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TRADUÇÃO DE<br />
RAQUEL ZAMPIL<br />
1ª edição<br />
2013
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE<br />
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ<br />
G83w<br />
Green, John, 1977-<br />
Will Grayson, Will Gray son [recurso eletrônico] / John Green e David Levithan. ;<br />
tradução de Raquel Zampil. - Rio de Janeiro : Galera Record, 2013. recurso digital<br />
Tradução de: Will Grayson, Will Gray son<br />
Formato: ePub<br />
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions<br />
Modo de acesso: World Wide Web<br />
ISBN 978-85-01-40346-9 (recurso eletrônico)<br />
13-2055.<br />
1. Ficção americana. 2. Livros eletrônicos. I. Levithan, David. II. Zampil, Raquel.<br />
III. Título.<br />
CDD: 813<br />
CDU: 821.111(73)-3<br />
Título original em inglês:<br />
<strong>will</strong> grayson, <strong>will</strong> grayson<br />
Copy right © 2010 by John Green and David Levithan<br />
Esta edição foi publicada mediante acordo com Dutton Children’s Books, pertencente a Penguin<br />
Young Readers Group, que faz parte de Penguin Group (USA) Inc.<br />
Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.<br />
Todos os direitos reservados.<br />
Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.<br />
Composição de miolo da versão impressa: Renata Vidal da Cunha<br />
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pela<br />
EDITORA RECORD LTDA.<br />
Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000,<br />
que se reserva a propriedade literária desta tradução.<br />
Produzido no Brasil
ISBN 978-85-01-40346-9<br />
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Atendimento e venda direta ao leitor:<br />
mdireto@record.com.br ou (21) 2585-2002.
Para David Leventhal<br />
(por estar tão próximo)<br />
— DL<br />
Para Tobias Huisman<br />
— JG
Reconhecimentos<br />
Reconhecemos que Jodi Reamer é <strong>um</strong>a agente foda, e, mais ainda, reconhecemos<br />
que ela poderia derrotar nós dois, de <strong>um</strong>a só vez, n<strong>um</strong>a queda de braço.<br />
Reconhecemos que meter o dedo no nariz do amigo é <strong>um</strong>a escolha pessoal e que<br />
pode não ser adequado a todas as personalidades.<br />
Reconhecemos que este livro provavelmente não existiria se Sarah Urist Green<br />
não tivesse gargalhado quando lemos pra ela em voz alta os dois primeiros<br />
capítulos, há muito tempo, em <strong>um</strong> apartamento muito, muito distante.<br />
Reconhecemos que ficamos <strong>um</strong> pouco decepcionados ao saber que a confecção<br />
Penguin não tem nenh<strong>um</strong>a relação com a editora Penguin, pois esperávamos ter<br />
desconto em <strong>um</strong>as camisas polo deles.<br />
Reconhecemos como Bill Ott, Steffie Zvirin e a fada-madrinha de John, Ilene<br />
Cooper, são puramente fabulosos.<br />
Reconhecemos que, da mesma maneira que não se poderia ver a Lua não fosse<br />
pelo Sol, não haveria como vocês nos virem não fosse pelo brilho magnífico e<br />
contínuo de nossos amigos escritores.<br />
Reconhecemos que <strong>um</strong> de nós colou nas provas no fim do ensino médio, mas<br />
que não era essa a intenção.<br />
Reconhecemos que os nerdfighters são incríveis.<br />
Reconhecemos que ser a pessoa que Deus criou não pode separá-lo do amor de<br />
Deus.
Reconhecemos que nós cro<strong>nome</strong>tramos a finalização deste livro a fim de<br />
convencer nossa magistral editora, Julie Strauss-Gabel, a dar ao seu bebê o<br />
<strong>nome</strong> de Will Grayson, mesmo que seja <strong>um</strong>a menina. O que é de certa forma<br />
enganoso, porque provavelmente nós é que devíamos batizar bebês em<br />
homenagem a ela. Mesmo que fossem meninos.
capítulo <strong>um</strong><br />
Quando eu era pequeno, meu pai cost<strong>um</strong>ava me dizer: “ Will, você pode<br />
escolher a dedo seus amigos e pode meter o dedo no próprio nariz, mas não<br />
pode meter o dedo no nariz do seu amigo.” Essa observação me pareceu<br />
razoavelmente perspicaz aos 8 anos, mas acabou se mostrando incorreta em<br />
alguns aspectos. Pra começar, não é possível escolher a dedo os amigos, ou eu<br />
nunca teria acabado com Tiny Cooper.<br />
Tiny Cooper não é a pessoa mais gay do mundo, tampouco é a maior pessoa<br />
do mundo, mas acredito que ele possa ser a maior pessoa do mundo que é<br />
muito, muito gay, e também a pessoa mais gay do mundo que é muito, muito<br />
grande. Tiny é meu melhor amigo desde o quinto ano do ensino fundamental,<br />
exceto pelo último semestre, quando ele ficou ocupado descobrindo todo o<br />
alcance de sua gayzice, e eu fiquei ocupado com <strong>um</strong> Grupo de Amigos de<br />
verdade pela primeira vez na vida, grupo esse que acabou se tornando <strong>um</strong> grupo<br />
de Nunca Mais Fale Comigo por causa de duas leves transgressões:<br />
1. Depois que <strong>um</strong> membro do conselho escolar ficou todo irritado com a<br />
presença de gays no vestiário, defendi o direito de Tiny Cooper de tanto ser<br />
gigante (e, portanto, o melhor da linha ofensiva da bosta do nosso time de<br />
futebol americano) quanto gay em <strong>um</strong>a carta pro jornal da escola, a qual eu,<br />
estupidamente, assinei.<br />
2. Esse cara do Grupo de Amigos, chamado Clint, estava falando sobre a<br />
carta na hora do almoço e, ao falar dela, me chamou de baitola, e eu não sabia<br />
o que era <strong>um</strong> baitola então perguntei: “ Como assim” E ele então me<br />
chamou de baitola de novo e, nessa hora, eu mandei ele se foder, peguei<br />
minha bandeja e saí da mesa.
O que acho que significa que tecnicamente fui eu quem deixou o Grupo de<br />
Amigos, embora parecesse o contrário. Sinceramente, nenh<strong>um</strong> deles jamais<br />
pareceu gostar muito de mim, mas eles estavam por perto, o que já é alg<strong>um</strong>a<br />
coisa. E agora não estão mais, deixando-me totalmente desprovido de<br />
companhia social.<br />
Isto é, a menos que se conte Tiny. O que suponho que eu deva fazer.<br />
E/porém/portanto, alg<strong>um</strong>as semanas depois de voltarmos das férias de Natal<br />
no terceiro ano, estou sentado em meu Lugar Marcado na aula de pré-cálculo<br />
quando Tiny entra em seu passo de valsa, vestido com a camisa do time enfiada<br />
para dentro da calça cáqui, embora a temporada de futebol já tenha acabado há<br />
muito tempo. Todos os dias, Tiny consegue, milagrosamente, se fazer caber na<br />
carteira ao lado da minha na sala de pré-cálculo e, todos os dias, fico espantado<br />
que ele consiga fazer isso.<br />
Então, Tiny se espreme na cadeira, fico devidamente espantado, e ele se vira<br />
para mim e sussurra bem alto porque secretamente quer que as outras pessoas<br />
escutem: “ Estou apaixonado.” Reviro os olhos, porque ele se apaixona de hora<br />
em hora por alg<strong>um</strong> pobre garoto. Todos eles parecem iguais: magricelas,<br />
suarentos e bronzeados, sendo esse último aspecto <strong>um</strong>a abominação, porque<br />
todos os bronzeados de Chicago em fevereiro são falsos, e garotos que se<br />
bronzeiam artificialmente — não estou nem aí se são gays ou não — são<br />
ridículos.<br />
— Você é tão cínico — diz Tiny, agitando a mão na minha direção.<br />
— Não sou cínico, Tiny — respondo. — Sou prático.<br />
— Você é <strong>um</strong> robô — continua ele. Tiny acha que sou incapaz do que os<br />
h<strong>um</strong>anos chamam de emoção porque não choro desde meu aniversário de 7<br />
anos, quando vi o filme Todos os cães merecem o céu. Suponho que eu devesse<br />
saber pelo título que o final não seria feliz, mas, em minha defesa, eu tinha 7<br />
anos. De qualquer forma, desde então, não chorei nunca mais. Eu não entendo
muito bem qual é o sentido de chorar. Além disso, acho que chorar é quase —<br />
assim, exceto em caso de morte de parentes ou coisa parecida — totalmente<br />
evitável, se você seguir duas regras muito simples: 1. Não se importar muito<br />
com nada. 2. Calar a boca. Todas as coisas ruins que já me aconteceram<br />
derivaram do não c<strong>um</strong>primento de <strong>um</strong>a dessas regras.<br />
— Sei que é amor de verdade porque sinto — diz Tiny.<br />
Aparentemente a aula começou sem que percebêssemos, porque o Sr.<br />
Appleba<strong>um</strong>, que ostensivamente nos ensina pré-cálculo, mas que principalmente<br />
me ensina que a dor e o sofrimento devem ser suportados estoicamente,<br />
pergunta:<br />
— Sente o quê, Tiny<br />
— Amor! — responde Tiny. — Eu sinto o amor.<br />
E todos se viram e riem ou resmungam diante da resposta de Tiny, e como<br />
estou sentado ao lado dele, que é meu melhor e único amigo, estão rindo e<br />
resmungando para mim também, e essa é precisamente a razão por que eu não<br />
escolheria Tiny Cooper como meu amigo. Ele chama atenção demais. Além<br />
disso, tem <strong>um</strong>a incapacidade patológica de seguir minhas duas regras. E assim<br />
ele anda por aí com passos de valsa, dando importância demais às coisas e<br />
falando sem parar, e então ficando desorientado quando o mundo caga na cabeça<br />
dele. E, naturalmente, por causa da mera proximidade, isso significa que o<br />
mundo caga na minha cabeça também.<br />
Depois da aula, estou olhando meu armário e me perguntando como consegui<br />
deixar A letra escarlate em casa, quando Tiny se aproxima com seus amigos da<br />
Aliança Gay-Hétero, Gary (que é gay) e Jane (que pode ou não ser — nunca<br />
perguntei), e me diz:<br />
— Parece que todo mundo está pensando que me declarei pra você em précálculo.<br />
Eu, apaixonado por Will Grayson. Não é a maior idiotice que você já<br />
ouviu
— Maravilha — digo.<br />
— As pessoas são tão idiotas — afirma Tiny. — Como se houvesse alg<strong>um</strong>a<br />
coisa errada em estar apaixonado.<br />
Então Gary solta <strong>um</strong> resmungo. Se a gente pudesse escolher os amigos, eu<br />
consideraria Gary. Tiny se tornou próximo de Gary, Jane e do namorado de<br />
Gary, Nick, quando se afiliou à AGH durante meu período como membro do<br />
Grupo de Amigos. Eu mal conheço Gary, já que só voltei a andar com Tiny há<br />
duas semanas mais ou menos, mas ele parece a pessoa mais normal com quem<br />
Tiny já fez amizade.<br />
— Tem <strong>um</strong>a diferença — observa Gary —, entre estar apaixonado e anunciar<br />
isso no meio da aula de pré-cálculo.<br />
Tiny começa a falar, mas Gary o corta.<br />
— Quero dizer, não me entenda mal. Você tem todo o direito de estar<br />
apaixonado por Zach.<br />
— Billy — corrige Tiny.<br />
— Espere aí, o que aconteceu com Zach — pergunto, porque podia jurar<br />
que Tiny estava apaixonado por Zach na aula de pré-cálculo. Mas 47 minutos<br />
haviam se passado desde sua declaração pública, então talvez ele já tenha andado<br />
com a fila. Tiny já teve uns 3.900 namorados — metade deles eram virtuais.<br />
Gary, que parece tão desorientado pelo surgimento de Billy quanto eu, se<br />
encosta no armário e bate a cabeça devagar no aço.<br />
— Tiny, o fato de você agir como <strong>um</strong> galinha não ajuda em nada a causa.<br />
Levanto a cabeça, olhando para Tiny, e digo:<br />
— Podemos sufocar os r<strong>um</strong>ores do nosso amor Isso prejudica minhas<br />
chances com as damas.<br />
— Chamá-las de “ damas” também não ajuda — diz Jane para mim.<br />
Tiny ri.<br />
— Mas, sério — digo a ele —, eu sempre me dou mal com isso.
