui <strong>de</strong>cisivamente para a interpretação do texto e, com freqüência,<br />

até mesmo para inferir a intenção do autor.<br />

Estratégias <strong>de</strong> verificação: tornam possível o controle <strong>da</strong> eficácia ou não <strong>da</strong>s <strong>de</strong>mais estratégias,<br />

permitindo confirmar, ou não, as especulações realiza<strong>da</strong>s. Esse tipo <strong>de</strong> checagem para confirmar<br />

— ou não — a compreensão é inerente à leitura.<br />

Utilizamos to<strong>da</strong>s as estratégias <strong>de</strong> leitura mais ou menos ao mesmo tempo,<br />

sem ter consciência disso. Só nos <strong>da</strong>mos conta do que estamos fazendo se<br />

formos analisar com cui<strong>da</strong>do nosso processo <strong>de</strong> leitura, como estamos<br />

fazendo ao longo <strong>de</strong>ste texto.<br />

Apren<strong>de</strong>r a ler e ler para apren<strong>de</strong>r<br />

A leitura como prática social é sempre um meio, nunca um fim. Ler é resposta a um objetivo, a<br />

uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> pessoal.<br />

Fora <strong>da</strong> escola, não se lê só para apren<strong>de</strong>r a ler, não se lê <strong>de</strong> uma única forma, não se <strong>de</strong>codifica<br />

palavra por palavra, não se respon<strong>de</strong>m a perguntas <strong>de</strong> verificação do entendimento preenchendo<br />

fichas exaustivas, não se fazem <strong>de</strong>senhos para mostrar o que mais gostou e raramente se lê<br />

em voz alta, ou seja: a prática constante <strong>da</strong> leitura não significa a repetição infindável <strong>de</strong>ssas<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s escolares.<br />

Uma prática constante <strong>de</strong> leitura na escola pressupõe o trabalho com a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> objetivos,<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s e textos que caracterizam as práticas <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong> fato. Diferentes objetivos exigem<br />

diferentes textos e ca<strong>da</strong> qual, por sua vez, exige um tipo específico, uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura.<br />

M1U7T8<br />

5


Em certos textos basta ler algumas partes, buscando a informação necessária; outros precisam<br />

ser lidos exaustivamente, várias vezes. Há textos que se po<strong>de</strong>m ler rapi<strong>da</strong>mente, mas outros<br />

<strong>de</strong>vem ser lidos <strong>de</strong>vagar.<br />

Há leituras em que é necessário controlar atentamente a compreensão, voltando atrás para se<br />

certificar do entendimento; outras em que se segue adiante sem dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>, entregue apenas ao<br />

prazer <strong>de</strong> ler.<br />

Há leituras que requerem enorme esforço intelectual e, a <strong>de</strong>speito disso, dão vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ler sem<br />

parar; em outras o esforço é mínimo e, mesmo assim, dá vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixá-las para <strong>de</strong>pois. Para<br />

tornar os alunos bons leitores — para <strong>de</strong>senvolver, muito mais do que a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ler, o<br />

gosto pela leitura e um compromisso com ela —, a escola precisa mobilizá-los internamente,<br />

pois apren<strong>de</strong>r a ler (e também ler para apren<strong>de</strong>r) requer esforço.<br />

Os alunos <strong>de</strong>vem ver na leitura algo interessante e <strong>de</strong>safiador, uma conquista capaz <strong>de</strong> <strong>da</strong>r<br />

autonomia e in<strong>de</strong>pendência. E <strong>de</strong>vem estar confiantes, condição para enfrentar o <strong>de</strong>safio e<br />

"apren<strong>de</strong>r fazendo".<br />

Uma prática <strong>de</strong> leitura que não <strong>de</strong>sperte nem cultive o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ler não<br />

é uma prática pe<strong>da</strong>gógica eficiente.<br />

Tenho o livro aberto diante <strong>de</strong> mim, sobre a minha mesa. O autor, cujo rosto vi no belo frontispício,<br />

está sorrindo com satisfação e sinto que estou em boas mãos. Sei que, à medi<strong>da</strong> que avançar<br />

pelos capítulos, serei apresentado àquela antiga família <strong>de</strong> leitores, alguns famosos, muitos obscuros,<br />

<strong>da</strong> qual faço parte. Apren<strong>de</strong>rei suas maneiras e as mu<strong>da</strong>nças nessas maneiras, e as transformações<br />

que sofreram enquanto levaram consigo, como os magos <strong>de</strong> outrora, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> transformar<br />

signos mortos em memória viva. Lerei sobre seus triunfos e perseguições, sobre suas <strong>de</strong>scobertas<br />

quase secretas. E, no final, compreen<strong>de</strong>rei melhor quem eu — leitor — sou.<br />

Bibliografia<br />

(Alberto Manguel)<br />

KATO, Mary. O aprendizado <strong>da</strong> leitura. São Paulo, Martins Fontes, 1985.<br />

____. No mundo <strong>da</strong> escrita — uma perspectiva psicolingüística. São Paulo, Ática, 1987.<br />

KLEIMAN,Angela.Texto e leitor. Campinas, Pontes/Unicamp, 1989.<br />

____.Oficina <strong>de</strong> leitura. Campinas, Pontes/Unicamp, 1993.<br />

MANGUEL,Alberto. Uma história <strong>da</strong> leitura. São Paulo, Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1997.<br />

Parâmetros Curriculares Nacionais — Língua Portuguesa. Brasília, <strong>Ministério</strong> <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> e do Desporto. 1997.<br />

SMITH, Frank. Compreen<strong>de</strong>ndo a leitura. Porto Alegre,Artes Médicas, 1989.<br />

M1U7T8<br />

6


Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro ou falso? *<br />

Consi<strong>de</strong>rando o que foi discutido nos dois Encontros e os textos lidos, verifique se as afirmações<br />

abaixo são Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras ou Falsas.<br />

Lembre-se: to<strong>da</strong>s as afirmações po<strong>de</strong>rão ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo<br />

<strong>da</strong> concepção que temos sobre o ensino e a aprendizagem <strong>da</strong> leitura.<br />

Suas respostas <strong>de</strong>verão estar basea<strong>da</strong>s na concepção do texto "Para<br />

ensinar a ler" e nas discussões realiza<strong>da</strong>s durante os três Encontros.<br />

(__) A leitura compreensiva vem ao final <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> diferentes etapas hierarquiza<strong>da</strong>s<br />

(primeiro preparação, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>codificação, <strong>de</strong>pois compreensão leitora).<br />

(__) Na escola, ler é ser ensinado a ler, em primeiro lugar letras ou palavras isola<strong>da</strong>s, logo<br />

textos escolares elaborados somente para ensinar a ler.<br />

(__) A leitura é <strong>de</strong> fato uma leitura compreensiva, produto <strong>de</strong> uma intensa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> busca <strong>de</strong><br />

sentido <strong>de</strong> um texto em situação <strong>de</strong> uso.<br />

(__) Ler é uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> complexa <strong>de</strong> tratamento <strong>de</strong> várias informações por parte <strong>da</strong> inteligência.<br />

(__) Ler é um conjunto <strong>de</strong> mecanismos <strong>de</strong> percepção e <strong>de</strong> memória.<br />

(__) Ler é produto <strong>de</strong> uma reprodução <strong>de</strong> formas, <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> sons, <strong>de</strong> suas<br />

combinações, e <strong>de</strong> uma memorização que se adquire através <strong>de</strong> exercícios repetitivos.<br />

(__) Ler é um processo dinâmico <strong>de</strong> construção cognitiva, ligado à necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> atuar, no qual<br />

intervêm também a afetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e as relações sociais.<br />

(__) O leitor busca, <strong>de</strong> cara, o sentido do texto, coor<strong>de</strong>nando — para construí-lo — todos os<br />

tipos <strong>de</strong> índice (contexto — tipo <strong>de</strong> texto — título — marcas gramaticais significativas — palavras<br />

— letras etc.).<br />

(__) Na escola, ler é ler "<strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>", <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, textos autênticos, textos completos, em<br />

situações reais <strong>de</strong> uso, relaciona<strong>da</strong>s às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e <strong>de</strong>sejos.<br />

(__) O leitor busca primeiro soletrar palavras isola<strong>da</strong>s, com a esperança <strong>de</strong> que, ao juntá-las<br />

linearmente, po<strong>de</strong>rá chegar pouco a pouco a uma compreensão penosamente elabora<strong>da</strong> <strong>de</strong> um texto.<br />

*<br />

Afirmações elabora<strong>da</strong>s por Josete Jollibert para contrapor concepções a respeito do que é ler.<br />

M1U7T9<br />

M1U7T9<br />

1


Lixo *<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

Encontram-se na área <strong>de</strong> serviço. Ca<strong>da</strong> um com seu pacote <strong>de</strong> lixo. É a primeira vez que se falam.<br />

— Bom dia.<br />

— Bom dia.<br />

— A senhora é do 610.<br />

— E o senhor do 612.<br />

— É…<br />

— Eu ain<strong>da</strong> não lhe conhecia pessoalmente…<br />

— Pois é…<br />

— Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo…<br />

— O meu o quê?<br />

— O seu lixo.<br />

— Ah…<br />

— Reparei que nunca é muito. Sua família <strong>de</strong>ve ser pequena…<br />

— Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> sou só eu.<br />

— Mmmm. Notei também que o senhor usa muita comi<strong>da</strong> em lata.<br />

— É que eu tenho que fazer minha própria comi<strong>da</strong>. E como não sei cozinhar…<br />

— Entendo.<br />

— A senhora também…<br />

— Me chame <strong>de</strong> você.<br />

— Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos <strong>de</strong> comi<strong>da</strong> em seu<br />

lixo. Champignons, coisas assim…<br />

— É que eu gosto muito <strong>de</strong> cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como moro sozinha, às vezes sobra…<br />

— A senhora… Você não tem família?<br />

— Tenho, mas não aqui.<br />

— No Espírito Santo.<br />

— Como é que você sabe?<br />

— Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.<br />

— É,mamãe escreve to<strong>da</strong>s as semanas.<br />

— Ela é professora?<br />

— Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?<br />

— Pela letra no envelope.Achei que era letra <strong>de</strong> professora.<br />

— O senhor não recebe muitas cartas.A julgar pelo seu lixo.<br />

— Pois é…<br />

— No outro dia tinha um envelope <strong>de</strong> telegrama amassado.<br />

— É.<br />

— Más notícias?<br />

— Meu pai. Morreu.<br />

— Sinto muito.<br />

— Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.<br />

— Foi por isso que você recomeçou a fumar?<br />

Comédias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong> - 101 Crônicas Escolhi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Luís Fernando Veríssimo. 22a *<br />

ed. Porto Alegre, L&PM, 1996.<br />

M1U8T1<br />

M1U8T1<br />

1


— De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras <strong>de</strong> cigarro amassa<strong>da</strong>s no seu lixo.<br />

— É ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mas consegui parar outra vez.<br />

— Eu, graças a Deus, nunca fumei.<br />

— Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos <strong>de</strong> comprimido no seu lixo.<br />

— Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.<br />

— Você brigou com o namorado, certo?<br />

— Isso você também <strong>de</strong>scobriu no lixo?<br />

— Primeiro o buquê <strong>de</strong> flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço <strong>de</strong> papel.<br />

— É chorei bastante. Mas já passou.<br />

— Mas hoje ain<strong>da</strong> tem uns lencinhos…<br />

— É que eu estou com um pouco <strong>de</strong> coriza.<br />

— Ah.<br />

— Vejo muita revista <strong>de</strong> palavras cruza<strong>da</strong>s no seu lixo.<br />

— É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.<br />

— Namora<strong>da</strong>?<br />

— Não.<br />

— Mas há uns dias tinha uma fotografia <strong>de</strong> mulher no seu lixo.Até bonitinha.<br />

— Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.<br />

— Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.<br />

— Você já está analisando o meu lixo!<br />

— Não posso negar que seu lixo me interessou.<br />

— Engraçado. Quando examinei o seu lixo, <strong>de</strong>cidi que gostaria <strong>de</strong> conhecê-la.Acho que foi a poesia.<br />

— Não! Você viu meus poemas?<br />

— Vi e gostei muito.<br />

— Mas são muito ruins!<br />

— Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.<br />

— Se eu soubesse que você ia ler…<br />

— Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo <strong>da</strong> pessoa<br />

ain<strong>da</strong> é proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>la?<br />

— Acho que não. Lixo é domínio público.<br />

— Você tem razão.Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra <strong>da</strong> nossa vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong><br />

se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?<br />

— Bom, aí você já está indo fundo <strong>de</strong>mais no lixo.Acho que …<br />

— Ontem, no seu lixo…<br />

— O quê?<br />

— Me enganei, ou eram cascas <strong>de</strong> camarão?<br />

— Acertou. Comprei uns camarões graúdos e <strong>de</strong>scasquei.<br />

— Eu adoro camarão.<br />

— Descasquei, mas ain<strong>da</strong> não comi. Quem sabe a gente po<strong>de</strong>…<br />

— Jantar juntos?<br />

— É…<br />

— Não quero <strong>da</strong>r trabalho.<br />

— Trabalho nenhum.<br />

— Vai sujar a sua cozinha.<br />

— Na<strong>da</strong>. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.<br />

— No seu lixo ou no meu?<br />

M1U8T1<br />

2


Colhendo os frutos <strong>da</strong> glória *<br />

João Ubaldo Ribeiro<br />

M1U8T2<br />

Um dos maiores problemas que enfrento na minha profissão é que não tenho cara <strong>de</strong> escritor.<br />

Aliás, não sei bem que cara tenho, mas sei que não presta para a maioria <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que exerço<br />

ou já exerci. Lembro-me <strong>de</strong> que, quando era professor, sempre tive dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> em convencer<br />

novos alunos <strong>de</strong> que era o professor. Um, chamado Bruno Maracajá e hoje meu amigo (um dos<br />

meus tipos inesquecíveis, pela razão que se segue), teve uma crise incontrolável <strong>de</strong> riso quando<br />

entrou numa sala <strong>de</strong> cursinho para vestibular, perguntou quem era o professor <strong>de</strong> inglês e me<br />

apontaram. Foi meio chato e, se não se tratasse <strong>de</strong> cursinho para vestibular, não haveria santo<br />

que <strong>de</strong>sse um jeito <strong>de</strong> o Bruno passar em inglês sem pelo menos saber a obra completa <strong>de</strong><br />

Shakespeare <strong>de</strong> cor.<br />

Quando eu era jornalista em Salvador e metido a celebri<strong>da</strong><strong>de</strong> municipal, escrevendo já colunas<br />

e artigos assinados, Seu Severino, vizinho nosso, sorria no elevador com bondosa malícia, to<strong>da</strong><br />

vez que perguntava se era eu mesmo quem havia escrito tal ou qual artigo e eu respondia que<br />

sim. Ele tinha certeza <strong>de</strong> que o autor era meu pai e acho que até hoje tem. Outra vez, em crise<br />

<strong>de</strong> indignação cívica combina<strong>da</strong> com um acesso <strong>de</strong> pernosticismo — síndrome <strong>de</strong> que nenhum<br />

baiano está livre vez por outra, e alguns permanentemente —, escrevi um artigo altamente<br />

polissilábico e proparoxítono contra um figurão, que, naturalmente, não gostou. Mas não veio<br />

tomar satisfações a mim, foi buscá-la furioso junto a meu pai; porque estava seguro <strong>de</strong> que "aquele<br />

rapaz não tem condição <strong>de</strong> escrever um artigo <strong>de</strong>sse nível, nem muito menos coragem".<br />

Também não posso resistir à porta <strong>da</strong> conferência. Bem ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que, à já natural falta <strong>de</strong> cara,<br />

somei ain<strong>da</strong> o estar barbado e meio andrajoso (quando minha mulher não me lembra <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>r<br />

as calças, eu me esqueço — ela já testou e eu entrava no Guinness fácil).Tinha vindo <strong>de</strong> Itaparica<br />

<strong>de</strong> mau humor, como sempre fico quando saio <strong>de</strong> lá,só atravessei a baía por honra <strong>da</strong> firma, porque<br />

assumira o compromisso. Mas aí, auditório cheio (já estive em voga, era especialista em generali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

esquerdói<strong>de</strong>s que agra<strong>da</strong>vam muito as platéias naquela época, embora a gente fosse em cana<br />

bastante) e tudo mais, cheguei à entra<strong>da</strong>, <strong>de</strong>i boa-noite, fui passando, a mocinha me barrou.<br />

— Cartão, por favor.<br />

— Cartão, que cartão?<br />

— O cartão que dá direito ao ingresso.<br />

— Não me <strong>de</strong>ram cartão nenhum. Eu estava em Itaparica e…<br />

— Lamento muito, mas sem cartão o senhor não vai po<strong>de</strong>r entrar.<br />

*<br />

Extraido <strong>de</strong>: Arte e ciência <strong>de</strong> roubar galinha:crônica <strong>de</strong> João Ubaldo Ribeiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Nova Fronteira, 1998.<br />

M1U8T2<br />

1


— Eu…<br />

— O senhor, por favor, quer <strong>da</strong>r licença? As pessoas atrás estão querendo entrar e o senhor está<br />

atrapalhando a passagem.<br />

Fiquei com preguiça <strong>de</strong> explicar que eu era o conferencista e — por que não confessar, oh<br />

mesquinharia humana — também um pouco com vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver a cara <strong>da</strong> mocinha <strong>de</strong>pois que<br />

me <strong>de</strong>scobrissem ali à porta, barrado e rejeitado. Como <strong>de</strong> fato fui <strong>de</strong>scoberto, uns vinte minutos<br />

mais tar<strong>de</strong>, quando a chama<strong>da</strong> mesa diretora dos trabalhos começou a pedir <strong>de</strong>sculpas ao público<br />

porque o palestrante, apesar <strong>de</strong> ter confirmado várias vezes sua aquiescência em vir, havia<br />

<strong>de</strong>ploravelmente faltado ao compromisso. Dei um pulinho do banco on<strong>de</strong> estava <strong>de</strong>rreado,<br />

passei pela mocinha sem ela ter tempo <strong>de</strong> me <strong>de</strong>ter, entrei, pedi a palavra e comuniquei à mesa<br />

que a culpa era <strong>de</strong>la, por não ter man<strong>da</strong>do o cartão.<br />

Para a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> escritor, a falta <strong>de</strong> uma cara apropria<strong>da</strong> é gravíssima, porque as pessoas são<br />

ain<strong>da</strong> mais rigorosas para com caras <strong>de</strong> escritores do que para com quaisquer outros tipos <strong>de</strong><br />

cara. Cara <strong>de</strong> escritor influencia até a crítica, e é por isso que aqueles entre nós que são <strong>de</strong>ficientes<br />

nesse setor ficam muito incomo<strong>da</strong>dos com problemas <strong>de</strong> cara. O Fernando Sabino mesmo, cujo<br />

caso não é tão sério quanto o meu mas inspira cui<strong>da</strong>dos, se queixa amargamente <strong>de</strong> uma<br />

recepcionista <strong>de</strong> hotel que não acreditou que ele era Fernando Sabino, o es-cri-tor, e passou o<br />

tempo todo chamando-o <strong>de</strong> "um homônimo". O gran<strong>de</strong> poeta Almeidinha, queridíssimo<br />

presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> famosa confraria etílica dos Amigos do Museu em São Paulo, <strong>de</strong> que sou sócio<br />

correspon<strong>de</strong>nte, me confundiu comigo mesmo. Fazia tempo que a gente não se via e, quando<br />

ele apareceu, fui-lhe ao encontro <strong>de</strong> braços abertos.<br />

— Gran<strong>de</strong> Almeidinha! — exultei. — Que alegria! Valeu a pena vir a São Paulo só para estar com você!<br />

— Muito obrigado — respon<strong>de</strong>u ele com um sorriso amável. — E muito prazer em conhecê-lo.<br />

Aliás, o senhor lembra muito um amigo meu <strong>da</strong> Bahia, um escritor baiano amigo meu, interessante,<br />

lembra muito esse amigo meu.<br />

Mas agora, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> haver "gramado uma pior anos e anos", como me lembrou jovialmente o<br />

colega Fausto Wolf na televisão, eis que a glória e o reconhecimento me bafejam, apesar <strong>de</strong> a cara<br />

não ter melhorado, antes pelo contrário. Meu abnegado editor, Dr. Sérgio Lacer<strong>da</strong> — o único editor<br />

que mente ao contrário para seu editado (não me <strong>de</strong>ixa ver um relatório <strong>de</strong> ven<strong>da</strong>s, aos berros <strong>de</strong><br />

"best-seller, best-seller!", para que eu não chore ao <strong>de</strong>scobrir que um livro meu só está ven<strong>de</strong>ndo<br />

em Araraquara, assim mesmo porque uma prima <strong>de</strong> minha mulher que mora lá faz rifa com ele<br />

to<strong>da</strong>s as terças, quintas e sábados — ninguém escon<strong>de</strong> na<strong>da</strong> do romancista), me <strong>de</strong>moveu <strong>da</strong><br />

relutância que eu tinha em ficar para a Feira do Livro ora acontecendo aqui no Rio. É bem<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que, conhecedor <strong>de</strong> minha alma sensível, ele houve por bem me oferecer um suborno,<br />

o qual, naturalmente, aceitei <strong>de</strong> imediato.<br />

— Levas este mimo como lembrança <strong>da</strong> casa — anunciou-me ele orgulhosamente. — Ain<strong>da</strong> serás<br />

um "su" na Feira. Que queres mais <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, um pôster na entra<strong>da</strong> do People? Po<strong>de</strong> ser arranjado.<br />

Acreditei, é claro.Todo mundo acredita em elogio, como já observou o Chacrinha, ao pronunciar<br />

um calouro banguela a cara do Burt Reynolds e ver que o calouro (que era a cara do Peter<br />

M1U8T2<br />

2


Lorre com malária e sem <strong>de</strong>ntadura) acreditava piamente e fazia até uma pose reynoldiana. Saí<br />

então para testar minha populari<strong>da</strong><strong>de</strong>, entrei numa livraria aqui <strong>da</strong> Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pirajá, senti que<br />

se <strong>de</strong>clarou um frisson entre os balconistas, à minha chega<strong>da</strong>. Disfarcei, procurei assumir uma<br />

certa nonchalance, até para ser celebri<strong>da</strong><strong>de</strong> a gente tem <strong>de</strong> ser prático. Fingi que estava<br />

interessadíssimo em alguns livros, folheei atentamente um manual <strong>de</strong> <strong>da</strong>tilografia sem mestre que<br />

caiu nas mãos. Com o rabo do olho, vi que um dos balconistas, em nome dos outros,<br />

tomava coragem para me falar. Fiquei firme no manual, obtive um timing perfeito na hora <strong>de</strong><br />

levantar os olhos para reconhecer a presença <strong>de</strong>le junto a mim.<br />

— Sim? — falei com a mesma expressão que tinha visto num documentário em que Leonard<br />

Bernstein foi surpreendido por populares numa livraria <strong>da</strong> Quinta Aveni<strong>da</strong>.<br />

— O senhor não é…? — falou ele, quase gaguejando.<br />

— Sim, sim, suponho que sim, ha-ha.<br />

Ele inflou o peito <strong>de</strong> orgulho. Olhou triunfalmente para os colegas do outro lado <strong>da</strong> loja — "eu<br />

não disse?".<br />

— Faça-me o favor — falou, me pegando pelo cotovelo na direção do grupo. — Eu tenho <strong>de</strong><br />

apresentar o senhor.<br />

— Com prazer.<br />

— Pessoal! — trombeteou ele, cabeça ergui<strong>da</strong> e mão no meu ombro. — Vocês são uns ignorantes<br />

e nem reconhecem quando pinta na casa um escritor consagrado! Quero apresentar a vocês o<br />

gran<strong>de</strong> escritor (pausa dramática) João Antônio! João Antônio! Sempre fui fã do João Antônio!<br />

— Eu também — disse eu. — Tem alguma agência <strong>de</strong> viagem aqui por perto?<br />

8 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1985<br />

M1U8T2<br />

3


Zumbi *<br />

M1U8T3<br />

Zumbi dos Palmares é um dos gran<strong>de</strong>s símbolos <strong>da</strong> luta contra a escravidão no Brasil. Seu<br />

envolvimento e sua coragem o converteram em um mito na história <strong>da</strong> emancipação dos<br />

negros brasileiros.<br />

Vi<strong>da</strong> e época<br />

Zumbi nasceu em 1655 no Quilombo dos Palmares. Os quilombos eram al<strong>de</strong>ias que abrigavam<br />

escravos negros fugidos. Zumbi foi capturado quando criança e entregue ao padre Antônio Melo,<br />

mas, aos 15 anos, fugiu e voltou para Palmares. O quilombo dos Palmares, situado entre Pernambuco<br />

e Alagoas, foi o pioneiro e o mais importante, pois reuniu mais <strong>de</strong> 20 mil quilombolas, ou fugitivos.<br />

Os quilombos possuíam uma estrutura social muito organiza<strong>da</strong>, que seguia os mo<strong>de</strong>los <strong>da</strong> cultura<br />

africana dos seus habitantes.<br />

Em 1680, Zumbi se tornou o lí<strong>de</strong>r dos quilombolas. Mesmo com poucos recursos, organizou um<br />

gran<strong>de</strong> grupo <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, que chegou a resistir a quinze ataques do exército colonial. O seu mito<br />

começou a se esten<strong>de</strong>r por todo o país. O governo português reuniu um exército <strong>de</strong> mais <strong>de</strong><br />

11 mil homens, sob o comando do ban<strong>de</strong>irante paulista Domingos Jorge Velho. Mesmo assim, o<br />

quilombo dos Palmares conseguiu resistir até 1694, quando sucumbiu a um ataque que culminou<br />

com o massacre dos negros. Mas Zumbi conseguiu escapar e manteve-se escondido por mais <strong>de</strong><br />

um ano. Delatado por um companheiro, no entanto, foi capturado e executado, em 1695.<br />

Obra<br />

Lí<strong>de</strong>r negro anti-escravagista.<br />

Época: século XVII (1655-1695).<br />

Lugar on<strong>de</strong> viveu e trabalhou: Brasil.<br />

O quilombo dos Palmares se tornou um mo<strong>de</strong>lo para as populações <strong>de</strong> escravos fugidos,<br />

espalhados por todo o Brasil. Zumbi foi o lí<strong>de</strong>r do movimento que se opunha ao sistema<br />

escravista colonial e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua morte, sua figura foi adora<strong>da</strong> como a <strong>de</strong> um <strong>de</strong>us pelos<br />

negros brasileiros que sonhavam com a liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. Atualmente, o mito <strong>de</strong> Zumbi nos faz lembrar<br />

do sofrimento <strong>da</strong> população negra no Brasil e <strong>da</strong> importância <strong>da</strong> luta contra as injustiças sociais.<br />

*<br />

Extraido <strong>de</strong>: Apren<strong>de</strong>ndo personagens. Conteúdos essenciais para o ensino fun<strong>da</strong>mental, <strong>de</strong> César Coll e Ana Teberosky, São Paulo, Ática, 2000.<br />

M1U8T3<br />

1


Planejamento e <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>de</strong> uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura<br />

Consi<strong>de</strong>rando o diagnóstico sobre o que sabem seus alunos a respeito <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita,<br />

as características dos alunos e os tipos <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s apresenta<strong>da</strong>s, selecione uma para <strong>de</strong>senvolver<br />

em sua classe. Utilize o quadro que se segue para registrar o planejamento.<br />

Após a realização <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, faça um registro reflexivo com comentários sobre os seguintes aspectos:<br />

• A<strong>de</strong>quação <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

• Funcionamento dos agrupamentos.<br />

• Perguntas feitas pelos alunos.<br />

• Perguntas que você fez aos alunos.<br />

• Alterações que po<strong>de</strong>riam ser feitas na proposta (se for o caso)<br />

Planejamento <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura<br />

Nome do professor ___________________________________________________________<br />

Série:________________________________Data <strong>de</strong> realização <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>:___/___/___<br />

Tipo <strong>de</strong> textos proposto:______________________________________________________<br />

Objetivo <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Agrupamentos<br />

(Explicitar a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> crianças por grupo,<br />

seus nomes e suas hipóteses <strong>de</strong> escrita.)<br />

M1U8T4<br />

M1U8T4<br />

1


M1U8T4<br />

2<br />

Objetivo <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> Agrupamentos


Registro reflexivo <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura realiza<strong>da</strong> em __/__/__.<br />

M1U8T4<br />

3


M1U8T4<br />

5


M1U8T4<br />

7


Contribuições à prática pe<strong>da</strong>gógica-3<br />

Caro professor,cara professora<br />

M1U8T5<br />

Este texto não integra a <strong>Coletânea</strong> <strong>de</strong> <strong>Textos</strong> disponível na Internet porque refere-se<br />

conteúdo dos ví<strong>de</strong>os que integram as uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s do Programa <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores<br />

Alfabetizadores e, portanto, só fazem sentido para os participantes do Curso.<br />

M1U8T5<br />

1


• Através <strong>da</strong> leitura os alunos não apren<strong>de</strong>m apenas sobre o próprio ato <strong>de</strong> ler, mas sobre a<br />

linguagem escrita e o mundo em geral. Além disso, é refletindo sobre a escrita convencional<br />

que eles po<strong>de</strong>m avançar em suas hipóteses <strong>de</strong> leitura e <strong>de</strong> escrita.<br />

• Os materiais escritos oferecidos aos alunos <strong>de</strong>vem fazer sentido para eles. Apren<strong>de</strong>r a ler lendo<br />

textos ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros é condição para a formação <strong>de</strong> um leitor pleno, isto é, <strong>de</strong> alguém que sabe<br />

as diferentes finali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> leitura e faz uso <strong>de</strong>las sempre que <strong>de</strong>seja ou necessita. Portanto,<br />

po<strong>de</strong>mos dizer que as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que favorecem o acesso ao código <strong>de</strong>vem se inserir sempre em<br />

contextos significativos. Os textos oferecidos aos alunos para que leiam autonomamente<br />

<strong>de</strong>vem, portanto, ser reais: parlen<strong>da</strong>s, músicas, histórias em quadrinhos, poemas, receitas... No<br />

caso <strong>da</strong> alfabetização <strong>de</strong> adultos, estes <strong>de</strong>verão a<strong>de</strong>quar-se à faixa etária. Os textos conhecidos<br />

são instrumento para que os alunos possam ajustar o falado ao escrito e combinar as estratégias<br />

<strong>de</strong> antecipação com índices oferecidos pelo próprio texto, em especial os relacionados à<br />

correspondência fonográfica.<br />

Uma boa sugestão é que se organize um ca<strong>de</strong>rno ou uma pasta com esses textos, planejando<br />

situações nas quais seja significativo lê-los e relê-los.<br />

• Não se trata <strong>de</strong> ensinar as estratégias <strong>de</strong> leitura aos alunos – elas são um meio, e não um fim<br />

em si mesmas, para interpretar um texto. Na leitura, significado e <strong>de</strong>codificação estão sempre<br />

presentes, porém seu peso é diferente em diversas etapas <strong>da</strong> leitura. Para um leitor experiente,<br />

as habili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>codificação já se automatizaram e só se tornam conscientes em certas<br />

ocasiões – por exemplo, quando se <strong>de</strong>fronta com um texto escrito com letra pouco legível.<br />

• O ensino <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita exige a observação ativa dos alunos e <strong>da</strong> própria intervenção,<br />

como requisitos para estabelecer situações didáticas diferencia<strong>da</strong>s, capazes <strong>de</strong> se a<strong>da</strong>ptar à<br />

diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> inevitável <strong>da</strong> sala <strong>de</strong> aula.<br />

• Quando propomos aos alunos que leiam antes <strong>de</strong> saber ler convencionalmente, é importante<br />

a<strong>de</strong>quar as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura aos conhecimentos que já construíram sobre a escrita. Por<br />

exemplo: um aluno que ain<strong>da</strong> não faz uso do conhecimento sobre o valor sonoro convencional<br />

não po<strong>de</strong>rá realizar sozinho uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> textos, mas po<strong>de</strong>rá fazê-lo em<br />

parceria com um aluno que já faz uso <strong>de</strong>sse conhecimento.<br />

• A entrevista individual com os alunos, <strong>da</strong> forma que é apresenta<strong>da</strong> no programa <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o <strong>da</strong><br />