Tiny me olha, sério, e faz que sim com a cabeça rapidamente.<br />
— Embora, só pra registrar — diz Gary —, você poderia ter escolhido<br />
alguém pior que Will Grayson.<br />
— E ele escolheu — observo.<br />
Tiny gira em <strong>um</strong>a pirueta de balé até o meio do corredor e, rindo, grita:<br />
— Querido Mundo, eu não tenho tesão em Will Grayson. Mas, mundo, tem<br />
mais <strong>um</strong>a coisa que você deveria saber sobre Will Grayson. — E então ele<br />
começa a cantar, <strong>um</strong> barítono digno da Broadway tão grande quanto a cintura<br />
dele: — Eu não posso viver sem ele!<br />
As pessoas riem, gritam e batem palmas à medida que Tiny continua a<br />
serenata e eu me afasto, indo pra aula de inglês. É <strong>um</strong>a longa caminhada, que<br />
fica ainda mais longa quando alguém te para e pergunta qual a sensação de ser<br />
sodomizado por Tiny Cooper, e como você consegue achar o “ piruzinho gay<br />
dele” atrás daquela barriga. Respondo do mesmo modo de sempre: baixando os<br />
olhos e andando reto e rápido. Sei que estão só brincando. Sei que parte de<br />
conhecer alguém é ser mau com esse alguém ou coisa assim. Tiny tem sempre<br />
algo brilhante pra dizer, como: “ Para alguém que teoricamente não me quer,<br />
você certamente passa muito tempo pensando e falando sobre o meu pênis.”<br />
Talvez isso funcione pra Tiny, mas nunca pra mim. Ficar calado funciona.<br />
Seguir as regras funciona. Assim, eu calo a boca, não dou a mínima, continuo<br />
andando, e logo já acabou.<br />
A última vez que eu disse alg<strong>um</strong>a coisa digna de nota foi quando escrevi a<br />
droga da carta ao editor sobre a droga do Tiny Cooper e a droga do seu direito<br />
de ser <strong>um</strong>a droga de estrela em nosso time de futebol horrível. Não me<br />
arrependo nem <strong>um</strong> pouco de ter escrito a carta, mas sim de ter assinado. Assinála<br />
foi <strong>um</strong>a clara violação da regra de ficar calado, e veja onde isso me levou:<br />
sozinho n<strong>um</strong>a tarde de terça-feira, fitando meus tênis pretos de cano longo.<br />
Naquela noite, não muito depois de eu pedir pizza para mim e meus pais,
que ficaram — como sempre — até tarde no hospital, Tiny Cooper me liga e<br />
muito, muito discreta e rapidamente, deixa escapar:<br />
— Parece que o Neutral Milk Hotel vai se reunir em <strong>um</strong> show no Hideout,<br />
que não foi nada divulgado, e ninguém sabe, e puta merda, Grayson, puta<br />
merda!<br />
— Puta merda! — grito. Uma coisa pode-se dizer a favor de Tiny: sempre<br />
que algo incrível acontece, ele é o primeiro a saber.<br />
Bem, geralmente não sou dado a arroubos de entusiasmo, mas o Neutral<br />
Milk Hotel meio que mudou minha vida. Eles lançaram esse álb<strong>um</strong><br />
absolutamente fantástico chamado In the Aeroplane Over the Sea em 1998 e,<br />
desde então, ninguém ouviu mais falar deles, supostamente porque o líder da<br />
banda vive n<strong>um</strong>a caverna na Nova Zelândia. Mas, de qualquer forma, ele é <strong>um</strong><br />
gênio.<br />
— Quando<br />
— Não sei. Só ouvi falar. Vou ligar pra Jane também. Ela gosta deles quase<br />
tanto quanto você. Ok, então. Vamos para o Hideout agora.<br />
— Estou literalmente a caminho — respondo, abrindo a porta da garagem.<br />
Ligo pra minha mãe do carro. Digo que o Neutral Milk Hotel está tocando<br />
no Hideout e ela diz: “ Quem O quê Você está indo pra <strong>um</strong> hotel” E então<br />
cantarolo alguns acordes de <strong>um</strong>a canção deles, e mamãe diz: “ Ah, eu conheço<br />
essa música. Tá naquela playlist que você fez pra mim”, e eu digo: “ Isso<br />
mesmo” e ela diz: “ Bem, você tem que estar de volta às 11”, e eu digo: “ Mãe,<br />
isto é <strong>um</strong> evento histórico. A história não funciona com toque de recolher”, e ela<br />
diz: “ De volta às 11”, e eu digo: “ Está bem. Meu Deus”, e então ela tem de ir<br />
extrair o câncer de alguém.<br />
Tiny Cooper mora n<strong>um</strong>a mansão com os pais mais ricos do mundo. Não<br />
creio que o pai ou a mãe dele tenham emprego, mas eles são tão revoltantemente<br />
ricos que Tiny Cooper nem mesmo mora na mansão; ele mora na casa de
hóspede da mansão, sozinho. Ele tem três quartos naquela porra e <strong>um</strong>a geladeira<br />
que sempre tem cerveja, e os pais nunca o incomodam, então podemos ficar lá o<br />
dia todo e jogar futebol no videogame e beber Miller Lite, exceto pelo fato de<br />
que Tiny odeia videogame e eu odeio cerveja, então, praticamente tudo que<br />
fazemos é jogar dardos (ele tem <strong>um</strong> alvo), ouvir música e conversar e estudar.<br />
Acabo de começar a dizer o T de Tiny quando ele sai correndo do quarto, com<br />
<strong>um</strong> mocassim de couro preto n<strong>um</strong> pé e o outro na mão, gritando:<br />
— Vamos, Grayson, anda, anda.<br />
E tudo corre perfeitamente bem no caminho até lá. O trânsito não está muito<br />
ruim na Sheridan, e eu faço a curva como se estivesse na Fórmula Indy 500, e<br />
estamos ouvindo a minha canção favorita do NMH, “ Holland, 1945”, e então<br />
pegamos a Lake Shore Drive, com as ondas do lago Michigan batendo nas<br />
rochas perto da estrada, as janelas ligeiramente abertas para fazer o carro<br />
descongelar, o ar frio, sujo e estimulante entrando, e eu adoro os cheiros de<br />
Chicago — Chicago é água salobra do lago e fuligem e suor e graxa, e eu amo<br />
isso, e amo essa música, e Tiny está dizendo Eu amo essa música, e ele está<br />
com o para-sol abaixado pra arr<strong>um</strong>ar o cabelo com <strong>um</strong> pouco mais de cuidado.<br />
Isso me faz pensar que o Neutral Milk Hotel vai me ver com quase tanta certeza<br />
quanto eu vou vê-los, então faço <strong>um</strong>a rápida inspeção em mim mesmo no<br />
retrovisor. Meu rosto parece quadrado demais e meus olhos grandes demais,<br />
como se eu estivesse eternamente surpreso, mas não tem nada errado em mim<br />
que eu possa consertar.<br />
O Hideout é <strong>um</strong> bar feito de tábuas de madeira que fica aninhado entre <strong>um</strong>a<br />
fábrica e <strong>um</strong> prédio do Departamento de Transportes. Não há nada de chique<br />
nele, mas já tem <strong>um</strong>a fila na porta, embora sejam apenas sete horas. Assim, fico<br />
esperando com Tiny por <strong>um</strong> tempo até Gary e Jane Possivelmente Gay<br />
chegarem.<br />
Debaixo do casaco aberto, Jane está usando <strong>um</strong>a camiseta com decote em V
com “ Neutral Milk Hotel” rabiscados à mão. Jane surgiu na vida de Tiny mais<br />
ou menos na mesma época em que saí, então, na verdade, não nos conhecemos<br />
muito bem. Ainda assim, eu diria que atualmente ela é minha quarta melhor<br />
amiga, e parece que tem bom gosto musical.<br />
Esperando do lado de fora do Hideout n<strong>um</strong> frio de enrugar a cara, ela diz oi<br />
sem olhar pra mim, e eu digo oi de volta, e então ela diz:<br />
— Essa banda é tããão maravilhosa.<br />
E eu digo:<br />
— Eu sei.<br />
Essa é possivelmente a conversa mais longa que já tive com Jane. Chuto o<br />
cascalho por <strong>um</strong> tempo e observo <strong>um</strong>a mininuvem de poeira envolver meu pé,<br />
então digo à Jane o quanto gosto de “ Holland, 1945”, e ela diz:<br />
— Gosto das coisas menos acessíveis deles. As polifônicas, barulhentas.<br />
Eu me limito a concordar com a cabeça, na esperança de que pareça que sei o<br />
que polifônico significa.<br />
Uma coisa sobre Tiny Cooper é que não se pode cochichar no ouvido dele,<br />
mesmo que você seja razoavelmente alto como eu, porque o filho da puta tem<br />
1,98 metro; então você tem de dar <strong>um</strong> tapinha no ombro gigante dele e aí fazer<br />
meio que <strong>um</strong> sinal com a cabeça, avisando que você quer falar no ouvido dele,<br />
aí ele se inclina e você pergunta: “ Ei, a Jane faz parte do lado gay ou hétero da<br />
Aliança Gay-Hétero”<br />
Então Tiny se abaixa até meu ouvido e cochicha de volta:<br />
— Não sei. Acho que no primeiro ano ela teve <strong>um</strong> namorado.<br />
Lembro a ele que Tiny Cooper teve <strong>um</strong>as 11.542 namoradas no primeiro<br />
ano, e então Tiny soca o meu braço de <strong>um</strong> jeito que ele acha que é de<br />
brincadeira, mas que, na verdade, causa <strong>um</strong> dano permanente ao sistema<br />
nervoso.<br />
Gary está esfregando os braços de Jane para mantê-la aquecida quando
finalmente a fila começa a andar. Então, uns cinco segundos depois, vemos <strong>um</strong><br />
garoto parecendo inconsolável, e ele é precisamente o tipo de cara pequenolouro-bronzeado<br />
que agrada Tiny Cooper, e então Tiny pergunta:<br />
— O que houve<br />
E o garoto responde:<br />
— É só para maiores de 21 anos.<br />
— Você — digo a Tiny, gaguejando. — Seu baitola — Ainda não sei o que<br />
isso significa, mas parece adequado.<br />
Ele franze os lábios e a testa. Então se vira para Jane:<br />
— Você tem identidade falsa<br />
Jane assente, e Gary logo acrescenta:<br />
— Eu também.<br />
E eu estou flexionando os punhos, com o maxilar travado e só quero gritar,<br />
mas, em vez disso, digo:<br />
— Tudo bem. Estou indo pra casa. — Porque eu não tenho <strong>um</strong>a identidade<br />
falsa.<br />
Mas Tiny diz muito rápido e muito baixo:<br />
— Gary, me dê o soco mais forte que você puder quando eu estiver<br />
mostrando minha identidade, e então, Grayson, você simplesmente passa atrás<br />
de mim, como se fizesse parte do grupo. — Então ninguém diz nada por alg<strong>um</strong><br />
tempo até Gary dizer alto demais:<br />
— Hã, eu não sei dar <strong>um</strong> soco de verdade.<br />
Estamos nos aproximando do segurança, que tem <strong>um</strong>a tatuagem enorme na<br />
careca, e então Tiny apenas murmura:<br />
— Sabe, sim. É só me bater com força.<br />
Fico <strong>um</strong> pouco para trás, observando. Jane entrega a identidade dela para o<br />
segurança. Ele il<strong>um</strong>ina o doc<strong>um</strong>ento com <strong>um</strong>a lanterna, levanta os olhos pra<br />
Jane e o devolve. Então chega a vez de Tiny. Inspiro <strong>um</strong>a série de vezes muito
apidamente, pois li certa vez que as pessoas com muito oxigênio no sangue<br />
parecem mais calmas, e então vejo Gary ficar na ponta dos pés, levar o braço pra<br />
trás e acertar Tiny no olho direito. A cabeça de Tiny vira pra trás, e Gary grita:<br />
“ Ah, meu Deus, ai ai, que merda, a minha mão”, e o segurança dá <strong>um</strong> pulo pra<br />
agarrar Gary, e então Tiny Cooper vira o corpo pra bloquear a visão do<br />
segurança de mim, e, quando ele faz isso, entro no bar como se Tiny fosse<br />
minha porta giratória.<br />
Uma vez lá dentro, olho pra trás e vejo o segurança agarrando Gary pelos<br />
ombros, que faz <strong>um</strong>a careta enquanto olha para a própria mão. Tiny então põe a<br />
mão no segurança e diz:<br />
— Cara, a gente só estava de sacanagem. Mas essa foi boa, Dwight.<br />
Levo <strong>um</strong> minuto pra deduzir que Gary é Dwight. Ou que Dwight é Gary.<br />
O segurança diz:<br />
— Ele te acertou na porra do olho.<br />
E Tiny responde:<br />
— Eu devia <strong>um</strong>a a ele. — E, em seguida, explica ao segurança que tanto ele<br />
quanto Gary/Dwight são membros do time de futebol da DePaul University, e<br />
que mais cedo, na sala de musculação, Tiny tinha dado <strong>um</strong> furo ou algo assim.<br />
O segurança diz que ele jogava na linha ofensiva no ensino médio, e, de repente,<br />
eles estão no maior papo enquanto o segurança olha a identidade<br />
extraordinariamente falsa de Gary, e então estamos todos os quatro dentro do<br />
Hideout, sozinhos com o Neutral Milk Hotel e <strong>um</strong>a centena de estranhos.<br />
O mar de gente cercando o bar se abre, e Tiny compra duas cervejas e me<br />
oferece <strong>um</strong>a. Recuso.<br />
— Por que Dwight — pergunto.<br />
E Tiny responde:<br />
— Na identidade, ele é Dwight David Eisenhower IV.<br />
E eu digo:
— Aliás, onde todo mundo conseguiu <strong>um</strong>a porra de <strong>um</strong>a identidade falsa<br />
E Tiny responde:<br />
— Tem lugares pra isso.<br />
Decido que vou conseguir <strong>um</strong>a.<br />
Então digo: “ Na verdade, vou tomar <strong>um</strong>a cerveja”, principalmente porque<br />
quero ter alg<strong>um</strong>a coisa na mão. Tiny me entrega a que ele já começara a beber, e<br />
eu me aproximo do palco sem Tiny, sem Gary e sem Jane Possivelmente Gay.<br />
Somos somente eu e o palco, erguido a apenas uns 60 centímetros, de modo<br />
que, se o líder do Neutral Milk Hotel for particularmente baixo — tipo, se tiver<br />
uns 1,20 metro —, logo estarei olhando direto nos olhos dele. Outras pessoas<br />
se aproximam do palco, e não demora pro lugar ficar lotado. Já estive aqui antes<br />
para shows de classificação livre, mas nunca foi assim — a cerveja na qual não<br />
dei nenh<strong>um</strong> gole e nem pretendo dar está suando na minha mão, há estranhos<br />
com muitos piercings e tatuagens à minha volta. Cada alma ali no Hideout<br />
agora é mais maneira que qualquer <strong>um</strong> do Grupo de Amigos. Essas pessoas não<br />
acham que tem alg<strong>um</strong>a coisa errada comigo — elas nem mesmo me notam.<br />
Pres<strong>um</strong>em que eu seja <strong>um</strong> deles, o que parece o verdadeiro ápice de minha<br />
carreira no ensino médio. Aqui estou eu, n<strong>um</strong>a noite de maiores de 21, no<br />
melhor bar da segunda cidade dos Estados Unidos, me preparando para estar<br />
entre as duzentas pessoas que verão o show de retorno da maior banda<br />
desconhecida da última década.<br />
Os tais quatro caras surgem no palco, e, embora eles não tenham a menor<br />
semelhança com os membros do Neutral Milk Hotel, digo a mim mesmo que,<br />
não importa, só vi mesmo fotos deles na internet. Mas então eles começam a<br />
tocar. Não sei bem como descrever a música dessa banda, a não ser dizendo que<br />
o som deles parece o de cem mil doninhas sendo jogadas em <strong>um</strong> oceano<br />
fervendo. E então o cara começa a cantar:
Ela me amava, yeah<br />
Mas agora me detesta<br />
Ela transava comigo, mermão<br />
Mas agora namora<br />
Outros caras<br />
Outros caras<br />
Exceto por <strong>um</strong>a lobotomia pré-frontal, não existe absolutamente a menor<br />
chance de que o líder do Neutral Milk Hotel pensasse, quanto mais escrevesse,<br />
quanto mais cantasse <strong>um</strong>a letra dessas. E então me dou conta: esperei lá fora, na<br />
rua fria e mal il<strong>um</strong>inada, no meio da f<strong>um</strong>aça dos carros, e causei <strong>um</strong>a possível<br />
fratura na mão de Gary pra ouvir <strong>um</strong>a banda que, evidentemente, não é o Neutral<br />
Milk Hotel. E, embora ele não esteja em lugar alg<strong>um</strong> no meio da multidão de<br />
fãs calados e atordoados do NMH que me cerca, grito imediatamente: “ Maldito<br />
Tiny Cooper!”<br />
No fim da música, minhas suspeitas são confirmadas quando o líder da banda<br />
diz, sendo acolhido por <strong>um</strong> absoluto silêncio:<br />
— Obrigado! Muito obrigado. O NMH não pôde vir, mas nós somos o<br />
Ashland Avenue, e estamos aqui pra fazer rock!<br />
Não, penso. Vocês são o Ashland Avenue e estão aqui pra fazer merda!<br />
Alguém bate no meu ombro e eu me viro e dou de cara com <strong>um</strong>a garota de vinte<br />
e poucos anos indescritivelmente bonita com <strong>um</strong> piercing nos lábios, cabelos<br />
vermelho-fogo e botas até a panturrilha. Ela diz, em tom interrogativo:<br />
— Pensamos que fosse o Neutral Milk Hotel tocando.<br />
E eu baixo os olhos:<br />
— Eu... — gaguejo <strong>um</strong> instante, e então completo: — também. Também<br />
estou aqui por causa deles.<br />
A garota se inclina até o meu ouvido e grita acima da atonal e arrítmica<br />
afronta à decência que é o Ashland Avenue:
— O Ashland Avenue não é o Neutral Milk Hotel.<br />
Alg<strong>um</strong>a coisa na lotação do salão, ou a estranheza da estranha, me deixa<br />
falante, e eu grito de volta:<br />
— O Ashland Avenue é o que eles tocam pros terroristas pra fazer os caras<br />
falarem.<br />
A garota sorri, e só então percebo que ela tem consciência da diferença de<br />
idade. Ela me pergunta em que escola estudo, e eu respondo “ Evanston”, e ela<br />
pergunta:<br />
— Ensino médio<br />
E eu digo:<br />
— Sim, mas não conta pro cara do bar.<br />
E ela retruca:<br />
— Agora eu me sinto <strong>um</strong>a pervertida de verdade.<br />
E eu pergunto:<br />
— Por quê<br />
E ela apenas dá <strong>um</strong>a risada. Sei que a garota não está a fim de mim, mas<br />
ainda assim me sinto ligeiramente como <strong>um</strong> pegador.<br />
E então essa mão imensa pousa no meu ombro, eu olho e vejo o anel de<br />
formatura que ele usa no dedo mindinho desde o oitavo ano e sei imediatamente<br />
que é Tiny. E pensar que alguns idiotas afirmam que os gays têm bom gosto.<br />
Eu me viro e vejo que Tiny Cooper está derramando lágrimas imensas. Uma<br />
delas poderia afogar <strong>um</strong> gatinho. E eu pergunto só com o movimento dos lábios<br />
O QUE ACONTECEU porque o Ashland Avenue está tocando aquela merda<br />
alto demais pra que ele me ouça, e Tiny Cooper simplesmente me entrega seu<br />
telefone e se afasta. A tela mostra o mural do Facebook de Tiny, exibindo <strong>um</strong>a<br />
atualização de status.<br />
Zach qnto mais eu penso nisso mais penso q estraguei <strong>um</strong>a grande amizade<br />
mas ainda acho q tiny é inkrível.
Abro caminho em meio às pessoas até Tiny, puxo seu ombro e grito em seu<br />
ouvido: “ ISSO É MUITO RUIM, PORRA”, e Tiny grita de volta: “ FUI<br />
DISPENSADO COM UMA ATUALIZAÇÃO DE STATUS”, e eu respondo:<br />
“ É, PERCEBI. SABE, ELE PODIA TER PELO MENOS MANDADO UMA<br />
MENSAGEM DE TEXTO. OU UM E-MAIL. OU ENVIADO UM POMBO.”<br />
“ O QUE VOU FAZER”, berra Tiny no meu ouvido, e eu tenho vontade de<br />
dizer: “ Espero que procurar <strong>um</strong> cara que saiba que incrível não se escreve com<br />
k”, mas apenas dou de ombros, bato de leve nas costas dele e o levo pra longe<br />
do Ashland Avenue na direção do bar.<br />
O que acaba vindo a ser <strong>um</strong> erro. Quando já estamos quase no bar, vejo Jane<br />
Possivelmente Gay perto de <strong>um</strong>a mesa alta. Ela me diz que Gary foi embora,<br />
revoltado.<br />
— Foi <strong>um</strong> golpe publicitário do Ashland Avenue, ao que parece — conta<br />
ela.<br />
Eu digo: — Mas fã alg<strong>um</strong> do NMH jamais ouviria essa porcaria.<br />
Então Jane levanta a cabeça e me olha, arregalando os olhos e fazendo<br />
biquinho, e diz:<br />
— Meu irmão é o guitarrista.<br />
Me sentindo <strong>um</strong> completo babaca, respondo:<br />
— Ah, foi mal, cara.<br />
E ela completa:<br />
— Meu Deus, tô brincando. Se fosse, eu deserdaria.<br />
Em alg<strong>um</strong> momento de nossa conversa de quatro segundos, consegui perder<br />
Tiny totalmente, o que não é <strong>um</strong>a tarefa nada fácil, então conto a Jane sobre o<br />
grande fora de Tiny no Facebook, e ela ainda está rindo quando ele aparece em<br />
nossa mesa com <strong>um</strong>a bandeja redonda contendo seis doses de <strong>um</strong> líquido<br />
esverdeado.<br />
— Eu não bebo — lembro a Tiny, e ele faz que sim com a cabeça. Empurra
<strong>um</strong>a dose pra Jane, que se limita a fazer que não com a cabeça.<br />
Tiny toma <strong>um</strong>a dose, faz <strong>um</strong>a careta e solta o ar.<br />
— Tem gosto do pau do demo — diz Tiny, e então empurra outra dose em<br />
minha direção.<br />
— Parece delicioso — falo —, mas eu passo.<br />
— Como ele pode simplesmente — berra Tiny, e então toma outra dose —<br />
me dar o fora — mais <strong>um</strong>a dose — no seu STATUS depois de eu dizer que o<br />
AMO — mais outra. — O que está acontecendo com esse mundo maldito —<br />
Outra. — Eu o amo mesmo, Grayson. Sei que você acha que sou ridículo, mas<br />
soube que o amava no momento em que nos beijamos. Porra. O que eu vou<br />
fazer — E então ele abafa <strong>um</strong> soluço com a última dose.<br />
Jane puxa a manga da minha camisa e se inclina pra mim. Dá pra sentir seu<br />
hálito quente no meu pescoço quando ela diz:<br />
— Vamos ter <strong>um</strong> grande problema quando ele começar a sentir o efeito<br />
dessas doses.<br />
Concluo que Jane tem razão, e, seja como for, o Ashland Avenue é terrível,<br />
então precisamos ir embora do Hideout o mais rápido possível.<br />
Eu me viro pra dizer a Tiny que é hora de ir, mas ele desapareceu. Olho de<br />
volta pra Jane, que está olhando na direção do bar com <strong>um</strong>a expressão de<br />
profunda preocupação. Logo depois, Tiny Cooper volta. Só duas doses dessa<br />
vez, graças a Deus.<br />
— Bebe comigo — diz ele, e faço que não com a cabeça, mas então Jane me<br />
cutuca nas costas e percebo que preciso tomar <strong>um</strong>a no lugar de Tiny. Enfio a<br />
mão no bolso e entrego as chaves do carro a Jane. A única forma segura de evitar<br />
que ele tome o restante da bebida verde-plutônio é eu mesmo engolindo <strong>um</strong>a<br />
dose. Então pego o copo, e Tiny diz:<br />
— Ah, foda-se ele, então, Grayson. Fodam-se todos.<br />
E eu digo:
— Vou beber a isso. — E é o que faço; então aquilo encosta na minha língua<br />
e é como <strong>um</strong> coquetel Molotov em chamas; com copo e tudo.<br />
Involuntariamente cuspo a dose inteira na camisa de Tiny Cooper.<br />
— Um Jackson Pollock monocromático — diz Jane; então, dirigindo-se a<br />
Tiny: — Temos que s<strong>um</strong>ir daqui. Essa banda é como <strong>um</strong> tratamento de canal<br />
sem anestesia.<br />
Jane e eu saímos juntos, imaginando (corretamente, como podemos perceber)<br />
que Tiny, vestindo minha dose de precipitação radioativa, vai nos seguir. Como<br />
fracassei ao ingerir as duas bebidas alcoólicas que Tiny me deu, Jane joga a<br />
chave de volta para mim em <strong>um</strong> arco bem alto. Eu a apanho e me sento ao<br />
volante depois que ela entra no banco de trás. Tiny tomba no banco do carona.<br />
Dou a partida no carro, e meu encontro com a imensa decepção auditiva chega<br />
ao fim. Mas eu mal penso sobre isso no caminho de casa, porque Tiny não para<br />
de falar sobre Zach. Tiny tem essa coisa: os problemas dele são tão enormes que<br />
os nossos podem se esconder atrás deles.<br />
— Como <strong>um</strong>a pessoa pode estar tão errada em relação a <strong>um</strong>a coisa —<br />
pergunta Tiny acima dos guinchos barulhentos da música do NMH favorita de<br />
Jane (e a minha menos favorita). Estou passando pela Lake Shore e dá pra ouvir<br />
Jane cantando no banco traseiro, <strong>um</strong> pouco desafinada, mas melhor do que eu<br />
faria se cantasse na frente de outras pessoas, o que não faço em razão da Lei da<br />
Boca Fechada. E Tiny está dizendo:<br />
— Se você não pode confiar nos próprios instintos, então vai confiar em quê<br />
E retruco:<br />
— Você pode confiar na ideia de que gostar de alguém, como regra, acaba<br />
mal.<br />
O que é verdade. Gostar não leva ao sofrimento de vez em quando. Leva<br />
sempre.<br />
— Meu coração está partido — diz Tiny, como se isso nunca tivesse
acontecido com ele, como se nunca tivesse acontecido com ninguém. E talvez<br />
seja esse o problema: talvez cada novo rompimento pareça a Tiny tão<br />
radicalmente novo que, de certa maneira, não tenha mesmo acontecido antes. —<br />
E cê n<strong>um</strong> tá ajudando — acrescenta, e é quando percebo que está arrastando as<br />
palavras.<br />
Dez minutos pra chegar à casa dele, se não pegarmos trânsito, e então direto<br />
pra cama.<br />
Mas não consigo dirigir tão rápido quanto o estado de Tiny deteriora.<br />
Quando saio da Lake Shore — e ainda faltam seis minutos —, ele já está<br />
arrastando as palavras e berrando, falando sem parar sobre o Facebook e a morte<br />
da sociedade educada, e coisas assim. Jane, com as mãos cujas unhas estão<br />
pintadas de preto, massageia os ombros elefânticos de Tiny, mas parece que ele<br />
não consegue parar de chorar, e vou perdendo todos os sinais verdes à medida<br />
que a Sheridan lentamente se desenrola à nossa frente, e as lágrimas se misturam<br />
à meleca até que a camiseta de Tiny nada mais é que <strong>um</strong> pano de chão.<br />
— Quanto falta — pergunta Jane.<br />
E eu respondo:<br />
— Ele mora n<strong>um</strong>a rua que sai da Central.<br />
E ela retruca:<br />
— Meu Deus. Fique calmo, Tiny. Você só precisa dormir, baby. Amanhã<br />
tudo vai parecer <strong>um</strong> pouco melhor.<br />
Por fim, viro na passagem e desvio dos buracos até parar atrás da casa de<br />
Tiny. Salto do carro e empurro meu banco pra frente pra que Jane possa sair por<br />
trás de mim. Então damos a volta até o banco do carona. Jane abre a porta, se<br />
debruça sobre Tiny, consegue, por <strong>um</strong> milagre de destreza, abrir o cinto de<br />
segurança dele, e então diz:<br />
— Muito bem, Tiny. Hora de ir pra cama.<br />
E Tiny responde:
— Eu sou <strong>um</strong> idiota. — E então dá <strong>um</strong> soluço que provavelmente é<br />
registrado na escala Richter, no Kansas. Mas ele se levanta e vai cambaleando<br />
até a porta dos fundos. Eu o sigo, só pra ter certeza de que ele vai pra cama sem<br />
problemas, o que acaba sendo <strong>um</strong>a boa ideia, porque ele não vai pra cama sem<br />
problemas.<br />
Em vez disso, a uns três passos de chegar à sala, ele para subitamente. Dá<br />
meia-volta e me olha, estreitando os olhos, como se nunca tivesse me visto<br />
antes e não conseguisse deduzir o porquê de eu estar na casa dele. Então tira a<br />
camisa. Ainda está me olhando em dúvida quando, parecendo totalmente sóbrio,<br />
diz:<br />
— Grayson, alg<strong>um</strong>a coisa precisa acontecer.<br />
— Hã<br />
E Tiny completa:<br />
— Porque se não, como vai ser se acabarmos como todo mundo lá no<br />
Hideout<br />
E eu estou prestes a dizer hã de novo, porque todas aquelas pessoas eram<br />
muito mais legais que nossos colegas da escola e também muito mais legais<br />
que nós, mas aí percebo o que ele quer dizer. Ele quer dizer: e se nos tornarmos<br />
adultos à espera de <strong>um</strong>a banda que nunca vai voltar Percebo Tiny me olhando<br />
sem expressão, oscilando pra frente e pra trás, como <strong>um</strong> arranha-céu ao vento. E<br />
então ele cai de cara no chão.<br />
— Ai ai — diz Jane atrás de mim, e só então percebo que ela está ali.<br />
Tiny, com o rosto enterrado no tapete, começa a chorar de novo. Fico<br />
olhando pra Jane por <strong>um</strong> bom tempo e lentamente <strong>um</strong> sorriso aparece no rosto<br />
dela. Seu rosto muda completamente quando ela sorri — o sorriso faz erguer as<br />
sobrancelhas, mostrando os dentes perfeitos e franzindo os olhos, que nunca vi<br />
ou nunca percebi. Ela fica bonita tão de repente que é quase como <strong>um</strong> passe de<br />
mágica — mas não que eu a deseje ou algo assim. Não quero parecer <strong>um</strong>
abaca, mas Jane não faz o meu tipo. O cabelo dela é meio que desastrosamente<br />
enrolado e ela está quase sempre na companhia de garotos. Meu tipo é <strong>um</strong><br />
pouco mais feminino. E, sinceramente, eu nem gosto tanto assim do meu tipo<br />
de garota, quanto mais de outros tipos. Não que eu seja assexuado — só acho<br />
insuportável o gênero Drama Romântico.<br />
— Vamos colocá-lo na cama — diz, por fim. — Não podemos deixar que os<br />
pais dele o encontrem assim de manhã.<br />
Eu me ajoelho e falo para Tiny se levantar, mas ele continua chorando sem<br />
parar, então, finalmente, Jane e eu nos posicionamos do lado esquerdo dele e o<br />
viramos de costas. Pulo por cima dele, e então me abaixo, segurando-o com<br />
firmeza pela axila. Jane faz o mesmo do outro lado.<br />
“ Um”, diz Jane, e eu digo: “ Dois”, e ela diz: “ Três”, e geme. Mas nada<br />
acontece. Jane é pequena — dá pra ver como o braço dela afina quando ela<br />
flexiona os músculos. E eu tampouco consigo levantar minha metade de Tiny,<br />
então decidimos deixá-lo ali mesmo. Quando Jane coloca <strong>um</strong> cobertor em cima<br />
dele e <strong>um</strong> travesseiro debaixo da cabeça, Tiny já está roncando.<br />
Estamos prestes a ir embora quando toda a produção de meleca de Tiny<br />
finalmente vai de encontro a ele e começam uns barulhos horríveis, que parecem<br />
roncos, só que mais sinistros, e também mais molhados. Eu me abaixo, me<br />
aproximando do rosto dele, e vejo que está inspirando e expirando uns fios<br />
borbulhantes e nojentos de meleca, dos últimos estertores de sua choradeira.<br />
Tem tamanha quantidade daquela coisa que fico com medo de que ele se<br />
engasgue.<br />
— Tiny! — chamo. — Você precisa tirar essa meleca do nariz, cara. — Mas<br />
ele nem se mexe. Então me aproximo de seu ouvido e grito: — Tiny!<br />
Nada. Jane dá <strong>um</strong> tapa na cara dele, com muita força. Niente. Só o horrível<br />
ronco do tipo se afogando em meleca.<br />
E é aí que me dou conta de que Tiny Cooper não pode meter o dedo para
limpar o próprio nariz, contrariando a segunda parte do teorema de meu pai. E,<br />
logo depois, sob o olhar atento de Jane, invalido inteiramente o teorema quando<br />
estendo a mão e livro as vias aéreas de Tiny da meleca. Res<strong>um</strong>indo: eu não<br />
posso escolher a dedo meu amigo; ele não pode meter o dedo pra limpar o<br />
próprio nariz; e eu posso — não, eu tenho de — meter o dedo por ele.