Uni<strong>da</strong><strong>de</strong> 6, é um recurso para i<strong>de</strong>ntificar as hipóteses <strong>de</strong> leitura, e não uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sala <strong>de</strong><br />

aula. Não <strong>de</strong>ve servir para rotular os alunos, nem para a formação <strong>de</strong> classes homogêneas.<br />

A interação entre os alunos com diferentes níveis <strong>de</strong> conhecimento é fun<strong>da</strong>mental para gerar<br />

a troca <strong>de</strong> informações e o confronto <strong>de</strong> idéias que favoreçam a aprendizagem.<br />

• O planejamento <strong>da</strong>s situações <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar que é possível ler quando ain<strong>da</strong> não se<br />

sabe ler convencionalmente. Portanto, é preciso tratar os alunos como leitores plenos, e não como<br />

<strong>de</strong>cifradores <strong>de</strong> textos; isto implica colocá-los <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro dia <strong>de</strong> aula em situações nas quais<br />

faça sentido ler diferentes tipos <strong>de</strong> texto, com diferentes finali<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Por exemplo: ler uma poesia para<br />

<strong>de</strong>corá-la para uma apresentação, ler um gibi para se divertir etc. O conhecimento implícito <strong>da</strong> leitura<br />

adquirido por leitores experientes foi <strong>de</strong>senvolvido através <strong>da</strong> leitura, e não pela prática <strong>de</strong> exercícios.<br />

M1U8T5<br />

2


• Durante a realização <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura, é importante garantir que os alunos tenham <strong>de</strong><br />

perguntar, apresentar diversas informações e compará-las com as dos colegas, confrontando e<br />

pondo à prova suas diferentes antecipações.<br />

• Quando os alunos lêem textos conhecidos usa-se, preferencialmente, a letra <strong>de</strong> forma maiúscula.<br />

É importante respeitar a diagramação do texto na fonte <strong>de</strong> on<strong>de</strong> foi retirado e mostrar essa<br />

fonte, possibilitando, assim, a coor<strong>de</strong>nação necessária entre a escrita e o contexto.<br />

• As condições para que os alunos não-alfabetizados leiam são: conhecer do que trata o texto;<br />

fazer uso do conhecimento sobre o valor sonoro e as estratégias <strong>de</strong> leitura.<br />

• Na leitura <strong>de</strong> textos, a exploração <strong>de</strong> palavras oferece um espaço <strong>de</strong> reflexão no qual se po<strong>de</strong><br />

fazer uma análise do modo <strong>de</strong> funcionamento do sistema alfabético. Portanto, é um meio para<br />

que o aluno, com sua atenção foca<strong>da</strong> em uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> pequena do texto, possa refletir sobre<br />

as características do sistema <strong>de</strong> escrita.<br />

• No trabalho <strong>de</strong> alfabetização, as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s básicas são: leitura e escrita. Quando se trata <strong>de</strong><br />

alunos adultos e crianças marca<strong>da</strong>s por uma experiência <strong>de</strong> fracasso escolar, nem sempre é<br />

possível que entrem no jogo do escrever. Portanto, as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura são as que mais<br />

contribuem para que avancem no conhecimento sobre o sistema alfabético.<br />

• As ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura para os alunos não-alfabetizados também contribuem para a<br />

aprendizagem do nome <strong>da</strong>s letras, o conhecimento sobre o valor sonoro e sobre on<strong>de</strong> fazer<br />

a segmentação entre as palavras.<br />

• Os agrupamentos dos alunos para a realização <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong>verão necessariamente<br />

consi<strong>de</strong>rar: o objetivo <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>; a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> realização <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> aluno; suas características<br />

pessoais, ou seja, a forma como se relaciona com os colegas, seu ritmo <strong>de</strong> trabalho etc.; e a<br />

presença <strong>de</strong> um <strong>de</strong>safio, isto é, a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>verá ser, ao mesmo tempo, DIFÍCIL E POSSÍVEL.<br />

M1U8T5<br />

3


Aspectos que <strong>de</strong>terminam<br />

uma boa situação <strong>de</strong> aprendizagem<br />

Caro professor, cara professora<br />

(leitura)<br />

M1U8T6<br />

No final <strong>da</strong> série <strong>de</strong> programas sobre os processos <strong>de</strong> aprendizagem <strong>da</strong> escrita discutimos as<br />

boas situações <strong>de</strong> aprendizagem utilizando como referência as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s apresenta<strong>da</strong>s no<br />

programa Escrever para apren<strong>de</strong>r. Lembram-se? (<strong>Coletânea</strong> <strong>de</strong> <strong>Textos</strong> M1U5T5)<br />

Fechamos esta série refletindo sobre os quatro princípios didáticos que <strong>de</strong>finem uma boa situação<br />

<strong>de</strong> aprendizagem, focando nos dois últimos princípios para discutir as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> escrita<br />

apresenta<strong>da</strong>s no Programa 5, Escrever para apren<strong>de</strong>r:<br />

• O conteúdo trabalhado mantém as suas características <strong>de</strong> objeto sociocultural real — por isso,<br />

no caso <strong>da</strong> alfabetização, a proposta é o uso <strong>de</strong> textos, e não <strong>de</strong> sílabas ou palavras soltas.<br />

• A organização <strong>da</strong> tarefa garante a máxima circulação <strong>de</strong> informação possível entre os alunos —<br />

por isso as situações propostas <strong>de</strong>vem prever o intercâmbio e a interação entre eles.<br />

Prosseguimos com a proposta <strong>de</strong> refletir sobre os dois primeiros princípios didáticos que <strong>de</strong>finem<br />

uma boa situação <strong>de</strong> aprendizagem, utilizando como referência as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que assistimos no<br />

Programa 8, Ler para apren<strong>de</strong>r.<br />

Conforme já discutimos em encontros anteriores, os dois primeiros princípios dão forma didática<br />

à visão do aprendiz como sujeito que constrói seu próprio conhecimento e <strong>de</strong>man<strong>da</strong>m <strong>da</strong>s<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s propostas aos alunos a condição <strong>de</strong> situações <strong>de</strong>safiadoras, ou seja, ao mesmo tempo<br />

difíceis e possíveis.<br />

Muito bem.Vamos às análises <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s apresenta<strong>da</strong>s no Programa 8, Ler para apren<strong>de</strong>r,<br />

e aos dois princípios.<br />

1. Os alunos precisam pôr em jogo tudo o que sabem e pensam sobre o conteúdo<br />

em torno do qual o professor organizou a tarefa.<br />

Quando dizemos que o aluno precisa "pôr em jogo tudo o que sabe e pensa sobre o conteúdo<br />

M1U8T6<br />

1


com o qual está trabalhando", estamos falando <strong>de</strong> situações nas quais ele precisa, por exemplo,<br />

usar suas idéias para produzir escrita ou leitura, assumindo o risco <strong>de</strong> enfrentar contradições.<br />

Estamos falando <strong>de</strong> situações em que precisa utilizar tudo o que sabe, para <strong>de</strong>scobrir o que não<br />

sabe. Por trás <strong>de</strong>sse princípio didático está a concepção <strong>da</strong> aprendizagem como uma construção.<br />

Vamos retomar algumas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s apresenta<strong>da</strong>s no Programa 8 para enten<strong>de</strong>r um pouco mais<br />

esse princípio.<br />

Na ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> na classe <strong>da</strong> professora Conceição, por exemplo, os alunos<br />

<strong>de</strong>viam ler algumas palavras em uma lista <strong>de</strong> frutas. O esforço para localizar ca<strong>da</strong> item obrigou<br />

os alunos a analisar diferenças e semelhanças que reconheciam no enunciado oral, para tentar<br />

encontrar as marcas <strong>de</strong>ssas semelhanças e diferenças no texto escrito.<br />

Essa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> criou um contexto real <strong>de</strong> reflexão, os alunos precisavam fazer uso do conhecimento<br />

sobre o valor sonoro convencional <strong>da</strong>s letras e <strong>da</strong>s estratégias <strong>de</strong> leitura para encontrar as<br />

palavras solicita<strong>da</strong>s.<br />

Ela oferecia problemas para cuja solução não possuíam todos os conhecimentos necessários, por<br />

isso colocaram em jogo tudo o que sabiam: analisaram a sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s letras iniciais e finais, e<br />

utilizaram como referência a lista <strong>de</strong> nomes <strong>da</strong> classe. Para encontrar a palavra "abacaxi", uma<br />

aluna <strong>da</strong> Conceição utilizou como pista a letra inicial e final e <strong>de</strong>pois analisou o restante <strong>da</strong> lista<br />

para ver se havia alguma outra palavra que também começava com A e terminava com I; como<br />

não havia outra que terminasse com I, não foi necessário investigar o meio <strong>da</strong>s palavras. Outro<br />

aluno encontrou "morango" porque reconheceu o MO <strong>de</strong> Monique, uma colega <strong>da</strong> classe.<br />

Só é possível ler antes <strong>de</strong> saber ler convencionalmente se a professora organizar a situação<br />

didática <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong> tal forma que os alunos possam receber alguma aju<strong>da</strong> para <strong>de</strong>scobrir o que<br />

está escrito utilizando os conhecimentos que já têm. Isso quer dizer que essa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura<br />

<strong>de</strong> lista só é possível quando os alunos sabem do que se trata a lista, ou seja, se é uma lista <strong>de</strong><br />

frutas, <strong>de</strong> animais, <strong>de</strong> nomes <strong>de</strong> personagens... Dessa forma, centra-se a reflexão em <strong>de</strong>scobrir<br />

on<strong>de</strong> estão as palavras dita<strong>da</strong>s pela professora.<br />

Também pu<strong>de</strong>mos observar na classe <strong>da</strong> professora Dionéa que com adultos a situação é<br />

semelhante. Quando os alunos sabem do que trata o texto, como vimos com a receita <strong>de</strong> cozinha,<br />

eles po<strong>de</strong>m utilizar o conhecimento que têm <strong>de</strong>sse gênero (receita), o conhecimento prático<br />

do tema (a culinária), e também o que já sabem sobre a escrita propriamente dita, para <strong>de</strong>scobrir<br />

o que está escrito.<br />

2. Os alunos têm problemas a resolver e <strong>de</strong>cisões a tomar em função do que se<br />

propõem a produzir.<br />

Esse princípio também <strong>de</strong>riva <strong>da</strong> concepção <strong>de</strong> aprendizagem como construção, ou seja: do<br />

ponto <strong>de</strong> vista construtivista, o conhecimento avança quando o aprendiz "arranja" bons<br />

problemas para pensar.<br />

Se retomarmos as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s apresenta<strong>da</strong>s no Programa 8, vamos ver que a maioria <strong>da</strong>s professoras<br />

conta, em <strong>de</strong>poimento, sua preocupação em apresentar <strong>de</strong>safios a todos do grupo. Não é à toa<br />

que se preocupam com o ajuste do <strong>de</strong>safio às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um: elas<br />

M1U8T6<br />

2


sabem que seus alunos só po<strong>de</strong>rão avançar em sua compreensão sobre o funcionamento do<br />

sistema <strong>de</strong> escrita se tiverem bons problemas para pensar; se tiverem que refletir e rever suas<br />

hipóteses.<br />

O planejamento <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar os diferentes níveis <strong>de</strong> compreensão<br />

dos alunos; uma mesma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong> propor <strong>de</strong>safios diferentes para ca<strong>da</strong> um.Vamos retomar<br />

a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> apresenta<strong>da</strong> pela professora Angélica. Ela propôs três <strong>de</strong>safios diferentes para o mesmo<br />

texto, a parlen<strong>da</strong> "Cadê o toucinho":<br />

• Para os alunos com hipóteses silábicas sem valor sonoro convencional e silábicas com valor<br />

sonoro convencional a parlen<strong>da</strong> foi dividi<strong>da</strong> em versos e ela pediu que or<strong>de</strong>nassem, conforme<br />

a seqüência correta, que conheciam <strong>de</strong> cor.<br />

• Para os alunos com hipótese silábico-alfabética a parlen<strong>da</strong> foi dividi<strong>da</strong> em palavras, e ela pediu<br />

que or<strong>de</strong>nassem, conforme a seqüência correta, que conheciam <strong>de</strong> cor.<br />

• Para os alunos com escrita alfabética ela pediu que escrevessem a parlen<strong>da</strong>.<br />

Dessa forma, todos os alunos encontraram problemas a resolver na ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>: enquanto uns se<br />

ocupavam em encontrar pistas para <strong>de</strong>scobrir as palavras solicita<strong>da</strong>s, utilizando estratégias <strong>de</strong><br />

leitura e o conhecimento do valor sonoro convencional <strong>de</strong> algumas letras, outros — que já lêem<br />

e escrevem convencionalmente — se ocupavam em resolver problemas relacionados às<br />

convenções ortográficas.<br />

M1U8T6<br />

3


Concertos <strong>de</strong> leitura *<br />

Rubem Alves<br />

Penso que, <strong>de</strong> tudo o que as escolas po<strong>de</strong>m fazer com as crianças e os jovens, não há na<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

importância maior que o ensino do prazer <strong>da</strong> leitura.Todos falam na importância <strong>de</strong> alfabetizar,<br />

saber transformar símbolos gráficos em palavras. Concordo. Mas isso não basta. É preciso que o<br />

ato <strong>de</strong> ler dê prazer. As escolas produzem, anualmente, milhares <strong>de</strong> pessoas com habili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ler mas que, vi<strong>da</strong> afora, não vão ler um livro sequer. Acredito piamente no dito do evangelho:<br />

"No princípio está a Palavra…". É pela palavra que se entra no mundo humano.<br />

Tive a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r, muito cedo, a amar os livros. Lembro-me com enorme carinho do<br />

O livro <strong>de</strong> Lili, primeiro livro que li. "Olhem para mim. Eu me chamo Lili. Eu comi muito doce.<br />

Vocês gostam <strong>de</strong> doce? Eu gosto tanto <strong>de</strong> doce." Nunca me esqueci <strong>de</strong>ssa primeira lição. Ficou<br />

grava<strong>da</strong> tão fundo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim que, faz uns meses, ao escrever o livro infantil A menina, a<br />

gaiola e a bicicleta 1 a história me foi dita<strong>da</strong> (poesia e literatura são sempre dita<strong>da</strong>s; elas vêm <strong>de</strong><br />

outro mundo) com ritmo preciso <strong>da</strong> primeira lição <strong>de</strong> O livro <strong>de</strong> Lili.<br />

O segundo livro foi minha gran<strong>de</strong> aventura, vôo solo, sozinho, no mundo <strong>da</strong>s letras: A loja <strong>de</strong><br />

brinquedos 2 . Era fantástica a experiência <strong>de</strong>, sozinho, ir an<strong>da</strong>ndo pela floresta <strong>de</strong> letras e vendo<br />

um mundo. Quem não lê é cego. Só vê o que os olhos vêem. Quem lê, ao contrário, tem muitos<br />

milhares <strong>de</strong> olhos: todos os olhos <strong>da</strong>queles que escreveram. A leitura me <strong>de</strong>u alegria, mas a<br />

história me <strong>de</strong>u tristeza. Tanto assim que, 55 anos <strong>de</strong>pois, eu escrevi um outro, A loja <strong>de</strong><br />

brinquedos, para corrigir a tristeza do primeiro.<br />

Aprendi a ler. Mas isso não bastava. Faltava-me o domínio <strong>da</strong> técnica que faz <strong>da</strong> leitura algo suave<br />

como o vôo <strong>de</strong> um urubu ou <strong>de</strong>slizante como um patim no gelo. Foi dona Iva — não sei se ela<br />

ain<strong>da</strong> vive — quem me ensinou que ler po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>licioso como voar ou como patinar. Ela lia<br />

para nós. Não era para apren<strong>de</strong>r na<strong>da</strong>. Não havia provas sobre os livros lidos. Ela lia para que<br />

tivéssemos o prazer dos livros. Era pura alegria. Poliana, 3 Heidi, 4 Viagem ao céu, 5 O saci. 6<br />

Ninguém faltava, ninguém piscava. A voz <strong>de</strong> dona Iva nos introduziu num mundo encantado.<br />

O tempo passava rápido <strong>de</strong>mais. Era com tristeza que víamos a professora fechar o livro.<br />

A gente era pobre. Distrações não havia. Os jovens <strong>de</strong> hoje se sentem miseráveis se não po<strong>de</strong>m<br />

viajar nas férias. Eu nunca viajei.Viagem, na melhor <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, era para a casa <strong>de</strong> algum<br />

parente. A gente ficava era em casa mesmo, com um tempo preguiçoso e vazio à nossa frente.<br />

Que fazer com o tempo? Meu pai entrou <strong>de</strong> sócio para um "clube do livro".Todo mês chegava<br />

um livro novo. Eram uns livros feios — brochuras <strong>de</strong> papel jornal, as páginas vinham gru<strong>da</strong><strong>da</strong>s —<br />

que a gente tinha que ir abrindo com uma faca à medi<strong>da</strong> que lia. Isso me irritava porque<br />

interrompia o ritmo <strong>da</strong> leitura. Como eu não tinha outra coisa para fazer e <strong>de</strong>sejando ter<br />

* Extraido <strong>de</strong>: Entre a ciência e a sapiência - o dilema <strong>da</strong> educação, São Paulo, Editorial Loyola, 1996.<br />

1 Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1998.<br />

2 Edições Loyola, 1994.<br />

3 Ediouro, s.d.<br />

4 Outlet Books, 1996<br />

5 Monteiro Lobato, Brasiliense, 1995.<br />

6 I<strong>de</strong>m.<br />

M1U9T1<br />

M1U9T1<br />

1


os po<strong>de</strong>res <strong>da</strong> professora, tornei-me um <strong>de</strong>vorador <strong>de</strong> livros. Os livros do clube do livro eram<br />

literatura adulta. Mas para mim não fazia diferença. Ler um livro que eu não entendia era como<br />

viajar por uma terra cuja língua me era <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>: perdia muita coisa mas, nos intervalos <strong>da</strong>s<br />

incompreensões, havia os cenários.Tudo me espantava.<br />

As razões por que as pessoas não gostam <strong>de</strong> ler, eu as <strong>de</strong>scobri aci<strong>de</strong>ntalmente muitos anos<br />

atrás. Uma aluna foi à minha sala e me disse: "Encontrei um poema lindo!". Em segui<strong>da</strong> disse<br />

a primeira linha. Fiquei contente porque era um <strong>de</strong> meus favoritos. Aí ela resolveu lê-lo inteiro.<br />

Foi o horror. Foi nesse momento que compreendi. Imagine uma valsa <strong>de</strong> Chopin, por exemplo<br />

a vulgarmente chama<strong>da</strong> "do minuto". Peço que o pianista Alexan<strong>de</strong>r Brailowiski a execute. Os <strong>de</strong>dos<br />

correm rápidos sobre as teclas, <strong>de</strong>slizando, subindo, <strong>de</strong>scendo. É uma brinca<strong>de</strong>ira, um riso. Aí eu<br />

pego a mesma partitura e peço que um pianeiro a execute. As notas são as mesmas. Mas a valsa fica<br />

um horror: tropeções, notas erra<strong>da</strong>s, arritmias, confusões. O que a gente <strong>de</strong>seja é que ele pare.<br />

Pois a leitura é igual à música. Para que a leitura dê prazer é preciso que quem lê domine a técnica<br />

<strong>de</strong> ler. A leitura não dá prazer quando o leitor é igual ao pianeiro: sabem juntar as letras, dizer o que<br />

significam — mas não têm o domínio <strong>da</strong> técnica. O pianista dominou a técnica do piano quando<br />

não precisa pensar nos <strong>de</strong>dos e nas notas: ele só pensa na música. O leitor dominou a técnica <strong>da</strong><br />

leitura quando não precisa pensar em letras e palavras: só pensa nos mundos que saem <strong>de</strong>las;<br />

quando ler é o mesmo que viajar.<br />

E o feitiço <strong>da</strong> leitura continua me espantando. Faz uns anos um amigo rico me convidou para passar<br />

uns dias no apartamento <strong>de</strong>le em Cabo Frio. Aceitei alegre, mas ele logo me advertiu: "Vão<br />

também cinco adolescentes…". Senti um calafrio. E tratei <strong>de</strong> me precaver. Fui a uma casa <strong>de</strong><br />

armas, isto é, uma livraria, escolhi uma arma a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>, uma versão simplifica<strong>da</strong> <strong>da</strong> Odisséia, 7 <strong>de</strong><br />

Homero, comprei-a e viajei, pronto para o combate. Primeiro dia, praia, almoço, modorra, sesta.<br />

Depois <strong>da</strong> sesta, aquela situação <strong>de</strong> não saber o que fazer. Foi então que eu, valendo-me do fato<br />

<strong>de</strong> que eles não me conheciam, e falando com a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um sargento, disse: "Ei, vocês<br />

aí.Venham até a sala que eu quero lhes mostrar uma coisa!". Eles obe<strong>de</strong>ceram sem protestar.<br />

Aí, comecei a leitura. Não <strong>de</strong>morou muito. Todos eles estavam em transe. Daí para a frente foi<br />

aquela <strong>de</strong>lícia, eles atrás <strong>de</strong> mim pedindo que continuasse a leitura.<br />

Ensina-se, nas escolas, muita coisa que a gente nunca vai usar, <strong>de</strong>pois, na vi<strong>da</strong> inteira. Fui obrigado a<br />

apren<strong>de</strong>r muita coisa que não era necessária, que eu po<strong>de</strong>ria ter aprendido <strong>de</strong>pois, quando e se<br />

a ocasião e sua necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> o exigisse. É como ensinar a arte <strong>de</strong> velejar a quem mora no alto<br />

<strong>da</strong>s montanhas… Nunca usei seno ou logaritmo, nunca tive oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> usar meus<br />

conhecimentos sobre as causas <strong>da</strong> Guerra dos Cem Anos, nunca tive <strong>de</strong> empregar os saberes<br />

<strong>da</strong> genética para <strong>de</strong>terminar a prole resultante do cruzamento <strong>de</strong> coelhos brancos com coelhos<br />

pretos, nunca houve ocasião que eu me valesse dos saberes sobre sulfetos. Mas aquela experiência<br />

infantil, a professora nos lendo literatura, isso mudou minha vi<strong>da</strong>. Ao ler — acho que ela nem<br />

sabia disso — ela estava me <strong>da</strong>ndo a chave <strong>de</strong> abrir o mundo.<br />

Há concertos <strong>de</strong> música. Por que não concertos <strong>de</strong> leitura? Imagino uma situação impensável: o<br />

adolescente se prepara para sair com a namora<strong>da</strong>, e a mãe lhe pergunta: "Aon<strong>de</strong> é que você vai?".<br />

E ele respon<strong>de</strong>: "Vou a um concerto <strong>de</strong> leitura. Hoje, no teatro, vai ser lido o conto A terceira<br />

margem do rio, <strong>de</strong> Guimarães Rosa. Por que é que você não vai também com o pai?". Aí, pai e<br />

mãe, envergonhados, <strong>de</strong>sligam o Jornal Nacional e vão se aprontar…<br />

7<br />

Edições Loyola, 1994.<br />

M1U9T1<br />

2


Isadora Duncan *<br />

Bailarina.<br />

Época: séculos XIX e XX (1878-1927).<br />

Lugares on<strong>de</strong> viveu e trabalhou: Estados Unidos, Inglaterra, Rússia, França.<br />

Isadora Duncan viveu entre os séculos XIX e XX, tendo trabalhado nos Estados Unidos,<br />

Inglaterra, Rússia, França, foi uma bailarina que se afastou <strong>da</strong>s regras do balé clássico e criou<br />

um estilo <strong>de</strong> <strong>da</strong>nça totalmente inovador. Por sua influência sobre muitos outros bailarinos<br />

e coreógrafos, é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s criadoras <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça contemporânea.<br />

Vi<strong>da</strong> e época<br />

Angela Duncan, nome ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Isadora, nasceu na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> norte-americana <strong>de</strong> San Francisco,<br />

no dia 26 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1878. Estudou balé e, em 1894, adotou Isadora como nome artístico. Por<br />

não ter feito sucesso nas suas primeiras apresentações em público, <strong>de</strong>cidiu mu<strong>da</strong>r-se para a<br />

Europa, pois estava convenci<strong>da</strong> <strong>de</strong> que o estilo original <strong>de</strong> sua <strong>da</strong>nça seria mais aceito fora <strong>de</strong><br />

seu país. Quando chegou, encontrou um ambiente artístico disposto a romper os laços com o<br />

passado e a criar novas formas <strong>de</strong> expressão, <strong>de</strong> acordo com o ritmo <strong>de</strong> uma época em rápi<strong>da</strong><br />

transformação.<br />

Os espetáculos <strong>de</strong> Isadora causaram sensação em Londres e Paris. Fundou aca<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> balé na<br />

França, na Alemanha, na Rússia e nos Estados Unidos. Morreu em Nice, na França, em 1927.<br />

Obra<br />

M1U9T2<br />

Isadora sentia-se incomo<strong>da</strong><strong>da</strong> com as normas rigorosas do balé clássico. Queria <strong>da</strong>nçar com<br />

naturali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma forma espontânea e sem a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> respeitar regras. Pouco a pouco,<br />

<strong>de</strong>senvolveu um estilo próprio, inspirado nas imagens <strong>da</strong> Grécia antiga. Isadora foi a primeira a<br />

<strong>da</strong>nçar <strong>de</strong>scalça, sem as tradicionais sapatilhas <strong>de</strong> balé.Também trocou as malhas e o tutu (saia<br />

curta com várias cama<strong>da</strong>s <strong>de</strong> tecido) <strong>da</strong>s bailarinas do século XIX por uma simples túnica grega.<br />

Escolhia a música que a agra<strong>da</strong>va, sem se preocupar em selecionar peças especialmente compostas<br />

para o balé. Seus movimentos eram basicamente espontâneos e improvisados, e com eles transmitia<br />

emoções como amor, medo, tristeza e alegria.<br />

Isadora Duncan foi uma <strong>da</strong>s precursoras <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça contemporânea e exerceu uma gran<strong>de</strong><br />

influência sobre muitos bailarinos e coreógrafos.<br />

* Extraido <strong>de</strong>:Apren<strong>de</strong>ndo personagens. Conteúdos essenciais para o Ensino Fun<strong>da</strong>mental, <strong>de</strong> César Coll e Ana Teberosky, São Paulo, Ática, 2000.<br />

M1U9T2<br />

1


Felici<strong>da</strong><strong>de</strong> clan<strong>de</strong>stina *<br />

Clarice Lispector<br />

Ela era gor<strong>da</strong>, baixa, sar<strong>de</strong>nta e <strong>de</strong> cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um<br />

busto enorme; enquanto nós to<strong>da</strong>s ain<strong>da</strong> éramos achata<strong>da</strong>s. Como se não bastasse, enchia os<br />

dois bolsos <strong>da</strong> blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança <strong>de</strong>voradora<br />

<strong>de</strong> histórias gostaria <strong>de</strong> ter: um pai dono <strong>de</strong> livraria.<br />

Pouco aproveitava. E nós menos ain<strong>da</strong>: até para aniversário, em vez <strong>de</strong> pelo menos um livrinho<br />

barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal <strong>da</strong> loja do pai. Ain<strong>da</strong> por cima era <strong>de</strong> paisagem<br />

do Recife mesmo, on<strong>de</strong> morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com<br />

letra bor<strong>da</strong>díssima palavras como "<strong>da</strong>ta natalícia" e "sau<strong>da</strong><strong>de</strong>".<br />

Mas que talento tinha para a cruel<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ela to<strong>da</strong> era pura vingança, chupando balas com barulho.<br />

Como essa menina <strong>de</strong>via nos odiar. Comigo exerceu com calma feroci<strong>da</strong><strong>de</strong> o seu sadismo. Na<br />

minha ânsia <strong>de</strong> ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continua a implorar-lhe<br />

emprestados os livros que não lia.<br />

Até que veio para ela o magno dia <strong>de</strong> começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como<br />

casualmente, informou-me que possuía As reinações <strong>de</strong> Narizinho, <strong>de</strong> Monteiro Lobato.<br />

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o.<br />

E complemente acima <strong>de</strong> minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e<br />

que ela o emprestaria.<br />

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança <strong>da</strong> alegria: eu não vivia, eu na<strong>da</strong>va<br />

<strong>de</strong>vagar num mar suave, as on<strong>da</strong>s me levavam e me traziam.<br />

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e<br />

sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia<br />

emprestado o livro a outra menina e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta,<br />

saí <strong>de</strong>vagar, mas em breve a esperança <strong>de</strong> novo me tomava to<strong>da</strong> e eu recomeçava na rua a an<strong>da</strong>r<br />

pulando, que era meu modo estranho <strong>de</strong> an<strong>da</strong>r pelas ruas do Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me<br />

a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tar<strong>de</strong> a minha vi<strong>da</strong> inteira,<br />

o amor pelo mundo me esperava, an<strong>de</strong>i pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.<br />

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto <strong>da</strong> filha do dono <strong>da</strong> livraria era tranqüilo e<br />

diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta <strong>de</strong> sua casa, com um sorriso e o coração batendo.<br />

Para ouvir a reposta calma: o livro ain<strong>da</strong> não estava em seu po<strong>de</strong>r, que eu voltasse no dia seguinte.<br />

Mal sabia eu como mais tar<strong>de</strong>, no <strong>de</strong>correr <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, o drama do "dia seguinte" com ela ia se<br />

repetir com meu coração batendo.<br />

* O primeiro beijo e outros contos - Antologia, São Paulo, Ática, 1998.<br />

M1U9T3<br />

M1U9T3<br />

1


E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo in<strong>de</strong>finido, enquanto o fel<br />

não escorresse todo <strong>de</strong> seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para<br />

eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer<br />

sofrer esteja precisando <strong>da</strong>na<strong>da</strong>mente que eu sofra.<br />

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro<br />

esteve comigo ontem <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>, mas você só veio <strong>de</strong> manhã, <strong>de</strong> modo que o emprestei a outra<br />

menina. E eu, que não era <strong>da</strong><strong>da</strong> a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob meus olhos espantados.<br />

Até que um dia, quando eu estava à porta <strong>de</strong> sua casa, ouvindo humil<strong>de</strong> e silenciosa a sua recusa,<br />

apareceu sua mãe. Ela <strong>de</strong>via estar estranhando a aparição mu<strong>da</strong> e diária <strong>da</strong>quela menina à porta<br />

<strong>de</strong> sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecorta<strong>da</strong> <strong>de</strong> palavras<br />

pouco eluci<strong>da</strong>tivas.A senhora achava ca<strong>da</strong> vez mais estranho o fato <strong>de</strong> não estar enten<strong>de</strong>ndo.Até<br />

que essa mãe boa enten<strong>de</strong>u.Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este<br />

livro nunca saiu <strong>da</strong>qui <strong>de</strong> casa e você nem quis ler!<br />

E o pior para essa mulher não era a <strong>de</strong>scoberta do que acontecia. Devia ser a <strong>de</strong>scoberta<br />

horroriza<strong>da</strong> <strong>da</strong> filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência <strong>de</strong> perversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua filha<br />

<strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>, a menina loura em pé à sua frente, exausta, ao vento <strong>da</strong>s ruas <strong>de</strong> Recife. Foi então<br />

que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora<br />

mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser". Enten<strong>de</strong>m? Valia mais do<br />

que me <strong>da</strong>r o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, gran<strong>de</strong> ou pequena,<br />

po<strong>de</strong> ter a ousadia <strong>de</strong> querer.<br />

Como contar o que se seguiu? Eu estava estontea<strong>da</strong>, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu<br />

não disse na<strong>da</strong>. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí an<strong>da</strong>ndo <strong>de</strong>vagar. Sei que<br />

segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei<br />

até chegar em casa, também pouco importava. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.<br />

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para <strong>de</strong>pois ter o susto <strong>de</strong> o ter.<br />