capítulo dois<br />
vivo constantemente dividido entre me matar e matar todos à minha volta.<br />
essas parecem ser as duas opções. tudo o mais é só pra matar o tempo.<br />
neste momento, estou atravessando a cozinha em direção à porta dos fundos.<br />
mãe: toma o café da manhã.<br />
não tomo café da manhã. nunca tomo café da manhã. não tomo café da manhã<br />
desde que pude sair pela porta dos fundos sem tomar o café antes.<br />
mãe: aonde você vai<br />
à escola, mãe. você devia experimentar <strong>um</strong> dia.<br />
mãe: não deixe o cabelo cair no seu rosto assim — não consigo ver seus<br />
olhos.<br />
mas veja, mãe, é justamente essa a porra do propósito.<br />
eu me sinto mal por ela — sinto, sim. é <strong>um</strong>a pena, mesmo, que eu tenha que<br />
ter mãe. não deve ser fácil ter <strong>um</strong> filho como eu. nada pode preparar <strong>um</strong>a pessoa<br />
pra esse tipo de decepção.<br />
eu: tchau.<br />
não digo “ bom-dia”. acredito que essa seja <strong>um</strong>a das expressões mais imbecis<br />
já inventadas. afinal, você não tem a opção de dizer “ mau-dia” ou “ horríveldia”<br />
ou “ não-dou-a-mínima-pro-seu-dia”. todas as manhãs, espera-se que seja o<br />
início de <strong>um</strong> bom dia. bem, eu não acredito nisso. acredito contra isso.
mãe: tenha <strong>um</strong> bom d...<br />
a porta meio que se fecha no meio da frase, mas não que eu não possa<br />
adivinhar como termina. ela cost<strong>um</strong>ava dizer “ até mais tarde!” até que n<strong>um</strong>a<br />
manhã eu estava tão cansado daquilo que disse a ela: “ não, até nunca”.<br />
ela tenta, e é isso que torna tudo tão patético. eu só queria dizer: “ sinto<br />
muito por você, sinto mesmo.” mas isso pode dar início a <strong>um</strong>a conversa, e <strong>um</strong>a<br />
conversa pode dar início a <strong>um</strong>a briga, e então eu me sentiria tão culpado que<br />
talvez tivesse que me mudar pra portland ou algo assim.<br />
preciso de café.<br />
toda manhã, rezo pra que o ônibus escolar bata, e que todos morramos nos<br />
destroços pegando fogo. então minha mãe vai poder processar a empresa que<br />
fabrica ônibus escolares por não fazer ônibus escolares com cintos de segurança e<br />
conseguir mais dinheiro com minha trágica morte do que eu jamais conseguiria<br />
ganhar em minha trágica vida. a menos que os advogados da fábrica de ônibus<br />
possam provar para o júri que eu seria <strong>um</strong> fracasso garantido. então eles se<br />
livrariam do processo dando à minha mãe <strong>um</strong> ford fiesta usado e considerando a<br />
questão resolvida.<br />
maura não está exatamente à minha espera antes da escola, mas eu sei, e ela<br />
sabe, que vou procurar por ela onde estiver. em geral recorremos a isso para que<br />
possamos dar alg<strong>um</strong>as risadas ou algo assim antes de irmos embora. é como<br />
aquelas pessoas que se tornam amigas na prisão, embora nunca fossem nem<br />
mesmo se falar se não estivessem ali. é assim que eu e maura somos, acho.<br />
eu: me dá <strong>um</strong> gole de café.<br />
maura: compra <strong>um</strong>a porra de <strong>um</strong> café pra você.<br />
então ela me entrega o cocôccino XXG do dunkin donuts e tomo tudo de <strong>um</strong>
gole só. se pudesse pagar meu próprio café, juro que compraria, mas a maneira<br />
como vejo a coisa é: a bexiga dela não está pensando que sou <strong>um</strong> babaca,<br />
mesmo que o restante dos órgãos esteja. é assim comigo e maura, desde que me<br />
lembro, o que dá mais ou menos <strong>um</strong> ano. acho que a conheço há <strong>um</strong> pouco<br />
mais de tempo que isso, mas talvez não. em alg<strong>um</strong> momento do ano passado, a<br />
melancolia dela encontrou minha desgraça, e maura achou que a combinação era<br />
boa. não tenho tanta certeza assim, mas, pelo menos me rende <strong>um</strong> café.<br />
derek e simon estão se aproximando agora, o que é bom, porque isso vai me<br />
poupar alg<strong>um</strong> tempo no almoço.<br />
eu: me dá seu dever de casa de matemática.<br />
simon: claro. aqui.<br />
que amigo.<br />
o primeiro sinal toca. como todos os sinais em nossa excelente instituição de<br />
ensino inferior, o sinal é <strong>um</strong> longo bipe, como se você estivesse prestes a deixar<br />
<strong>um</strong>a mensagem de voz dizendo que está tendo o dia mais escroto do mundo. e<br />
ninguém jamais vai ouvi-la.<br />
não tenho a menor ideia do motivo por que alguém iria querer ser professor.<br />
isto é, você tem de passar o dia com <strong>um</strong> grupo de garotos que ou o odeiam<br />
profundamente ou puxam seu saco pra conseguir <strong>um</strong>a nota boa. isso deve afetar a<br />
pessoa depois de alg<strong>um</strong> tempo — viver cercado por gente que nunca vai gostar<br />
de você por <strong>um</strong>a razão sincera. eu teria pena dessas pessoas, se elas não fossem<br />
<strong>um</strong>as sádicas e fracassadas. no que diz respeito aos sádicos, é tudo <strong>um</strong>a questão<br />
de poder e controle. eles ensinam pra ter <strong>um</strong>a razão oficial pra dominar outras<br />
pessoas. e os fracassados consistem em praticamente todos os outros professores,<br />
dos que são incompetentes demais pra fazer qualquer outra coisa aos que querem<br />
ser os melhores amigos dos alunos porque nunca tiveram amigos quando
estavam na escola. e tem aqueles que sinceramente acreditam que vamos lembrar<br />
de alg<strong>um</strong>a coisa que nos dizem depois que as provas finais acabarem. tá bom.<br />
de vez em quando, a gente tem <strong>um</strong>a professora como a sra. grover, que é <strong>um</strong>a<br />
sádica fracassada. mas também não deve ser fácil ser professora de francês,<br />
porque, na real, ninguém mais precisa saber falar francês. e, enquanto ela beija os<br />
derrières dos alunos nota dez, quando se trata dos alunos normais, ela se<br />
ressente do fato de que estamos tomando seu tempo. então reage nos dando<br />
testes todos os dias e projetos gays como “ desenhe sua própria atração para a<br />
euro disney” e então fingindo-se de toda surpresa quando digo: “ sim, minha<br />
atração para a euro disney é a minnie usando <strong>um</strong>a baguete como vibrador para se<br />
divertir com o mickey.” como não tenho a menor ideia de como dizer<br />
“ vibrador” em francês (vibrrradorrr), digo apenas “ vibrador”, ela finge não ter<br />
a menor ideia do que estou falando e diz que a minnie e o mickey comendo<br />
baguete não são <strong>um</strong>a atração. sem dúvida, ela me desconta <strong>um</strong> ponto naquele<br />
dia. sei que devia me importar, mas é realmente difícil imaginar alg<strong>um</strong>a coisa<br />
com que eu pudesse me importar menos do que minha nota em francês.<br />
a única coisa que faço, e que vale a pena em todos os tempos — a manhã<br />
toda, na verdade — é escrever isaac, isaac, isaac no meu caderno e então<br />
desenho o homem aranha escrevendo-o em <strong>um</strong>a teia. o que é totalmente idiota,<br />
mas que seja. não estou fazendo isso pra ser legal.<br />
eu me sento com derek e simon no almoço. do jeito que nos comportamos, é<br />
como se estivéssemos em <strong>um</strong>a sala de espera. de vez em quando, dizemos<br />
alg<strong>um</strong>a coisa, mas na maior parte do tempo nos limitamos ao espaço da nossa<br />
cadeira. às vezes lemos revistas. se alguém se aproxima, levantamos os olhos.<br />
mas isso não acontece com frequência.<br />
ignoramos a maioria das pessoas que passam, mesmo aquelas que<br />
supostamente deveríamos desejar. não que derek e simon sejam muito de<br />
garotas. basicamente, eles gostam de computadores.
derek: você acha que o software X18 vai ser lançado antes das férias<br />
simon: li no blog do trustmaster que deve ser lançado, sim. seria legal.<br />
eu: toma aqui o seu dever de casa de volta.<br />
quando olho os caras e as garotas nas outras mesas, me pergunto o que<br />
possivelmente eles têm pra dizer uns aos outros. são todos tão chatos e estão<br />
todos tentando compensar isso falando alto. prefiro me sentar aqui e comer.<br />
tenho esse ritual, que é quando dá duas horas e me permito ficar animado<br />
com a hora de ir embora. é tipo: se eu chegar a esse ponto posso ter o resto do<br />
dia de folga.<br />
acontece na aula de matemática, e maura está sentada ao meu lado. em<br />
outubro ela descobriu esse meu ritual e assim, todos os dias às duas agora ela<br />
me passa <strong>um</strong> pedaço de papel com alg<strong>um</strong>a coisa escrita. tipo “ parabéns” ou<br />
“ podemos ir agora” ou “ se essa aula não terminar logo, vou partir meu próprio<br />
crânio ao meio”. eu sei que devia escrever de volta, mas na maioria das vezes<br />
faço <strong>um</strong> gesto com a cabeça. acho que ela quer sair comigo ou algo assim, e não<br />
sei o que fazer em relação a isso.<br />
todo mundo na nossa escola tem atividades extraclasse.<br />
a minha é ir pra casa.<br />
às vezes, paro e ando de skate por <strong>um</strong> tempo no parque, mas não em<br />
fevereiro, não neste subúrbio frio-de-congelar-o-cu de chicago (conhecido pelos<br />
moradores como naperville). se eu for pra lá agora, vou congelar até os ovos.<br />
não que eu esteja usando os ditos-cujos pra alg<strong>um</strong>a coisa, nada perto disso, mas<br />
ainda assim gosto de tê-los, por via das dúvidas.<br />
além disso, tenho coisas melhores pra fazer do que ficar ouvindo o pessoal<br />
que largou a faculdade me dizer quando posso usar a rampa (que, em geral, é...<br />
nunca) e ver os skatepunks da nossa escola me olharem com desprezo porque
não sou descolado o bastante pra f<strong>um</strong>ar e beber com eles, nem descolado o<br />
bastante pra ser straight edge. não o bastante pra coisa nenh<strong>um</strong>a no que diz<br />
respeito a eles. parei de tentar fazer parte desse grupo fechado que-não-admiteque-é-<strong>um</strong>-grupo-fechado<br />
quando terminei o nono ano. afinal, não é como se o<br />
skate fosse a minha vida nem nada.<br />
gosto de ter a casa só pra mim depois da escola. não preciso ficar me<br />
sentindo culpado por ignorar minha mãe quando ela não está por perto.<br />
primeiro, ligo o computador pra ver se isaac está on-line. não está, então<br />
preparo <strong>um</strong> sanduíche de queijo (sou muito preguiçoso pra fazer queijo-quente) e<br />
toco <strong>um</strong>a punheta. isso leva uns dez minutos, não que eu esteja cro<strong>nome</strong>trando.<br />
isaac ainda não está on-line quando volto. ele é a única pessoa na minha<br />
“ buddy list”, que é a porra do <strong>nome</strong> mais idiota pra <strong>um</strong>a lista de amigos.<br />
significa “ lista de amiguinhos” — o que somos, crianças de 3 anos<br />
eu: oi, isaac, quer ser meu amiguinho!<br />
isaac: claro, amiguinho! vamos brincar!<br />
isaac sabe o quanto acho essas coisas idiotas, e ele também acha. como o<br />
termo lol. olha, se existe alg<strong>um</strong>a coisa mais idiota que buddy lists, é lol. se<br />
alguém usar lol comigo, eu arranco o computador da parede e o acerto na cabeça<br />
mais próxima. afinal, as pessoas não estão laughing out loud, ou seja, rindo<br />
alto das coisas para as quais elas põem lol. eu acho que deviam escrever loló,<br />
que é o que parece que essas pessoas andaram cheirando já que não conseguem<br />
mais pensar.<br />
ou ttyl [talk to you later — falo com você mais tarde]. você não está falando<br />
de verdade, sua vaca. pra isso, seria preciso fazer contato vocal de verdade. ou<br />
chão de tanto rir bem, então por favor fique aí deitado <strong>um</strong> instante enquanto<br />
EU DOU UM PÉ NA TUA BUNDA.)<br />
tive de dizer a maura que minha mãe me obrigou a cancelar meu instant<br />
messenger pra que ela parasse de entrar todas as vezes que eu estava tentando<br />
fazer alg<strong>um</strong>a coisa.<br />
sanguegotico4567: coé<br />
final<strong>will</strong>: trabalhando.<br />
sanguegotico4567: em quê<br />
final<strong>will</strong>: meu bilhete de suicídio. não consigo decidir como terminar.<br />
sanguegoticod4567: lol<br />
assim, matei meu <strong>nome</strong> de usuário e ressuscitei com outro. isaac é a única<br />
pessoa que o conhece, e vai continuar assim.<br />
verifico meu e-mail e é quase tudo spam. o que eu quero saber é o seguinte:<br />
existe mesmo alguém no mundo todo que recebe <strong>um</strong> e-mail de<br />
hlyywkrrs@hothotmail.com, lê e diz pra si mesmo: “ sabe, o que eu preciso<br />
mesmo é a<strong>um</strong>entar meu pênis em 33%, e a maneira de fazer isso é enviar $<br />
69,99 àquela simpática senhora ilena da VIRILIDADE MÁXIMA CORP através<br />
deste conveniente link da internet!” se as pessoas caem mesmo nessa, não é com<br />
o pau que deviam estar preocupadas.<br />
tenho <strong>um</strong>a solicitação de amizade de <strong>um</strong> estranho no facebook e a deleto sem<br />
nem olhar o perfil, porque tal coisa não me parece natural. porque a amizade não<br />
deve ser tão fácil assim. é como se as pessoas acreditassem que tudo que você<br />
precisa para serem almas gêmeas é gostar das mesmas bandas. ou livros. omg...<br />
vc gosta de outsiders 2... é como se fôssemos a mesma pessoa! não, não<br />
somos. é como se tivéssemos o mesmo professor de inglês. é diferente.<br />
são quase quatro horas e isaac cost<strong>um</strong>a estar on-line a essa hora. faço aquela
coisa idiota da recompensa com meu dever de casa — é assim: se eu procurar a<br />
data em que os maias inventaram o palito de dentes, posso verificar se isaac já<br />
está on-line. depois, se eu ler mais três parágrafos sobre a importância da<br />
cerâmica nas culturas indígenas, posso verificar minha conta do yahoo. E,<br />
finalmente, se eu terminar de responder essas três perguntas e isaac ainda não<br />
estiver on-line, então posso tocar outra punheta.<br />
estou ainda na metade da resposta da primeira pergunta, <strong>um</strong>a besteira sobre<br />
por que as pirâmides maias são tão mais legais que as egípcias, quando<br />
trapaceio, olho minha lista de amigos e vejo o <strong>nome</strong> de isaac ali. estou prestes a<br />
pensar por que ele não me mandou <strong>um</strong>a mensagem quando a caixa aparece na<br />
tela. como se ele tivesse lido minha mente.<br />
amarradopelopai: vc está aí<br />
grayscale: sim!<br />
amarradopelopai:<br />
grayscale: x 100<br />
amarradopelopai: pensei em você o dia todo<br />
grayscale: <br />
amarradopelopai: só coisas boas<br />
grayscale: isso é muito mau<br />
amarradopelopai: depende do que você considera bom<br />
é assim desde o começo. ficando cada vez mais agradável. fiquei <strong>um</strong> pouco<br />
assustado no início com o <strong>nome</strong> de usuário dele, mas rapidamente ele me<br />
contou que era porque o <strong>nome</strong> dele era isaac, e<br />
nofimmeupaisacrificouocordeiroenaoamim era longo demais pra ser <strong>um</strong> bom<br />
<strong>nome</strong> de usuário. ele me perguntou sobre meu antigo <strong>nome</strong>, final<strong>will</strong> e contei
que meu <strong>nome</strong> era <strong>will</strong>, e foi assim que começamos a nos conhecer. estávamos<br />
em <strong>um</strong>a daquelas salas de bate-papo entediantes onde se fica em completo<br />
silêncio a cada dez segundos até alguém escrever “ alguém aí” e outras pessoas<br />
respondem “ sim” “ ok” “ aqui!”, sem dizer coisa nenh<strong>um</strong>a. estávamos<br />
supostamente em <strong>um</strong> fór<strong>um</strong> sobre <strong>um</strong> cantor de quem eu gostava, mas não havia<br />
muito a dizer sobre ele, exceto quais músicas eram melhores que outras. era<br />
realmente chato, mas foi assim que isaac e eu nos conhecemos, então acho que<br />
vamos ter de contratar o cantor pra tocar em nosso casamento ou algo assim.<br />
(isso não tem nenh<strong>um</strong>a graça.)<br />
logo estávamos trocando fotos e mp3s, e falando sobre como tudo é <strong>um</strong>a<br />
merda, mas é claro que a ironia estava no fato de que enquanto falávamos sobre<br />
isso o mundo não era assim tão merda. exceto, naturalmente, pela parte final,<br />
quando tínhamos de voltar ao mundo real.<br />
é tão injusto ele morar em ohio, porque isso não devia ser assim tão longe,<br />
mas, como nenh<strong>um</strong> de nós dirige e nenh<strong>um</strong> de nós nem em <strong>um</strong> milhão de anos<br />
diria: “ ei, mãe, não quer me levar até o outro lado de indiana pra eu encontrar<br />
<strong>um</strong> garoto”, estamos n<strong>um</strong> beco sem saída.<br />
grayscale: estou lendo sobre os maias.<br />
amarradopelopai: angelou<br />
grayscale: <br />
amarradopelopai: deixa pra lá. pulamos os maias. agora só estudamos<br />
história “ americana”.<br />
grayscale: mas eles não viveram nas américas<br />
amarradopelopai: não, segundo a minha escola. **gemidos**<br />
grayscale: então, quem você quase matou hoje<br />
grayscale: e com “ matar” quero dizer “ quis que desaparecesse”, no caso de<br />
essa conversa estar sendo monitorada por administradores...<br />
amarradopelopai: contagem de corpos potencial em 11. doze, se você incluir
o gato.<br />
grayscale: ... ou pela segurança interna<br />
grayscale: maldito gato!<br />
amarradopelopai: maldito gato!<br />
não contei a ninguém sobre isaac, porque ninguém tem nada com isso. adoro<br />
que ele saiba quem todo mundo é, mas que ninguém saiba quem ele é. se eu<br />
tivesse amigos de verdade com quem achasse que podia falar, isso poderia causar<br />
alg<strong>um</strong> conflito. mas como agora bastaria <strong>um</strong> único carro pra levar as pessoas ao<br />
meu enterro, acho que está tudo bem.<br />
alg<strong>um</strong> tempo depois, isaac precisa sair, porque ele não pode usar o<br />
computador na loja de música onde trabalha. sorte minha que não parece ser<br />
<strong>um</strong>a loja muito movimentada, e que o chefe dele seja <strong>um</strong> traficante de drogas ou<br />
algo do gênero já que está sempre deixando isaac responsável pela loja enquanto<br />
sai pra “ encontrar <strong>um</strong>as pessoas”.<br />
eu me afasto do computador e termino o dever de casa rapidamente. então<br />
posso ir pra sala de tv e ligar em law & order, pois a única coisa certa mesmo<br />
nessa vida é que sempre que eu ligar a tv haverá <strong>um</strong> episódio de law & order.<br />
desta vez é o do cara que estrangula <strong>um</strong>a loura atrás da outra, e embora eu tenha<br />
certeza de já ter visto aquilo <strong>um</strong>as dez vezes, fico assistindo como se não<br />
soubesse que a repórter bonita com quem ele está falando está prestes a ter o<br />
cordão da cortina enrolado no pescoço. não assisto a essa parte, porque é muito<br />
idiota, mas assim que a polícia pega o cara e o julgamento começa, o negócio<br />
fica tipo:<br />
promotor: cara, o cordão tirou esse pedacinho microscópico de pele da sua<br />
mão enquanto você a estrangulava, e nós o examinamos no microscópio e<br />
descobrimos que você está totalmente fodido.
você tem de saber que ele gostaria de ter usado luvas, embora elas<br />
provavelmente teriam deixado fibras, e ele estaria totalmente fodido de qualquer<br />
jeito. quando tudo isso acaba, vem outro episódio que eu não acho que tenha<br />
visto antes, até que <strong>um</strong>a celebridade atropela <strong>um</strong> bebê com sua H<strong>um</strong>mer, e eu<br />
penso: ah, é aquele em que a celebridade atropela o bebê com a H<strong>um</strong>mer. assisto<br />
de qualquer forma, porque não tenho nada melhor pra fazer. então mamãe chega<br />
em casa e me encontra lá, e é como se fôssemos <strong>um</strong>a reprise também.<br />
mãe: como foi o seu dia<br />
eu: mãe, estou assistindo tv.<br />
mãe: você vai estar pronto para o jantar em 15 minutos<br />
eu: mãe, estou assistindo tv!<br />
mãe: bem, arr<strong>um</strong>e a mesa no intervalo.<br />
eu: TÁ BOM.<br />
simplesmente não entendo isso — existe coisa mais chata e patética que pôr<br />
a mesa quando só tem duas pessoas quero dizer, com jogo americano e garfos<br />
pra salada e tudo. quem ela está enganando eu daria qualquer coisa pra não ter<br />
de passar os próximos vinte minutos sentado na frente dela, <strong>um</strong>a pessoa que não<br />
acredita em deixar o silêncio reinar. não, ela tem de preenchê-lo com conversa.<br />
tenho vontade de dizer a ela que é pra isso que servem as vozes na cabeça da<br />
gente, pra ajudar a passar por todas as partes silenciosas. mas ela não quer ficar<br />
com seus pensamentos, a menos que os diga em voz alta.<br />
mãe: se eu tiver sorte esta noite, talvez a gente tenha mais uns dólares pra<br />
poupança do carro.<br />
eu: você não precisa fazer isso.<br />
mãe: não seja bobo. é <strong>um</strong> motivo pra eu ir à noite do pôquer das garotas.<br />
queria mesmo que ela parasse com isso. ela se sente pior que eu com o fato
de eu não ter <strong>um</strong> carro. quer dizer, não sou <strong>um</strong> daqueles imbecis que acredita<br />
que assim que se faz 17 anos é <strong>um</strong> direito dado por deus aos americanos ter <strong>um</strong><br />
chevrolet novinho em folha na entrada da garagem. sei qual é a nossa situação, e<br />
sei que ela não gosta que eu tenha de trabalhar n<strong>um</strong>a farmácia nos fins de semana<br />
para pagar as coisas que precisamos comprar na própria farmácia. vê-la<br />
constantemente triste com isso não faz com que eu me sinta melhor. e, é claro,<br />
há outra razão pra ela ir jogar pôquer além do dinheiro. ela precisa de mais<br />
amigos.<br />
ela me pergunta se tomei meu remédio antes de sair correndo de manhã e<br />
digo, sim, caso contrário, eu não estaria me afogando na banheira ela não gosta<br />
disso, então digo “ brincadeirinha, brincadeirinha” e faço <strong>um</strong>a anotação mental<br />
de que as mães não são o melhor público pra piadas sobre remédios. decido não<br />
comprar pra ela o suéter de melhor mãe do mundo de <strong>um</strong> bosta depressivo no<br />
dia das mães como vinha planejando. (ok, na verdade não existe <strong>um</strong> suéter<br />
assim, mas, se existisse, teria gatinhos nele, colocando meias nas patas.)<br />
a verdade é que pensar em depressão me deprime horrores, então volto pra<br />
sala de tv e assisto a mais law & order. isaac nunca volta ao computador antes<br />
das oito, então espero até lá. maura me liga, mas não tenho energia pra dizer<br />
nada exceto o que está acontecendo em law & order, e ela odeia quando faço<br />
isso. então deixo o correio de voz atender.<br />
eu: aqui é o <strong>will</strong>. qual é o motivo dessa porra de ligação deixe <strong>um</strong>a<br />
mensagem e talvez eu te ligue de volta. [BIPE]<br />
maura: ei, perdedor. estou tão entediada que estou te ligando. pensei que, se<br />
você não estivesse fazendo nada, eu poderia gerar seus filhos. bem... sendo<br />
assim, acho que vou ligar pra josé e pedir a ele que me coma na manjedoura e<br />
conceba outra criança santa.<br />
quando me dou ao trabalho de ouvir são quase oito. e, mesmo assim, não me
dou ao trabalho de ligar de volta pra ela. temos essa coisa em relação a ligar de<br />
volta pro outro; o que significa não fazer muito isso. em vez de ligar, sigo pro<br />
computador e é como se eu me transformasse em <strong>um</strong>a garotinha que vê seu<br />
primeiro arco-íris. fico todo animado e nervoso, cheio de esperança e<br />
desesperado, e digo a mim mesmo pra não ficar olhando obsessivamente a lista<br />
de amigos, mas parece que ela se projeta na parte interna das minhas pálpebras.<br />
às 20h05 o <strong>nome</strong> dele aparece e eu começo a contar. chego apenas ao 12 antes<br />
que a mensagem dele surja na tela.<br />
amarradopelopai: meus c<strong>um</strong>primentos!<br />
grayscale: e saudações!<br />
amarradopelopai: muito feliz por vc estar aqui.<br />
grayscale: muito feliz por estar aqui<br />
amarradopelopai: trabalho hoje = o dia! mais entediante! de todos os tempos!<br />
<strong>um</strong>a garota tentou furtar e não foi nem <strong>um</strong> pouco sutil. eu cost<strong>um</strong>ava ter alg<strong>um</strong>a<br />
simpatia por ladrões de lojas<br />
amarradopelopai: mas agora só quero vê-los atrás das grades. disse a ela para<br />
devolver o objeto e ela reagiu toda do tipo: “ colocar o que de volta” até eu<br />
meter a mão no bolso dela e pegar o disco. e o que ela disse então “ ah”<br />
grayscale: nem mesmo “ desculpa”<br />
amarradopelopai: nem isso.<br />
grayscale: garotas são <strong>um</strong> saco.<br />
amarradopelopai: e os garotos são uns anjos<br />
seguimos assim por cerca de <strong>um</strong>a hora. queria que pudéssemos falar pelo<br />
telefone, mas os pais dele não deixam que ele tenha <strong>um</strong> celular, e sei que minha<br />
mãe às vezes checa as minhas chamadas quando estou no banho. mas isso é<br />
legal. é a única parte do meu dia em que o tempo parece valer.<br />
passamos nossos cost<strong>um</strong>eiros dez minutos nos despedindo.
amarradopelopai: preciso mesmo ir.<br />
grayscale: eu também.<br />
amarradopelopai: mas não quero.<br />
grayscale: nem eu.<br />
amarradopelopai: amanhã<br />
grayscale: amanhã!<br />
amarradopelopai: eu quero você.<br />
grayscale: quero você também.<br />
isso é perigoso, pois como regra não me permito querer coisas. muitas vezes<br />
quando eu era criança, juntava as mãos ou fechava os olhos bem apertado e me<br />
dedicava a esperar por alg<strong>um</strong>a coisa. eu até achava que havia alguns lugares no<br />
meu quarto que eram melhores pra pedir que outros — debaixo da cama era ok,<br />
mas na cama não era; o fundo do armário servia, desde que a caixa de sapatos<br />
com cartões de beisebol estivesse no meu colo. nunca, jamais na minha mesa,<br />
mas sempre com a gaveta de meias aberta. ninguém tinha me dito essas regras<br />
— eu as havia descoberto sozinho. podia passar horas nutrindo <strong>um</strong> desejo<br />
particular — e toda vez deparava com <strong>um</strong> gigantesco muro de total indiferença.<br />
fosse pra desejar <strong>um</strong> hamster de estimação ou pra que minha mãe parasse de<br />
chorar — a gaveta de meias estaria aberta, e eu estaria sentado atrás do meu baú<br />
de brinquedos com três bonecos em <strong>um</strong>a das mãos e <strong>um</strong>a miniatura de carro na<br />
outra. nunca esperava que tudo ficasse melhor — apenas que <strong>um</strong>a única coisa<br />
melhorasse. e nunca funcionou. assim, finalmente, desisti. eu desisto todo santo<br />
dia.<br />
mas não com isaac. às vezes isso me assusta. desejar que dê certo.<br />
mais tarde naquela noite recebo <strong>um</strong> e-mail dele.<br />
tenho a sensação de que minha vida está muito dispersa neste momento.<br />
como se fosse <strong>um</strong> monte de pedacinhos de papel e alguém ligasse o ventilador.