Horas <strong>de</strong>pois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o <strong>de</strong> novo, fui passear pela casa, adiei<br />

ain<strong>da</strong> mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia on<strong>de</strong> guar<strong>da</strong>ra o livro, achava-o,<br />

abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s para aquela coisa clan<strong>de</strong>stina que<br />

era a felici<strong>da</strong><strong>de</strong>. A felici<strong>da</strong><strong>de</strong> sempre iria ser clan<strong>de</strong>stina para mim. Parece que eu pressentia.<br />

Como <strong>de</strong>morei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha <strong>de</strong>lica<strong>da</strong>.<br />

Às vezes sentava-me na re<strong>de</strong>, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em<br />

êxtase puríssimo.<br />

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.<br />

M1U9T3<br />

2


Alfabetização e ensino <strong>da</strong> língua *<br />

É habitual pensar sobre a área <strong>de</strong> Língua Portuguesa como se ela fosse um foguete <strong>de</strong> dois estágios:<br />

o primeiro para se soltar <strong>da</strong> Terra e o segundo para navegar no espaço. O primeiro seria o que<br />

já se chamou <strong>de</strong> "primeiras letras", hoje alfabetização, e o segundo, aí sim, o estudo <strong>da</strong> língua<br />

propriamente dita.<br />

Durante o primeiro estágio, previsto para durar em geral um ano, o professor <strong>de</strong>veria ensinar o<br />

sistema alfabético <strong>de</strong> escrita (a correspondência fonográfica) e algumas convenções ortográficas<br />

do português — o que garantiria ao aluno a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ler e escrever por si mesmo, condição<br />

para po<strong>de</strong>r disparar o segundo estágio do metafórico foguete. Esse segundo estágio se <strong>de</strong>senvolveria<br />

em duas linhas básicas: os exercícios <strong>de</strong> re<strong>da</strong>ção e os treinos ortográficos e gramaticais.<br />

O conhecimento atualmente disponível recomen<strong>da</strong> uma revisão <strong>de</strong>ssa metodologia e aponta<br />

para a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> repensar sobre teorias e práticas tão difundi<strong>da</strong>s e estabeleci<strong>da</strong>s, que, para<br />

a maioria dos professores, ten<strong>de</strong>m a parecer as únicas possíveis.<br />

Por trás <strong>da</strong> prática em dois estágios, está a teoria que concebe a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir textos<br />

como <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> grafá-los <strong>de</strong> próprio punho. Na Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> grega, berço <strong>de</strong><br />

alguns dos mais importantes textos produzidos pela humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, o autor era quem compunha e<br />

ditava para ser escrito pelo escriba; a colaboração do escriba era transformar os enunciados em<br />

marcas gráficas que lhes <strong>da</strong>vam a permanência, uma tarefa menor, e esses artífices pouco contribuíram<br />

para a gran<strong>de</strong>za <strong>da</strong> filosofia ou do teatro grego. A compreensão atual <strong>da</strong> relação entre a aquisição<br />

<strong>da</strong>s capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> redigir e grafar rompe com a crença arraiga<strong>da</strong> <strong>de</strong> que o domínio do bê-á-bá<br />

seja pré-requisito para o início do ensino <strong>de</strong> língua e nos mostra que esses dois processos <strong>de</strong><br />

aprendizagem po<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>vem ocorrer <strong>de</strong> forma simultânea. Um diz respeito à aprendizagem <strong>de</strong><br />

um conhecimento <strong>de</strong> natureza notacional: 1 a escrita alfabética; 2 o outro se refere à aprendizagem <strong>da</strong><br />

linguagem que se usa para escrever.<br />

A conquista <strong>da</strong> escrita alfabética não garante ao aluno a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r e produzir<br />

textos em linguagem escrita. Essa aprendizagem exige um trabalho pe<strong>da</strong>gógico sistemático. Quando<br />

são li<strong>da</strong>s histórias ou notícias <strong>de</strong> jornal para crianças que ain<strong>da</strong> não sabem ler e escrever<br />

convencionalmente, ensina-se a elas como são organizados, na escrita, esses dois gêneros: <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o vocabulário a<strong>de</strong>quado a ca<strong>da</strong> um, até os recursos coesivos 3 que lhes são característicos. Um aluno<br />

que produz um texto, ditando-o para que outro escreva, produz um texto escrito, isto é, um texto<br />

cuja forma é escrita ain<strong>da</strong> que a via seja oral. Como o autor grego, o produtor do texto é aquele<br />

que cria o discurso, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> grafá-lo ou não. Essa diferenciação é que torna possível<br />

uma pe<strong>da</strong>gogia <strong>de</strong> transmissão oral para ensinar a linguagem que se usa para escrever.<br />

*<br />

1<br />

2<br />

3<br />

M1U9T4<br />

Parâmetros Curriculares Nacionais - Língua Portuguesa, Secretaria <strong>de</strong> <strong>Educação</strong> Fun<strong>da</strong>mental, Brasília, 1997.<br />

Neste texto, enten<strong>de</strong>-se por notacional o que se refere a sistemas <strong>de</strong> representação convencional, como o sistema <strong>de</strong> escrita alfabético, a escrita<br />

dos números, a escrita musical etc.<br />

A escrita é um sistema regido pelo princípio <strong>da</strong> fonografia, em que o signo gráfico representa normalmente um ou mais fonemas do idioma.<br />

Recursos coesivos são elementos linguisticos <strong>da</strong> superfície <strong>de</strong> um texto que indicam as relações existentes entre as palavras e os enunciados<br />

que o compõem.<br />

M1U9T4<br />

1


Ensinar a escrever textos torna-se uma tarefa muito difícil fora do convívio com textos<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros, com leitores e escritores ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros e com situações <strong>de</strong> comunicação que os<br />

tornem necessários. Fora <strong>da</strong> escola escrevem-se textos dirigidos a interlocutores <strong>de</strong> fato.Todo<br />

texto pertence a um <strong>de</strong>terminado gênero, com uma forma própria, que se po<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r. Quando<br />

entram na escola, os textos que circulam socialmente cumprem um papel mo<strong>de</strong>lizador, 4<br />

servindo como fonte <strong>de</strong> referência, repertório textual, suporte <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> intertextual. 5<br />

A diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> textual que existe fora <strong>da</strong> escola po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve estar a serviço <strong>da</strong> expansão do<br />

conhecimento letrado do aluno. 6<br />

Mas a ênfase que se está <strong>da</strong>ndo ao conhecimento sobre as características discursivas <strong>da</strong> linguagem<br />

— que hoje sabe-se essencial para a participação no mundo letrado — não significa que a<br />

aquisição <strong>da</strong> escrita alfabética <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> ser importante. A capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrar o escrito é não<br />

só condição para a leitura in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte como — ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro rito <strong>de</strong> passagem — um saber <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> valor social.<br />

É preciso ter claro também que as propostas didáticas difundi<strong>da</strong>s a partir <strong>de</strong> 1985, ao enfatizar<br />

o papel <strong>da</strong> ação e reflexão do aluno no processo <strong>de</strong> alfabetização, não sugerem (como parece<br />

ter sido entendido por alguns) uma abor<strong>da</strong>gem espontaneísta <strong>da</strong> alfabetização escolar; ao<br />

contrário, o conhecimento dos caminhos percorridos pelo aluno favorece a intervenção<br />

pe<strong>da</strong>gógica e não a omissão, pois permite ao professor ajustar a informação ofereci<strong>da</strong> às<br />

condições <strong>de</strong> interpretação em ca<strong>da</strong> momento do processo. Permite também consi<strong>de</strong>rar os<br />

erros cometidos pelo aluno como pistas para guiar sua prática, para torná-la menos genérica e<br />

mais eficaz.<br />

A alfabetização, consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> em seu sentido restrito <strong>de</strong> aquisição <strong>da</strong> escrita alfabética, ocorre <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong> um processo mais amplo <strong>de</strong> aprendizagem <strong>da</strong> Língua Portuguesa. Esse enfoque coloca necessariamente<br />

um novo papel para o professor <strong>da</strong>s séries iniciais: o <strong>de</strong> professor <strong>de</strong> Língua Portuguesa.<br />

4 Isto é, funcionam como mo<strong>de</strong>los a partir <strong>da</strong>s quais os alunos vão se familiarizando com as características discursivas dos diferentes gêneros.<br />

5 A intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> é constituí<strong>da</strong> do processo <strong>de</strong> produção e compreensão <strong>de</strong> textos. Implica as diferentes maneiras pelas quais um texto, oral<br />

ou escrito, é <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do conhecimento <strong>de</strong> outros textos previamente existentes para po<strong>de</strong>r ser produzido e compreendido.<br />

6<br />

Conhecimento letrado é aquele construído nas práticas sociais <strong>de</strong> letramento.<br />

M1U9T4<br />

2


Entrevistando Caetano Veloso *<br />

M1U9T5<br />

Monique — Caetano, a idéia central <strong>de</strong>sta proposta <strong>de</strong> educação infantil — trata<strong>da</strong> no livro<br />

“A fome com a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> comer” 1 — é que as transformações têm a chave do saber e que<br />

essas transformações se dão quando existe uma interação entre o que a pessoa é, o que ela<br />

sabe, os seus conhecimentos prévios, e aquilo que é ensinado a ela. Essa é a função <strong>da</strong> escola,<br />

ensinar algumas coisas para as pessoas, não é? Aqui no estado <strong>da</strong> Bahia a gente tem uma<br />

diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> enorme <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e cultura, e essa diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> está, me parece, mais<br />

fun<strong>da</strong><strong>da</strong> atualmente nas coisas <strong>de</strong> uma cultura popular que se mantém pela preservação <strong>da</strong>s<br />

tradições, do que uma cultura popular que se transforma. Algumas pessoas acreditam que não<br />

se po<strong>de</strong>, ao mesmo tempo, ser um ouvinte <strong>de</strong> rock and roll e preservar a tradição dos ternos<br />

<strong>de</strong> Reis, por exemplo. Como é que você vê essa questão, <strong>de</strong>ssa diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> do estado em relação<br />

a essa questão <strong>da</strong> cultura popular e <strong>da</strong>quilo que po<strong>de</strong> ser trazido como contribuição pela<br />

educação? Eu fico pensando que educação é exatamente o lugar <strong>de</strong> acesso ao conhecimento,<br />

aos bens culturais que são <strong>da</strong>quele lugar, mas que também dão acesso às pessoas que são <strong>da</strong>quele<br />

lugar a qualquer outra coisa, <strong>de</strong> qualquer outro lugar do mundo. Como é que você vê essa questão?<br />

Caetano — Bom, até on<strong>de</strong> a minha cabeça po<strong>de</strong> chegar, eu concordo sobretudo com a sua<br />

conclusão, esta última parte do que você falou, o conhecimento local como meio <strong>de</strong> acesso para o<br />

conhecimento universal, não sendo uma <strong>de</strong>fesa contra o contato com o conhecimento exterior àquela área,<br />

mas como na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> uma instrumentação maior para você entrar em contato, para fazer conexões com<br />

os outros círculos <strong>de</strong> saber, eu concordo sobretudo com isso. Quando você menciona a posição <strong>de</strong> algumas<br />

pessoas que crêem que o fato <strong>de</strong> as pessoas ouvirem rock and roll impe<strong>de</strong> que elas mantenham contato<br />

com tradições como um terno <strong>de</strong> Reis, ou um samba <strong>de</strong> ro<strong>da</strong>, que essas coisas não po<strong>de</strong>m conviver, eu<br />

tenho a experiência pessoal que essas coisas convivem. Agora, não sei por quanto tempo, nem em que<br />

termos, qual <strong>de</strong>ssas duas expressões culturais, digamos o rock and roll e o samba <strong>de</strong> ro<strong>da</strong>, vai ser<br />

dominante, ou estar mais liga<strong>da</strong> ao futuro <strong>da</strong>s pessoas que participam <strong>de</strong>la e qual a que ficaria com<br />

apenas um resíduo do passado; se é assim que o rock and roll e o samba <strong>de</strong> ro<strong>da</strong> se contrapõem em<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s on<strong>de</strong> essas duas coisas po<strong>de</strong>m conviver, ou se pelo contrário uma ou outra coisa vai nascer<br />

<strong>da</strong> audição <strong>de</strong> rock and roll por pessoas que cresceram praticando samba <strong>de</strong> ro<strong>da</strong> e que não <strong>de</strong>ixaram,<br />

por ouvir rock and roll, ou fox-trot, ou boleros mexicanos, ou tangos, não <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> praticar samba <strong>de</strong><br />

ro<strong>da</strong>. É o caso do Recôncavo <strong>da</strong> Bahia: em Santo Amaro, por exemplo, o samba <strong>de</strong> ro<strong>da</strong> continua sendo<br />

uma prática normal, não uma prática assim programa<strong>da</strong> por grupos <strong>de</strong> preservação do folclore: é uma<br />

prática normal. Quando tem uma festa na minha casa em Santo Amaro, tem samba <strong>de</strong> ro<strong>da</strong>, e assim em<br />

muitas outras casas em Santo Amaro.<br />

Monique — Pois é exatamente isso, e você eu acho que é um excelente exemplo que respon<strong>de</strong><br />

essa questão, porque você traz, conserva no sentido <strong>de</strong> guar<strong>da</strong>r, to<strong>da</strong>s essas tradições e ao mesmo<br />

tempo cria sempre novas coisas. Mas você foi uma pessoa que teve <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa uma situação<br />

muito especial, <strong>de</strong> acesso a uma série <strong>de</strong> informações sobre o mundo. Quando você diz que lia<br />

a revista Senhor, ou que você tinha uma professora <strong>de</strong> português que te sugeriu a leitura <strong>de</strong><br />

poemas <strong>de</strong> João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto, isso <strong>de</strong>u a você possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, que talvez você não tivesse, se<br />

permanecesse na situação estrita do samba <strong>de</strong> ro<strong>da</strong>.<br />

* Concedi<strong>da</strong> a Monique Deheinzelin em Salvador, em 18 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1993. Extraí<strong>da</strong> <strong>de</strong> Trilha: educação, construtivismo, <strong>de</strong> Monique Deheinzelin,<br />

Petrópolis/RJ:Vozes, 1996. Participou <strong>da</strong> entrevista a educadora baiana Maria Dolores Coni Campos.<br />

1<br />

Petrópolis, Editora Vozes, 1994.<br />

M1U9T5<br />

1


Caetano — É claro.<br />

Monique — Então o que eu acho é que a escola é o lugar <strong>de</strong> acesso ao João Cabral, ao que é<br />

o existencialismo...<br />

Caetano — É, eu acho.<br />

Monique — Enfim, que a escola é o lugar...<br />

Caetano — A escola é o lugar <strong>de</strong> acesso <strong>de</strong>mocrático ao conhecimento universal, quer dizer, que tem<br />

valor em qualquer lugar.Agora, eu não sei o que é que preocupa você propriamente nisso. Essa <strong>de</strong>finição<br />

me parece muito boa, e a sua posição me parece boa e nesse exemplo do rock and roll com as coisas<br />

tradicionais eu pu<strong>de</strong> falar alguma coisa. Em trechos <strong>da</strong> sua conversa eu po<strong>de</strong>ria ter pensado em alguma<br />

outra coisa, mas não sei assim no todo o que é que preocupa você, o que é que une essas coisas to<strong>da</strong>s.<br />

Monique— É o seguinte: a chama<strong>da</strong> educação tradicional, que vem sendo revista e critica<strong>da</strong>, ela<br />

<strong>da</strong>va acesso aos bens culturais, não é? Então, quando você diz "para a escola pública eu ia, não só<br />

porque em casa não teríamos condições <strong>de</strong> ir a outra...<br />

Caetano — Porque eram melhores, é.<br />

Monique — ...mas porque era a melhor que tinha". A escola pública ensinava os objetos do<br />

conhecimento, os elementos <strong>da</strong> cultura. Houve, nos últimos 25 anos, um movimento <strong>de</strong> crítica à<br />

escola tradicional no que se refere ao comportamento, às normas, <strong>de</strong> ser uma escola muito<br />

restritiva, <strong>de</strong> propor uma aprendizagem mecânica, repetitiva. Essa crítica, me parece, tem sua<br />

razão <strong>de</strong> ser por aí. Mas foi uma crítica que fez com que muitos educadores passassem a<br />

<strong>de</strong>scartar o ensino intencional dos objetos <strong>de</strong> conhecimento. Assim, a escola chama<strong>da</strong> nova,<br />

renova<strong>da</strong>, ela não tem a intenção <strong>de</strong> transmitir o conhecimento. Então, você tem crianças que po<strong>de</strong>m<br />

ser muito espontâneas, muito criativas, muito alegres...<br />

Caetano — ...e pouco informa<strong>da</strong>s, é.<br />

Monique — ...mas muito pouco informa<strong>da</strong>s! E paralelamente a isso houve um movimento <strong>de</strong><br />

recuperação <strong>da</strong> cultura local, uma intenção <strong>de</strong> trabalhar a partir <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos sujeitos.<br />

Propõe-se então um trabalho gerado pelos interesses dos alunos, por temas geradores vinculados<br />

a <strong>de</strong>terminados modos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e cultura <strong>da</strong>s pessoas envolvi<strong>da</strong>s. Essa forma <strong>de</strong> trabalho pe<strong>da</strong>gógico<br />

é extremamente interessante, mas existe a idéia que só se po<strong>de</strong> trabalhar a partir <strong>de</strong>sses elementos.<br />

Então, a rigor, aqui no estado <strong>da</strong> Bahia, o pessoal do Recôncavo só teria acesso à cultura local, o<br />

do sertão i<strong>de</strong>m, e assim por diante. O que me preocupa é que <strong>de</strong>ssa forma a escola não seja o<br />

lugar <strong>de</strong> acesso <strong>de</strong>mocrático ao conhecimento, que haja uma intenção, consciente ou não, <strong>de</strong><br />

impedir esse acesso.<br />

Caetano — É uma reação contra a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira <strong>de</strong>mocratização do conhecimento, <strong>da</strong> educação, <strong>da</strong><br />

própria alfabetização no Brasil. Agora, pelo que você está dizendo aí, essa reação se mostra como uma<br />

atitu<strong>de</strong> mais ou menos consciente, em pessoas que nos querem preservar a injustiça social que é muito<br />

gritante no Brasil. Por outro lado, pessoas <strong>de</strong> muito boas intenções terminam contribuindo para isso também,<br />

não é, com a idéia <strong>de</strong> renovação <strong>da</strong> escola e <strong>de</strong> uma educação mais espontaneísta, isto é, com menos<br />

conhecimento do que seja disciplina. Eu tive uma experiência pessoal que talvez lhe sirva um pouco.<br />

Quando Moreno, meu filho mais velho foi se matricular numa escola do Rio, ele saiu <strong>de</strong> uma escola<br />

primária e foi para um ginásio. Então eu fui na reunião <strong>de</strong> pais e mestres, a primeira para a entra<strong>da</strong><br />

M1U9T5<br />

2


dos alunos. Os professores explicando como era a escola, <strong>da</strong>vam muita ênfase à diferença entre o que<br />

eles faziam nessa escola e o que as escolas tradicionais faziam. Eles <strong>de</strong>monstravam — o diretor e algumas<br />

professoras enfatizavam muito o fato <strong>de</strong> que eles faziam do aprendizado uma coisa muito agradável,<br />

diverti<strong>da</strong>, que aquela idéia que estu<strong>da</strong>r era uma coisa maçante, difícil, era ultrapassa<strong>da</strong>, era uma idéia<br />

antiga. Eu acompanhava com simpatia aquilo, mas cresceu <strong>de</strong>mais nessa direção e todos, os professores<br />

e os pais, pareciam concor<strong>da</strong>r que a escola <strong>de</strong>veria ser algo agradável, diverti<strong>da</strong> e atraente para a<br />

criança. Eu não discor<strong>da</strong>va disso, mas comecei a temer que estivesse faltando ali uma noção <strong>de</strong> disciplina.<br />

Aí eu me levantei e disse assim: "eu fico um pouco preocupado porque tenho a impressão que vocês estão<br />

querendo negar que alguma coisa no ensino e no estudo, e tem que ser chata". Eles ficaram um pouco<br />

chocados e as pessoas também, alguns pais. Moreno ficou até meio duvidoso, ele estava com onze anos<br />

<strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>z para onze anos, e veio falar comigo: "pai, algumas pessoas falaram que você foi careta na<br />

reunião", ... e eu contei a ele...<br />

Monique — É muito difícil você procurar conhecer as coisas, custa muito esforço, não é? Não tem<br />

outro jeito e é bom que seja assim...<br />

Caetano — Não, eu disse o seguinte: "para vocês, disciplina tem um aspecto que tem que ser maçante?<br />

Em algum momento a escola dá idéia <strong>de</strong> disciplina? Estou falando assim até por ciúme, porque não quero<br />

que meu filho ache que a escola é mais diverti<strong>da</strong> do que o parque <strong>de</strong> diversão e nem mais amorosa do<br />

que a minha casa. A escola é uma outra coisa na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong>le, não po<strong>de</strong> ser tão amorosa quanto os pais<br />

e tão diverti<strong>da</strong> quanto o Tivoli Park! Eu acho que justamente na escola é que <strong>de</strong>ve haver alguma coisa<br />

on<strong>de</strong>... em casa também se apren<strong>de</strong> isso, mas na escola sobretudo, on<strong>de</strong> se apren<strong>de</strong> mais que você tem<br />

que passar por coisas em princípio maçantes para chegar a ter capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ter prazeres superiores".<br />

Eu disse assim, "até pra tocar pan<strong>de</strong>iro, que é uma coisa muito difícil", e ficaram aqueles professores me<br />

olhando, "tocar pan<strong>de</strong>iro é uma <strong>da</strong>s coisas mais difíceis que existem? Então, você vê um cara tocando<br />

pan<strong>de</strong>iro, se divertindo na esquina, se ele está tocando bem, o que ele passou <strong>de</strong> maça<strong>da</strong>, para chegar<br />

àquela técnica mínima <strong>de</strong> tocar pan<strong>de</strong>iro, <strong>de</strong> treinamento, <strong>de</strong> autodisciplina, é incomensurável; é isso que<br />

vocês <strong>de</strong>vem ensinar na escola, mais do que a criança ser espontânea ou a escola ser diverti<strong>da</strong>". É claro<br />

que quanto mais diverti<strong>da</strong> a escola pu<strong>de</strong>r ser, melhor, quanto mais atraente, mais amorosa, melhor,<br />

quanto menos repressiva precise ser, melhor. Porém, que não se perca <strong>de</strong> vista que a escola é que <strong>de</strong>ve<br />

ensinar pessoas a aceitar o lado chato <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, enten<strong>de</strong>u? É o lugar, <strong>de</strong> todos os lugares on<strong>de</strong> uma<br />

criança vai, freqüentemente, até crescer, on<strong>de</strong> mais se <strong>de</strong>ve ensinar como enfrentar o chato, ou seja,<br />

ficar horas diante <strong>de</strong> um livro estu<strong>da</strong>ndo, obe<strong>de</strong>cer or<strong>de</strong>ns, ter tarefas a cumprir, tarefas que são difíceis,<br />

que ele <strong>de</strong>ve treinar para ser capaz <strong>de</strong> executar, isso <strong>de</strong> alguma forma, em algum momento é, ou tem<br />

que ser, ou parecer chato para a criança e a escola tem que reconhecer que é também o seu papel, não<br />

é? Então a escola tradicional que era repetitiva e repressiva, que tinha hipertrofiado, digamos assim, mas<br />

tinha isso, não é? A escola <strong>de</strong>ve ensinar a estu<strong>da</strong>r também, não apenas ensinar o que já é sabido. Eu<br />

acho que <strong>de</strong>ve, eu estou dizendo isso como opinião <strong>de</strong> um pai que viu essa questão no processo <strong>de</strong><br />

educação do filho, na minha história com Moreno nessa escola. On<strong>de</strong> aliás ele se <strong>de</strong>u até bem, apren<strong>de</strong>u<br />

até algumas coisas, mas era to<strong>da</strong> uma série <strong>de</strong> negações <strong>da</strong>s repressões e <strong>da</strong> disciplina sem uma nova<br />

formulação <strong>da</strong> idéia <strong>de</strong> disciplina, enten<strong>de</strong>u? Agora, não sei se já é a sua segun<strong>da</strong> pergunta, mas saiu um<br />

pouco <strong>da</strong> primeira. Porque a primeira era mais essa questão <strong>da</strong> área cultural e acesso à cultura universal.<br />

Mas eu acho que você tem a resposta melhor. A formulação conclusiva <strong>da</strong> sua pergunta traz a<br />

melhor resposta a ela.Você ouça <strong>de</strong> novo grava<strong>da</strong>, você vai ver: eu concordo com aquilo, essa é minha<br />

opinião. A formulação conclusiva <strong>da</strong> sua pergunta traz a melhor resposta a sua pergunta.<br />

M1U9T5<br />

3


Monique — Então, diante <strong>de</strong>ssa questão que a gente não está nomeando, e que está no final <strong>da</strong><br />

minha pergunta, a gente tem a seguinte situação: a educação infantil é uma profissão quase<br />

estritamente feminina: são raríssimos os homens que estão nesta profissão.<br />

Caetano — É ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é engraçado isso não é?<br />

Monique — Então, eu fico pensando o seguinte: as mulheres, ou esse aspecto mais feminino<br />

nelas, ele é maternal, tem como possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> uma tentativa <strong>de</strong> quase substituir a casa, e essa<br />

coisa que você falou que não queria ser substituído...<br />

Caetano — É eu não quero mesmo.<br />

Monique — ...no seu amor <strong>de</strong> pai.Tanto é assim, que as professoras <strong>de</strong> educação infantil são<br />

chama<strong>da</strong>s <strong>de</strong> tias, como se fossem não uma profissional, mas uma pessoa <strong>da</strong> família. Então você<br />

tem nessas profissionais uma coisa ao mesmo tempo <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>dicação que às vezes é espantosa,<br />

isso que Dolores nos dizia <strong>de</strong> professoras que têm um amor a essa causa e a esse trabalho<br />

com as crianças, uma <strong>de</strong>dicação, um ânimo pra coisa que é extraordinário, sobretudo se você<br />

for pensar nas condições <strong>de</strong> trabalho, que são muito ruins.<br />

Caetano — Eu fico espantado como ain<strong>da</strong> há professores no Brasil. É um gosto mesmo, porque não<br />

há estímulo não é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>?<br />

Monique — Exatamente...<br />

Caetano — Eu fico apaixonado quando uma pessoa diz que é professora, ou professor, <strong>de</strong> escola<br />

primária, é inacreditável. Porque a pessoa <strong>de</strong>veria ser muito bem assisti<strong>da</strong>. Deveria ter um bom salário,<br />

e muitas regalias na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira para estimular a educação, o ensino. Mas os professores não<br />

têm isso, ao contrário.<br />

Dolores — A Monique coloca um exemplo que eu acho vital: a gente vai ao médico, a gente<br />

confia no médico, não po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r palpite. Mas quando chega a hora <strong>da</strong>s professoras, ela não po<strong>de</strong><br />

fazer o que acredita, porque diretor, pai, mãe, todo mundo dá palpite. É aí que ela insiste na<br />

coisa <strong>de</strong> a gente po<strong>de</strong>r se profissionalizar.<br />

Caetano — É, eu acho. Olha, isso <strong>da</strong>í eu acho importante.<br />

Monique — É exatamente minha segun<strong>da</strong> pergunta. Porque você tem uma profissão feminina<br />

que tem essa <strong>de</strong>dicação, tem esse <strong>de</strong>svelo, mas tem uma precarie<strong>da</strong><strong>de</strong> imensa <strong>de</strong> conhecimento<br />

<strong>de</strong> ofício: as pessoas são, no máximo, muito boas reprodutoras <strong>de</strong> procedimentos que já vêm <strong>de</strong><br />

muitos e muitos anos, com aqueles mesmos textos: essas são as boas professoras. Mas a<br />

educação é um terreno, assim, maravilhoso <strong>de</strong> investigações. Se formos pensar como um ser<br />

humano apren<strong>de</strong>, por exemplo, só por aí você tem coisas extraordinárias; to<strong>da</strong> questão <strong>da</strong> arte,<br />

to<strong>da</strong> questão <strong>da</strong> constituição <strong>da</strong>s linguagens. Raríssimos são os professores que têm acesso a<br />

essas coisas e que se preocupam com elas, que buscam se profissionalizar nesse sentido. Quero<br />

dizer que se perguntam: "que base científica eu preciso para exercer essa profissão, o que é que<br />

eu preciso saber?". Então, eu queria saber como é que você vê essa questão, eu pergunto, por<br />

ser uma profissão feminina é que existe na educação essa dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tomar o ofício mais a sério?<br />

M1U9T5<br />

4


Caetano — Eu não sei, eu não sei.Talvez o fato <strong>de</strong> ser predominantemente feminino o contingente <strong>de</strong><br />

professores <strong>de</strong> crianças pequenas contribua, ou seja mesmo uma condição para que essa função seja<br />

exerci<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma maneira muito menos profissional, <strong>de</strong> uma maneira quase pessoal, familiar. Em vez <strong>de</strong><br />

profissional, e sem muita tendência profissionalizante.Talvez seja porque junto com várias coisas arcaicas<br />

tem aí também a própria idéia <strong>de</strong> que a mulher não é, nem <strong>de</strong>ve, nem precisa ser muito intelectualmente<br />

<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>. Eu acho que está embutido aí, talvez, uma velha visão <strong>da</strong> mulher, também, talvez esteja.<br />

Eu vejo, quando você <strong>de</strong>screve essas questões...<br />

Monique — Que visão <strong>da</strong> mulher você tem em relação a isso? Porque você é bem ambíguo,<br />

muitas vezes, assim, publicamente...<br />

Caetano — Ah! Sou, sou, intimamente mais ambíguo ain<strong>da</strong>! Intimamente mais ambíguo ain<strong>da</strong>. Eu acho<br />

que evi<strong>de</strong>ntemente tem coisas boas nesse fato <strong>de</strong> ser sobretudo mulheres que ensinam as crianças, tem<br />

coisas boas no fato <strong>de</strong> as mulheres não serem muito boas profissionais também, não terem uma tendência,<br />

ou um convite <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> para que elas sejam intelectualmente muito responsáveis. Isso leva coisas<br />

boas também no trato <strong>da</strong>s professoras <strong>de</strong> crianças na primeira fase.<br />

Monique — Que tipo <strong>de</strong> coisas?<br />

Caetano — Eu não sei, talvez esse próprio calor personalizado, maternal, confundido com a família,<br />

tenha em si mesmo algumas vantagens que se a gente...<br />

Monique — Mas você disse na escola do Moreno que você não queria...<br />

Caetano — Não queria e não quero... eu estou dizendo apenas que embora..., eu não quero, mas eu<br />

acho que <strong>de</strong>ve ter coisas boas, que é o que mantém isso. Eu acho que <strong>de</strong>ve ter, porque eu vejo que tem.<br />

Eu acho o seguinte: essas pessoas que se <strong>de</strong>svelam nessa profissão são pessoas maravilhosas e não é o<br />

fato <strong>de</strong> haver um equívoco <strong>de</strong>ssa natureza em relação a isso que diminui aos meus olhos a beleza do<br />

perfil psicológico <strong>da</strong> professora <strong>da</strong> criança pequena, enten<strong>de</strong>u? Eu digo assim, a idéia geral que eu faço<br />

<strong>da</strong> moça que ensina as crianças na primeira fase é uma idéia benigna, em primeiro lugar, uma idéia boa.<br />

Essas características pouco profissionais <strong>de</strong>vem conter alguma coisa <strong>de</strong> muito boa, eu acho, porque tudo<br />

isso, a mera existência <strong>de</strong> professoras já é uma coisa muito boa, enten<strong>de</strong>u, quando não há estímulo<br />

profissional para que haja professoras. Então eu queria apenas estar dizendo uma coisa carinhosa que<br />

elas merecem. O que não quer dizer que eu ache que as coisas <strong>de</strong>vam permanecer assim, ao contrário:<br />

eu acho que quanto maior <strong>de</strong>senvolvimento intelectual e consciência do que elas estão fazendo por<br />

essas pessoas, sobretudo mulheres, pu<strong>de</strong>rem ganhar, melhor será para elas e para a profissão e melhor<br />

será para o ensino no Brasil. Até mesmo para aquela visão mais geral <strong>de</strong> que a gente estava falando<br />

sobre a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratização do ensino público no Brasil...<br />

Monique — Exatamente.<br />

Caetano — Então, a minha posição é niti<strong>da</strong>mente favorável a uma superação <strong>de</strong> uma fase amadorística,<br />

embrionária do ensino para crianças pequenas. Mas, quando eu disse que <strong>de</strong>ve haver coisas boas é porque<br />

eu suponho que há alguma coisa muito <strong>de</strong>lica<strong>da</strong>, muito profun<strong>da</strong> nessa questão <strong>da</strong> ambição mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong><br />

equiparar o homem à mulher nas suas potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong>s como sujeitos sociais, enten<strong>de</strong>u? Eu acho que esse é<br />

um assunto que me interessou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a minha primeira infância, uma coisa que me interessa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que eu<br />

era criança, que os assuntos que são assuntos do feminismo são assuntos meus...<br />

M1U9T5<br />

5


Monique — A terceira pergunta é a seguinte: você, como pai do Zeca, se você pu<strong>de</strong>sse fazer<br />

uma escola dos seus sonhos, o que você gostaria que a escola oferecesse?<br />

Caetano — Olha, uma escola dos meus sonhos não teria dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser posta em funcionamento,<br />

é muito simples: uma escola que ensinasse, fosse limpa, organiza<strong>da</strong>... Não achei basicamente muito<br />

difícil educar o meu primeiro filho em escolas, aquela questão que eu enfrentei, eu a <strong>de</strong>screvi, mais não<br />

cheguei a ter gran<strong>de</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s, nem quando ele foi para uma escola muito careta, ele chegou a ter<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s, serviu para ele <strong>de</strong> complementação, <strong>de</strong> experiência, <strong>de</strong> aprendizado também <strong>de</strong> como as<br />

coisas são. Então, não posso dizer que eu particularmente tenha tido dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s com escolas, e não<br />

penso que venha a ter com o Zeca, necessariamente, porque eu acho, se não houver problemas sérios,<br />

as escolas são basicamente fáceis em me satisfazer. É ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é fácil para uma escola me satisfazer como<br />

pai, porque para mim basta que haja um nível razoável <strong>de</strong> informação, que os professores se comportem<br />

bem, ensinem. Eu não tenho uma idéia muito criativa <strong>de</strong> como uma escola <strong>de</strong>ve ser, nem preciso ter como<br />

pai. O que me preocupa mais é a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> muitas outras crianças, que nasceram nessa mesma<br />

altura que o Zeca nasceu, po<strong>de</strong>rem ter acesso a um ensino razoável, a algum ensino, não é? O maior<br />

problema <strong>de</strong> Zeca para mim não está nem com ele, nem na escola que ele po<strong>de</strong>rá encontrar, eu acho<br />

que está mais no número imenso <strong>de</strong> companheiros <strong>de</strong> geração <strong>de</strong>le que não chegarão a nenhuma<br />

escola, ou chegarão apenas a freqüentar uma sub-escola por um ano e meio ou dois, e <strong>de</strong>pois<br />

terem que sair, ou terminarem saindo. Eu acho que esse é que vai ser o maior problema para Zeca,<br />

porque a escola em si, para uma pessoa com os meus meios, no Brasil, eu acho que dificilmente chega<br />

propriamente a ser um problema: eu não senti isso com meu primeiro filho e não vejo que eu venha a<br />

sentir com o segundo. Eu ouço muito dizer entre pessoas <strong>da</strong> minha área, quer dizer, até entre pessoas<br />

<strong>da</strong> classe artística, mas sobretudo entre pessoas <strong>de</strong> alto po<strong>de</strong>r aquisitivo no Brasil, ouço dizer, e tenho<br />

visto eles se <strong>de</strong>cidirem por isso, que preferem botar os filhos para estu<strong>da</strong>r em escolas estrangeiras. Então<br />

uns estu<strong>da</strong>m em escolas alemãs, outros na americana, outros na escola inglesa. Eu não tenho <strong>de</strong>sejo<br />

nenhum <strong>de</strong> fazer isso, eu até reajo um pouco contra isso. Primeiro porque não sinto problema — como<br />

se houvesse uma <strong>de</strong>ficiência nas escolas em que meu filho mais velho estudou — , e <strong>de</strong>pois porque eu<br />

tenho um pouco <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança, e até <strong>de</strong> repulsa mesmo por essa atitu<strong>de</strong>. É mais um agravante <strong>da</strong><br />

dispari<strong>da</strong><strong>de</strong> social brasileira e econômica, esses atos <strong>da</strong>s pessoas <strong>de</strong> alto po<strong>de</strong>r aquisitivo no Brasil,<br />

praticamente só usarem o Brasil para sugar o dinheiro <strong>de</strong>le, para sugar posses, para po<strong>de</strong>r gastar em<br />

outros países e ain<strong>da</strong> por cima botar os filhos em escolas <strong>de</strong> outros países. Então, parece que o Brasil<br />

como país não existe, gra<strong>da</strong>tivamente vai se tornando apenas um lugar que algumas pessoas, muito<br />

poucas, sugam <strong>de</strong> on<strong>de</strong> as pessoas retiram tudo para gastar em outros lugares. Então eu tenho esse<br />

problema; mas a escola, é claro que eu quero, por exemplo, que o Zeca tenha uma escola não muito<br />

repressiva, com uma capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> permitir que ele <strong>de</strong>senvolva a individuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>le, que expresse a<br />

personali<strong>da</strong><strong>de</strong> individual <strong>de</strong>le, mas não acho que isso seja muito difícil <strong>de</strong> encontrar hoje em dia. Eu<br />

gostei <strong>da</strong>s escolas que eu freqüentei. Sei que houve uma que<strong>da</strong> muito gran<strong>de</strong> na questão <strong>da</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ensino e <strong>de</strong> manutenção <strong>de</strong> escolas públicas no Brasil — o que eu acho uma tragédia — , e porque<br />

eu estu<strong>de</strong>i em escolas públicas, se pu<strong>de</strong>sse haver uma reversão <strong>de</strong>sse quadro eu adoraria; se Zeca já<br />

pu<strong>de</strong>sse se beneficiar disso, para mim isso sim seria um sonho.<br />

Monique — Eu tenho até um sonho...<br />

M1U9T5<br />

6


Caetano — Mas eu espero até que você tenha, porque é <strong>da</strong> sua profissão. Eu estou falando com você<br />

porque eu adoro esse assunto e para estimular seu próprio pensamento. É por isso que eu estou falando,<br />

para você também, eu acho que vale a pena. Mas eu acho que eu próprio não posso contribuir com<br />

idéia nenhuma para essas coisas. Eu acho que talvez a nossa conversa sirva a você, mas eu não posso<br />

trazer idéias novas a uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> à qual eu não estou ligado.<br />

Monique — Assim como eu não po<strong>de</strong>ria trazer idéias novas para uma canção sua...<br />

Caetano — É, talvez. Mas você sabe que eu queria ser professor, eu queria ser professor. Eu já lhe<br />

disse isso, não é? Se eu não fosse artista, eu ia ser professor. Está bom?<br />

Monique — Está ótimo!<br />

M1U9T5<br />

7


Um apólogo *<br />

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo <strong>de</strong> linha:<br />

Machado <strong>de</strong> Assis<br />

— Por que está você com esse ar, to<strong>da</strong> cheia <strong>de</strong> si, to<strong>da</strong> enrola<strong>da</strong>, para fingir que vale alguma<br />

coisa neste mundo?<br />

— Deixe-me, senhora.<br />

— Que a <strong>de</strong>ixe? Que a <strong>de</strong>ixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável?<br />

Repito que sim, e falarei sempre que me <strong>de</strong>r na cabeça.<br />

— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa<br />

o meu ar? Ca<strong>da</strong> qual tem o ar que Deus lhe <strong>de</strong>u. Importe-se com a sua vi<strong>da</strong> e <strong>de</strong>ixe a dos outros.<br />

— Mas você é orgulhosa.<br />

— Decerto que sou.<br />

— Mas por quê?<br />

— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites <strong>de</strong> nossa ama, quem é que os cose, senão eu?<br />

— Você? Esta agora é melhor.Você é que cose?<br />

— Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?<br />

— Você fura o pano, na<strong>da</strong> mais; eu é que coso, prendo um pe<strong>da</strong>ço ao outro, dou feição aos babados…<br />

— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem<br />

atrás obe<strong>de</strong>cendo ao que eu faço e mando…<br />

— Também os batedores vão adiante do Imperador.<br />

— Você, Imperador?<br />

M1U9T6<br />

— Não digo isso. Mas a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só<br />

mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto…<br />

* Extraido <strong>de</strong> contos: Uma antologia.Vol. 1 - Machado <strong>de</strong> Assis. Seleção, introdução e notas <strong>de</strong> Jonh Gledson, São Paulo, Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1998.<br />

Apólogo é um tipo <strong>de</strong> narrativa cujas personagens são, geralmente, animais ou coisas inanima<strong>da</strong>s, e que encerra uma mensagem <strong>de</strong> fundo moral.<br />

M1U9T6<br />

1


Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa <strong>da</strong> baronesa. Não sei se disse que isto se<br />

passava em casa <strong>de</strong> uma baronesa, que tinha a modista ao pé <strong>de</strong> si, para não an<strong>da</strong>r atrás <strong>de</strong>la.<br />

Chegou a costureira, pegou do pano, pegou <strong>da</strong> agulha, pegou <strong>da</strong> linha, enfiou a linha na<br />

agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam an<strong>da</strong>ndo orgulhosas, pelo pano adiante, que era<br />

a melhor <strong>da</strong>s se<strong>da</strong>s, entre os <strong>de</strong>dos <strong>da</strong> costureira, ágeis como os galgos <strong>de</strong> Diana** — para<br />

<strong>da</strong>r a isto uma cor poética. E dizia a agulha:<br />

— Então, senhora linha, ain<strong>da</strong> teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira<br />

só se importa comigo; eu é que vou entre os <strong>de</strong>dos <strong>de</strong>la, unidinha a eles, furando abaixo e acima…<br />

A linha não respondia na<strong>da</strong>; ia an<strong>da</strong>ndo. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela,<br />

silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha,<br />

vendo que ela não lhe <strong>da</strong>va resposta, calou-se também e foi an<strong>da</strong>ndo. E era tudo silêncio na saleta<br />

<strong>de</strong> costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic <strong>da</strong> agulha no pano. Caindo o sol, a costureira<br />

dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ain<strong>da</strong> nesse e no outro, até que no quarto acabou<br />

a obra, e ficou esperando o baile.<br />

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a<br />

agulha espeta<strong>da</strong> no corpinho, para <strong>da</strong>r algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido<br />

<strong>da</strong> bela <strong>da</strong>ma, e puxava a um lado ou outro, arregaçava <strong>da</strong>qui ou <strong>da</strong>li, alisando, abotoando,<br />

acolchetando, a linha, para mofar <strong>da</strong> agulha, perguntou-lhe:<br />

— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo <strong>da</strong> baronesa, fazendo parte do vestido<br />

e <strong>da</strong> elegância? Quem é que vai <strong>da</strong>nçar com ministros e diplomatas, enquanto você volta, para a<br />

caixinha <strong>da</strong> costureira, antes <strong>de</strong> ir para o balaio <strong>da</strong>s mucamas? Vamos, diga lá.<br />

Parece que a agulha não disse na<strong>da</strong>; mas um alfinete, <strong>de</strong> cabeça gran<strong>de</strong> e não menor experiência,<br />

murmurou à pobre agulha:<br />

— An<strong>da</strong>, apren<strong>de</strong>, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, enquanto<br />

aí ficas na caixinha <strong>de</strong> costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. On<strong>de</strong> me<br />

espetam, fico.<br />

Contei esta história a um professor <strong>de</strong> melancolia, que me disse, abanando a cabeça:<br />

— Também eu tenho servido <strong>de</strong> agulha a muita linha ordinária!<br />

**<br />

Diana era a <strong>de</strong>usa <strong>da</strong> caça na mitologia romana e an<strong>da</strong>va sempre acompanha<strong>da</strong> <strong>de</strong> seus cães fiéis, ágeis e velozes.<br />

M1U9T6<br />

2


Poema em linha reta *<br />

Nunca conheci quem tivesse levado porra<strong>da</strong>.<br />

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.<br />

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,<br />

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,<br />

In<strong>de</strong>sculpavelmente sujo,<br />

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,<br />

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,<br />

Álvaro <strong>de</strong> Campos<br />

(heterônimo <strong>de</strong> Fernando Pessoa)<br />

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes <strong>da</strong>s etiquetas,<br />

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,<br />

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,<br />

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ain<strong>da</strong>;<br />

Eu, que tenho sido cômico às cria<strong>da</strong>s do hotel,<br />

Eu, que tenho sentido o piscar <strong>de</strong> olhos dos moços <strong>de</strong> fretes,<br />

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedindo emprestado sem pagar,<br />

Eu que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado<br />

Para fora <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do soco;<br />

Eu, que tenho sofrido a angústia <strong>da</strong>s pequenas coisas ridículas,<br />

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.<br />

To<strong>da</strong> gente que eu conheço e que fala comigo<br />

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,<br />

Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vi<strong>da</strong>...<br />

* Extraido <strong>de</strong> Poemas escolhidos, seleção e organização <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Barbosa. edit. Klick/Editora Klick, 2000, p.134 a 135.<br />

M1U9T7<br />

M1U9T7<br />

1


Quem me <strong>de</strong>ra ouvir <strong>de</strong> alguém a voz humana<br />

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;<br />

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia<br />

Não, são todos o I<strong>de</strong>al, se os oiço e me falam.<br />

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?<br />

Ó príncipes, meus irmãos,<br />

Arre, estou farto <strong>de</strong> semi<strong>de</strong>uses!<br />

On<strong>de</strong> é que há gente no mundo?<br />

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?<br />

Po<strong>de</strong>rão as mulheres não os terem amado,<br />

Po<strong>de</strong>m ter sido traídos — mas ridículos nunca<br />

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,<br />

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?<br />

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,<br />

Vil no sentido mesquinho e infame <strong>da</strong> vileza.<br />

M1U9T7<br />

2


Baleia *<br />

Graciliano Ramos<br />

A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as<br />

costelas avultavam num fundo róseo, on<strong>de</strong> manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas <strong>de</strong><br />

moscas. As chagas <strong>da</strong> boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comi<strong>da</strong> e a bebi<strong>da</strong>.<br />

Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio <strong>de</strong> hidrofobia e amarrara-lhe no<br />

pescoço um rosário <strong>de</strong> sabugos <strong>de</strong> milho queimados. Mas Baleia, sempre <strong>de</strong> mal a pior, roçava-se<br />

nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as<br />

orelhas murchas, agitando a cau<strong>da</strong> pela<strong>da</strong> e curta, grossa na base, cheia <strong>de</strong> roscas, semelhante a<br />

uma cau<strong>da</strong> <strong>de</strong> cascavel.<br />

Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingar<strong>da</strong> <strong>de</strong> pe<strong>de</strong>rneira, lixou-a, limpou-a com o<br />

saca-trapo e fez tenção <strong>de</strong> carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.<br />

Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que adivinhavam <strong>de</strong>sgraça<br />

e não se cansavam <strong>de</strong> repetir a mesma pergunta:<br />

— Vão bulir com a Baleia?<br />

Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos <strong>de</strong> Fabiano afligiam-nos, <strong>da</strong>vam-lhes a<br />

suspeita <strong>de</strong> que Baleia corria perigo.<br />

Ela era como uma pessoa <strong>da</strong> família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferenciavam,<br />

rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçando cobrir o chiqueiro <strong>da</strong>s cabras.<br />

Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas Sinhá Vitória levou-os para a cama <strong>de</strong> varas,<br />

<strong>de</strong>itou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: pren<strong>de</strong>u a cabeça do mais velho entre as<br />

coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-se<br />

e tratou <strong>de</strong> subjugá-los, resmungando com energia.<br />

Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> Fabiano era<br />

necessária e justa. Pobre <strong>da</strong> Baleia.<br />

Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se <strong>de</strong>rramava no cano <strong>da</strong> arma, as panca<strong>da</strong>s sur<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />

vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha <strong>da</strong> Baleia.<br />

Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como Sinhá Vitória tinha relaxado os músculos,<br />

<strong>de</strong>ixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:<br />

— Capeta excomungado.<br />

* Extraido <strong>de</strong>: Os cem melhores contos brasileiros do século, organizado por Ítalo Marconi, São Paulo, Editora Objetiva, 2000.<br />

M1U9T8<br />

M1U9T8<br />

1


Na luta que travou para segurar <strong>de</strong> novo o filho rebel<strong>de</strong>, zangou-se <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Safadinho.<br />

Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia <strong>de</strong> ramagens.<br />

Pouco a pouco a cólera diminuiu, e Sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>la<br />

achaca<strong>da</strong>, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência <strong>de</strong>ixar<br />

cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa <strong>de</strong>mais, achava difícil<br />

Baleia endoi<strong>de</strong>cer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se<br />

realmente a execução era indispensável.<br />

Nesse momento Fabiano an<strong>da</strong>va no copiar, batendo castanholas com os <strong>de</strong>dos. Sinhá Vitória<br />

encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isso era impossível, levantou<br />

os braços e, sem largar o filho, conseguiu ocultar um pe<strong>da</strong>ço <strong>da</strong> cabeça.<br />

Fabiano percorreu o alpendre, olhando a baraúna e as porteiras, açulando um cão invisível<br />

contra animais invisíveis:<br />

— Ecô! Ecô!<br />

Em segui<strong>da</strong> entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa <strong>da</strong> cozinha. Examinou<br />

o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé <strong>de</strong> turco, levou a espingar<strong>da</strong> ao<br />

rosto. A cachorra espiou o dono <strong>de</strong>sconfia<strong>da</strong>, enroscou-se no tronco e foi-se <strong>de</strong>sviando, até<br />

ficar no outro lado <strong>da</strong> árvore, agacha<strong>da</strong> e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido<br />

com essa manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo <strong>da</strong> cerca do curral, <strong>de</strong>teve-se no<br />

mourão do canto e levou <strong>de</strong> novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse <strong>de</strong> frente e não<br />

apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a<br />

pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna <strong>de</strong><br />

Baleia, que se pôs a latir <strong>de</strong>sespera<strong>da</strong>mente.<br />

Ouvindo o tiro e os latidos, Sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na cama,<br />

chorando alto. Fabiano recolheu-se.<br />

E Baleia fugiu precipita<strong>da</strong>, ro<strong>de</strong>ou o barreiro, entrou no quintalzinho <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong>, passou rente<br />

aos craveiros e às panelas <strong>de</strong> losna, meteu-se por um buraco <strong>da</strong> cerca e ganhou o pátio, correndo<br />

em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro <strong>da</strong>s<br />

cabras. Demorou-se aí um instante, meio <strong>de</strong>sorienta<strong>da</strong>, saiu <strong>de</strong>pois sem <strong>de</strong>stino, aos pulos.<br />

Defronte do carro <strong>de</strong> bois faltou-lhe a perna traseira. E, per<strong>de</strong>ndo muito sangue, andou como<br />

gente gran<strong>de</strong>, em dois pés, arrastando com dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> a parte posterior do corpo. Quis recuar<br />

e escon<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong>baixo do carro, mas teve medo <strong>da</strong> ro<strong>da</strong>.<br />

Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz <strong>de</strong> um <strong>de</strong>les havia uma barroca macia e fun<strong>da</strong>. Gostava<br />

<strong>de</strong> espojar-se ali: cobria-se <strong>de</strong> poeira, evitava as moscas e mosquitos, e quando se levantava, tinha<br />

folhas secas e gravetos colados às feri<strong>da</strong>s, era um bicho diferente dos outros.<br />

Caiu antes <strong>de</strong> alcançar essa cova arre<strong>da</strong><strong>da</strong>.Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as<br />

pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou <strong>de</strong>itado <strong>de</strong> ban<strong>da</strong>. Nesta posição torci<strong>da</strong>, mexeu-se<br />

a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal<br />

esmoreceu e aquietou-se junto às pedras on<strong>de</strong> os meninos jogavam cobras mortas.<br />

M1U9T8<br />

2


Uma se<strong>de</strong> horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não distinguiu: um nevoeiro<br />

impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e <strong>de</strong>sejou mor<strong>de</strong>r Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho,<br />

e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis.<br />

Como o sol a encan<strong>de</strong>asse, conseguiu adiantar-se umas polega<strong>da</strong>s e escon<strong>de</strong>u-se numa nesga <strong>de</strong><br />

sombra que la<strong>de</strong>ava a pedra.<br />

Olhou-se <strong>de</strong> novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se.<br />

Sentiu o cheiro bom dos preás que <strong>de</strong>sciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele<br />

partículas <strong>de</strong> outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o<br />

focinho, aspirou o ar lentamente, com vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> subir a la<strong>de</strong>ira e perseguir os preás, que<br />

pulavam e corriam em liber<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não<br />

experimentou nenhum prazer. O olfato ca<strong>da</strong> vez mais se embotava: certamente os preás tinham fugido.<br />

Esqueceu-os e <strong>de</strong> novo lhe veio o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mor<strong>de</strong>r Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos<br />

meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer,<br />

convenci<strong>da</strong> <strong>de</strong> que ele encerrava surpresas <strong>de</strong>sagradáveis. Fez um esforço para <strong>de</strong>sviar-se <strong>da</strong>quilo e<br />

encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesa<strong>da</strong>s e julgou que o rabo estava encolhido. Não po<strong>de</strong>ria<br />

mor<strong>de</strong>r Fabiano: tinha nascido perto <strong>de</strong>le, numa camarinha, sob a cama <strong>de</strong> varas, e consumira a<br />

existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.<br />

O objeto <strong>de</strong>sconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os <strong>de</strong>ntes, espiou<br />

o inimigo por baixo <strong>da</strong>s pestanas caí<strong>da</strong>s. Ficou assim algum tempo, <strong>de</strong>pois sossegou. Fabiano e a<br />

coisa perigosa tinham-se sumido.<br />

Abriu os olhos a custo. Agora havia uma gran<strong>de</strong> escuridão, com certeza o sol <strong>de</strong>saparecera.<br />

Os chocalhos <strong>da</strong>s cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela<br />

vizinhança.<br />

Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos <strong>de</strong> noite? A obrigação <strong>de</strong>la era levantar-se,<br />

conduzilos ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a<br />

ausência <strong>de</strong>les.<br />

Não se lembrava <strong>de</strong> Fabiano.Tinha havido um <strong>de</strong>sastre, mas Baleia não atribuía a esse <strong>de</strong>sastre a<br />

impotência em que se achava nem percebia que estava livre <strong>de</strong> responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Uma angústia<br />

apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros <strong>de</strong> suçuarana<br />

<strong>de</strong>viam an<strong>da</strong>r pelas ribanceiras, ron<strong>da</strong>r as moitas afasta<strong>da</strong>s. Felizmente os meninos dormiam na<br />

esteira, por baixo do caritó on<strong>de</strong> Sinhá Vitória guar<strong>da</strong>va o cachimbo.<br />

Uma noite <strong>de</strong> inverno, gela<strong>da</strong> e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal<br />

<strong>de</strong> vi<strong>da</strong> nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama <strong>de</strong> varas.<br />

Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações<br />

familiares revelavam-lhe a presença <strong>de</strong>les. Agora parecia que a fazen<strong>da</strong> se tinha <strong>de</strong>spovoado.<br />

M1U9T8<br />

3


Baleia respirava <strong>de</strong>pressa, a boca aberta, os queixos <strong>de</strong>sgovernados, a língua pen<strong>de</strong>nte e insensível.<br />

Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a panca<strong>da</strong> que recebera no quarto, e a viagem<br />

difícil do barreiro ao fim do pátio <strong>de</strong>svaneciam-se no seu espírito.<br />

Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam <strong>de</strong> trempe. Antes <strong>de</strong> se <strong>de</strong>itar<br />

Sinhá Vitória retirava <strong>da</strong>li os carvões e as cinzas, varria com um molho <strong>de</strong> vassourinha o chão<br />

queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro <strong>de</strong>scansar. O calor afugentava as pulgas, a<br />

terra se amaciava. E, findos cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro <strong>de</strong> preás<br />

invadia a cozinha.<br />

A tremura subia, <strong>de</strong>ixava a barriga e chegava ao peito <strong>da</strong> Baleia. Do peito para trás era tudo<br />

insensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos <strong>de</strong> man<strong>da</strong>caru<br />

penetravam na carne meio comi<strong>da</strong> pela doença.<br />

Baleia encostava a cabecinha fatiga<strong>da</strong> na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinhá Vitória<br />

tinha <strong>de</strong>ixado o fogo apagar-se muito cedo.<br />

Baleia queria dormir. Acor<strong>da</strong>ria feliz, num mundo cheio <strong>de</strong> preás. E lamberia as mãos <strong>de</strong> Fabiano,<br />

um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme,<br />

num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio <strong>de</strong> preás, gordos, enormes.<br />

M1U9T8<br />

4


A menina do chapéu ver<strong>de</strong> *<br />

Transcrição dos textos<br />

Era um dia uma menina que só vivia <strong>de</strong> ver<strong>de</strong>. Ela adorava o ver<strong>de</strong>, a cor ver<strong>de</strong>. Ela foi para uma<br />

praça que tinha um bocado <strong>de</strong> árvores e arrancou umas folhas <strong>da</strong>s árvores lin<strong>da</strong>s. E uma folha<br />

"tava" machuca<strong>da</strong> e ela rasgou. A folhinha chorou. A menina do chapéu ver<strong>de</strong> teve pena <strong>da</strong> coita<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> plantinha. Então veio uma ambulância <strong>de</strong> folhas, levou a folhinha para o hospital e curou-la.<br />

E a menina foi embora, viu a cor ver<strong>de</strong> mas não arrancou. E a menina ficou muito feliz que só<br />

gostava <strong>de</strong> ver<strong>de</strong>. A menina do chapéu ver<strong>de</strong>.<br />

Os gatinhos<br />

Para discutir e respon<strong>de</strong>r<br />

O gato é fofinho.<br />

O gato é macio.<br />

O gato é gordinho.<br />

O gato é faminto.<br />

O gato é femia.<br />

O gato é macho.<br />

O gato é esta na casa <strong>de</strong>le.<br />

O gato é um amimal.<br />

• Qual <strong>de</strong>les o grupo consi<strong>de</strong>ra que tem o pior e o melhor "enredo"? Por quê?<br />

Fabiana<br />

Edimar<br />

• O que os textos <strong>de</strong>ssas crianças revelam sobre o que sabem a respeito <strong>da</strong> linguagem escrita?<br />

• O que se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>duzir que seus professores (ou outros adultos) liam para elas na época em<br />

que produziram esses textos?<br />

* Extraído <strong>de</strong>: Lucia Lins Browne Rego, Literatura infantil: uma nova perspectiva <strong>da</strong> alfabetização na pré-escola,São Paulo, FTD, p. 42.<br />

M1U9T9<br />

M1U9T9<br />

1


A menina do chapéu ver<strong>de</strong><br />

(escrita feita pela criança)<br />

M1U9T10<br />

Fabiana, 6 anos e 1 mês<br />

M1U9T10<br />

1


Os gatinhos<br />

(escrita feita pela criança)<br />

M1U9T11<br />

Edimar, 7 anos<br />

M1U9T11<br />

1


Proposta didática <strong>de</strong> alfabetização *<br />

Com silabário<br />

A concepção <strong>de</strong> ensino e aprendizagem<br />

pressupõe que a alfabetização é um processo<br />

cumulativo: trata-se <strong>de</strong> agregar conhecimentos,<br />

passando pouco a pouco do simples (letras e<br />

sílabas) ao complexo (palavras e texto).<br />

O ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> <strong>da</strong>s situações <strong>de</strong> ensino<br />

é o que se acredita que seja fácil para o aluno<br />

apren<strong>de</strong>r primeiro, sendo que há uma falsa<br />

suposição sobre o que é fácil e difícil <strong>de</strong><br />

apren<strong>de</strong>r.<br />

Utiliza-se escritos artificiais para ensinar a<br />

ler e escrever.<br />

As ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura e escrita apóiam-se<br />

na memorização <strong>de</strong> sílabas estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s e palavras<br />

forma<strong>da</strong>s por elas: são ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

exercitação <strong>da</strong> memória que, muitas vezes,<br />

os alunos realizam sem compreen<strong>de</strong>r o<br />

sentido do que fazem. O que se coloca<br />

como <strong>de</strong>safio aos alunos, em geral, tem a ver<br />

exclusivamente com a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> reter<br />

informação na memória.<br />

Com textos<br />

M1U9T12<br />

A concepção <strong>de</strong> ensino e aprendizagem<br />

pressupõe que a alfabetização é um processo<br />

<strong>de</strong> construção conceitual, apoiado na reflexão<br />

sobre as características e o funcionamento<br />

<strong>da</strong> escrita: trata-se <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r pouco<br />

a pouco as regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s que caracterizam<br />

a escrita.<br />

O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> ensino apóia-se na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

sujeito <strong>de</strong> refletir, inferir, estabelecer relações,<br />

processar e compreen<strong>de</strong>r informações,<br />

transformando-as em conhecimento próprio<br />

— ou seja, construir conhecimento.<br />

Utiliza-se textos reais. O texto é o "lugar" <strong>de</strong><br />

apren<strong>de</strong>r a ler e escrever e a reflexão sobre<br />

as regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> escrita é o procedimento<br />

básico requerido dos alunos.<br />

As ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s apóiam-se no uso <strong>de</strong> procedimentos<br />

que permitem a leitura e a escrita <strong>de</strong><br />

textos, mesmo quando não se sabe ain<strong>da</strong> ler<br />

e escrever: são ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>safiadoras, isto é,<br />

que se configuram como situações-problema,<br />

em que os alunos precisam pôr em jogo o<br />

que sabem, para apren<strong>de</strong>r o que ain<strong>da</strong> não<br />

sabem.<br />

* Este quadro foi organizado para servir <strong>de</strong> apoio a discussão proposta no <strong>Módulo</strong> 1 do Curso: não se configura num texto explicativo em si.<br />

M1U9T12<br />

1


M1U9T12<br />

2<br />

Com silabário<br />

Ler é apren<strong>de</strong>r a i<strong>de</strong>ntificar letras, sílabas,<br />

<strong>de</strong>pois palavras e frases para, então, chegar a<br />

<strong>de</strong>cifrar textos escolares curtos e simples.<br />

É possível ler somente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> estar<br />

alfabetizado. .<br />

Depois <strong>de</strong> dominar a "técnica" <strong>de</strong> ler e<br />

escrever, o aluno é capaz <strong>de</strong> ler e escrever<br />

quaisquer tipos <strong>de</strong> texto. Por isso, durante<br />

o processo <strong>de</strong> alfabetização, nem sempre o<br />

aluno tem contato com textos reais e com<br />

a linguagem que se usa, <strong>de</strong> fato, para ler e<br />

escrever.<br />

O planejamento não precisa ser flexível:<br />

po<strong>de</strong> ser o mesmo todos os anos e em<br />

qualquer classe.<br />

O erro <strong>de</strong>ve ser cui<strong>da</strong>dosamente evitado,<br />

para não ser fixado: portanto, a correção é<br />

sempre necessária.<br />

CONSIDERA-SE QUE:<br />

Com textos<br />

Ler é atribuir significado, e que isso se<br />

dá pelo uso <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> leitura (<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>codificação, seleção, antecipação, inferência<br />

e verificação), a partir do conhecimento<br />

prévio e dos índices fornecidos pelo texto.<br />

É interagindo com textos reais, mesmo que<br />

não se saiba ler convencionalmente, que se<br />

apren<strong>de</strong> a ler diferentes tipos <strong>de</strong> texto e sua<br />

respectiva linguagem. A correspondência<br />

letra-som é um conteúdo fun<strong>da</strong>mental, mas<br />

apenas um dos inúmeros conteúdos cuja<br />

aprendizagem é necessária para que se possa<br />

dominar progressivamente a linguagem escrita.<br />

O planejamento <strong>de</strong>ve ser feito em função<br />

<strong>de</strong> uma classe real — portanto, não é<br />

totalmente reutilizável <strong>de</strong> um ano para<br />

outro, <strong>de</strong> uma classe para outra.<br />

A classe <strong>de</strong>ve ser heterogênea, pois a<br />

interação entre alunos com diferentes níveis<br />

<strong>de</strong> conhecimento favorece a aprendizagem<br />

e a circulação <strong>de</strong> informações.