mas falar com você me faz sentir como se o ventilador tivesse sido desligado<br />
por <strong>um</strong> tempo. como se as coisas pudessem de fato fazer alg<strong>um</strong> sentido. você<br />
junta todos os meus pedacinhos, e sou muito grato por isso.<br />
DEUS, ESTOU TÃO APAIXONADO.
capítulo três<br />
Nada acontece por <strong>um</strong>a semana. Não digo isso no sentido figurado, como se<br />
houvesse <strong>um</strong>a escassez de eventos significativos. Quero dizer que não acontece<br />
absolutamente nada mesmo. Estagnação total. É <strong>um</strong> pouco como <strong>um</strong> paraíso,<br />
pra dizer a verdade.<br />
Tem a coisa de levantar, tomar banho e ir pra escola, e o milagre de Tiny<br />
Cooper ao sentar na carteira, e o olhar melancólico pro meu relógio tipo Ônibus<br />
Escolar Mágico do Lanche Feliz do Burger King durante cada aula, e o alívio do<br />
sinal do oitavo tempo, e o ônibus pra casa, e o dever de casa, e o jantar, e os<br />
pais, e a porta trancada, e a música boa, e o Facebook, e a leitura das<br />
atualizações de status das pessoas sem atualizar o meu próprio status porque<br />
minha política de boca calada se estende à comunicação textual, e depois tem a<br />
cama e a coisa de levantar, o chuveiro e a escola outra vez. Isso não me<br />
incomoda. No que diz respeito à vida, prefiro o silenciosamente desesperado ao<br />
radicalmente bipolar.<br />
E então na noite de quinta-feira vou pra casa, Tiny me liga e alg<strong>um</strong>a coisa<br />
começa a acontecer. Eu digo alô e aí Tiny, a título de introdução, diz:<br />
— Você devia ir ao encontro da Aliança Gay-Hétero de amanhã.<br />
E eu respondo:<br />
— Nada pessoal, Tiny, mas não sou muito de alianças. De qualquer forma,<br />
você conhece minha política sobre atividades extracurriculares.<br />
— Não, não conheço — retruca Tiny.<br />
— Bem, sou contra elas — digo. — Só as atividades curriculares já são<br />
suficientes. Ouça, Tiny, preciso desligar. Minha mãe está na outra linha. —<br />
Desligo. Minha mãe não está na outra linha, mas eu preciso desligar, porque<br />
não aguento ser persuadido a nada.<br />
Mas Tiny liga de novo. E diz:
— Na verdade, eu preciso que você vá porque temos de a<strong>um</strong>entar nosso<br />
número de associados. O financiamento repassado pela escola é parcialmente<br />
decidido pela quantidade de pessoas que frequentam as reuniões.<br />
— Por que você precisa do dinheiro da escola Você tem sua própria casa.<br />
— Precisamos de dinheiro pra montar nossa produção de Tiny Dancer.<br />
— Ai. Meu. Deus. Misericordioso — digo, porque Tiny Dancer é <strong>um</strong><br />
musical escrito por Tiny.<br />
É basicamente a história da vida de Tiny levemente dramatizada, só que<br />
cantada, e é — e eu não uso esse adjetivo levianamente — o musical mais gay<br />
de toda a história da h<strong>um</strong>anidade. O que não quer dizer que ele seja ruim. Só<br />
estou dizendo que é gay. Na verdade — até onde é possível com musicais — é<br />
bastante bom. As músicas ficam na cabeça. Gosto particularmente de “ Quem tá<br />
na linha de frente (gosta que ataquem por trás)”, que inclui os memoráveis<br />
versos: “ No vestiário nem dá pra tirar casquinha / porque vocês têm a cara cheia<br />
de espinha.”<br />
— O quê — geme Tiny.<br />
— Só estou preocupado que isso possa ser, hã... — O que foi que Gary disse<br />
no outro dia... — “ Ruim para a causa” — afirmo.<br />
— Esse é exatamente o tipo de coisa que você pode dizer amanhã! —<br />
responde Tiny, com <strong>um</strong> leve traço de decepção na voz.<br />
— Eu vou — digo, e desligo.<br />
Ele torna a ligar, mas não atendo, pois estou no Facebook, olhando o perfil<br />
de Tiny, correndo os olhos pelos seus 1.532 amigos, cada <strong>um</strong> mais bonito e<br />
estiloso que o outro. Estou tentando descobrir quem, precisamente, faz parte da<br />
Aliança Gay-Hétero, e se poderiam se tornar <strong>um</strong> Grupo de Amigos<br />
convenientemente não irritante. Até aqui, pelo que posso ver, porém, são apenas<br />
Gary, Nick e Jane. Estou examinando atentamente a minúscula foto do perfil de<br />
Jane, na qual ela parece segurar <strong>um</strong>a espécie de mascote em tamanho natural
com patins de gelo.<br />
E, nesse exato momento, recebo <strong>um</strong>a solicitação de amizade dela. Poucos<br />
segundos depois de eu aceitar, ela me manda <strong>um</strong>a mensagem.<br />
Jane: Oi!<br />
Eu: Oi.<br />
Jane: Desculpe, esse deve ter sido <strong>um</strong> uso de exclamação inadequado.<br />
Eu: Rá. Tudo bem.<br />
Olho o perfil dela. A lista de músicas e livros favoritos é obscenamente<br />
longa, e eu só consigo percorrer a letra A da lista de músicas antes de desistir.<br />
Ela está bonita nas fotos, mas não tanto quanto na vida real — o sorriso nas<br />
fotos não é o dela.<br />
Jane: Soube que Tiny está recrutando você para a AGH.<br />
Eu: De fato.<br />
Jane: Você devia ir. Precisamos de associados. É meio patético, na verdade.<br />
Eu: É, acho que vou.<br />
Jane: Legal. Não sabia que você tinha Facebook. Seu perfil é engraçado.<br />
Gostei de “ ATIVIDADES: precisam envolver óculos de sol”.<br />
Eu: Você tem mais bandas favoritas do que Tiny tem ex-namorados.<br />
Jane: É, bem. Alg<strong>um</strong>as pessoas têm vida; outras têm música.<br />
Eu: E alg<strong>um</strong>as não têm nenh<strong>um</strong>a das duas.<br />
Jane: Anime-se, Will. Você está prestes a ser o hétero mais bonito na<br />
Aliança Gay-Hétero.<br />
Tenho a nítida impressão de que está rolando <strong>um</strong> clima. Assim, não me<br />
entenda mal. Eu gosto de flertar como qualquer <strong>um</strong>, desde que seja qualquer <strong>um</strong><br />
que tenha visto repetidamente seu melhor amigo ser dilacerado pelo amor. Mas<br />
nada viola as regras de calar a boca e não se importar o suficiente para flertar —
exceto possivelmente aquele momento encantadoramente horrível em que você<br />
age depois do flerte, o momento em que você sela seu coração partido com <strong>um</strong><br />
beijo. Deveria haver <strong>um</strong>a terceira regra, na verdade: 1. Cale a boca. 2. Não ligue<br />
muito pra nada. E 3. Nunca beije <strong>um</strong>a garota de quem você gosta.<br />
Eu, depois de <strong>um</strong> tempo: Quantos caras héteros tem na AGH<br />
Jane: Você.<br />
Eu escrevo lol, e me sinto <strong>um</strong> tolo de sequer pensar nela como flerte. Jane é<br />
só <strong>um</strong>a garota inteligente e crítica com cabelos enrolados demais.<br />
E então fica assim: às 15h30 da tarde seguinte, o sinal do oitavo tempo toca<br />
e, por <strong>um</strong> nanossegundo, sinto fervilhando pelo meu corpo as endorfinas que em<br />
geral indicam que sobrevivi com êxito a mais <strong>um</strong> dia de aula sem que nada<br />
acontecesse, mas aí eu lembro: o dia ainda não acabou.<br />
Marcho para o andar de cima enquanto <strong>um</strong> mundo de gente desce a escada<br />
correndo, a caminho do fim de semana.<br />
Chego à sala 204A. Abro a porta. Jane está de costas pra mim sentada n<strong>um</strong>a<br />
carteira e com os pés na cadeira. Veste <strong>um</strong>a camiseta amarelo-clara e, do modo<br />
como está inclinada, posso ver <strong>um</strong> pouco da lombar dela.<br />
Tiny Cooper está esparramado no carpete fino, usando a mochila como<br />
travesseiro. Está usando <strong>um</strong> jeans skinny, que mais parecem invólucros jeans<br />
para salsicha. Nesse momento, a Aliança Gay-Hétero consiste em nós três.<br />
— Grayson! — exclama Tiny.<br />
— Este é o Clube Homossexualidade É Uma Abominação, certo<br />
Tiny ri. Jane apenas continua sentada de costas pra mim, lendo. Meus olhos<br />
se dirigem às costas dela, já que têm de ir a alg<strong>um</strong> lugar, e Tiny diz:<br />
— Grayson, você está desistindo da sua assexualidade<br />
Jane se vira no momento em que lanço <strong>um</strong> olhar pra Tiny e murmuro:
— Não sou assexuado. Sou arrelacionamental.<br />
E Tiny diz a Jane:<br />
— É <strong>um</strong>a tragédia, não é A única coisa que Grayson tem a seu favor é que é<br />
<strong>um</strong>a graça, e, no entanto, ele se recusa a namorar.<br />
Tiny gosta de me arr<strong>um</strong>ar garotas. Ele faz isso pelo simples e puro prazer de<br />
me irritar. E funciona.<br />
— Cale a boca, Tiny.<br />
— Eu simplesmente não consigo entender — continua ele. — Nada pessoal,<br />
Grayson, mas você não faz o meu tipo, porque: A. Você não presta muita<br />
atenção à higiene, e B. Tudo que você tem a seu favor é o que acho totalmente<br />
desinteressante. Quero dizer, Jane, acho que podemos concordar que Grayson<br />
tem belos braços.<br />
Jane parece ligeiramente em pânico, e corro pra salvá-la de precisar falar.<br />
— Você tem a maneira mais estranha de dar em cima de mim, Tiny.<br />
— Eu jamais daria em cima de você, porque você não é gay. E, assim,<br />
garotos que gostam de garotas são, por natureza, sem graça. Por que gostar de<br />
alguém que não pode retribuir o seu amor<br />
A pergunta é retórica, mas, se eu não estivesse tentando ficar calado,<br />
responderia: Você gosta de alguém que não pode retribuir o seu amor porque é<br />
possível sobreviver ao amor não correspondido de <strong>um</strong>a forma impossível no<br />
caso do amor <strong>um</strong>a vez correspondido.<br />
Um momento depois, Tiny diz:<br />
— As garotas héteros acham que ele é <strong>um</strong>a gracinha, é só isso que estou<br />
dizendo.<br />
E então me dou conta de toda a extensão da insanidade. Tiny Cooper me<br />
trouxe para a Aliança Gay-Hétero para me arr<strong>um</strong>ar <strong>um</strong>a namorada.<br />
O que é naturalmente idiota naquele sentido profundo e múltiplo que<br />
somente <strong>um</strong> professor poderia elucidar completamente. Pelo menos Tiny acaba
calando a boca, e imediatamente começo a olhar meu relógio e me perguntar se é<br />
isso que acontece em <strong>um</strong>a reunião da AGH — talvez nós três apenas fiquemos<br />
aqui sentados em silêncio por <strong>um</strong>a hora enquanto Tiny Cooper periodicamente<br />
torna o ambiente toxicamente desconfortável com seus comentários nada sutis, e<br />
então, no fim, daremos <strong>um</strong> abraço coletivo e gritaremos VIVAM OS GAYS! ou<br />
algo do gênero. Mas então Gary e Nick chegam com uns caras que reconheço<br />
vagamente, <strong>um</strong>a garota com <strong>um</strong> corte de cabelo joãozinho vestindo <strong>um</strong>a<br />
camiseta gigantesca do Rancid que chega quase aos joelhos dela, e <strong>um</strong> professor<br />
de inglês, o Sr. Fortson, que nunca me deu aula, o que talvez explique o porquê<br />
de ele estar sorrindo pra mim.<br />
— Sr. Grayson — diz o Sr. Fortson —, é <strong>um</strong> prazer tê-lo aqui. Gostei da<br />
sua carta para o editor de alg<strong>um</strong>as semanas atrás.<br />
— O maior erro da minha vida — conto a ele.<br />
— Mas por quê<br />
Tiny Cooper intervém.<br />
— É <strong>um</strong>a longa história que diz respeito a calar a boca e não se importar com<br />
nada.<br />
Eu apenas concordo com a cabeça.<br />
— Ah, meu Deus, Grayson — sussurra Tiny em tom audível a todos. — Eu<br />
te contei o que Nick me disse<br />
Estou pensando nick, nick, nick, quem diabos é nick E então olho pra Nick,<br />
que não está sentado perto de Gary, o que é a Pista A. Além disso, ele está com<br />
a cabeça enterrada nos braços, o que é a Pista B.<br />
Tiny diz:<br />
— Ele disse que consegue se imaginar comigo. Com essas palavras: consigo<br />
me imaginar com você. Isso não é a coisa mais fantástica que você já ouviu<br />
Pela inflexão de Tiny, não sei dizer se a coisa é fantasticamente hilária ou<br />
fantasticamente maravilhosa, então simplesmente dou de ombros.