O papel do professor *<br />

Frank Smith<br />

Tentei mostrar que as crianças "sabem", <strong>de</strong> maneira implícita, como resolver os problemas <strong>de</strong><br />

aprendizagem <strong>da</strong> leitura. E, na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>ve-se confiar na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> que elas têm <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r<br />

porque os aspectos mais importantes <strong>da</strong> leitura não po<strong>de</strong>m ser ensinados. Qual é, então, o<br />

papel do professor? Qual é a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> "ensinar leitura" na escola?<br />

O que acontece na sala <strong>de</strong> aula é fun<strong>da</strong>mental para muitas crianças porque po<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar se<br />

elas se tornarão leitores ou não. Colocando uma criança no clube <strong>da</strong> alfabetização, um professor<br />

po<strong>de</strong> tornar-se uma <strong>da</strong>s pessoas mais importantes na vi<strong>da</strong> do leitor iniciante.As escolas não po<strong>de</strong>m<br />

ser vistas como totalmente responsáveis pelo grau <strong>de</strong> sucesso alcançado pelas crianças ao se<br />

alfabetizarem. Entretanto, o papel a ser <strong>de</strong>sempenhado pelos professores é fun<strong>da</strong>mental.<br />

Aju<strong>da</strong>ndo, não atrapalhando<br />

Os professores <strong>de</strong>vem, simplesmente, facilitar e promover a admissão <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> criança no clube<br />

<strong>da</strong> alfabetização. As crianças que já chegam à escola membros <strong>de</strong>sse clube, que já se consi<strong>de</strong>ram<br />

o tipo <strong>de</strong> pessoa que lê e escreve, <strong>de</strong>vem encontrar muitas oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s na escola para se<br />

envolverem em to<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s proporciona<strong>da</strong>s aos membros do clube. As crianças que não<br />

se tornaram membros antes <strong>de</strong> ingressar na escola <strong>de</strong>vem encontrar na sala <strong>de</strong> aula a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ser logo conduzi<strong>da</strong>s a ele. A sala <strong>de</strong> aula <strong>de</strong>ve ser o lugar on<strong>de</strong> ocorrem as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

leitura (e escrita) significativas e úteis, on<strong>de</strong> é possível a participação sem coerção ou avaliação<br />

e on<strong>de</strong> sempre haja disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> colaboração. Nenhuma criança <strong>de</strong>ve ser excluí<strong>da</strong>.<br />

As crianças precisam encontrar sentido na leitura; portanto, os professores <strong>de</strong>vem garantir que<br />

a leitura — e a sua aprendizagem — faça sentido. As crianças apren<strong>de</strong>m a ler através <strong>da</strong> leitura;<br />

os professores <strong>de</strong>vem ajudá-las a ler tornando a leitura fácil, sem dificultá-la. Essas observações<br />

po<strong>de</strong>m parecer óbvias, se não consi<strong>de</strong>rarmos que, na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, muito do que é feito na escola<br />

— e também por adultos bem intencionados, fora <strong>da</strong> escola — po<strong>de</strong> ter a conseqüência <strong>de</strong> tornar<br />

a aprendizagem <strong>da</strong> leitura menos compreensível e mais difícil. Como o interesse principal do<br />

professor <strong>de</strong>ve ser sempre o <strong>de</strong> evitar atrapalhar o processo <strong>de</strong> aprendizagem <strong>da</strong>s crianças,<br />

começarei minhas observações sobre o papel dos professores com uma lista <strong>de</strong> negativas.<br />

Denominei os itens <strong>da</strong> lista <strong>de</strong> "Maneiras fáceis <strong>de</strong> tornar difícil a aprendizagem <strong>da</strong> leitura",<br />

porque com muita freqüência elas são dita<strong>da</strong>s aos professores como regras que supostamente<br />

aju<strong>da</strong>m as crianças a ler.<br />

*<br />

In Leitura significativa, Porto Alegre,Artes Médicas, 1999.<br />

M1U9T13<br />

M1U9T13<br />

1


Impedindo a aprendizagem <strong>da</strong> leitura<br />

Nove regras para a instrução <strong>de</strong> leitura que professores e pais não <strong>de</strong>viam seguir são:<br />

1. Esperar um domínio precoce <strong>da</strong>s regras <strong>de</strong> leitura. Não existem regras <strong>de</strong> leitura, pelo<br />

menos nenhuma que possa ser especifica<strong>da</strong> com suficiente precisão para fazer <strong>de</strong> uma criança<br />

um leitor. O conhecimento implícito <strong>da</strong> leitura adquirido pelos leitores experientes foi <strong>de</strong>senvolvido<br />

através <strong>da</strong> leitura, não através <strong>da</strong> prática <strong>de</strong> exercícios. Somente a leitura proporciona a prática<br />

necessária em:<br />

• I<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> palavras à primeira vista (não <strong>de</strong>duzindo-as letra por letra).<br />

• Utilização do conhecimento prévio e do contexto para i<strong>de</strong>ntificar palavras e significados com<br />

um mínimo <strong>de</strong> informação visual (não lutando cegamente e sem sentido algum para i<strong>de</strong>ntificar<br />

uma palavra após a outra).<br />

• Previsão, procura do significado, leitura rápi<strong>da</strong> ao invés <strong>de</strong> lenta, e confiante ao invés <strong>de</strong> cui<strong>da</strong>dosa.<br />

• Uso <strong>da</strong> memória <strong>de</strong> curto prazo <strong>de</strong> maneira eficiente evitando que esta fique sobrecarrega<strong>da</strong><br />

on<strong>de</strong> até mesmo o mais significativo dos textos se transforme em um texto sem sentido.<br />

A maioria dos exercícios que se supõe que aju<strong>de</strong>m as crianças a ler se tomam úteis — e fáceis<br />

— somente <strong>de</strong>pois que a habili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura for <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>. Os melhores leitores são sempre<br />

mais eficientes no conhecimento do alfabeto, recitando os "sons <strong>da</strong>s letras" e misturando os sons<br />

para construir palavras, porque essas tarefas se tornam simples com a experiência na leitura. Mas<br />

elas são difíceis, se não impossíveis, antes <strong>da</strong>s crianças enten<strong>de</strong>rem o que é leitura.<br />

2. Garantir que as regras <strong>de</strong> fonologia sejam aprendi<strong>da</strong>s e usa<strong>da</strong>s. As crianças não precisam<br />

dominar a fonologia para i<strong>de</strong>ntificar as palavras que nunca viram escritas anteriormente. A gran<strong>de</strong><br />

complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a pouca confiabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s 166 regras e listas <strong>de</strong> exceções 1 <strong>de</strong>ixam claro que<br />

qualquer pessoa <strong>de</strong>va pensar que a incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> para usar a fonologia explique "Por que o Pedro<br />

ain<strong>da</strong> não sabe ler". Depois que uma criança <strong>de</strong>scobre o que é uma palavra em um contexto<br />

significativo, apren<strong>de</strong>r a reconhecê-la em outra ocasião é tão simples como apren<strong>de</strong>r a reconhecer<br />

um rosto em uma segun<strong>da</strong> ocasião, e não é necessário saber fonologia. Geralmente é mais fácil<br />

<strong>de</strong>scobrir o que é uma palavra, pela primeira vez, perguntando a alguém, escutando outra pessoa<br />

lendo a palavra, ou usando o contexto para fornecer uma pista <strong>de</strong>cisiva.<br />

3. Ensinar letras e palavras uma <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> vez, tendo certeza <strong>de</strong> que uma foi aprendi<strong>da</strong><br />

antes <strong>de</strong> passar para a seguinte. Outra idéia erra<strong>da</strong>, mas amplamente aceita, é a <strong>de</strong> que as crianças<br />

têm dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> em lembrar os nomes <strong>de</strong> objetos, palavras e letras e que só a repetição constante<br />

as aju<strong>da</strong>rá a fixar um nome. As crianças, em torno <strong>de</strong> 2 anos, apren<strong>de</strong>m pelo menos mil palavras<br />

novas por ano, geralmente após ouvirem a palavra somente uma ou duas vezes. Calcula-se que a<br />

criança <strong>de</strong> 8 anos apren<strong>de</strong> quase trinta palavras novas por dia. O mérito <strong>de</strong>sse feito tão notável<br />

não é conferido a elas porque a aprendizagem acontece sem evidência e esforço algum.<br />

As crianças não apren<strong>de</strong>m to<strong>da</strong>s essas palavras novas maquinalmente — <strong>de</strong>corando listas <strong>de</strong> uma<br />

dúzia <strong>de</strong> palavras novas <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> vez ou fazendo exercícios preparados por adultos. Quando<br />

1<br />

O autor refere-se à língua inglesa. (N.T.)<br />

M1U9T13<br />

2


critico a fonologia, não estou recomen<strong>da</strong>ndo uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> "palavra-inteira", ou o uso <strong>de</strong><br />

cartões com palavras aleatórias. As crianças apren<strong>de</strong>m encontrando sentido nas palavras que são<br />

significativas para elas no contexto; apren<strong>de</strong>m através <strong>da</strong> compreensão. Não nos tornamos leitores<br />

fluentes apren<strong>de</strong>ndo como reconhecer 50 mil palavras escritas, ou mais, à primeira vista; apren<strong>de</strong>mos<br />

a reconhecer to<strong>da</strong>s essas palavras durante o processo <strong>de</strong> tornarmo-nos leitores fluentes, durante<br />

o ato <strong>de</strong> realizar uma leitura significativa.<br />

4. Fazer <strong>da</strong> leitura perfeita <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> palavra o seu principal objetivo. Devido ao limite do<br />

número <strong>de</strong> informações visuais que chegam aos olhos, com as quais o cérebro po<strong>de</strong> li<strong>da</strong>r, e ao<br />

limite do que po<strong>de</strong> ser retido na memória <strong>de</strong> curto prazo, a ênfase coloca<strong>da</strong> na informação<br />

visual torna difícil a leitura. Para ler <strong>de</strong> maneira eficiente — e também para apren<strong>de</strong>r a ler — é<br />

necessário fazer o máximo <strong>de</strong> uso <strong>da</strong>quilo que já sabemos. Geralmente não importa se os leitores<br />

não conseguem ler uma ou duas palavras <strong>de</strong> maneira exata — sempre que estejam procurando<br />

sentido — porque o contexto <strong>de</strong>ixará claro se for cometido um erro que faça diferença. Por outro<br />

lado, a preocupação com a precisão dirige atenção excessiva às palavras individuais, tratando-as<br />

na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> como se estivessem fora do contexto, provocando saturação no sistema visual.<br />

A maioria <strong>da</strong>s crianças parece saber intuitivamente que a leitura é uma questão <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r<br />

o significado correto, e não <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar palavras específicas; sem dúvi<strong>da</strong>, o esforço <strong>de</strong> dirigir<br />

a atenção a palavras isola<strong>da</strong>s torna a leitura uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> difícil e sem sentido.<br />

5. Não estimular a adivinhação; insistir para que as crianças leiam cui<strong>da</strong>dosamente.<br />

Tenho <strong>da</strong>do ênfase à importância <strong>da</strong> previsão para a compreensão e para a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong><br />

palavras <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>s. Os leitores eficientes usam o mínimo <strong>de</strong> informação visual, porque fazer<br />

muito esforço para evitar erros terá o efeito paradoxal <strong>de</strong> impedir a compreensão e a precisão.<br />

Mesmo na aprendizagem <strong>da</strong> leitura — ou melhor, especificamente na aprendizagem <strong>da</strong> leitura —<br />

a lentidão tem somente uma conseqüência: aumenta a carga <strong>da</strong> memória <strong>de</strong> curto prazo, tornando<br />

menos provável a compreensão e, com isso, tornando mais difícil a leitura. Para as crianças,<br />

assim como para os leitores fluentes, a única solução prática nos momentos <strong>de</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> é<br />

aumentar a veloci<strong>da</strong><strong>de</strong>, continuar a ler e tentar encontrar o sentido geral que possibilitará voltar, se<br />

necessário, para i<strong>de</strong>ntificar ou compreen<strong>de</strong>r palavras específicas.<br />

A leitura tem sido <strong>de</strong>scrita como "um jogo <strong>de</strong> adivinhação", mas eu tento evitar essa expressão,<br />

embora ela esteja certa.A palavra adivinhação tem uma conotação negativa para muitos professores<br />

e pais. Ela é associa<strong>da</strong> ao comportamento aleatório e impensado, impru<strong>de</strong>nte — ou às tentativas<br />

<strong>de</strong> alcançar algo sem o <strong>de</strong>vido esforço. Previsão — a eliminação <strong>de</strong> alternativas improváveis —<br />

é uma palavra melhor porque faz referência a uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> hábil, ao uso do conhecimento prévio<br />

para antecipar o futuro. Prever é a base <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> aprendizagem <strong>da</strong> mesma.<br />

6. Insistir na precisão o tempo todo. Ninguém po<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r nomes corretamente, seja <strong>de</strong><br />

cães e gatos, letras ou palavras, a não ser que haja a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se estar errado. A base <strong>da</strong><br />

aprendizagem "experimental", do teste <strong>de</strong> hipóteses, enfatiza o experimentar as alternativas. As<br />

crianças apren<strong>de</strong>m naturalmente, não <strong>de</strong>corando ou pela adivinhação irresponsável, mas tentando<br />

avaliar a probabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que algo esteja certo. Os adultos que consi<strong>de</strong>ram os erros <strong>de</strong> leitura<br />

como transgressões, como algo engraçado ou como estupi<strong>de</strong>z — e que estimulam as crianças a<br />

fazer o mesmo — fazem mais do que perceber <strong>de</strong> maneira erra<strong>da</strong> a natureza básica <strong>da</strong> leitura.<br />

Eles estão bloqueando a principal via <strong>de</strong> acesso para a aprendizagem <strong>da</strong> leitura.<br />

M1U9T13<br />

3


Muitos dos erros aparentes cometidos pelas crianças durante a leitura em voz alta não são<br />

erros <strong>de</strong> sentido. Ao contrário, eles refletem uma incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar uma tarefa adicional<br />

ao mesmo tempo que lêem à procura do sentido, isto é, falando em uma linguagem que é<br />

<strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>. Não é incomum que um leitor — iniciante ou experiente — leia em voz alta a frase<br />

"Ela volta já" como "Ela já volta", ou "Ele não tem dinheiro algum" como "Ele não tem nenhum<br />

dinheiro". O leitor está enten<strong>de</strong>ndo o significado do texto e colocando-o em uma linguagem<br />

familiar, na maneira como ele próprio falaria normalmente. É irracional esperar que as crianças<br />

não só enten<strong>da</strong>m o texto mas também falem em voz alta em um registro <strong>de</strong> linguagem específico<br />

que po<strong>de</strong> parecer forçado, artificial e até mesmo sem sentido.<br />

7. Corrigir erros imediatamente. Uma maneira certa <strong>de</strong> produzir crianças ansiosas, hesitantes e,<br />

portanto, leitores ineficientes é chamar a atenção para os erros no momento em que eles ocorrem.<br />

Esse hábito <strong>de</strong>sestimulante é, às vezes, justificado como o "fornecimento <strong>de</strong> um feedback imediato",<br />

mas, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, po<strong>de</strong> não ser relevante para aquilo que a criança está tentando fazer e po<strong>de</strong>, a longo<br />

prazo, <strong>de</strong>sestimular as crianças a confiarem no seu próprio julgamento <strong>de</strong> autocorreção quando<br />

cometem algum erro.<br />

A correção e a outra "aju<strong>da</strong>" po<strong>de</strong>m não somente vir cedo <strong>de</strong>mais, mas po<strong>de</strong>m também ser<br />

mal-orienta<strong>da</strong>s. Uma criança lendo em voz alta, e que faz uma pausa antes <strong>de</strong> uma palavra é,<br />

freqüentemente, supri<strong>da</strong> imediatamente com aquela palavra por uma outra criança ou até pelo<br />

próprio professor. Mas a pausa po<strong>de</strong> não refletir dúvi<strong>da</strong> sobre essa palavra específica. A criança<br />

já po<strong>de</strong> ter feito uma tentativa <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação silenciosa e po<strong>de</strong> estar se perguntando sobre o<br />

que essa palavra tem a ver com as palavras que acabou <strong>de</strong> ler ou mesmo com as palavras que já<br />

viu mais adiante. Mais uma vez, a ênfase na leitura palavra por palavra po<strong>de</strong> ter o resultado <strong>de</strong><br />

levar a criança a acreditar que a leitura é uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> na qual o sentido <strong>de</strong>sempenha um papel<br />

insignificante.<br />

8. I<strong>de</strong>ntificar e tratar os leitores problemáticos o mais cedo possível. Há muitas razões para<br />

que as crianças possam parecer estar progredindo pouco no início <strong>da</strong> aprendizagem <strong>de</strong> leitura.<br />

Elas po<strong>de</strong>m não ter entendido ain<strong>da</strong> o que é leitura, po<strong>de</strong>m não estar interessa<strong>da</strong>s na leitura,<br />

po<strong>de</strong>m estar apreensivas em relação ao professor ou aos outros adultos que querem que elas<br />

leiam, ou po<strong>de</strong>m rejeitar a idéia <strong>da</strong> escola como um todo. Elas po<strong>de</strong>m não enten<strong>de</strong>r a linguagem<br />

usa<strong>da</strong> nos livros escolares ou a linguagem que seu professor usa para falar sobre leitura. Po<strong>de</strong>m<br />

até ter começado <strong>de</strong> maneira erra<strong>da</strong>, por exemplo, assimilando a noção <strong>de</strong> que se elas apren<strong>de</strong>rem<br />

como <strong>de</strong>codificar e i<strong>de</strong>ntificar palavras individuais, o sentido tomará conta <strong>de</strong> si mesmo.<br />

Há dois motivos pelos quais i<strong>de</strong>ntificar essas crianças como leitores problemáticos — ou <strong>de</strong><br />

risco, ou com algum distúrbio <strong>de</strong> aprendizagem — não é uma boa maneira <strong>de</strong> ajudá-las.<br />

O primeiro motivo é que as crianças assim rotula<strong>da</strong>s tornam-se imediatamente ansiosas e não<br />

esperam ter o mesmo <strong>de</strong>sempenho <strong>da</strong>s outras. A percepção geral <strong>da</strong>s suas próprias habili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

sofre e elas se excluem do clube <strong>da</strong> alfabetização. Tais atitu<strong>de</strong>s são completamente prejudiciais<br />

mesmo para leitores competentes. Eles po<strong>de</strong>m começar a se esforçar excessivamente para<br />

evitar erros, prestar atenção <strong>de</strong>mais em ca<strong>da</strong> palavra e tomar-se praticamente cegos pela visão<br />

túnel e pela sobrecarga na memória <strong>de</strong> curto prazo. Rotular uma criança como "leitor<br />

problemático" cedo <strong>de</strong>mais po<strong>de</strong> criar um problema on<strong>de</strong> originalmente não existia nenhum.<br />

M1U9T13<br />

4


O segundo motivo pelo qual o rótulo <strong>de</strong> "mau leitor" po<strong>de</strong> ser prejudicial para os aprendizes —<br />

durante to<strong>da</strong> a sua carreira escolar — é que muito freqüentemente a "solução" para esse<br />

problema é, em gran<strong>de</strong> parte, o mesmo tratamento que causou a confusão em um primeiro<br />

momento. Eles se encontram excluídos do clube <strong>da</strong> alfabetização mesmo se quiserem fazer<br />

parte <strong>de</strong>le. As crianças i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong>s como maus leitores são, geralmente, priva<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> ler e recebem a tarefa muito mais difícil <strong>de</strong> tentar pronunciar palavras isola<strong>da</strong>s ou palavras em<br />

seqüências que não fazem sentido. Os alunos que tiveram problemas <strong>de</strong> leitura durante anos não<br />

precisam mais dos tratamentos que contribuíram para a sua condição.<br />

9. Usar ca<strong>da</strong> oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> durante o ensino <strong>de</strong> leitura para melhorar a ortografia e a<br />

expressão escrita e insistir também para que falem a língua <strong>da</strong> maneira mais correta possível.<br />

A capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> ortográfica não tem relação nenhuma com a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura. Todos nós<br />

po<strong>de</strong>mos ler palavras que não po<strong>de</strong>mos escrever, e ser capazes <strong>de</strong> escrever uma palavra com a<br />

ortografia correta aju<strong>da</strong> pouco na leitura. Não estou dizendo que a ortografia e outras habili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>da</strong> linguagem não sejam importantes, mas sim que elas po<strong>de</strong>m complicar uma tarefa <strong>de</strong> leitura.<br />

Se o objetivo em um <strong>de</strong>terminado momento é aju<strong>da</strong>r a criança a se tornar um leitor fluente,<br />

esperar que a criança se preocupe também em respon<strong>de</strong>r perguntas, escrever respostas e evitar<br />

erros <strong>de</strong> ortografia e <strong>de</strong> gramática é simplesmente sobrecarregar a tarefa <strong>de</strong> leitura e tornar mais<br />

difícil a sua aprendizagem.<br />

Da mesma forma, o inglês, falado é, em gran<strong>de</strong> parte, irrelevante em relação à leitura.As crianças<br />

força<strong>da</strong>s a se preocuparem com a sua pronúncia enquanto lêem em voz alta não se tornarão<br />

melhores leitores. Esperar que as crianças leiam em um estilo que, para elas, é totalmente artificial,<br />

contribui para <strong>da</strong>r-lhes uma idéia totalmente falsa sobre o que é a leitura.<br />

Aju<strong>da</strong>ndo as crianças a apren<strong>de</strong>rem a ler<br />

É provável que surjam duas questões. A primeira po<strong>de</strong>ria ser que é a<strong>de</strong>quado que eu forneça<br />

um conjunto <strong>de</strong> afirmações negativas sobre o que os professores <strong>de</strong>vem se esforçar para evitar,<br />

mas o que um professor <strong>de</strong>ve fazer? Se não há muito sentido em fazer exercícios <strong>de</strong> memorização,<br />

o que então <strong>de</strong>verá ser feito em sala <strong>de</strong> aula? A segun<strong>da</strong> pergunta seria que a minha lista <strong>de</strong><br />

precauções sobre atrapalhar as crianças que estão apren<strong>de</strong>ndo a ler implica que as crianças já<br />

são capazes <strong>de</strong> ler alguma coisa anteriormente.<br />

O que um professor faz com uma criança que não consegue ler na<strong>da</strong>? Como um professor<br />

inicia uma criança no clube <strong>da</strong> alfabetização? As respostas para as duas perguntas são as mesmas,<br />

porque existe basicamente um único problema: como facilitar a leitura para crianças quando elas<br />

po<strong>de</strong>m ler muito pouco ou na<strong>da</strong>. As respostas po<strong>de</strong>m ser resumi<strong>da</strong>s em uma regra <strong>de</strong> orientação<br />

básica para que todos os aspectos do ensino <strong>da</strong> leitura tornem a aprendizagem <strong>de</strong> leitura algo<br />

fácil, o que significa simplesmente tornar a leitura significativa, atraente, útil e uma experiência<br />

freqüente para as crianças.<br />

M1U9T13<br />

5


Ler em favor <strong>da</strong>s crianças as aju<strong>da</strong> a alcançar três objetivos importantes para começar a<br />

aprendizagem <strong>da</strong> leitura e continuar apren<strong>de</strong>ndo a ler:<br />

1. Enten<strong>de</strong>r as funções <strong>da</strong> escrita. É lendo para, ou lendo por um motivo, que as crianças têm<br />

a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> receber o insight <strong>de</strong> que a escrita tem uma finali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Não po<strong>de</strong>mos dizer às<br />

crianças que a linguagem escrita é uma variação do ambiente e que po<strong>de</strong> ser tão significativa, útil<br />

e satisfatória como a fala. As crianças <strong>de</strong>vem ter a sua própria experiência; elas <strong>de</strong>vem ser<br />

coloca<strong>da</strong>s em situações nas quais o insight possa se <strong>de</strong>senvolver.<br />

2. Adquirir conhecimento sobre a linguagem escrita. As linguagens fala<strong>da</strong> e escrita são<br />

coloca<strong>da</strong>s juntas <strong>de</strong> maneiras distintas. As convenções específicas <strong>da</strong> linguagem escrita po<strong>de</strong>m torná-la<br />

bastante imprevisível e, portanto, difícil <strong>de</strong> ser compreendi<strong>da</strong> por qualquer pessoa que não esteja<br />

familiariza<strong>da</strong> com elas. Construções comuns nos livros infantis tais como Que esplêndidos<br />

<strong>de</strong>ntes tem o castor ou Pela estra<strong>da</strong> afora, mãos uni<strong>da</strong>s, corriam Susi e sua amiga parecem simples<br />

e diretas para a maioria <strong>de</strong> nós, <strong>de</strong>vido a nossa familiari<strong>da</strong><strong>de</strong> com a linguagem escrita, mas esse não é<br />

o tipo <strong>de</strong> linguagem que teríamos muita probabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> encontrar no dia-a-dia. A única maneira<br />

que as crianças têm <strong>de</strong> se tomarem familiariza<strong>da</strong>s com a linguagem escrita, antes que possam ampliar<br />

o seu conhecimento lendo sozinhas, é através <strong>da</strong> leitura que outra pessoa faça para elas.<br />

3.Ter a chance <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r. É importante ler para as crianças, porém ain<strong>da</strong> mais importante<br />

é ler com elas. As crianças recebem a sua primeira chance <strong>de</strong> resolver muitos dos problemas <strong>de</strong><br />

leitura quando elas lêem com um adulto o mesmo texto ao mesmo tempo. Não importa se no<br />

início a criança não reconhecer nenhuma <strong>da</strong>s palavras para as quais está olhando; na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é<br />

durante o processo <strong>de</strong> confrontamento com palavras <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>s que elas encontram a<br />

motivação e a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> começar a distinguir e a reconhecer <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s palavras, <strong>da</strong><br />

mesma forma que é resolvido o problema do cão e do gato. As crianças que lêem junto com um<br />

adulto ou com outro leitor procurarão as palavras que elas conhecem e selecionarão, elas<br />

próprias, as <strong>de</strong>mais palavras que querem apren<strong>de</strong>r ou praticar.<br />

Uma mu<strong>da</strong>nça interessante tem lugar quando um adulto e uma criança lêem juntos. No início, os<br />

olhos <strong>da</strong> criança vagam pelas páginas e <strong>de</strong>pois seguem juntos atrás enquanto a criança se esforça<br />

para enten<strong>de</strong>r alguma coisa sobre a relação existente entre os sinais na página e o que está sendo<br />

dito — o adulto está lendo para a criança. Mas à medi<strong>da</strong> que a criança <strong>de</strong>senvolve uma certa<br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura — especialmente se a passagem que está sendo li<strong>da</strong> for <strong>de</strong> um poema ou <strong>de</strong><br />

uma história que a criança conhece bem — o movimento dos olhos <strong>da</strong> criança passa à frente <strong>da</strong><br />

voz do leitor. A criança começa a ler in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>da</strong> aju<strong>da</strong> do adulto — o adulto está lendo<br />

com a criança. A situação não é diferente <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a an<strong>da</strong>r <strong>de</strong> bicicleta. Enquanto a criança<br />

precisa <strong>da</strong> aju<strong>da</strong> do adulto, ela pe<strong>da</strong>la mais <strong>de</strong>vagar do que o impulso que é <strong>da</strong>do pelo adulto. Mas<br />

à medi<strong>da</strong> que a competência e a confiança se <strong>de</strong>senvolvem, a criança ten<strong>de</strong> a <strong>da</strong>r impulso antes do<br />

adulto, até que finalmente é capaz <strong>de</strong> an<strong>da</strong>r sozinha. A criança não precisa mais do adulto.<br />

Não há porque temer que uma criança que é aju<strong>da</strong><strong>da</strong> no início venha a se tornar preguiçosa ou<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte dos adultos. A criança capaz <strong>de</strong> suce<strong>de</strong>r o adulto na leitura não irá se satisfazer em<br />

ficar para trás, assim como aquela que apren<strong>de</strong>u a an<strong>da</strong>r <strong>de</strong> bicicleta. O domínio fornece o seu<br />

próprio incentivo. As crianças que po<strong>de</strong>m amarrar seus próprios sapatos dificilmente toleram<br />

adultos que insistam em fazê-lo para elas.<br />

M1U9T13<br />

6


Encontrando sentido em todos os tipos <strong>de</strong> escrita<br />

Quando enfatizo a importância <strong>da</strong> leitura para as crianças, não quero <strong>da</strong>r a impressão <strong>de</strong> estar<br />

falando somente sobre livros. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>ro que a gran<strong>de</strong> ênfase <strong>da</strong><strong>da</strong> aos livros na<br />

escola po<strong>de</strong>, muitas vezes, ser um obstáculo. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, os únicos livros que <strong>de</strong>vem ser lidos<br />

para as crianças ou que elas <strong>de</strong>vem ler são aqueles que realmente <strong>de</strong>spertam o seu interesse,<br />

que contêm rimas e histórias fascinantes, e não a prosa <strong>de</strong>sinteressante e artificial a que muitas<br />

crianças são obriga<strong>da</strong>s a prestar atenção, como por exemplo, ler sobre um dia entediante na vi<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> duas crianças fictícias ou então ler frases do tipo "vovó viu a uva".<br />

A escrita que oferece aos leitores iniciantes as melhores percepções sobre a significação <strong>da</strong><br />

linguagem escrita geralmente está fora dos livros, no mundo mais pessoal e próximo <strong>da</strong>s suas<br />

próprias vi<strong>da</strong>s. As crianças po<strong>de</strong>m apren<strong>de</strong>r mais sobre as bases <strong>da</strong> leitura lendo o nome <strong>da</strong><br />

marca <strong>de</strong> um posto <strong>de</strong> gasolina, as palavras em um papel <strong>de</strong> bala ou a experiência do seu<br />

próprio nome sob o capuz do seu casaco do que <strong>de</strong> uma diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> livros e exercícios. No<br />

ambiente natural, fora <strong>da</strong> escola, as palavras escritas não existem para serem associa<strong>da</strong>s ao som,<br />

mas ao sentido. Escritas em um quadro na sala <strong>de</strong> aula ou impressas na ilustração <strong>de</strong> um livro, as<br />

letras B-0-L-A-S não têm função, não têm utili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mas quando as mesmas letras estão em uma<br />

loja ou na tampa <strong>de</strong> uma caixa <strong>de</strong> brinquedos, indicam um importante significado "É aqui on<strong>de</strong><br />

estão as bolas".<br />

A riqueza <strong>da</strong> escrita significativa no ambiente <strong>da</strong> criança po<strong>de</strong> ser li<strong>da</strong> para elas não como um<br />

obstáculo ou como uma exigência, mas <strong>de</strong> uma forma tão casual e natural como os objetos do<br />

seu ambiente são chamados. Assim como se diz a uma criança "Olhe que cachorro gran<strong>de</strong>" ou<br />

"Olhe o avião", os adultos po<strong>de</strong>m dizer "Aqui diz ‘mostar<strong>da</strong>’" e "Esse sinal diz ‘perigo’".<br />

A simples prática <strong>da</strong>rá às crianças a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> adquirir insights, <strong>de</strong> gerar idéias e testar<br />

hipóteses sobre leitura enquanto permanecem livres para selecionar e controlar aquilo que elas<br />

têm mais probabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r sempre que fizer um maior sentido para elas. Nessas<br />

circunstâncias, as crianças apren<strong>de</strong>m escrita e leitura <strong>da</strong> mesma maneira que elas apren<strong>de</strong>ram a<br />

linguagem oral, sem esforços evi<strong>de</strong>ntes e sem necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ensino formal.<br />