Nick suspira, a cabeça apoiada na carteira, e murmura.<br />
— Tiny, agora não.<br />
Gary corre os dedos pelo cabelo e suspira.<br />
— Toda essa sua libertinagem é ruim para a causa.<br />
O Sr. Fortson põe ordem na reunião com <strong>um</strong> martelo. Um martelo de<br />
verdade. Pobre coitado. Imagino que lá na faculdade ou o que fosse, ele não<br />
sonhava que o uso do martelo seria necessário em sua carreira no magistério.<br />
— Muito bem, então temos oito pessoas hoje. Isto é ótimo, rapazes. Creio<br />
que o primeiro ponto na pauta do dia seja o musical de Tiny, Tiny Dancer.<br />
Precisamos decidir se pedimos à administração que financie a peça ou se<br />
preferimos nos concentrar em outras coisas: educação, conscientização etc.<br />
Tiny se apr<strong>um</strong>a na cadeira e anuncia:<br />
— Tiny Dancer é sobre educação e conscientização.<br />
— Certo — diz Gary, sarcástico. — Educar e conscientizar a todos sobre<br />
Tiny Cooper.<br />
Os dois caras sentados com Gary riem, e, sem pensar duas vezes, digo: “ Ei,<br />
não seja idiota, Gary”, porque não posso evitar de ir em defesa de Tiny.<br />
Jane diz:<br />
— Olha, as pessoas vão sacanear a peça Sem a menor sombra de dúvida.<br />
Mas ela é honesta. É engraçada, e justa, e não é cheia de bobagens. Mostra os<br />
gays como pessoas completas e complicadas; e não apenas como “ ah, meu<br />
Deus, preciso dizer pro meu pai que eu gosto de meninos e ai-ai é tão difícil”.<br />
Gary revira os olhos e solta o ar pelos lábios fechados como se estivesse<br />
f<strong>um</strong>ando.<br />
— Aham. Você sabe como é difícil — diz ele a Jane —, já que você é... Ei,<br />
peraí. Ah, sim. Você não é gay.<br />
— Isso é irrelevante — responde Jane.<br />
Olho pra Jane, que está fuzilando Gary com o olhar no momento em que o
Sr. Fortson começa a falar sobre não se poder ter Alianças dentro da Aliança<br />
caso contrário não haverá <strong>um</strong>a Aliança abrangente. Estou me perguntando<br />
quantas vezes ele será capaz de usar a palavra aliança em <strong>um</strong>a frase quando Tiny<br />
Cooper interrompe o Sr. Fortson, dizendo:<br />
— Ei, calma, Jane, você é hétero<br />
E ela faz que sim sem levantar a cabeça e murmura:<br />
— Quero dizer, acho que sim.<br />
— Você devia sair com o Grayson — diz Tiny. — Ele te acha supergata.<br />
Se eu subisse em <strong>um</strong>a balança totalmente vestido, encharcado, segurando<br />
pesos de cinco quilos em cada mão e equilibrando <strong>um</strong>a pilha de livros de capa<br />
dura na cabeça, pesaria mais de 80 quilos, o que equivale aproximadamente ao<br />
peso do tríceps esquerdo de Tiny Cooper. Mas, nesse momento, eu seria capaz<br />
de espancá-lo até a morte. E é o que eu faria, juro por Deus, não fosse o fato de<br />
estar ocupado demais tentando desaparecer.<br />
Estou aqui pensando: Deus, juro que vou fazer <strong>um</strong> voto de silêncio e me<br />
mudar pra <strong>um</strong> mosteiro e venerar o senhor por todos os meus dias se, desta<br />
única vez, o senhor me proporcionar <strong>um</strong> manto de invisibilidade; vamos,<br />
vamos, por favor por favor, manto de invisibilidade agora, agora, agora. É<br />
muito possível que Jane esteja pensando a mesma coisa, mas não faço a menor<br />
ideia, porque ela também não está falando nada e não consigo olhar pra ela por<br />
estar cego de vergonha.<br />
A reunião dura mais trinta minutos, durante os quais não falo, nem me<br />
mexo, nem respondo a nenh<strong>um</strong> tipo de estímulo. Entendo que Nick faz com que<br />
Gary e Tiny meio que façam as pazes, e a aliança concorda em buscar dinheiro<br />
tanto pra Tiny Dancer quanto para <strong>um</strong>a série de folhetos com propósito<br />
educacional. Rola mais alg<strong>um</strong>a conversa, mas não volto a ouvir a voz de Jane.<br />
E então a coisa chega ao fim, e com minha visão periférica vejo todos saindo,<br />
mas eu fico ali parado. Na última meia hora, reuni n<strong>um</strong>a lista mental
aproximadamente 412 maneiras de matar Tiny Cooper, e não vou sair da sala<br />
até ter resolvido qual a melhor. Finalmente, decido que simplesmente vou<br />
apunhalá-lo mil vezes com <strong>um</strong>a caneta esferográfica. No estilo presídio. Me<br />
levanto com a postura perfeita e saio. Tiny Cooper está encostado em <strong>um</strong>a fileira<br />
de armários, à minha espera.<br />
— Ouça, Grayson — diz, e eu vou até ele e o agarro pela camisa polo, e, na<br />
ponta dos pés, com meus olhos na altura do pomo de adão dele, digo:<br />
— Essa foi a pior de todas as coisas miseráveis que você já fez, seu<br />
boqueteiro.<br />
Tiny ri, o que só me deixa com mais raiva, e diz:<br />
— Você não pode me chamar de boqueteiro, Grayson, porque: A. Isso não é<br />
<strong>um</strong> insulto, e B. Você sabe que não sou. Ainda. Infelizmente.<br />
Solto a camisa dele. Não tem como intimidar Tiny fisicamente.<br />
— Bem, que seja — respondo. — Seu merda. Babaca. Xoxoteiro.<br />
— Isso sim é <strong>um</strong> insulto — diz ele. — Mas ouça, cara. Ela gosta de você.<br />
Quando saiu agora, veio até mim e perguntou: “ Você estava falando sério ou<br />
estava só brincando”, e eu falei: “ Por que a pergunta”, e ela respondeu:<br />
“ Bem, ele é legal, só isso”, e então eu disse que não era brincadeira e ela riu<br />
toda boba.<br />
— Sério<br />
— Sério.<br />
Respiro fundo e devagar.<br />
— Isso é péssimo. Eu não estou interessado nela, Tiny.<br />
Ele revira os olhos.<br />
— E você acha que eu sou maluco Ela é adorável. Eu acabo de total fazer<br />
sua vida!<br />
Percebo que isso não é, assim, coisa de garoto. Percebo que os caras<br />
propriamente ditos deviam pensar só em sexo e em como consegui-lo, e que
deviam correr com a pélvis apontada na direção de toda garota que gosta deles<br />
etc. Mas: a parte que eu mais gosto não é fazer, e sim notar. Notar que ela cheira<br />
a café muito doce, e a diferença entre o sorriso dela e o sorriso das fotos, e a<br />
forma como ela morde o lábio inferior, e a pele pálida de suas costas. Eu só<br />
quero o prazer de notar essas coisas a <strong>um</strong>a distância segura — não quero ter de<br />
reconhecer que estou notando. Não quero ter de falar nisso ou fazer alg<strong>um</strong>a<br />
coisa em relação a isso.<br />
E eu, de fato, pensei nisso quando estávamos lá com Tiny inconsciente e se<br />
afogando em meleca aos nossos pés. Pensei em saltar sobre o gigante caído e<br />
beijá-la, e na minha mão em seu rosto e no seu hálito improvavelmente quente,<br />
e sobre ter <strong>um</strong>a namorada que se irritasse comigo por eu ser tão quieto e então<br />
eu ficando mais quieto ainda porque o que eu gostava era de <strong>um</strong> sorriso com <strong>um</strong><br />
leviatã adormecido entre nós, e aí me sinto <strong>um</strong> lixo por <strong>um</strong> tempo até<br />
finalmente terminarmos, e nesse ponto reafirmo meu voto de viver segundo as<br />
regras.<br />
Eu poderia fazer isso.<br />
Ou poderia apenas viver segundo as regras.<br />
— Acredite em mim — digo a ele. — Você não está melhorando minha<br />
vida. Pare de interferir, ok<br />
Ele responde dando de ombros, o que tomo como <strong>um</strong> gesto de concordância.<br />
— Então, ouça — diz Tiny —, sobre Nick. O negócio é que ele e Gary<br />
ficaram juntos por muito tempo e, assim, eles terminaram só ontem, mas tem<br />
realmente alg<strong>um</strong>a coisa entre nós.<br />
— Ideia incrivelmente péssima — falo.<br />
— Mas eles terminaram — insiste Tiny.<br />
— Certo, mas o que aconteceria se alguém terminasse com você e então no<br />
dia seguinte flertasse com <strong>um</strong> amigo seu<br />
— Vou pensar nisso — diz Tiny, mas sei que ele não pode se conter para
evitar mais <strong>um</strong> breve e fracassado romance. — Ah, ei. — Tiny se anima. —<br />
Você devia ir conosco para a Storage Room na sexta. Nick e eu vamos ver essa<br />
banda, a, h<strong>um</strong>... Maybe Dead Cats. Pop punk intelectual. Tipo a Dead<br />
Milkmen, só que menos engraçados rá-rá.<br />
— Obrigado por me convidar antes — agradeço, dando <strong>um</strong>a cotovelada em<br />
Tiny.<br />
Ele me empurra, brincando, e eu quase caio da escada. É como ser o melhor<br />
amigo de <strong>um</strong> gigante de conto de fadas: Tiny Cooper não consegue evitar te<br />
machucar.<br />
— Só pensei que você não gostaria de ir depois do desastre da semana<br />
passada.<br />
— Ah, espere, não posso. O Storage Room é para maiores de 21.<br />
Tiny Cooper, andando na minha frente, alcança a porta. Empurra o quadril<br />
contra a barra de metal e a mesma se abre. O lado de fora. O fim de semana. A<br />
luz viva de Chicago. O ar frio me envolve, a luz está mudando rapidamente, e a<br />
silhueta de Tiny Cooper é destacada contra o sol poente, de modo que mal<br />
posso vê-lo quando ele se vira pra mim e pega o celular.<br />
— Para quem você está ligando — pergunto, mas Tiny não responde.<br />
Simplesmente segura o aparelho na mão gigantesca e robusta, e diz: “ Ei,<br />
Jane”, e meus olhos se arregalam, e faço o movimento de cortar a garganta para<br />
Tiny que sorri e diz: “ Olhe, Grayson quer ir com a gente ao Maybe Dead Cats<br />
na sexta. Que tal <strong>um</strong> jantar primeiro”<br />
“ ...”<br />
“ Bem, o único problema é que ele não tem identidade. Você não conhece <strong>um</strong><br />
cara”<br />
“ ...”<br />
“ Você ainda não chegou em casa, não é Então volte e venha tirar a bunda<br />
magra dele daqui.” Tiny desliga e me diz: “ Ela está vindo pra cá”, e então fico
parado na porta enquanto Tiny dispara escada abaixo e começa a saltitar — isso<br />
mesmo, saltitar — na direção do estacionamento do terceiro ano. “ Tiny!”,<br />
grito, mas ele não se vira; continua saltitando. Eu não começo a saltitar atrás do<br />
rabo ensandecido dele ou coisa do tipo, mas meio que sorrio. Ele pode ser <strong>um</strong><br />
feiticeiro malévolo, mas Tiny Cooper não está nem aí pros outros, e se ele quer<br />
ser <strong>um</strong> gigante saltitante, então é seu direito como americano enorme.<br />
Suponho que não possa largar Jane lá, então estou sentado nos degraus da<br />
frente quando ela aparece dois minutos depois atrás do volante de <strong>um</strong> Volvo<br />
antigo, pintado à mão de laranja. Eu já vi o carro antes no estacionamento —<br />
não dá pra não notá-lo —, mas nunca associei o automóvel a Jane. Ela parece<br />
mais discreta do que o mesmo sugere. Desço os degraus, abro a porta do carona<br />
e entro, pisando n<strong>um</strong>a pilha de embalagens de fast-food.<br />
— Desculpe. Eu sei que é nojento.<br />
— Não se preocupe — digo. Essa seria a hora certa pra fazer <strong>um</strong>a piada, mas<br />
fico pensando cale a boca, cale a boca, cale a boca. Após alg<strong>um</strong> tempo o<br />
silêncio fica muito estranho, então pergunto:<br />
— Você conhece essa banda, os hã... Maybe Dead Cats<br />
— Conheço. Eles não são ruins. São meio que <strong>um</strong>a versão pobre da Mr. T<br />
Experience nos primeiros tempos, mas têm <strong>um</strong>a música que gosto; ela tem uns<br />
55 segundos de duração e se chama “ Annus Miribalis”, e basicamente explica a<br />
teoria da relatividade de Einstein.<br />
— Legal — digo. Ela sorri, engata a marcha, e partimos n<strong>um</strong> solavanco pra<br />
cidade.<br />
Um minuto depois mais ou menos, encontramos <strong>um</strong>a placa de pare, e Jane<br />
encosta n<strong>um</strong> dos lados da estrada e me olha.<br />
— Eu sou muito tímida — diz ela.<br />
— Hein<br />
— Eu sou muito tímida, então entendo. Mas não se esconda atrás de Tiny.