Leitura na escola<br />

Dificilmente a imersão total em uma escrita significativa é uma experiência típica para muitas<br />

crianças na escola; nem to<strong>da</strong>s as condições que facilitam a aprendizagem po<strong>de</strong>m ser facilmente<br />

transferi<strong>da</strong>s para a sala <strong>de</strong> aula. É difícil para os professores imitar a riqueza <strong>da</strong> escrita que ocorre<br />

naturalmente no mundo externo, um exemplo <strong>da</strong>s muitas diferenças que existem entre a escola<br />

e o mundo em geral e que po<strong>de</strong> confundir bastante as crianças.<br />

Entretanto, há muitas maneiras pelas quais as crianças po<strong>de</strong>m ter experiências com a linguagem<br />

escrita que são interessantes e significativas para elas na escola. Os professores po<strong>de</strong>m tentar<br />

garantir que as crianças tenham oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ler freqüentemente — ou <strong>de</strong> ouvir — histórias<br />

que tenham um apelo intrínseco e que <strong>de</strong>spertem a sua atenção naturalmente. Os professores também<br />

po<strong>de</strong>m fazer uso freqüente <strong>da</strong> escrita para produzir uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> significativa, tanto durante uma<br />

brinca<strong>de</strong>ira (aten<strong>de</strong>ndo em uma loja, publicando um jornal) como durante a rotina diária.<br />

M1U9T13<br />

7


Materiais e produtos impressos que façam sentido para as crianças no mundo exterior po<strong>de</strong>m<br />

ser trazidos para a sala <strong>de</strong> aula. E há uma série <strong>de</strong> maneiras <strong>de</strong> enfatizar a linguagem escrita nas<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s escolares, por exemplo, na i<strong>de</strong>ntificação <strong>da</strong>s diversas salas <strong>de</strong> aula, escritórios, banheiros<br />

e salas <strong>de</strong> recreação, armários e cabi<strong>de</strong>s (i<strong>de</strong>ntificações estas que são, geralmente, coloca<strong>da</strong>s a<br />

uma altura inacessível aos olhos <strong>da</strong>s crianças). Cardápios são uma fonte significativa, assim como<br />

os cartazes, notas, placas indicativas, mapas, catálogos, horários e listas telefônicas, especialmente<br />

se eles pu<strong>de</strong>rem ser produzidos em um formato que as crianças possam manusear com facili<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

com letras que elas possam distinguir facilmente e em uma linguagem que elas possam enten<strong>de</strong>r.<br />

Esses e outros materiais conhecidos po<strong>de</strong>m não somente ser usados para aju<strong>da</strong>r as crianças a<br />

apren<strong>de</strong>r mais sobre leitura, mas po<strong>de</strong>m também oferecer a única oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> que muitas<br />

crianças po<strong>de</strong>rão ter <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a usar ou encontrar sentido nos materiais por si próprios.<br />

E, logicamente, muito <strong>de</strong>sse material po<strong>de</strong> ser produzido pelas crianças. Ninguém nunca apren<strong>de</strong>u<br />

a usar uma lista telefônica durante uma palestra; a experiência com uma tarefa específica, com uma<br />

aju<strong>da</strong> amigável em situações significativas, torna possível a aprendizagem <strong>de</strong> qualquer habili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Ao mesmo tempo que se oferece muito material impresso significativo, o material sem sentido<br />

po<strong>de</strong> ser removido <strong>de</strong> cena. Po<strong>de</strong> haver alguma justificativa ocasional para o uso <strong>de</strong> letras<br />

individuais e até <strong>de</strong> palavras isola<strong>da</strong>s como parte <strong>da</strong> <strong>de</strong>coração, assim como as listas <strong>de</strong> palavras<br />

úteis (como dias <strong>da</strong> semana ou meses do ano) po<strong>de</strong>m, em certas ocasiões, ter valor como<br />

referência. Mas, em geral, a tendência <strong>de</strong>ve ficar restrita à <strong>de</strong>coração <strong>da</strong>s pare<strong>de</strong>s com folhas<br />

escritas, cuja única função é <strong>da</strong>r a impressão <strong>de</strong> um ambiente educacional, tanto para os adultos<br />

quanto para as crianças. Geralmente há pouca necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um frenesi <strong>de</strong> <strong>de</strong>coração alfabética<br />

às custas <strong>de</strong> janelas, quadros e até mesmo às custas dos relaxantes pe<strong>da</strong>ços <strong>de</strong> pare<strong>de</strong> em branco.<br />

Logicamente, fornecer um ambiente rico em material impresso e esforçar-se para evitar interferência<br />

na habili<strong>da</strong><strong>de</strong> natural <strong>da</strong> criança para a aprendizagem não se constitui em um "programa"<br />

ou "sistema" para ensinar a ler. Não posso fornecer um relatório sobre to<strong>da</strong>s as diferentes<br />

metodologias <strong>de</strong> leitura. A única conclusão a ser tira<strong>da</strong> <strong>da</strong> análise que fiz é que ninguém po<strong>de</strong><br />

confiar em um pacote sobre uma prateleira ou solicitar um editor para ensinar leitura. A leitura<br />

não é ensina<strong>da</strong> por prescrições. Há centenas <strong>de</strong> programas <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong> leitura, muitos dos quais<br />

têm pouca relevância para isso. E até os programas mais sensíveis representarão uma pequena<br />

aju<strong>da</strong> para manter as crianças ocupa<strong>da</strong>s enquanto elas estão apren<strong>de</strong>ndo a ler.<br />

A leitura não po<strong>de</strong> ser ensina<strong>da</strong> como a aritmética geralmente é (nem sempre com sucesso,<br />

também), como uma seqüência <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s que po<strong>de</strong>m ser assinala<strong>da</strong>s e <strong>da</strong><strong>da</strong>s por sabi<strong>da</strong>s no<br />

momento em que as crianças mostram proficiência em ca<strong>da</strong> uma. O "ensino sistemático"<br />

raramente atinge a superfície <strong>da</strong> leitura.<br />

Os professores <strong>de</strong>vem tomar as suas próprias <strong>de</strong>cisões sobre o que precisa ser feito. A questão<br />

não <strong>de</strong>ve ser "Qual o método que <strong>de</strong>vo usar?" mas "Como <strong>de</strong>vo <strong>de</strong>cidir o que fazer agora?". Não<br />

afirmei que não <strong>de</strong>ve haver fonologia; somente que a fonologia possui uma complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> excessiva<br />

e que <strong>de</strong>vemos esperar que as crianças apren<strong>da</strong>m na medi<strong>da</strong> em que elas possam encontrar<br />

sentido no ensino. Não disse que não se <strong>de</strong>ve ensinar o alfabeto às crianças (isso aju<strong>da</strong> na<br />

comunicação sobre a linguagem escrita entre professores e crianças), mas enquanto elas não<br />

tiverem uma boa idéia do que é a leitura, a aprendizagem dos nomes <strong>da</strong>s letras é uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

totalmente sem sentido. O interesse <strong>de</strong>ve sempre estar naquilo que faça sentido para a criança,<br />

algo que não po<strong>de</strong> ser antecipado por alguém que não conheça essa criança. Não po<strong>de</strong>mos<br />

esperar que "especialistas" distantes tomem <strong>de</strong>cisões pelos professores.<br />

M1U9T13<br />

8


Certamente não estou argumentando que os professores não <strong>de</strong>vam conhecer os instrumentos<br />

<strong>da</strong> sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, os inúmeros programas, materiais e "ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s" que estão disponíveis para<br />

serem utilizados. O treinamento que os professores recebem sobre leitura po<strong>de</strong> ser totalmente<br />

restrito a palestras e <strong>de</strong>monstrações sobre diferentes programas e métodos. Freqüentemente o<br />

que falta é algum tipo <strong>de</strong> discussão sobre a natureza <strong>da</strong> leitura, para que os professores possam<br />

<strong>de</strong>cidir como e quando usar <strong>de</strong>terminado método. Os professores, geralmente, não sabem que<br />

tipo <strong>de</strong> programa po<strong>de</strong>riam seguir — quanto, por exemplo, uma criança po<strong>de</strong> realmente apren<strong>de</strong>r<br />

dos exercícios fonéticos ou dos exercícios <strong>de</strong> combinações dos diferentes sons — nem sabem<br />

o custo que esse tipo <strong>de</strong> programa po<strong>de</strong> ter para a criança em termos <strong>de</strong> sobrecarga <strong>da</strong> memória,<br />

visão túnel, aprendizagem <strong>de</strong>cora<strong>da</strong>, tédio ou confusão. A tarefa <strong>de</strong> aula é, comumente, ensinar<br />

a tarefa prescrita pelo programa ou pelo currículo, não trazendo respostas para o aluno nem<br />

auxiliando no ensino <strong>da</strong> leitura. Os professores <strong>de</strong>vem ser capazes <strong>de</strong> fazer discriminações, e isto<br />

requer tanto familiari<strong>da</strong><strong>de</strong> com os programas como conhecimento do processo <strong>de</strong> leitura. Eles<br />

<strong>de</strong>vem ser capazes <strong>de</strong> ver o que faz sentido.<br />

Enquanto os professores não pu<strong>de</strong>rem impedir as crianças <strong>de</strong> se envolverem em ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

inúteis ou <strong>de</strong> se submeterem a testes ritualistas, eles po<strong>de</strong>rão, pelo menos, explicar a diferença<br />

às crianças. As crianças enten<strong>de</strong>m que elas po<strong>de</strong>m ser solicita<strong>da</strong>s a fazer algo somente para ficarem<br />

quietas ou porque alguma autori<strong>da</strong><strong>de</strong> arbitrária assim o <strong>de</strong>seja. A tragédia acontece quando as<br />

crianças são leva<strong>da</strong>s a acreditar que a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sagradável é a leitura.<br />

Muitas crianças apren<strong>de</strong>ram a ler sem programas ou materiais especiais, e muitas outras<br />

apren<strong>de</strong>ram apesar do ensino formal.Tudo o que eu disse sobre leitura neste livro é contrário<br />

às abor<strong>da</strong>gens que exijam ensino seqüencial e constantes avaliações e é, portanto, contrário ao<br />

ensino que os professores <strong>de</strong>vem, provavelmente, receber em seus próprios treinamentos.<br />

Problemas do ensino programático<br />

Tenho criticado os programas diversas vezes neste livro, e até mais vigorosamente em outras<br />

obras. Talvez seja o momento <strong>de</strong> explicar exatamente a que me refiro quando uso o termo<br />

programas, porque eles ten<strong>de</strong>m a ser mal orientados, quando não totalmente errados, e porque,<br />

mesmo assim, estão tão presentes na educação e po<strong>de</strong>m tornar-se ain<strong>da</strong> mais presentes.<br />

Consi<strong>de</strong>ro programas, ou ensino programático, qualquer esforço <strong>de</strong> qualquer pessoa <strong>de</strong> fora <strong>da</strong><br />

sala <strong>de</strong> aula para <strong>de</strong>terminar sistemática e antecipa<strong>da</strong>mente o que os professores e alunos<br />

<strong>de</strong>vem fazer na sala <strong>de</strong> aula. O ensino programático envolve, tipicamente, ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s pre<strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s,<br />

exercícios, pré-requisitos, perguntas e respostas, respostas certas e erra<strong>da</strong>s, pontos, notas, testes<br />

(muitos testes), objetivos, comportamentos iniciais, objetivos a serem atingidos, níveis <strong>de</strong> critérios<br />

e "responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>". Esse tipo <strong>de</strong> ensino raramente envolve a criança em tarefas <strong>de</strong> leitura<br />

significativa (a não ser na mente do criador do programa). A linguagem escrita que é <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong><br />

e à qual a criança <strong>de</strong>ve prestar atenção ten<strong>de</strong> a ser fragmenta<strong>da</strong>, <strong>de</strong>scontextualiza<strong>da</strong> e trivial.<br />

Quando são usados "textos autênticos" ou "livros reais", eles provavelmente serão "simplificados",<br />

alterados e <strong>de</strong>svalorizados, contendo muitas páginas cheias <strong>de</strong> comentários inúteis e interrogações<br />

intrusas. Se esses aspectos dos programas ensinam alguma coisa sobre a linguagem escrita, é que<br />

ela é problemática e sem sentido e não merece atenção séria. Muitos criadores <strong>de</strong> programas,<br />

incrivelmente, acreditam que a leitura po<strong>de</strong> ser ensina<strong>da</strong> a uma criança em um espaço <strong>de</strong>terminado<br />

<strong>de</strong> tempo — em monitores <strong>de</strong> computador ou no papel.<br />

M1U9T13<br />

9


Tudo isso é a antítese <strong>da</strong> admissão <strong>da</strong> criança no clube <strong>da</strong> alfabetização. Nenhum dos exercícios<br />

e testes do ensino programático formal <strong>de</strong>monstram que a linguagem escrita seja significativa ou<br />

útil; sua única finali<strong>da</strong><strong>de</strong> é a <strong>de</strong> atingir seus próprios fins educacionais. A única razão evi<strong>de</strong>nte<br />

para que a criança preste atenção à tarefa é para livrar-se <strong>de</strong>la, receber uma nota ou porque<br />

o professor assim o exige.<br />

Por que, então, o ensino <strong>da</strong> leitura usa tanto os programas? Por que os sistemas escolares<br />

compram programas em escalas massivas (as quais são a única razão pela qual as editoras os<br />

produzem)? Uma razão é que as escolas são instituições estranhas — po<strong>de</strong>ríamos até afirmar<br />

que elas são planeja<strong>da</strong>s para evitar a formação <strong>de</strong> clubes. Elas estão fecha<strong>da</strong>s para o mundo<br />

significativo externo, com crianças segrega<strong>da</strong>s em grupos tão homogeneizados em i<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

habili<strong>da</strong><strong>de</strong> que elas, freqüentemente, são incapazes <strong>de</strong> prestar aju<strong>da</strong> umas às outras, sob a supervisão<br />

<strong>de</strong> um professor isolado que tem pouco tempo para se envolver pessoalmente em ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

alfabetizadoras que valham a pena e que as crianças possam observar. Alguns professores<br />

sentem que necessitam <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s programáticas só para manter a calma, para fugir do caos.<br />

Uma segun<strong>da</strong> razão para a proliferação <strong>de</strong> programas <strong>de</strong> ensino é a inércia. O ensino sistematizado<br />

tem sido usado durante tanto tempo que muitas pessoas não conseguem imaginar ensinar sem<br />

ele (assim como muitos professores não conseguem imaginar que a aprendizagem aconteça sem<br />

testes constantes e outras formas <strong>de</strong> avaliação, embora estas não sejam as características <strong>da</strong><br />

maneira pela qual as crianças apren<strong>de</strong>m a falar e a fazer outras coisas fora <strong>da</strong> escola). As escolas<br />

<strong>de</strong> educação treinam novos professores para que <strong>de</strong>pen<strong>da</strong>m <strong>de</strong> programas, às vezes porque os<br />

professores não conhecem na<strong>da</strong> melhor, às vezes porque eles po<strong>de</strong>m dizer que é o que as escolas<br />

querem ou porque é assim que as escolas são.<br />

Uma terceira razão para o ensino programático é um grave erro tanto na teoria como na prática<br />

— a crença <strong>de</strong> que a competência po<strong>de</strong> ser construí<strong>da</strong> um pouco <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> vez em seqüências<br />

arbitrárias. Analise <strong>de</strong>talha<strong>da</strong>mente to<strong>da</strong>s as coisas que um leitor competente po<strong>de</strong> fazer (é<br />

assim que a crença funciona), <strong>de</strong>pois ensine estas coisas uma <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> vez a um iniciante e ele se<br />

tornará um leitor competente. Os leitores conhecem o alfabeto, então ensine o alfabeto. Eles<br />

po<strong>de</strong>m usar a fonologia, então ensine fonologia. Os leitores parecem saber sobre o que você está<br />

falando quando faz referência a letras, palavras e sentenças, então ensine a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> letras,<br />

palavras e sentenças. Tudo isso ignora como ou por que os bons leitores adquiriram a sua<br />

habili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leitor, em primeiro lugar.A leitura torna você um bom conhecedor do alfabeto, <strong>da</strong><br />

fonologia e <strong>de</strong> todo o resto. Os membros do clube <strong>da</strong> alfabetização <strong>de</strong>ixam to<strong>da</strong>s as habili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

disponíveis às crianças. Mas a insistência em separar habili<strong>da</strong><strong>de</strong>s e pré-requisitos para a alfabetização<br />

simplesmente mantém a criança fora do clube.<br />

Os professores precisam <strong>de</strong> programas caso não acreditem que as crianças vão apren<strong>de</strong>r e se<br />

temem que o envolvimento com a linguagem escrita não seja suficiente para promover a<br />

aprendizagem <strong>da</strong> leitura nas crianças. E as pessoas <strong>de</strong> fora <strong>da</strong> sala <strong>de</strong> aula insistem em programas<br />

quando não acreditam que os professores ensinam e sentem que eles <strong>de</strong>vem ser controlados a<br />

ca<strong>da</strong> passo do caminho.<br />

M1U9T13<br />

10


O <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> ensinar a ler<br />

A análise <strong>da</strong> leitura conti<strong>da</strong> neste livro não po<strong>de</strong> mu<strong>da</strong>r imediatamente o mundo para os professores.<br />

Não espero que todos os professores achem fácil ou até mesmo possível colocar em prática os<br />

novos insights adquiridos. Os professores po<strong>de</strong>m sentir que têm poucas escolhas sobre aquilo<br />

que realmente fazem em sala <strong>de</strong> aula e que estão presos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um número limitado <strong>de</strong><br />

programas e procedimentos. Eles po<strong>de</strong>m trabalhar sobre premissas ina<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s com muitas<br />

crianças em ambientes <strong>de</strong> competição, ansie<strong>da</strong><strong>de</strong> e até mesmo <strong>de</strong> hostili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Uma freqüente<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> testes, avaliações e <strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> "responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>" po<strong>de</strong> induzir a tensão<br />

e o medo do fracasso tanto no professor quanto na criança.<br />

Os professores <strong>de</strong>vem achar difícil mu<strong>da</strong>r o seu comportamento pelas mais diversas razões,<br />

inclusive a pressão dos pais, as expectativas dos administradores, a resistência dos colegas<br />

ameaçados por qualquer sugestão <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição <strong>da</strong> tradição educacional, o peso morto do seu<br />

próprio treinamento e os rituais diários e a frustração em sala <strong>de</strong> aula. A idéia <strong>de</strong> que a aprendizagem<br />

<strong>de</strong>ve ser facilita<strong>da</strong> para as crianças e que não <strong>de</strong>ve representar "<strong>de</strong>safios" (um sinônimo <strong>de</strong><br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>) po<strong>de</strong> ofen<strong>de</strong>r o puritanismo arraigado — que infecta crianças e pais — enquanto<br />

uma aula na qual todos estão lendo alguma coisa que os interesse pessoalmente po<strong>de</strong>rá ser<br />

critica<strong>da</strong> por ser um lugar on<strong>de</strong> não está sendo feito nenhum "trabalho".<br />

Os professores po<strong>de</strong>m não ter o tempo necessário para pensar sobre uma mu<strong>da</strong>nça fun<strong>da</strong>mental<br />

ou sobre o apoio moral <strong>de</strong> que eles precisam para passar por isso. A maioria <strong>da</strong>s crianças não<br />

são anjos — elas não ficam quietas prestando atenção ao que o professor gostaria que elas<br />

apren<strong>de</strong>ssem, <strong>de</strong>monstrando uma cooperação que po<strong>de</strong> parecer ter estado implícita nas discussões<br />

<strong>de</strong>ste livro ou que é <strong>da</strong><strong>da</strong> como certa por muitos dos programas formais. As crianças po<strong>de</strong>m<br />

ser apáticas, agressivas, distraí<strong>da</strong>s ou teimosas por razões pelas quais nenhuma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

aprendizagem ou compreensão por parte do professor possa fazer muito. Esses são problemas<br />

para o ensino <strong>da</strong> leitura, mas eles não mu<strong>da</strong>m a natureza <strong>da</strong> mesma ou a maneira como ela <strong>de</strong>ve<br />

ser aprendi<strong>da</strong>.<br />

Apesar <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as limitações sobre o que os professores po<strong>de</strong>m fazer, eles ain<strong>da</strong> são muito<br />

melhores tendo conhecimento sobre o que facilita a aprendizagem <strong>da</strong> leitura e o que interfere<br />

com ela. Uma nova compreensão não irá mu<strong>da</strong>r diretamente o mundo para os professores, mas<br />

po<strong>de</strong> proporcionar-lhes confiança para tentar realizar algumas modificações, ou simplesmente<br />

para seguir a tendência. Enten<strong>de</strong>r por que <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s condições ou ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s tornam tanto a<br />

aprendizagem como o ensino mais difíceis po<strong>de</strong> aliviar a ansie<strong>da</strong><strong>de</strong> e minimizar as conseqüências<br />

para os professores e para os alunos, principalmente em termos <strong>de</strong> auto-estima.<br />

Finalmente, os professores <strong>de</strong> leitura po<strong>de</strong>m achar que os alunos precisam fazer a maioria <strong>de</strong><br />

suas tarefas fora <strong>da</strong> sala <strong>de</strong> aula, ensinando aos pais, administradores e políticos a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira<br />

maneira pela qual as crianças apren<strong>de</strong>m a ler, e <strong>de</strong>monstrando que eles, os professores, sabem<br />

melhor como os alunos po<strong>de</strong>m ser aju<strong>da</strong>dos.<br />

Resumo<br />

Os professores <strong>de</strong>vem garantir que to<strong>da</strong>s as crianças sejam admiti<strong>da</strong>s no clube <strong>da</strong> alfabetização,<br />

on<strong>de</strong> elas po<strong>de</strong>m ver a linguagem escrita emprega<strong>da</strong> <strong>de</strong> maneiras diferentes, úteis e significativas.<br />

A precisão e os exercícios não <strong>de</strong>vem ser enfatizados às custas <strong>da</strong> significação para o aluno; eles<br />

são uma conseqüência e não um pré-requisito <strong>da</strong> experiência <strong>de</strong> leitura. Os professores <strong>de</strong>vem<br />

proteger-se e também proteger os seus alunos dos efeitos <strong>de</strong> programas e testes que po<strong>de</strong>m<br />

convencê-los <strong>de</strong> que ler é algo sem sentido, sofrido e inútil, ao invés <strong>de</strong> ser algo satisfatório, útil<br />

e freqüentemente divertido.<br />

M1U9T13<br />

11


M1U10T1<br />

Apren<strong>de</strong>r nunca é o que se espera! *<br />

Quando um homem começa a apren<strong>de</strong>r, ele nunca sabe muito claramente quais são seus objetivos.<br />

Seu propósito é falho; sua intenção, vaga. Espera recompensas que nunca se materializarão, pois<br />

não conhece na<strong>da</strong> <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> aprendizagem.<br />

Devagar, começa a apren<strong>de</strong>r… A princípio, pouco a pouco; <strong>de</strong>pois em porções maiores. E logo<br />

seus pensamentos entram em choque. O que apren<strong>de</strong> nunca é o que imaginava, <strong>de</strong> modo que<br />

começa a ter medo — apren<strong>de</strong>r nunca é o que se espera. Ca<strong>da</strong> passo <strong>da</strong> aprendizagem é uma<br />

difícil tarefa, e o medo que o homem sente começa a crescer impiedosamente, sem ce<strong>de</strong>r. Seu<br />

propósito torna-se um campo <strong>de</strong> batalha.<br />

O homem <strong>de</strong>para-se, então, com o primeiro <strong>de</strong> seus inimigos naturais: o medo! Um inimigo<br />

terrível, traiçoeiro, difícil <strong>de</strong> vencer — permanece oculto em to<strong>da</strong>s as voltas do caminho,<br />

ron<strong>da</strong>ndo, à espreita. E se o homem foge apavorado, seu inimigo terá posto fim a sua busca:<br />

jamais apren<strong>de</strong>rá, jamais virá a ser um homem <strong>de</strong> conhecimento.Talvez torne-se um tirano ou<br />

uma pobre criatura apavora<strong>da</strong> e inofensiva: <strong>de</strong> qualquer forma, estará vencido. Seu primeiro<br />

inimigo terá <strong>de</strong>struído os seus <strong>de</strong>sejos.<br />

Para vencer o medo, o homem não po<strong>de</strong> fugir — <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>safiá-lo e, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong>le, <strong>de</strong>ve <strong>da</strong>r o<br />

passo seguinte na aprendizagem. Deve ter medo plenamente. É esta a regra!<br />

Assim, chega o momento em que seu primeiro inimigo começa a recuar. O homem vai sentindo-se<br />

seguro <strong>de</strong> si. Seu propósito torna-se mais forte. Apren<strong>de</strong>r já não é uma tarefa aterradora. Quando<br />

chega esse momento feliz, po<strong>de</strong> dizer, sem hesitar, que <strong>de</strong>rrotou seu primeiro inimigo natural.<br />

Uma vez que vence o medo, o homem fica livre <strong>de</strong>le o resto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, porque adquire clareza <strong>de</strong><br />

espírito, uma clareza que suplanta e apaga o medo… Já conhece os seus <strong>de</strong>sejos, sabe como<br />

satisfazê-los, po<strong>de</strong> antecipar os novos passos na aprendizagem, uma clareza viva cerca tudo.<br />

E sente que na<strong>da</strong> se lhe oculta.<br />

Estará, então, o homem diante do seu segundo inimigo: a clareza! Essa clareza <strong>de</strong> espírito, que é<br />

tão difícil conquistar, elimina o medo, mas também cega. Obriga-o a nunca duvi<strong>da</strong>r <strong>de</strong> si. Dá-lhe<br />

a segurança <strong>de</strong> que po<strong>de</strong> fazer o que bem enten<strong>de</strong>r, pois vê tudo claramente. Ele é corajoso,<br />

porque adquiriu clareza <strong>de</strong> espírito, não se intimi<strong>da</strong> diante <strong>de</strong> na<strong>da</strong> porque a possui. Mas tudo<br />

isso é um engano… Se sucumbir a esse po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> faz-<strong>de</strong>-conta, o homem terá sucumbido a seu<br />

segundo inimigo.Vai precipitar-se quando <strong>de</strong>veria ser paciente ou vai ser paciente quando <strong>de</strong>veria<br />

precipitar-se. E tateará com a aprendizagem até acabar incapaz <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r qualquer coisa mais.<br />

A clareza, pela qual pagou tão caro, nunca mais se transformará em trevas ou em medo (é uma<br />

conquista <strong>de</strong>finitiva!), mas, se não a dominar, o homem não apren<strong>de</strong>rá nem <strong>de</strong>sejará mais na<strong>da</strong>.<br />

Para não ser vencido, o homem terá que agir com a clareza como agiu com o medo: terá que<br />

<strong>de</strong>safiá-la — e usá-la apenas para ver. E esperar com paciência, calcular com cui<strong>da</strong>do os novos<br />

passos: <strong>de</strong>ve pensar, acima <strong>de</strong> tudo, que a sua clareza é quase um erro — e virá o momento em<br />

* Texto a<strong>da</strong>ptado por Rosaura Soligo, com base no <strong>de</strong>poimento do índio Don Juan ao antropólogo Carlos Casteñe<strong>da</strong>, em A erva do diabo, Ediouro,<br />

São Paulo, 1968.<br />

M1U10T1<br />

1


que compreen<strong>de</strong>rá que ela é apenas um ponto diante <strong>de</strong> sua vista. Assim o homem terá vencido<br />

o seu segundo inimigo e estará numa posição em que na<strong>da</strong> mais po<strong>de</strong>rá prejudicá-lo. Isso não<br />

será um engano, não será um ponto diante <strong>de</strong> sua vista: será o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro po<strong>de</strong>r! Saberá, a esta<br />

altura, que o po<strong>de</strong>r que vem buscando há tanto tempo é seu, enfim. Po<strong>de</strong> fazer o que quiser com<br />

ele. Seu aliado está às suas or<strong>de</strong>ns. Seu <strong>de</strong>sejo é or<strong>de</strong>m. Consegue ver tudo o que está a sua volta.<br />

Está agora o homem diante do seu terceiro inimigo: o po<strong>de</strong>r! Esse é o mais forte <strong>de</strong> todos os<br />

inimigos e, naturalmente, diante <strong>de</strong>le o mais fácil é ce<strong>de</strong>r — afinal <strong>de</strong> contas, com po<strong>de</strong>r, o<br />

homem é realmente invencível, po<strong>de</strong> tudo coman<strong>da</strong>r… Começa correndo riscos calculados e<br />

termina estabelecendo regras, porque é um senhor.<br />

Um homem nesse estágio quase nem nota que está frente a frente com o inimigo. E, <strong>de</strong> repente,<br />

sem saber, certamente terá perdido a batalha. Seu inimigo o terá transformado num ser cruel e<br />

caprichoso. Embora jamais perca a clareza e o po<strong>de</strong>r, se for <strong>de</strong>rrotado pelo po<strong>de</strong>r, morrerá sem<br />

saber manejá-lo. Alguém, nessas condições, não tem domínio sobre si e não sabe quando ou<br />

como usar o po<strong>de</strong>r que possui.<br />

A <strong>de</strong>rrota, por algum <strong>de</strong>sses inimigos, é sempre uma <strong>de</strong>rrota final: uma vez que dominam o<br />

homem, não há na<strong>da</strong> mais a fazer — uma vez que ele ce<strong>de</strong>, está liqui<strong>da</strong>do. No entanto, se a<br />

<strong>de</strong>speito <strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> fraqueza, a princípio, ele consegue retomar a batalha, isso significa<br />

que ain<strong>da</strong> é possível ser um homem <strong>de</strong> conhecimento. O indivíduo é <strong>de</strong>rrotado quando não tenta<br />

mais e se abandona.<br />

Para vencer o terceiro inimigo, o homem terá que <strong>de</strong>safiá-lo proposita<strong>da</strong>mente. Terá que<br />

conquistar a compreensão <strong>de</strong> que o po<strong>de</strong>r que parece ter adquirido, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, nunca é seu.<br />

Terá que tratar com cui<strong>da</strong>do e leal<strong>da</strong><strong>de</strong> tudo o que apren<strong>de</strong>u. Se conseguir ver que a clareza e<br />

o po<strong>de</strong>r, sem controle, são piores do que os erros, ele chegará a um ponto em que tudo estará<br />

controlado: saberá quando e como usar o po<strong>de</strong>r — e assim o terá dominado.<br />

O homem estará, então, no fim <strong>da</strong> sua jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> conhecimento e, quase sem perceber,<br />

encontrará seu último inimigo: a velhice! Esse inimigo é o mais cruel <strong>de</strong> todos: o único que não<br />

se consegue <strong>de</strong>rrotar por completo, mas apenas afastar temporariamente.<br />

É o momento em que o homem não tem mais receios, não tem mais impaciências <strong>de</strong> espírito…<br />

Um momento em que todo o seu po<strong>de</strong>r está controlado e que ele sente um <strong>de</strong>sejo irresistível<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>scansar… Se ce<strong>de</strong>r completamente a seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> <strong>de</strong>itar-se e esquecer, se afun<strong>da</strong>r-se na<br />

fadiga, terá perdido a última batalha e o seu inimigo o reduzirá a uma criatura velha e débil. Seu<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> cena dominará to<strong>da</strong> a sua clareza, o seu po<strong>de</strong>r e a sua sabedoria. Mas se, ao<br />

contrário, o homem saco<strong>de</strong> a fadiga e vive seu <strong>de</strong>stino completamente, então po<strong>de</strong>rá ser<br />

consi<strong>de</strong>rado um homem <strong>de</strong> conhecimento, nem que seja no breve momento em que consegue<br />

lutar contra o seu último inimigo invencível.<br />

Esse momento <strong>de</strong> clareza, po<strong>de</strong>r e conhecimento é o suficiente!<br />

M1U10T1<br />

2


A moça tecelã *<br />

Marina Colasanti<br />

Acor<strong>da</strong>va ain<strong>da</strong> no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás <strong>da</strong>s beira<strong>da</strong>s <strong>da</strong> noite. E logo<br />

sentava-se ao tear.<br />

Linha clara, para começar o dia. Delicado traço <strong>de</strong> luz, que ela ia passando entre os fios estendidos,<br />

enquanto lá fora a clari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> manhã <strong>de</strong>senhava o horizonte.<br />

Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.<br />

Se era forte <strong>de</strong>mais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lança<strong>de</strong>ira grossos<br />

fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazi<strong>da</strong> pelas nuvens, escolhia um fio<br />

<strong>de</strong> prata, que em pontos longos rebor<strong>da</strong>va sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.<br />

Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros,<br />

bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.<br />

Assim, jogando a lança<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> um lado para o outro e batendo os gran<strong>de</strong>s pentes do tear para<br />

frente e para trás, a moça passava seus dias.<br />

Na<strong>da</strong> lhe faltava. Na hora <strong>da</strong> fome tecia um lindo peixe, com cui<strong>da</strong>do <strong>de</strong> escamas. E eis que o peixe<br />

estava na mesa, pronto para ser comido. Se se<strong>de</strong> vinha, suave era a lã cor <strong>de</strong> leite que entremeava o<br />

tapete. E à noite, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lançar seu fio <strong>de</strong> escuridão, dormia tranqüila.<br />

Tecer era tudo o que fazia.Tecer era tudo o que queria fazer.<br />

Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira<br />

vez pensou como seria bom ter um marido ao lado.<br />

Não esperou o dia seguinte. Com capricho <strong>de</strong> quem tenta uma coisa nunca conheci<strong>da</strong> começou<br />

a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe <strong>da</strong>riam companhia. E aos poucos seu <strong>de</strong>sejo foi<br />

aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava<br />

justamente acabando <strong>de</strong> entremear o último fio <strong>da</strong> ponta dos sapatos, quando bateram à porta.<br />

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu <strong>de</strong> pluma e foi entrando<br />

na sua vi<strong>da</strong>.<br />

Aquela noite, <strong>de</strong>ita<strong>da</strong> contra o ombro <strong>de</strong>le, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para<br />

aumentar ain<strong>da</strong> mais a sua felici<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

* Extraído <strong>de</strong> Doze reis e a moça no labirinto do vento. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Nórdica, 1982, p. 12-6.<br />

M1U10T2<br />

M1U10T2<br />

1


E feliz foi, por algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque<br />

<strong>de</strong>scoberto o po<strong>de</strong>r do tear, em na<strong>da</strong> mais pensou a não ser nas coisas to<strong>da</strong>s que ele lhe po<strong>de</strong>ria <strong>da</strong>r.<br />

— Uma casa maior é necessária — disse para a mulher.E parecia justo,agora que eram dois.Exigiu que<br />

escolhesse as mais belas lãs cor <strong>de</strong> tijolo, fios ver<strong>de</strong>s para os batentes, e pressa para a casa acontecer.<br />

Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. — Por que ter casa, se po<strong>de</strong>mos ter palácio? —<br />

perguntou. Sem querer resposta, imediatamente or<strong>de</strong>nou que fosse <strong>de</strong> pedra com arremates <strong>de</strong> prata.<br />

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e esca<strong>da</strong>s, e<br />

salas e poços. A neve chegava, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela<br />

não tinha tempo para arrematar o dia.Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes<br />

acompanhando o ritmo <strong>da</strong> lança<strong>de</strong>ira.<br />

Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o<br />

mais alto quarto <strong>da</strong> mais alta torre.<br />

— É para que ninguém saiba do tapete — disse. E antes <strong>de</strong> trancar a porta à chave advertiu: — Faltam<br />

as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!<br />

Sem <strong>de</strong>scanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio <strong>de</strong> luxos, os cofres <strong>de</strong><br />

moe<strong>da</strong>s, as salas <strong>de</strong> criados.<br />

Tecer era tudo o que fazia.Tecer era tudo o que queria fazer.<br />

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com<br />

todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha <strong>de</strong> novo.<br />

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências.<br />

E <strong>de</strong>scalça para não fazer barulho, subiu a longa esca<strong>da</strong> <strong>da</strong> torre, sentou-se ao tear.<br />

Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lança<strong>de</strong>ira ao contrário, e, jogando-a<br />

veloz <strong>de</strong> um lado para o outro, começou a <strong>de</strong>sfazer seus tecidos. Desteceu os cavalos, as<br />

carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois <strong>de</strong>steceu os criados e o palácio e to<strong>da</strong>s as maravilhas<br />

que continha. E novamente se viu na casa pequena e sorriu para o jardim além <strong>da</strong> janela.<br />

A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou, e espantado olhou em<br />

volta. Não teve tempo <strong>de</strong> se levantar. Ela <strong>de</strong>sfazia o <strong>de</strong>senho escuro dos sapatos, e ele viu seus<br />

pés <strong>de</strong>saparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o na<strong>da</strong> subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito<br />

aprumado, o emplumado chapéu.<br />

Então, como se ouvisse a chega<strong>da</strong> do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a<br />

<strong>de</strong>vagar entre os fios, <strong>de</strong>licado traço <strong>de</strong> luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.<br />

M1U10T2<br />

2


Língua<br />

Caetano Veloso<br />

Gosto <strong>de</strong> sentir a minha língua roçar<br />

A língua <strong>de</strong> Luís <strong>de</strong> Camões<br />

Gosto <strong>de</strong> ser e <strong>de</strong> estar<br />

E quero me <strong>de</strong>dicar<br />

A criar confusões <strong>de</strong> prosódia<br />

E uma profusão <strong>de</strong> paródias<br />

Que encurtem dores<br />

E furtem cores como camaleões<br />

Gosto do Pessoa na pessoa<br />

Da rosa no Rosa<br />

E sei que a poesia está para prosa<br />

Assim como o amor está para amiza<strong>de</strong><br />

E quem há <strong>de</strong> negar que esta lhe é<br />

Superior<br />

E <strong>de</strong>ixa os portugais morrerem à mingua<br />

"Minha pátria é minha língua"<br />

Fala, Mangueira!<br />

Fala!<br />

Flor do Lácio Sambódromo<br />

Lusamérica latim em pó<br />

O que quer<br />

O que po<strong>de</strong><br />

Esta língua?<br />

Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas<br />

E o falso inglês relax dos surfistas<br />

Sejamos imperialistas<br />

Vamos na velô <strong>da</strong> dicção choo choo <strong>de</strong><br />

Carmem Miran<strong>da</strong><br />

E que o Chico Buarque <strong>de</strong> Holan<strong>da</strong> nos<br />

Resgate<br />

E – xeque-mate-explique-nos Luan<strong>da</strong><br />

M1U10T3<br />

M1U10T3<br />

1


M1U10T3<br />

2<br />

Ouçamos com atenção os <strong>de</strong>les e os <strong>de</strong>las<br />

Da TV Globo<br />

Sejamos o lobo do lobo do homem<br />

Adoro nomes<br />

Nomes em ã<br />

De coisas como Rã e imã<br />

Nomes <strong>de</strong> nomes<br />

Como Maria <strong>da</strong> fé, Scarlet Moon<br />

Chevalier,<br />

Glauco Matoso e Arrigo Barnabé<br />

Arrigo Barnabé, Arrigo Barnabé, Arrigo<br />

Barnabé,<br />

Flor do Lácio…<br />

Se você tem uma idéia incrível<br />

É melhor fazer uma canção<br />

Está provado que só é possível<br />

Filosofar em alemão<br />

Blitz quer dizer corisco<br />

Hollywood quer dizer Azevedo<br />

E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o<br />

Recôncavo<br />

Meu medo!<br />

A língua é minha pátria<br />

E eu não tenho pátria: tenho mátria<br />

Eu quero é frátria<br />

Poesia concreta e prosa caótica<br />

Ótica futura<br />

Ta crau<strong>de</strong> brô você e tu lhe amo<br />

Que é que eu faço, nego?<br />

Bote ligeiro<br />

Samba-rap, chic-left com banana<br />

Será que ele está no Pão <strong>de</strong> Açúcar<br />

Nós canto-falamos como quem inveja<br />

Negros<br />

Que sofrem horrores no gueto do Harlem<br />

Livros, discos, ví<strong>de</strong>o à mancheia<br />

E <strong>de</strong>ixa que digam, que pensem, que falem


Quando o planejamento faz a diferença<br />

Bete é professora <strong>da</strong> re<strong>de</strong> pública municipal <strong>de</strong> ensino e trabalha no primeiro ciclo, principalmente<br />

com a 1 a .série, tendo como objetivo a alfabetização <strong>da</strong>s crianças. Há muito tempo que alfabetiza<br />

usando a cartilha e exercícios que ela mesma prepara, tendo como referência as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

propostas nos livros didáticos.<br />

No início do ano letivo <strong>de</strong> 1999, numa reunião pe<strong>da</strong>gógica, a coor<strong>de</strong>nadora propôs aos<br />

professores que socializassem suas propostas <strong>de</strong> trabalho previstas para o ano.<br />

Bete começou seu relato dizendo que a proposta que tinha para as turmas <strong>de</strong> 1ª série era que<br />

ao final do ano elas soubessem to<strong>da</strong>s as sílabas simples e algumas complexas, que pu<strong>de</strong>ssem ler<br />

textos simples. Acrescentou dizendo que pretendia <strong>de</strong>senvolver essas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s através <strong>da</strong><br />

cartilha que adotou junto com as outras professoras <strong>da</strong> mesma série e também <strong>de</strong> outros exercícios<br />

que prepararia no mimeógrafo, utilizando alguns mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> livros didáticos.<br />

Bete começou a contar como trabalhava, porém em nenhum momento consultou o seu<br />

planejamento. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não via necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> para isso, até porque o planejamento que fazia<br />

tinha mais uma função burocrática do que qualquer outra. Ele não a instrumentalizava no dia-a-dia,<br />

não orientava a toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões sobre sua prática pe<strong>da</strong>gógica. O que importava era a<br />

lista <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que ela trazia no seu ca<strong>de</strong>rno, porque ela sim era útil e mostrava o que<br />

pretendia realizar com as crianças na sala <strong>de</strong> aula.<br />

Diante do relato feito por Bete, a coor<strong>de</strong>nadora fez o seguinte comentário:<br />

— Pelo que pu<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r, Bete, seu objetivo é que as crianças apren<strong>da</strong>m as sílabas simples,<br />

algumas complexas e que saibam ler pequenos textos. E que a forma pela qual preten<strong>de</strong> alcançá-lo<br />

é através dos exercícios <strong>da</strong> cartilha e outros parecidos. Seu objetivo se limita à compreensão do<br />

sistema alfabético. Falta incluir outros importantes, como: que as crianças saibam fazer uso <strong>da</strong><br />

linguagem tanto oral como escrita, a<strong>de</strong>quando-as aos diferentes <strong>de</strong>stinos que essas linguagens<br />

possam ter; que compreen<strong>da</strong>m os textos tantos orais como escritos que são utilizados em<br />

diferentes situações cotidianas. Além disso, é também necessário que seja <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> previamente<br />

qual a quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> escrita que se espera que os alunos produzam ao finalizar uma primeira série.<br />

Bete ouviu o que disse a coor<strong>de</strong>nadora e perguntou como seria então o trabalho em sala <strong>de</strong> aula<br />

que "<strong>de</strong>sse conta" <strong>de</strong> tais objetivos.<br />

A coor<strong>de</strong>nadora lhe propôs trabalhar alfabetização com textos, e não com sílabas.<br />

M1U10T4<br />

Bete ficou surpresa com tal proposta e, ao mesmo tempo, curiosa. Querendo saber mais sobre<br />

o assunto comentou:<br />

— Tenho interesse em apren<strong>de</strong>r mais sobre como ensinar meus alunos, mas o que sei fazer são<br />

M1U10T4<br />

1


ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s como, por exemplo, ligar um <strong>de</strong>senho à primeira sílaba do seu nome, formar palavras<br />

com <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s sílabas etc. Preocupo-me em trazer ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s diferentes, que dão prazer às<br />

crianças. Aliás, esse é mais um <strong>de</strong> meus objetivos: que as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s sejam prazerosas e bem varia<strong>da</strong>s,<br />

como caça-palavras (<strong>da</strong>s palavras já estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s na cartilha), carta enigmática, jogos <strong>de</strong> dominó com<br />

sílabas ou <strong>de</strong> memória e outras.Tento diversificar as propostas <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que preparei no curso<br />

<strong>de</strong> magistério, troco com minhas parceiras aquelas que envolveram mais os alunos e garanto<br />

o trabalho com textos, que são os que reproduzo dos livros didáticos. Até preparei uma<br />

pasta com to<strong>da</strong>s essas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e a ca<strong>da</strong> ano acrescento outras.Você não acha que com<br />

elas estou alfabetizando com textos?<br />

Ouvindo o que Bete disse, a coor<strong>de</strong>nadora comunicou a ela e ao grupo que durante um mês,<br />

nas reuniões <strong>de</strong> formação, ela <strong>de</strong>senvolveria os Parâmetros em Ação <strong>de</strong> Alfabetização e, então,<br />

po<strong>de</strong>riam conhecer, estu<strong>da</strong>r e discutir como po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong>senvolvido um trabalho com os<br />

textos em sala <strong>de</strong> aula.<br />

Bete ficou curiosa em saber o que seria afinal alfabetizar com textos. Pensou que sua proposta<br />

<strong>de</strong> trabalho para o ano era basicamente o trabalho com a cartilha, a partir do qual era certo que<br />

seus objetivos seriam alcançados. Mas o que a coor<strong>de</strong>nadora trazia para essa reunião eram<br />

outros objetivos. Comentou então que, se tivesse alguma mu<strong>da</strong>nça na sua prática, precisará do<br />

apoio <strong>da</strong> coor<strong>de</strong>nadora, até porque os pais questionariam, uma vez que na primeira reunião do<br />

semestre ela já tinha dito a eles como as crianças <strong>de</strong>veriam chegar ao final do ano. E será que,<br />

com esses outros objetivos, as crianças iriam apren<strong>de</strong>r <strong>da</strong> mesma forma?<br />

Ao mesmo tempo que participava <strong>da</strong>s reuniões em que a coor<strong>de</strong>nadora estava <strong>de</strong>senvolvendo<br />

os PCN <strong>de</strong> Alfabetização, continuava com sua prática <strong>de</strong> sala <strong>de</strong> aula. Com o passar <strong>da</strong>s reuniões,<br />

Bete começou a enten<strong>de</strong>r a importância do ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> textos, <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver projetos e<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> alfabetização, que, diferentes <strong>da</strong> cartilha, favorecem a compreensão do sistema <strong>de</strong><br />

escrita, porém tendo como base os textos, e não mais as sílabas. Aos poucos, arriscou algumas<br />

mu<strong>da</strong>nças em sua prática.<br />

Ao final <strong>de</strong> 1999, avaliando tudo o que fez, percebeu que ofereceu muitas oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s que seus<br />

alunos não tiveram antes. Por exemplo, a leitura diária, a i<strong>da</strong> periódica à biblioteca <strong>da</strong> escola e até<br />

um pequeno projeto <strong>de</strong> língua escrita, que foi a confecção <strong>de</strong> um livro <strong>de</strong> receitas. A partir <strong>da</strong>í,<br />

colocou-se como meta fazer uma proposta <strong>de</strong> trabalho, um planejamento diferente para o ano 2000.<br />

Junto com uma parceira <strong>da</strong> 1ª série, listaram em seus ca<strong>de</strong>rnos que trabalhariam com o ca<strong>de</strong>rno<br />

<strong>de</strong> textos, ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> escrita, as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> alfabetização que tivessem como base o texto, e<br />

não as sílabas, a leitura feita pela professora e/ou pelos alunos diariamente e pelo menos três<br />

projetos na área <strong>de</strong> Língua Portuguesa.<br />

Na reunião pe<strong>da</strong>gógica do começo do ano, levou a lista do que pretendia trabalhar com as crianças.<br />

A coor<strong>de</strong>nadora sabia que, como Bete havia se envolvido com as discussões feitas no ano anterior<br />

— que inclusive a haviam aju<strong>da</strong>do a propor novas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s para seus alunos —, iria nesse novo<br />

ano letivo trazer outras idéias. Mas percebeu que o que Bete trazia era novamente uma lista <strong>de</strong><br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Será que ela sabia a serviço <strong>de</strong> quais objetivos elas <strong>de</strong>veriam ser <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s?<br />

Achou melhor não colocar essas questões e continuou a reunião, on<strong>de</strong> Bete fazia, entusiasma<strong>da</strong>,<br />

o relato sobre seu planejamento para 2000.<br />

M1U10T4<br />

2


Assim que terminou, e os outros professores dos <strong>de</strong>mais ciclos também, a coor<strong>de</strong>nadora fez a<br />

seguinte proposta para o grupo:<br />

— Pessoal, pelo que vimos, todos vocês estão propondo novas alternativas ao trabalho que<br />

vinham <strong>de</strong>senvolvendo até o ano passado, o que é muito bom. Mas é necessário informar os<br />

pais sobre a proposta para esse ano e precisa ser uma informação mais <strong>de</strong>talha<strong>da</strong>. É preciso<br />

que eles saibam por que vocês vão trabalhar com a leitura diariamente, por que adotarão um<br />

ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> texto e outro <strong>de</strong> escrita, trabalharão com projetos, enfim, explicar o que está<br />

por trás <strong>da</strong> <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> vocês.<br />

— Mas como faremos isso? — perguntou Bete.<br />

— Tenho uma idéia.Vocês leram uma lista <strong>de</strong> propostas, que tal agora escreverem, para ca<strong>da</strong><br />

uma <strong>de</strong>las, por que vocês vão <strong>de</strong>senvolvê-las? E principalmente, o que esperam dos alunos ao<br />

final do ano após esse trabalho?<br />

O grupo achou a idéia razoável e <strong>de</strong> certa maneira fácil.<br />

Bete começou seu trabalho, listou as seguintes propostas:<br />

Leitura<br />

• Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> leitura<br />

• Ouvir histórias<br />

• Empréstimos <strong>de</strong> livros<br />

• Ler e/ou ouvir textos informativos<br />

• Sala <strong>de</strong> leitura<br />

Escrita<br />

• Reescrita <strong>de</strong> textos<br />

• Criação <strong>de</strong> textos<br />

• Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> escrita<br />

• Cópia<br />

• Ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que favoreçam o entendimento do sistema alfabético <strong>de</strong> escrita<br />

M1U10T4<br />

3


Percebeu que sabia explicar como fazer ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>ssas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, aliás, tinha muitas sugestões,<br />

mas não conseguia explicar para que servia ca<strong>da</strong> uma, e era isso que teria <strong>de</strong> fazer na reunião <strong>de</strong><br />

pais. Para eles, não precisava entrar nos <strong>de</strong>talhes do tipo <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, até porque se perguntassem<br />

por que ela optou por essas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s ela não saberia como respon<strong>de</strong>r. Bete se <strong>de</strong>u conta <strong>de</strong><br />

que lhe faltava clareza dos objetivos <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>ssas propostas. Faltava discutir uma questão<br />

anterior a essa, que era: o que os alunos <strong>de</strong>vem saber ao final <strong>da</strong> 1 a série, que capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s eles<br />

<strong>de</strong>vem ter <strong>de</strong>senvolvido nesse período?<br />

Foi então que Bete percebeu que uma lista <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s não <strong>de</strong>fine por si só a intenção <strong>da</strong> prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica. Que num planejamento anual <strong>de</strong>vem constar primeiramente os objetivos, que por<br />

sua vez <strong>de</strong>vem se articular em torno <strong>da</strong>s capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s que os alunos <strong>de</strong>vem <strong>de</strong>senvolver, e que<br />

agora, sim, entendia como um planejamento com essa estrutura po<strong>de</strong>ria, <strong>de</strong> fato, ser um<br />

instrumento para seu trabalho.<br />

Bete levou essas questões para o grupo na reunião e constatou que as suas dúvi<strong>da</strong>s eram<br />

comuns ao grupo.<br />

A coor<strong>de</strong>nadora sugeriu que usassem como subsídio os Parâmetros Curriculares, que aju<strong>da</strong>m a<br />

<strong>de</strong>finir os objetivos <strong>de</strong> que eles estavam sentindo necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>. O que precisavam era a<strong>de</strong>quá-los<br />

à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> escola em que trabalhavam.<br />

O grupo retomou a sua tarefa e na reunião seguinte pô<strong>de</strong> compor um planejamento único do<br />

primeiro ciclo, articulado com os objetivos apontados para o segundo ciclo.<br />

Agora, todos do grupo sabiam o que e para que estavam fazendo o que escolheram fazer.<br />

Os objetivos compartilhados pelos professores auxiliaram na toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões quanto às<br />

melhores ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, na discussão <strong>da</strong>s muitas dúvi<strong>da</strong>s que apareceram durante o ano e principalmente<br />

para avaliarem em julho, na primeira reunião do segundo semestre, o que tinham alcançado e o<br />

que ain<strong>da</strong> precisavam alcançar.<br />

Bete, seus colegas e a coor<strong>de</strong>nadora sabem que esse planejamento anual não é fixo, que sofrerá<br />

alterações no início do próximo ano e sempre será modificado. As mu<strong>da</strong>nças serão impulsiona<strong>da</strong>s<br />

pela reflexão que os professores farão sobre o trabalho que estão realizando, pela socialização<br />

<strong>da</strong>s dúvi<strong>da</strong>s e incertezas e pela busca <strong>de</strong> soluções, tanto individual como coletivamente. Assim<br />

como aconteceu no início <strong>de</strong> 1999, que trouxe para o ano seguinte mu<strong>da</strong>nças significativas na<br />

prática dos professores.<br />

Tanto Bete como seu grupo reconheceram que a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> do registro do trabalho que<br />

realizavam mostrou o quanto sabiam pouco sobre a intenção pe<strong>da</strong>gógica que orientava as suas<br />

práticas em sala <strong>de</strong> aula. Reconheceram também que é fun<strong>da</strong>mental esse registro, tanto para que<br />

se tenha um grupo <strong>de</strong> professores que trabalham para alcançar objetivos comuns, como para<br />

tomar as melhores <strong>de</strong>cisões que resultem na aprendizagem dos alunos. Estavam agora se<br />

fortalecendo como um coletivo.<br />

M1U10T4<br />

4


M1U10T5<br />

Contribuições à prática pe<strong>da</strong>gógica-5<br />

Este texto não integra a <strong>Coletânea</strong> <strong>de</strong> <strong>Textos</strong> disponível na Internet porque refere-se<br />

conteúdo dos ví<strong>de</strong>os que integram as uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s do Programa <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores<br />

Alfabetizadores e, portanto, só fazem sentido para os participantes do Curso.<br />

M1U10T5<br />

1


Planejar é preciso *<br />

Rosa Maria Antunes <strong>de</strong> Barros<br />

O planejamento sempre foi um instrumento importante para o ser humano, em qualquer setor<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong><strong>de</strong>: no governo, na empresa, no comércio, em casa, na igreja ou na escola.<br />

Planejar torna possível <strong>de</strong>finir o que queremos a curto, médio e longo prazo; prever situações e<br />

obter recursos; organizar as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s; dividir tarefas para facilitar o trabalho; avaliar.<br />

Nem sempre nos <strong>da</strong>mos conta <strong>de</strong> como o planejamento está presente em nosso dia-a-dia. Até mesmo<br />

uma i<strong>da</strong> ao mercado requer planejamento, para evitar compras <strong>de</strong>snecessárias e excessos no orçamento.<br />

Mas isso não afasta os improvisos, que fazem parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e também são esperados em um<br />

planejamento – às vezes, são eles que dão "aquele tom", isto é, mais realce e quali<strong>da</strong><strong>de</strong> àquilo que<br />

estamos preten<strong>de</strong>ndo.<br />

Mas, e na escola, como é o planejamento?<br />

Para muitos, é o cumprimento <strong>de</strong> uma exigência burocrática <strong>de</strong> diretores e supervisores <strong>de</strong><br />

ensino. Muitos professores reclamam pelo tempo que "per<strong>de</strong>m" elaborando um plano do trabalho<br />

e muitas vezes nem chegam a consultá-lo ao longo do ano. Um documento preparado com esse<br />

espírito com certeza não tem função no cotidiano, pois não aten<strong>de</strong> a uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> prática.<br />

E o que acaba acontecendo, então? De tudo um pouco.<br />

Alguns professores dão aulas <strong>de</strong> improviso: "Na hora eu resolvo o que vou trabalhar com<br />

os alunos".<br />

Outros transformam o livro didático em plano <strong>de</strong> trabalho e dizem: "É mais prático, não tenho<br />

tempo para ficar inventando novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s".<br />

Outros, ain<strong>da</strong>, copiam todos os anos o mesmo plano: "Afinal, para que mu<strong>da</strong>r? Ninguém vai ler<br />

mesmo! ".<br />

E há aqueles que fazem pequenas modificações nos planos anteriores, nem sempre muito<br />

significativas.<br />

Um planejamento <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Mas não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> falar dos professores que, para elaborar seu planejamento, levam em conta:<br />

• o tipo <strong>de</strong> aluno que a escola preten<strong>de</strong> formar;<br />

* In Ca<strong>de</strong>rnos <strong>da</strong> TV Escola - Português, MEC/SEED, 2000.<br />

M1U10T6<br />

M1U10T6<br />

1


• exigências coloca<strong>da</strong>s pela reali<strong>da</strong><strong>de</strong> social;<br />

• resultados <strong>de</strong> pesquisas sobre aprendizagem;<br />

• contribuições <strong>da</strong>s áreas <strong>de</strong> conhecimento e <strong>da</strong> didática.<br />

Para esses professores, o planejamento é um instrumento <strong>de</strong> fato – um meio <strong>de</strong> organizar o<br />

trabalho e contribuir para o aprendizado dos alunos.Vejamos como isto acontece com Fátima,<br />

uma professora <strong>de</strong> 1 a série.<br />

Fátima é professora há <strong>de</strong>zoito anos e, a ca<strong>da</strong> ano, sente necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> aprimorar seu trabalho.<br />

Além disso, apesar <strong>de</strong> <strong>da</strong>r aula em duas classes, sempre achou tempo para ler materiais que<br />

consi<strong>de</strong>ra significativos para sua prática e, com freqüência, participa <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> atualização.<br />

A certa altura, achou que era preciso pensar em uma nova forma <strong>de</strong> planejar o trabalho.<br />

Compartilhou sua insatisfação com seus colegas e todos, juntos, resolveram que o plano <strong>da</strong>quele<br />

ano não seguiria o esquema convencional.<br />

E o que fizeram <strong>de</strong> tão diferente? Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não mudou muita coisa aparentemente; como<br />

qualquer plano, esse também incluía objetivos, conteúdos, procedimentos didáticos e avaliação.<br />

Mas Fátima não estava tão preocupa<strong>da</strong> com o conteúdo do plano, e sim com a maneira <strong>de</strong><br />

elaborá-lo, <strong>de</strong> forma a torná-lo útil <strong>de</strong> fato para ela e seus colegas.<br />

Na escola em que Fátima trabalhava, os professores tiveram dois dias <strong>de</strong> reunião, antes do início<br />

<strong>da</strong>s aulas, para discutir os objetivos <strong>da</strong> escola e preparar as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos primeiros quinze dias<br />

<strong>de</strong> aula. Nessas duas semanas, os professores teriam a chance <strong>de</strong> conhecer seus alunos, i<strong>de</strong>ntificar<br />

suas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s e seu nível <strong>de</strong> conhecimento. Feito isso, haveria cinco dias <strong>de</strong> planejamento <strong>da</strong> série.<br />

Quando os professores se reuniram, após os primeiros quinze dias <strong>de</strong> aula, a diretora resolveu<br />

organizar as reuniões <strong>de</strong> planejamento por área (reivindicação feita no ano anterior), discutindo<br />

os objetivos <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las. Para aju<strong>da</strong>r nessa discussão, levou os Parâmetros Curriculares<br />

Nacionais, do <strong>Ministério</strong> <strong>da</strong> <strong>Educação</strong>. Depois disso, os professores se reuniram por ciclo e,<br />

consi<strong>de</strong>rando o diagnóstico feito em ca<strong>da</strong> classe, traçaram os objetivos <strong>da</strong> área para aquele ano,<br />

no ciclo e nas respectivas séries.<br />

Definidos os objetivos, levantaram a próxima questão: como proce<strong>de</strong>r para atingi-los? No caso<br />

<strong>de</strong> Língua Portuguesa, Fátima comentou a importância do trabalho com linguagem oral e<br />

linguagem escrita.<br />

O grupo <strong>de</strong> professores resolveu, então, discutir o que ca<strong>da</strong> um sabia a respeito. Enquanto isso,<br />

foram folheando os Parâmetros Curriculares Nacionais <strong>de</strong> Língua Portuguesa, chamando a atenção<br />

uns dos outros para alguns trechos que enriqueciam a discussão. Por fim, <strong>de</strong>cidiram fazer uma<br />

lista do que achavam fun<strong>da</strong>mental utilizar e produziram um relatório, com tudo que haviam<br />

discutido: objetivos, conteúdos, ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e propostas <strong>de</strong> avaliação. Estava pronto um plano <strong>de</strong><br />

ensino útil.<br />

M1U10T6<br />

2


Outra idéia interessante, sugeri<strong>da</strong> por Fátima, foi o planejamento <strong>da</strong> rotina semanal. Ela e os<br />

colegas listaram quais as áreas a ser trabalha<strong>da</strong>s naquele ano – Língua Portuguesa, Matemática,<br />

Ciências, História, Geografia, <strong>Educação</strong> Artística e <strong>Educação</strong> Física – e ca<strong>da</strong> professora planejou<br />

a rotina <strong>de</strong> sua própria classe.<br />

Em segui<strong>da</strong>, planejaram como distribuir o trabalho <strong>de</strong> Língua Portuguesa <strong>de</strong>ntro do horário<br />

previsto. Além <strong>de</strong> especificar o gênero <strong>de</strong> texto, precisariam <strong>de</strong>finir as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s – ler, ouvir,<br />

escrever <strong>de</strong> memória, reescrever, criar, revisar. Ficou assim:<br />

• Leitura pelo professor <strong>de</strong> diferentes tipos <strong>de</strong> texto.<br />

• Leitura pelos alunos – inclusive propostas para alunos ain<strong>da</strong> não-alfabetizados.<br />

• Produção <strong>de</strong> texto (oral ou escrito) coletiva e individual.<br />

Organizaram as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Língua Portuguesa para a primeira semana, tendo como preocupação<br />

central garantir a realização <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s necessárias, com diferentes tipos <strong>de</strong> texto.<br />

A tabela que fizeram po<strong>de</strong> servir <strong>de</strong> exemplo:<br />

2ª- feira 3ª- feira 4ª- feira 5ª- feira 6ª- feira<br />

Leitura pelo professor<br />

<strong>de</strong> textos narrativos 1<br />

Leitura pelos alunos<br />

<strong>de</strong> textos poéticos -<br />

poemas, músicas,<br />

parlen<strong>da</strong>s, quadrinhas:<br />

or<strong>de</strong>nação e<br />

i<strong>de</strong>ntificação palavras<br />

Leitura pelo professor<br />

<strong>de</strong> textos poéticos 2<br />

Leitura pelos alunos<br />

preenchimento <strong>de</strong><br />

cruzadinha com<br />

banco <strong>de</strong><br />

palavras<br />

1 Por exemplo: histórias, fábulas, pia<strong>da</strong>s...<br />

2 Por exemplo: poemas, letras <strong>de</strong> música, quadrinhos<br />

Leitura pelo professor<br />

<strong>de</strong> textos narrativos<br />

Leitura pelos alunos<br />

preenchimento <strong>de</strong><br />

classificação<br />

segundo algum<br />

critério<br />

Leitura pelo professor<br />

<strong>de</strong> textos informativos<br />

ou instrucionais<br />

Leitura pelos alunos<br />

<strong>de</strong> história em<br />

quadrinhos:<br />

leitura e<br />

or<strong>de</strong>nação<br />

Leitura pelo professor<br />

<strong>de</strong> textos narrativos<br />

Leitura pelos alunos<br />

<strong>de</strong> pequenos trechos<br />

<strong>de</strong> histórias<br />

ou acontecimentos<br />

Escrita Individual Escrita Coletiva Escrita Individual Escrita Coletiva Escrita Individual<br />

M1U10T6<br />

3


Bons resultados<br />

Esse planejamento simplificou bastante o trabalho <strong>de</strong> todos que, assim, ganharam mais tempo<br />

para <strong>de</strong>bater outras questões importantes: o trabalho em grupo, por exemplo.<br />

O exemplo <strong>da</strong>do é apenas uma ilustração <strong>da</strong>s vantagens <strong>de</strong> um trabalho planejado coletivamente,<br />

<strong>de</strong> um projeto curricular elaborado e <strong>de</strong>senvolvido <strong>de</strong> forma compartilha<strong>da</strong>. São essas práticas<br />

que contribuem para o prazer <strong>de</strong> ensinar ca<strong>da</strong> vez mais e melhor.<br />

Em suas discussões, os professores <strong>de</strong>scobriram que a maneira <strong>de</strong> organizar os grupos na classe<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> várias coisas; <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do objetivo <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> proposta, dos conhecimentos prévios<br />

dos alunos e <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> os alunos cooperarem entre si.<br />

Organizar o trabalho a partir <strong>de</strong>sses critérios foi um exercício difícil, mas os professores<br />

acreditavam no que estavam fazendo e isso garantiu o envolvimento <strong>de</strong> todos. Começaram a<br />

avaliar o que não <strong>da</strong>va certo, a discutir novos encaminhamentos e a reformular a prática<br />

pe<strong>da</strong>gógica <strong>de</strong> acordo com as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong>s.<br />

Assim transcorreu o ano. As reuniões quinzenais se tornaram mais produtivas e foram ocorrendo<br />

reformulações no plano <strong>de</strong> trabalho, resultantes do aprendizado dos professores com cursos,<br />

leituras, discussões coletivas, análise <strong>da</strong>s propostas realiza<strong>da</strong>s na sala <strong>de</strong> aula e outras ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Foi um ano trabalhoso, mas muito mais gratificante.<br />

M1U10T6<br />

4


Conto <strong>de</strong> verão nº 2: ban<strong>de</strong>ira branca *<br />

Luís Fernando Veríssimo<br />

Ele, tirolês. Ela: o<strong>da</strong>lisca. Eram <strong>de</strong> culturas muito diferentes, não podia <strong>da</strong>r certo. Mas tinham só<br />

quatro anos e se enten<strong>de</strong>ram. No mundo dos quatro anos todos se enten<strong>de</strong>m, <strong>de</strong> um jeito ou<br />

<strong>de</strong> outro. Em vez <strong>de</strong> <strong>da</strong>nçarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos<br />

<strong>de</strong>sesperados <strong>da</strong>s mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho <strong>de</strong> confete, serpentina<br />

e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças <strong>de</strong> jamais serem levados a outro baile<br />

<strong>de</strong> Carnaval.<br />

Encontraram-se <strong>de</strong> novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês,<br />

agora apertado nos fundilhos, ela <strong>de</strong> egípcia.Tentaram recomeçar o montinho, mas <strong>de</strong>ssa vez as<br />

mães reagiram e os dois foram obrigados a <strong>da</strong>nçar, pular e entrar no cordão, sob ameaça <strong>de</strong><br />

levarem uns tapas. Passaram o tempo todo <strong>de</strong> mãos <strong>da</strong><strong>da</strong>s.<br />

Só no terceiro Carnaval se falaram.<br />

— Como é teu nome?<br />

— Janice. E o teu?<br />

— Pín<strong>da</strong>ro.<br />

— O quê?!<br />

— Pín<strong>da</strong>ro.<br />

— Que nome!<br />

Ele <strong>de</strong> legionário romano, ela <strong>de</strong> índia americana.<br />

***<br />

Só no sétimo baile (pirata, chinesa) <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>ram o mistério <strong>de</strong> só se encontrarem no Carnaval<br />

e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia<br />

no Carnaval, a tia é que era sócia.<br />

— Ah.<br />

Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca <strong>da</strong>s meninas <strong>de</strong><br />

confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na<br />

* Extraído <strong>de</strong>: Os melhores contos brasileiros, organizado por Ítalo Mariconi. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Objetiva, 2000, p. 582 a 585.<br />

M1U11T1<br />

M1U11T1<br />

1


gola alta do vestido <strong>de</strong> imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Ban<strong>de</strong>ira Branca, ele<br />

veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se<br />

<strong>de</strong>spediram, ela o beijou na face, disse "Até o Carnaval que vem" e saiu correndo.<br />

No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram.<br />

Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não<br />

estavam olhando. Até na boca. Na hora <strong>da</strong> <strong>de</strong>spedi<strong>da</strong>, ele pediu:<br />

— Me dá alguma coisa.<br />

— O quê?<br />

— Qualquer coisa.<br />

— O leque.<br />

O leque <strong>de</strong> bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.<br />

***<br />

No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano<br />

<strong>de</strong>sconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano<br />

inteiro pensando nela, à vezes tirando o leque do escon<strong>de</strong>rijo para cheirá-lo, antegozando o<br />

momento <strong>de</strong> encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento <strong>da</strong><br />

sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu <strong>de</strong>mais.Teve que ser<br />

carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que aconteceu?<br />

— Você vomitou a alma — disse a mãe.<br />

— Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria <strong>de</strong> volta.<br />

Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro <strong>de</strong>la.<br />

Mas no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube — e lá estava ela! Quinze anos. Uma<br />

moça. Peitos, tudo. Uma fantasia in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>.<br />

— Sei lá.Bávara tropical — disse ela, rindo.<br />

Estava diferente. Era só o corpo. Menos tími<strong>da</strong>, o riso mais alto. Contou que faltara no ano<br />

anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.<br />

— E aquela bailarina espanhola?<br />

— Nem me fala. E o toureiro?<br />

— Aposentado.<br />

M1U11T1<br />

2


A fantasia <strong>de</strong>le era <strong>de</strong> na<strong>da</strong>. Camisa flori<strong>da</strong>, bermu<strong>da</strong>, finalmente um brasileiro. Ela estava com um<br />

grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao<br />

grupo, alguém disse "Pín<strong>da</strong>ro?!", e todos caíram na risa<strong>da</strong>. Ele viu que ela estava rindo também.<br />

Deu uma <strong>de</strong>sculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria<br />

várias garrafas presas nas pernas, escondi<strong>da</strong>s sob as calças <strong>da</strong> fantasia <strong>de</strong> sultão.<br />

O Marcelão tinha o que ele precisava para preencher o buraco <strong>de</strong>ixado pela alma. Quinze anos,<br />

pensou ele, e já estou per<strong>de</strong>ndo to<strong>da</strong>s as ilusões <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, começando pelo Carnaval. Não <strong>de</strong>vo<br />

chegar aos 30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adorna<strong>da</strong>,<br />

bebendo o guaraná clan<strong>de</strong>stino do Marcelão, vendo ela passar abraça<strong>da</strong> com uma sucessão <strong>de</strong><br />

primos e amigos <strong>de</strong> primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até<br />

criminoso, que reduzira sua fantasia a um par <strong>de</strong> calças curtas <strong>de</strong> couro. Pensou em dizer alguma<br />

coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi "pelo menos o meu tirolês era autêntico" e <strong>de</strong>sistiu. Mas,<br />

quando a ban<strong>da</strong> começou a tocar Ban<strong>de</strong>ira Branca e ele se dirigiu para a saí<strong>da</strong>, tonto e amargurado,<br />

sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão.<br />

Ela enlaçando-o com os dois braços para <strong>da</strong>nçarem assim, ela dizendo "não vale, você cresceu mais<br />

do que eu" e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.<br />

***<br />

Encontraram-se <strong>de</strong> novo 15 anos <strong>de</strong>pois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso num aeroporto. Ela<br />

<strong>de</strong>sembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os<br />

filhos no Rio. Ela disse "quase não reconheci você sem fantasias". Ele custou a reconhecê-la. Ela<br />

estava gor<strong>da</strong>, nunca a reconheceria, muito menos <strong>de</strong> bailarina espanhola. A última coisa que ele<br />

dissera fora "preciso te dizer uma coisa", e ela dissera "no Carnaval que vem" e no Carnaval<br />

seguinte ela não aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe<br />

como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o en<strong>de</strong>reço <strong>de</strong>le, como não sabia nem o sobrenome<br />

<strong>de</strong>le e, mesmo, não teria on<strong>de</strong> tomar nota na fantasia <strong>de</strong> falsa bávara...<br />

— O que você ia me dizer, no outro Carnaval? – perguntou ela.<br />

— Esqueci – mentiu ele.<br />

Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos <strong>de</strong>le moram no Rio,<br />

com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil...<br />

E a to<strong>da</strong>s essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz <strong>da</strong> minha<br />

vi<strong>da</strong>, Ban<strong>de</strong>ira Branca, a cabeça <strong>de</strong>la no meu ombro, e que todo o resto <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong> será apenas<br />

o resto <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong>? E ela pensando: como é mesmo o nome <strong>de</strong>le? Péricles. Será Péricles? Ele:<br />

digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ain<strong>da</strong> tenho o leque? Ela:<br />

Petrarco. Pôncio. Ptolomeu...<br />

M1U11T1<br />

3


Para Maria <strong>da</strong> Graça *<br />

Paulo Men<strong>de</strong>s Campos<br />

Agora, que chegaste à i<strong>da</strong><strong>de</strong> avança<strong>da</strong> <strong>de</strong> 15 anos, Maria <strong>da</strong> Graça, eu te dou este livro: Alice no<br />

País <strong>da</strong>s Maravilhas.<br />

Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido <strong>de</strong>le está em ti.<br />

Escuta: se não <strong>de</strong>scobrires um sentido na loucura acabarás louca. Apren<strong>de</strong>, pois, logo <strong>de</strong> saí<strong>da</strong><br />

para a gran<strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, a ler este livro como um simples manual do sentido evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as<br />

coisas, inclusive as loucas. Apren<strong>de</strong> isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves<br />

entre milhares que abrem as portas <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, Maria, é louca.<br />

Nem o papa, ninguém no mundo, po<strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r sem pestanejar à pergunta que Alice faz à<br />

gatinha: "Fala a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, Dinah, já comeste um morcego?".<br />

Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece<br />

muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa in<strong>da</strong>gação perplexa é o lugar-comum <strong>de</strong><br />

ca<strong>da</strong> história <strong>de</strong> gente. Quantas vezes mais <strong>de</strong>cifrares essa chara<strong>da</strong>, tão entranha<strong>da</strong> em ti mesma<br />

como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é <strong>da</strong>r ou<br />

inventar uma resposta. Ain<strong>da</strong> que seja mentira.<br />

A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice<br />

falou no fundo do poço: "Estou tão cansa<strong>da</strong> <strong>de</strong> estar aqui sozinha!". O importante é que ela<br />

conseguiu sair <strong>de</strong> lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo<br />

os gran<strong>de</strong>s macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta fecha<strong>da</strong>, e vice-versa, isto<br />

é, fechar uma porta bem aberta.<br />

Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante <strong>de</strong><br />

esperar <strong>de</strong>la gran<strong>de</strong>s conseqüências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu <strong>de</strong> tamanho,<br />

ficou no maior dos espantos.Apesar <strong>de</strong> ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que<br />

comem bolo.<br />

Maria, há uma sabedoria social ou <strong>de</strong> bolso; nem to<strong>da</strong> sabedoria tem <strong>de</strong> ser grave.<br />

A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir <strong>de</strong>sculpas sete vezes por dia: "Oh,<br />

I beg your pardon!". Pois viver é falar <strong>de</strong> cor<strong>da</strong> em casa <strong>de</strong> enforcado. Por isso te digo, para a tua<br />

sabedoria <strong>de</strong> bolso: se gostas <strong>de</strong> gato, experimenta o ponto <strong>de</strong> vista do rato. Foi o que o rato<br />

perguntou a Alice: "Gostaria <strong>de</strong> gatos se fosses eu?".<br />

* Extraido <strong>de</strong>: Para gostar <strong>de</strong> ler (volume 4 - crônicas) Rubem Braga, Carlos Drummonnd <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>,<br />

Fernando Sabino, Paulo Men<strong>de</strong>s Campos, São Paulo, Ática/Edição Didática.<br />

M1U11T2<br />

M1U11T2<br />

1


Os homens vivem apostando corri<strong>da</strong>, Maria. Nos escritórios, na política, nacional e internacional,<br />

nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até<br />

namora<strong>da</strong>s, todos vivem apostando corri<strong>da</strong>. São competições tão confusas, tão cheias <strong>de</strong> truques,<br />

tão <strong>de</strong>snecessárias, tão fingindo que não é,tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos,<br />

que quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corri<strong>da</strong> terminou!<br />

Mas quem ganhou?". É bobice, Maria <strong>da</strong> Graça, disputar uma corri<strong>da</strong> se a gente não irá saber<br />

quem venceu. Se tiveres <strong>de</strong> ir a algum lugar, não te preocupes a vai<strong>da</strong><strong>de</strong> fatigante <strong>de</strong> ser a primeira<br />

a chegar. Se chegares sempre aon<strong>de</strong> quiseres, ganhaste.<br />

Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!". Ouvirás isso milhares <strong>de</strong> vezes. Como ouvirás<br />

a terrível variante: "Minha vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>ria um romance". Ora, como to<strong>da</strong>s as vi<strong>da</strong>s vivi<strong>da</strong>s até o fim são<br />

longas e tristes, e como to<strong>da</strong>s as vi<strong>da</strong>s <strong>da</strong>riam romances, pois o romance é só o jeito <strong>de</strong> contar<br />

uma vi<strong>da</strong>, foge, poli<strong>da</strong> mas energicamente, dos homens e <strong>da</strong>s mulheres que suspiram e dizem<br />

"Minha vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>ria um romance!" Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.<br />

Os milagres sempre acontecem na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um e na vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> todos. Mas, ao contrário do que se<br />

pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem <strong>de</strong> repente, mas <strong>de</strong>vagar, muito <strong>de</strong>vagar.<br />

Quero dizer o seguinte: a palavra <strong>de</strong>pressão cairá <strong>de</strong> mo<strong>da</strong> mais cedo ou mais tar<strong>de</strong>. Como talvez seja<br />

mais tar<strong>de</strong>, prepara-te para a visita do monstro, e não te <strong>de</strong>sesperes ao triste pensamento <strong>de</strong> Alice:<br />

"Devo estar diminuindo <strong>de</strong> novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.<br />

E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto <strong>de</strong> tamanho que tomou um<br />

camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos,<br />

pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos<br />

assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso<br />

mesmo.A alma <strong>da</strong> gente é uma máquina complica<strong>da</strong> que produz durante a vi<strong>da</strong> uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

imensa <strong>de</strong> camundongos que parecem hipopótamos e <strong>de</strong> rinocerontes que parecem camundongos.<br />

O jeito é rir no caso <strong>da</strong> primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte<br />

que entrou em nossos domínios disfarçado <strong>de</strong> camundongo. E como tomar o pequeno por gran<strong>de</strong><br />

e o gran<strong>de</strong> por pequeno é sempre meio cômico, nunca <strong>de</strong>vemos per<strong>de</strong>r o bom humor.<br />

To<strong>da</strong> pessoa <strong>de</strong>ve ter três caixas para guar<strong>da</strong>r humor: uma caixa gran<strong>de</strong> para humor mais ou menos barato<br />

que a gente gasta na rua com os outros;uma caixa média para humor que a gente precisa ter quando está<br />

sozinho,para perdoares a ti mesma,para rires <strong>de</strong> ti mesma;por fim,uma caixinha preciosa, muito escondi<strong>da</strong>,<br />

para as gran<strong>de</strong>s ocasiões. Chamo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios<br />

<strong>de</strong> dor ou <strong>de</strong> vai<strong>da</strong><strong>de</strong>, em que sofremos a tentação <strong>de</strong> achar que fracassamos ou triunfamos, em que<br />

nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cui<strong>da</strong>do, Maria, com as gran<strong>de</strong>s ocasiões.<br />

Por fim, mais uma palavra <strong>de</strong> bolso: às vezes uma pessoa se abandona <strong>de</strong> tal forma ao sofrimento,<br />

com uma tal complacência, que tem medo <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r sair <strong>de</strong> lá. A dor também tem seu feitiço,<br />

e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter chorado um lago, pensava: "Agora<br />

serei castiga<strong>da</strong>, afogando-me em minhas próprias lágrimas".<br />

Conclusão: a própria dor <strong>de</strong>ve ter a sua medi<strong>da</strong>. É feio, é imo<strong>de</strong>sto, é vão, é perigoso ultrapassar<br />

a fronteira <strong>de</strong> nossa dor, Maria <strong>da</strong> Graça.<br />

M1U11T2<br />

2


Uma noite no paraíso *<br />

Ítalo Calvino<br />

Era uma vez dois gran<strong>de</strong>s amigos que, <strong>de</strong> tanto que se queriam, haviam feito um juramento:<br />

quem casasse primeiro <strong>de</strong>veria chamar o outro para padrinho, mesmo que se encontrasse no<br />

fim do mundo.<br />

Depois <strong>de</strong> algum tempo, um dos amigos morre. O outro, <strong>de</strong>vendo casar, não sabia como fazer e<br />

pediu conselhos ao confessor.<br />

— Negócio complicado — disse o pároco —,você <strong>de</strong>ve manter a sua palavra. Convi<strong>de</strong>-o mesmo<br />

estando morto.Vá até o túmulo e diga o que tem a dizer. Ele <strong>de</strong>cidirá se vem ou não.<br />

O jovem foi até o túmulo e disse:<br />

— Amigo, chegou o momento, vem para ser meu padrinho!<br />

Abriu-se a terra e pulou fora o amigo.<br />

— Claro que vou, tenho que manter a promessa, pois se não a mantiver não sei quanto tempo<br />

terei que ficar no purgatório.<br />

Vão para casa e <strong>de</strong>pois à igreja para o matrimônio. A seguir veio o banquete <strong>de</strong> núpcias e o<br />

jovem morto começou a contar histórias <strong>de</strong> todo tipo, mas não dizia uma palavra sobre o que<br />

vira no outro mundo. O noivo não via a hora <strong>de</strong> lhe fazer umas perguntas, mas não tomava<br />

coragem. No final do banquete, o morto se levanta e diz:<br />

— Amigo, já que lhe fiz este favor, você tem que me acompanhar um pouquinho.<br />

— Claro, por que não? Porém, espere, só um momentinho, pois é a primeira noite com minha<br />

esposa…<br />

— Certamente, como quiser!<br />

O marido <strong>de</strong>u um beijo na mulher.<br />

— Vou sair um instante e volto logo. — E saiu com o morto.<br />

Falando <strong>de</strong> tudo um pouco, chegaram ao túmulo.Abraçaram-se.<br />

O vivo pensou: "Se não lhe perguntar agora, não pergunto nunca mais", tomou coragem e lhe disse:<br />

* Extraido <strong>de</strong>: Italo Calvino. Fábulas italianas. Tradução: Nilson Maulin, São Paulo, Companhia <strong>da</strong>s Letras.<br />

M1U11T3<br />

M1U11T3<br />

1


— Escute, queria lhe perguntar uma coisa, a você que está morto: do outro lado, como funciona?<br />

— Não posso dizer na<strong>da</strong> — respon<strong>de</strong>u o morto. — Se quiser saber, venha você também ao Paraíso.<br />

O túmulo se abriu, e o vivo seguiu o morto. E logo se encontravam no Paraíso. O morto o<br />

levou para ver um belo palácio <strong>de</strong> cristal com portas <strong>de</strong> ouro, cheio <strong>de</strong> anjos que tocavam<br />

e faziam <strong>da</strong>nçar os beatos, e são Pedro, que tocava contrabaixo. O vivo estava <strong>de</strong> boca aberta<br />

e quem sabe quanto tempo teria ficado ali se não tivesse <strong>de</strong> ver todo o resto.<br />

— Agora, vamos a outro lugar! — disse-lhe o morto, e o levou a um jardim on<strong>de</strong> as árvores, em<br />

vez <strong>de</strong> folhas, tinham pássaros <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as cores que cantavam. — Vamos em frente, o que faz aí<br />

encantado? — E o levou a um prado on<strong>de</strong> os anjos <strong>da</strong>nçavam, alegres e suaves como namorados.<br />

— Agora vou levá-lo para ver uma estrela!<br />

Não se cansaria nunca <strong>de</strong> admirar as estrelas; os rios, em vez <strong>de</strong> água, eram <strong>de</strong> vinho e a terra<br />

era <strong>de</strong> queijo.<br />

De repente, caiu em si:<br />

— Ouça, compadre, já faz algumas horas que estou aqui em cima.Tenho que voltar para minha<br />

esposa, que <strong>de</strong>ve estar preocupa<strong>da</strong>.<br />

— Já está cansado?<br />

— Cansado? Sim, se pu<strong>de</strong>sse…<br />

— E muito mais haveria para <strong>de</strong>scobrir!<br />

— Tenho certeza, mas é melhor eu voltar.<br />

— Como preferir. — E o morto o acompanhou até o túmulo e <strong>de</strong>pois sumiu.<br />

O vivo saiu do túmulo e não reconhecia mais o cemitério. Estava todo cheio <strong>de</strong> monumentos,<br />

estátuas, árvores altas. Sai do cemitério e, no lugar <strong>da</strong>quelas casinhas <strong>de</strong> pedra meio improvisa<strong>da</strong>s,<br />

vê gran<strong>de</strong>s palácios e bon<strong>de</strong>s, automóveis, aviões. "On<strong>de</strong> é que vim parar? Terei errado o caminho?<br />

Mas como está vesti<strong>da</strong> esta gente!"<br />

Pergunta a um velhinho:<br />

— Cavalheiro, esta al<strong>de</strong>ia é…?<br />

Sim, é esse o nome <strong>de</strong>sta ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

— Bem, não sei por que, não consigo me situar. Saberia me dizer on<strong>de</strong> fica a casa <strong>da</strong>quele<br />

que se casou ontem?<br />

— Ontem? Estranho, trabalho como sacristão e posso garantir que ontem ninguém se casou!<br />

M1U11T3<br />

2


— Como? Eu me casei! — E lhe contou que acompanhara ao Paraíso um padrinho seu que morrera.<br />

— Você está sonhando — disse o velho. — Essa é uma velha história que contam: do marido que<br />

acompanhou o padrinho até o túmulo e não voltou; e a mulher morreu <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgosto.<br />

— Não, senhor, o marido sou eu!<br />

— Ouça, a única solução é que vá conversar com nosso bispo.<br />

— Bispo? Mas aqui na al<strong>de</strong>ia só existe um pároco.<br />

— Na<strong>da</strong> disso. Há muitos anos que temos um bispo. — E o levou até o bispo.<br />

O bispo, quando o jovem lhe contou o que lhe acontecera, lembrou-se <strong>de</strong> uma história que<br />

ouvira quando rapaz. Pegou os livros, começou a folheá-los: há trinta anos, não; cinqüenta anos,<br />

não; cem, não; duzentos, não. E continuava a folhear. No final, numa folha to<strong>da</strong> rasga<strong>da</strong> e<br />

gordurosa, encontra justamente aqueles nomes.<br />

Aconteceu há trezentos anos. O jovem <strong>de</strong>sapareceu no cemitério e a mulher <strong>de</strong>le morreu <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sgosto. Leia aqui se não acredita!<br />

— Mas sou eu.<br />

— E você esteve no outro mundo? Conte-me como é!<br />

Porém,o jovem ficou amarelo como a morte e caiu.Morreu assim,sem po<strong>de</strong>r contar na<strong>da</strong> do que vira.<br />

M1U11T3<br />

3


Caro professor, cara professora<br />

Sobre a avaliação<br />

Todo risco<br />

A possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> arriscar é que nos faz homens.<br />

Vôo perfeito<br />

no espaço que criamos.<br />

Ninguém <strong>de</strong>ci<strong>de</strong><br />

sobre os passos que evitamos.<br />

Certeza<br />

<strong>de</strong> que não somos pássaros<br />

e que voamos.<br />

Tristeza<br />

<strong>de</strong> que não vamos<br />

por medo dos caminhos...<br />

Damario <strong>da</strong> Cruz, Bahia<br />

M1U11T4<br />

Enten<strong>de</strong>mos a avaliação como parte integrante do processo <strong>de</strong> formação, uma vez que possibilita<br />

diagnosticar questões relevantes, aferir os resultados alcançados, consi<strong>de</strong>rando os objetivos<br />

propostos, e i<strong>de</strong>ntificar mu<strong>da</strong>nças <strong>de</strong> percurso eventualmente necessárias.<br />

Ao longo <strong>de</strong>ste primeiro <strong>Módulo</strong>, foram propostos vários trabalhos pessoais e várias ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

em grupo, todos eles importantes para o aprofun<strong>da</strong>mento sobre o assunto estu<strong>da</strong>do e para<br />

análise <strong>da</strong>s aprendizagens individuais. Chegamos ao final do módulo e, para fecharmos esta<br />

primeira jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> estudos e reflexões, vocês realizarão uma avaliação individual.<br />

Este será o processo avaliativo <strong>de</strong> todos os módulos, ou seja, além <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> avaliação<br />

(individuais ou em grupo) propostas nas uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, os módulos serão concluídos com uma<br />

produção individual. Nesse sentido, a avaliação assume tanto a função <strong>de</strong> orientar o processo <strong>de</strong><br />

aprendizagem como a <strong>de</strong> certificar o domínio <strong>de</strong> conhecimentos, ou a atribuição <strong>de</strong> competências<br />

<strong>de</strong> forma conclusiva. Essas produções finais marcam a passagem <strong>de</strong> um estado menor para um<br />

estado maior <strong>de</strong> conhecimento.<br />

O conjunto <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s avaliativas contribui para o professor refletir sobre suas aprendizagens<br />

e sua compreensão dos conteúdos abor<strong>da</strong>dos. O objetivo é que, progressivamente, ele possa<br />

auto-regular seu processo <strong>de</strong> aprendizagem, possa tomar <strong>de</strong>cisões coerentes com sua crença<br />

sobre ensino e aprendizagem, possa refletir sistematicamente sobre sua prática, reconhecendo-se<br />

como um pensador, um intelectual, capaz <strong>de</strong> tomar <strong>de</strong>cisões autonomamente e <strong>de</strong> integrar os<br />

marcos referenciais para que to<strong>da</strong> essa tessitura propicie melhores aprendizagens.<br />

M1U11T4<br />

1


Para o professor assumir essa postura, é preciso que tenha consciência educativa. Essa consciência<br />

está intimamente relaciona<strong>da</strong> com a autoria e pressupõe respostas para algumas questões como:<br />

o que ensinar, por que ensinar, para que ensinar, como avaliar. Na ausência <strong>de</strong>ssas respostas, o<br />

professor não atribui sentido, não consegue sustentar sua prática. Por isso, as análises e reflexões<br />

seguem <strong>da</strong>ndo vi<strong>da</strong> ao que não po<strong>de</strong> ser estático. Seguimos buscando trilhas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras, mas<br />

não a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> absoluta.<br />

Muito bem.Vamos à avaliação individual do <strong>Módulo</strong>1. A <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong> proposta é o Texto M1U11T5<br />

<strong>da</strong> <strong>Coletânea</strong>.<br />

M1U11T5<br />

2


Descrição <strong>da</strong> proposta <strong>de</strong> avaliação<br />

Imaginem que vocês são responsáveis por respon<strong>de</strong>r as cartas dos professores que chegam<br />

mensalmente na editora <strong>de</strong> uma revista sobre alfabetização. Nestas cartas, os professores<br />

apresentam dúvi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> vários tipos: sobre hipóteses <strong>de</strong> escrita e <strong>de</strong> leitura, sobre concepção <strong>de</strong><br />

ensino e aprendizagem, sobre estratégias <strong>de</strong> leitura, sobre intervenções pe<strong>da</strong>gógicas a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s,<br />

entre outras. A proposta é que vocês escolham uma pergunta <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um dos blocos listados<br />

abaixo e respon<strong>da</strong>m como se fosse para uma revista especializa<strong>da</strong>. Portanto, procurem certificar-se<br />

<strong>da</strong>s informações mais precisas, dos exemplos mais a<strong>de</strong>quados e dos fun<strong>da</strong>mentos necessários.<br />

1º Bloco <strong>de</strong> perguntas<br />

1. Na minha experiência como alfabetizadora, já pu<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a importância do trabalho com os<br />

textos e reconheço a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s crianças em escrever mesmo antes <strong>de</strong> estarem alfabetiza<strong>da</strong>s.<br />

No entanto, acho que facilitaria o processo <strong>de</strong> aprendizagem, realizar exercícios com letras e<br />

sílabas, pois acredito que apren<strong>de</strong>riam mais rápido.Vocês concor<strong>da</strong>m comigo? Por quê?<br />

2. Na minha classe tenho alguns alunos que escrevem <strong>de</strong> uma maneira que não consigo enten<strong>de</strong>r.<br />

Por exemplo, o Paulo ao escrever uma lista <strong>de</strong> animais, fez o seguinte:<br />

PUOLA para macaco<br />

OLPUP para elefante<br />

AUOLP para formiga<br />

ULAPO para boi<br />

Já a Gabriela escreveu assim:<br />

AELAMNPOILNUY para macaco<br />

OLPMBVC para elefante<br />

GBIELVOPK para formiga<br />

PLMT para boi<br />

M1U11T5<br />

Quando pedi para lerem, eles fizeram <strong>de</strong> forma global, quer dizer, leram do início ao fim<br />

sem fazer nenhuma relação <strong>da</strong> fala com a escrita. Penso às vezes, que esses alunos têm<br />

algum tipo <strong>de</strong> atraso. Já pensei em indicar uma avaliação médica ou psicológica para os pais.<br />

Não sei o que fazer para ensiná-los. O que vocês sugerem?<br />

M1U11T5<br />

1


3. Tenho lido que é importante que os alunos escrevam antes <strong>de</strong> estarem alfabetizados.<br />

Não consigo enten<strong>de</strong>r qual a vantagem <strong>de</strong>ssa proposta. Por que pedir para escrever se ninguém<br />

po<strong>de</strong> ler o que foi escrito? O que os alunos apren<strong>de</strong>m com isso?<br />

2º Bloco <strong>de</strong> perguntas:<br />

1. É possível dizer que as hipóteses <strong>de</strong> leitura são as mesmas que as hipóteses <strong>de</strong> escrita?<br />

Ou seja, existem hipóteses <strong>de</strong> leitura pré silábica, silábica...? Expliquem melhor isso para mim.<br />

2. Eu observei na minha sala que, dois alunos leram uma lista com os nomes <strong>de</strong> personagens <strong>da</strong>s<br />

histórias conheci<strong>da</strong>s. Fiquei intriga<strong>da</strong>, pois eles não estão alfabetizados. Como pu<strong>de</strong>ram ler<br />

se ain<strong>da</strong> não sabem <strong>de</strong>codificar tudo?<br />

3. Pedir para os alunos lerem quando ain<strong>da</strong> não sabem ler, não provoca um sentimento <strong>de</strong><br />

fracasso e incompetência, já que não o fazem convencionalmente? Esse não é um <strong>de</strong>safio<br />

muito gran<strong>de</strong> para eles?<br />

4.Trabalho em dois períodos, em um <strong>de</strong>les sou professora <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> Infantil e no outro <strong>de</strong> Jovens<br />

e Adultos. Reflito sobre minha prática profissional e consigo explicar o que faço e porque faço <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> maneira. Porém, não tenho clareza sobre estas duas questões:<br />

• É possível crianças pequenas conseguirem produzir textos oralmente sem saber ler e escrever?<br />

Essa capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> não está vincula<strong>da</strong> ao fato <strong>de</strong> estarem alfabetiza<strong>da</strong>s?<br />

• Por que os adultos não alfabetizados que estão em contato frequente com a leitura<br />

e escrita, principalmente nas gran<strong>de</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, não apren<strong>de</strong>ram a ler e escrever?<br />

M1U11T5<br />

2

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!