— Não estou me escondendo — retruco.<br />
E então ela passa por baixo do cinto de segurança e eu me pergunto por que<br />
ela está fazendo isso, e aí ela se debruça sobre o câmbio, e eu me dou conta do<br />
que está acontecendo, e ela fecha os olhos, inclina a cabeça, e eu me afasto,<br />
olhando pras sacolas de fast-food no chão do carro dela. Jane abre os olhos e<br />
volta pra trás com <strong>um</strong> solavanco. Então começo a falar pra preencher o silêncio.<br />
— Eu não, hã, eu acho você incrível e bonita, mas eu não, assim, eu não,<br />
assim, eu acho que na verdade não, hã, não quero <strong>um</strong> relacionamento agora.<br />
Após <strong>um</strong> instante, muito baixinho, ela diz:<br />
— Acho que devo ter recebido informações não confiáveis.<br />
— É possível — concordo.<br />
— Sinto muito.<br />
— Eu também. Quero dizer, você é mesmo...<br />
— Não, não, não, pare, isso só piora as coisas. Ok. Ok. Olhe pra mim.<br />
Olho para ela, que diz:<br />
— Eu posso esquecer completamente que isto aconteceu se, e somente se,<br />
você puder esquecer completamente que isto aconteceu.<br />
— Nada aconteceu — falo, e reafirmo: — Não aconteceu nada.<br />
— Exatamente — diz ela, e então nossa parada de 32 segundos na placa de<br />
pare chega ao fim, e minha cabeça é lançada de encontro ao assento. Jane dirige<br />
do mesmo jeito que Tiny namora.<br />
Estamos saindo da Lake Shore perto do centro da cidade, falando sobre o<br />
Neutral Milk Hotel, sobre a possibilidade de existir alg<strong>um</strong>a gravação por aí que<br />
ninguém tenha ouvido, apenas demos, e como seria interessante ouvir como as<br />
músicas deles eram antes de se tornarem músicas, e, quem sabe, se poderíamos<br />
arrombar o estúdio de gravação deles e copiar cada momento gravado da<br />
existência da banda. O sistema de aquecimento antigo do Volvo deixa meus<br />
lábios secos e a coisa de ela ter se inclinado parece, de fato, literalmente
esquecida — e me ocorre que estou estranhamente desapontado com o fato de<br />
Jane não parecer nem <strong>um</strong> pouco chateada, o que, por <strong>um</strong> lado, faz com que eu<br />
me sinta estranhamente rejeitado, e, por outro, me faz pensar que talvez <strong>um</strong>a ala<br />
especial do Museu dos Loucos deva ser erguida em minha homenagem.<br />
Encontramos <strong>um</strong>a vaga e estacionamos em <strong>um</strong>a rua a alg<strong>um</strong>as quadras do<br />
lugar, e Jane me leva até <strong>um</strong>a porta de vidro sem identificação ao lado de <strong>um</strong>a<br />
lanchonete de cachorro-quente. Uma placa na porta diz Cópias e Impressões<br />
Gold Coast. Subimos a escada, o cheiro de deliciosos focinhos de porco<br />
flutuando no ar, e entramos em <strong>um</strong>a loja que parece <strong>um</strong> minúsculo escritório. O<br />
lugar é pouquíssimo mobiliado, o que equivale a dizer que são duas cadeiras<br />
dobráveis, <strong>um</strong> pôster de gatinho escrito Aguente firme, <strong>um</strong>a planta morta n<strong>um</strong><br />
vaso, <strong>um</strong> computador e <strong>um</strong>a impressora sofisticada.<br />
— Ei, Paulie — diz Jane a <strong>um</strong> cara coberto de tatuagens que parece ser o<br />
único empregado da loja. O cheiro de cachorro-quente se dissipou, mas só<br />
porque a Cópias e Impressões Gold Coast fede a maconha. O cara dá a volta no<br />
balcão e dá <strong>um</strong> abraço de <strong>um</strong> só braço em Jane, que então diz: “ Este é meu<br />
amigo, Will”, e o cara estende a mão, e enquanto a aperto vejo que ele tem as<br />
letras H-O-P-E, tatuadas nos dedos.<br />
— Paulie e meu irmão são amigos. Frequentaram a Evanston juntos.<br />
— É, frequentamos juntos — diz Paulie. — Mas não nos formamos juntos,<br />
porque ainda não me formei. — Paulie ri.<br />
— Pois é, Paulie. Will perdeu a identidade — explica Jane.<br />
Paulie sorri para mim.<br />
— Uma pena, garoto. — Ele me entrega <strong>um</strong>a folha de papel em branco e diz:<br />
— Preciso do seu <strong>nome</strong> completo, endereço, data de nascimento, seguro social,<br />
altura, peso e cor dos olhos. E cem pratas.<br />
— Eu, hã... — digo, pois não cost<strong>um</strong>o carregar notas de cem por aí comigo.<br />
Mas, antes que eu possa sequer formar as palavras, Jane põe cinco notas de vinte
no balcão.<br />
Sentamos nas cadeiras dobráveis, e juntos inventamos minha nova<br />
identidade: Meu <strong>nome</strong> é Ishmael J. Biafra, meu endereço, W. Addison Street,<br />
número 1.060, a localização do estádio Wrigley Field. Tenho cabelos<br />
castanhos, olhos azuis, 1,78 metro, 72 quilos; meu número do seguro social são<br />
nove números aleatoriamente escolhidos, e eu fiz 22 anos no mês passado.<br />
Entrego o papel a Paulie, e então ele aponta pra <strong>um</strong>a tira de fita adesiva na<br />
parede e me diz pra ficar ali parado. Leva <strong>um</strong>a câmera digital até os olhos e diz:<br />
“ Sorria!” Eu não sorri pra minha carteira de motorista de verdade, e com toda<br />
certeza não ia sorrir pra essa.<br />
— Só vai levar <strong>um</strong> minuto — diz Paulie, e então eu me recosto na parede,<br />
nervoso o suficiente por causa da identidade pra esquecer de ficar nervoso por<br />
causa de minha proximidade com Jane. Embora eu saiba que sou<br />
aproximadamente a milionésima terceira pessoa a obter <strong>um</strong>a identidade falsa,<br />
ainda assim estou muito consciente de que se trata de <strong>um</strong> crime, e em geral não<br />
sou a favor de cometê-los.<br />
— Eu sequer bebo — falo em voz alta, em parte pra mim e em parte pra<br />
Jane.<br />
— A minha é só pros shows — afirma ela.<br />
— Posso ver — pergunto. Ela pega a mochila, cujo tecido foi todo escrito<br />
com <strong>nome</strong>s de bandas e frases, e pesca a carteira lá de dentro.<br />
— Eu guardo ela escondida aqui — diz ela, abrindo o fecho de <strong>um</strong><br />
compartimento da carteira — porque se eu, tipo, morrer ou alg<strong>um</strong>a coisa assim,<br />
não quero que o hospital fique tentando ligar pros pais de Zora Thurston Moore.<br />
E, de fato, esse é o <strong>nome</strong> dela, e a carteira parece completamente autêntica pra<br />
mim. Sua foto é incrível: a boca parece prestes a sorrir, e era exatamente assim<br />
que ela estava na casa de Tiny, diferente de todas as fotos dela no Facebook.<br />
— Essa foto ficou ótima. É exatamente assim que você parece — digo a ela.
E é verdade. Esse é o problema: tantas coisas são verdade. É verdade que quero<br />
sufocá-la de elogios e verdade que quero manter a distância. Verdade que quero<br />
que ela goste de mim e verdade que não quero. A verdade estúpida e infinita<br />
falando pelos dois lados e saindo por minha boca imensa e estúpida. É o que me<br />
faz continuar falando, feito <strong>um</strong> idiota.<br />
— Tipo, não pode saber como você parece, certo Sempre que se vê no<br />
espelho, sabe que está olhando para você, portanto, não pode evitar fazer <strong>um</strong><br />
pouco de pose. Assim, nunca sabe de verdade. Mas essa... É assim que você<br />
parece.<br />
Jane encosta dois dedos na foto da carteira, que estou segurando apoiada na<br />
minha perna, de modo que os dedos dela estão na minha perna se a gente não<br />
contar a carteira, e olho pra eles por <strong>um</strong> momento e então olho pra ela, que diz:<br />
— Paulie, apesar de toda sua criminalidade, na verdade é <strong>um</strong> bom fotógrafo.<br />
Nesse momento, Paulie surge acenando no ar <strong>um</strong> pedaço de plástico que<br />
parece <strong>um</strong>a carteira de motorista.<br />
— Sr. Biafra, sua identidade.<br />
Ele a entrega pra mim. Os dedos dessa mão exibem as letras L-E-S-S.<br />
Está perfeita. Todos os hologramas de <strong>um</strong>a carteira legítima do Illinois, as<br />
mesmas cores, o mesmo plástico grosso e laminado, a mesma informação sobre<br />
doação de órgãos. Eu até pareço razoavelmente bem na foto.<br />
— Meu Deus — exclamo. — Está magnífica. É a Mona Lisa das<br />
identidades.<br />
— Sem problema — fala Paulie. — Muito bem, garotos, preciso resolver<br />
<strong>um</strong>as coisas. — Paulie sorri e ergue <strong>um</strong> baseado. Estou perplexo como alguém<br />
tão doido de maconha poderia ser esse gênio no campo da falsificação. — Até<br />
mais, Jane. Diga ao Phil pra me ligar.<br />
— Sim, sim, capitão — diz Jane, e então começamos a descer a escada, e eu<br />
posso sentir minha identidade falsa no bolso da frente, apertada contra minha
coxa, e tenho a sensação de que tenho <strong>um</strong>a passagem pro mundo inteiro.<br />
Chegamos à rua, e o frio é sempre <strong>um</strong>a surpresa. Jane dispara a correr na<br />
minha frente e não sei se devo segui-la ou não, mas então ela se vira e começa a<br />
saltitar de costas. Com o vento no rosto dela, mal posso ouvi-la gritar:<br />
— Anda, Will! Corre! Afinal, agora você é <strong>um</strong> homem.<br />
E maldito seja eu se não começar a correr atrás dela.
capítulo quatro<br />
estou arr<strong>um</strong>ando o metamucil nas prateleiras do corredor sete quando maura<br />
chega furtivamente. ela sabe que meu chefe é <strong>um</strong> babaca quando me pega<br />
conversando na hora do trabalho, então ela finge olhar as vitaminas enquanto<br />
conversa comigo. está me dizendo que tem alg<strong>um</strong>a coisa muito perturbadora na<br />
palavra “ mastigável” e então, de repente, o relógio marca 17h12 e ela deduz que<br />
está na hora de me fazer perguntas pessoais.<br />
maura: você é gay<br />
eu: que porra é essa<br />
maura: tudo bem por mim, se você for.<br />
eu: ah, ótimo, porque o que mais me preocupa é se está tudo bem pra você.<br />
maura: só estou dizendo.<br />
eu: anotado. agora, por favor, dá pra calar a boca e me deixar trabalhar ou<br />
você quer que eu use meu desconto de empregado pra comprar alg<strong>um</strong>a coisa pra<br />
sua cólica<br />
acho que deveria mesmo haver <strong>um</strong> regulamento contra questionar a<br />
sexualidade de <strong>um</strong> cara quando ele está trabalhando. e, de qualquer forma, não<br />
quero falar sobre isso com maura, independentemente de onde estivermos.<br />
porque, eis a questão — nós não somos tão íntimos assim. maura é o tipo de<br />
amiga com quem gosto de trocar ideias de cenários apocalípticos. no entanto,<br />
não é alguém que me faz querer evitar que o apocalipse aconteça. durante o ano<br />
ou quase isso em que somos amigos, esse sempre foi <strong>um</strong> problema. sei que se<br />
contasse a ela que gosto de garotos, ela provavelmente pararia de querer ficar<br />
comigo, o que seria <strong>um</strong>a imensa vantagem. mas também sei que imediatamente<br />
me tornaria seu bichinho de estimação gay, e esse é o último tipo de coleira que
quero. e não é como se eu fosse assim tão gay. eu odeio a porra da madonna.<br />
eu: devia haver <strong>um</strong> cereal pra quem tem prisão de ventre chamado<br />
metamüslix.<br />
maura: estou falando sério.<br />
eu: estou seriamente mandando você se foder. não devia me chamar de gay só<br />
porque não quero dormir com você. <strong>um</strong> monte de caras héteros também não<br />
quer dormir com você.<br />
maura: vai se foder.<br />
eu: ah, mas a questão é: não vai ser com você.<br />
ela se aproxima e bagunça todos os frascos que eu vinha arr<strong>um</strong>ando em<br />
fileiras. quase pego <strong>um</strong> deles e jogo na cabeça dela quando ela vai embora, mas<br />
a verdade é que se eu acertasse, o gerente me faria limpar tudo, e isso seria <strong>um</strong><br />
saco. a última coisa que preciso é de massa encefálica nos meus sapatos novos.<br />
você sabe como é difícil fazer aquela merda sair de qualquer forma, preciso<br />
muito deste emprego, o que significa que não posso fazer coisas como gritar ou<br />
prender meu crachá idiota de cabeça pra baixo ou usar jeans rasgado ou sacrificar<br />
cachorrinhos no corredor dos brinquedos. não me importo, de verdade, exceto<br />
quando o gerente está por perto ou quando pessoas que conheço vêm aqui e<br />
agem todas estranhas só porque eu estou trabalhando, e elas não.<br />
penso que maura vai voltar, mas ela não volta, e eu sei que vou ter de ser<br />
legal com ela (pelo menos não ser cruel) pelos próximos três dias. faço <strong>um</strong>a<br />
anotação mental pra comprar <strong>um</strong> café ou alg<strong>um</strong>a coisa pra ela, mas meu bloco de<br />
notas mental é <strong>um</strong>a piada, porque assim que coloco alg<strong>um</strong>a coisa ali, ela<br />
desaparece. e a verdade é que da próxima vez que nos falarmos, maura vai pôr<br />
em prática todo seu modo de mágoa, e isso só vai me irritar ainda mais. afinal,<br />
foi ela quem abriu a boca. não é culpa minha se ela não aguenta a resposta.
a farmácia fecha às oito nos sábados, o que significa que saio às nove. eric,<br />
mary e greta estão todos falando de festas às quais estão indo, e até roger, o<br />
gerente certinho, nos diz que ele e a mulher vão “ ter aquela noite em casa” —<br />
pisca-pisca, cutuca-cutuca, trepa-trepa, vomita-vomita. prefiro imaginar <strong>um</strong>a<br />
ferida purulenta com larvas rastejando em cima. roger é gordo e careca e a<br />
mulher provavelmente também é gorda e careca, e a última coisa que quero<br />
ouvir é sobre eles fazendo sexo gordo e careca. principalmente porque a gente<br />
sabe que ele está fazendo a coisa parecer todo esse pisca-cutuca quando a verdade<br />
é que provavelmente ele vai chegar em casa, os dois vão assistir a <strong>um</strong> filme do<br />
tom hanks e então <strong>um</strong> deles vai ficar deitado na cama ouvindo o outro mijar, aí<br />
vão trocar de lugar e, quando o segundo terminar no banheiro, as luzes vão se<br />
apagar e eles vão dormir.<br />
greta me pergunta se quero ir junto, mas ela tem uns 23 anos ou quase isso e<br />
o namorado dela, vince, age como se fosse me estripar se eu uso alg<strong>um</strong>a palavra<br />
<strong>um</strong> pouco mais difícil na presença dele. assim, eu só pego <strong>um</strong>a carona até em<br />
casa. minha mãe está lá, isaac não está on-line, e odeio que ela nunca tenha<br />
programa pra sábado à noite e isaac sempre tenha programas pra noite de sábado.<br />
isto é, não quero que ele fique em casa esperando que eu volte e mande <strong>um</strong>a<br />
mensagem, porque <strong>um</strong>a das coisas legais nele é que isaac tem <strong>um</strong>a vida. tem<br />
<strong>um</strong> e-mail dele dizendo que vai ao cinema porque é aniversário da kara, e digo a<br />
ele que deseje feliz aniversário a ela por mim, mas naturalmente, quando ele<br />
receber a mensagem, o aniversário dela já vai ter acabado e, de qualquer forma,<br />
não sei se ele falou de mim pra ela.<br />
mamãe está em nosso sofá verde-limão, assistindo à minissérie orgulho &<br />
preconceito pela sétima zilionésima vez, e sei que vou acabar ficando histérico<br />
se me sentar lá e assistir com ela. o estranho é que ela também gosta mesmo da<br />
saga kill bill e eu nunca pude perceber <strong>um</strong>a diferença em seu h<strong>um</strong>or quando<br />
assiste <strong>um</strong>a coisa ou outra. é como se ela fosse sempre a mesma pessoa,
independentemente do que acontece. o que não pode estar certo.<br />
acabo assistindo a orgulho & preconceito porque dura <strong>um</strong>as 15 horas, então<br />
sei que, quando acabar, isaac provavelmente já vai estar em casa. meu telefone<br />
continua tocando e continuo não respondendo. essa é <strong>um</strong>a coisa boa de saber<br />
que ele não pode me ligar — nunca preciso me preocupar se é ele ou não.<br />
a campainha toca exatamente quando o cara está prestes a dizer à garota toda a<br />
merda que ele precisa dizer, e a princípio eu ignoro o toque da mesma forma que<br />
ignoro o celular. o único problema é que as pessoas na porta não caem na caixa<br />
postal, então a campainha soa outra vez e mamãe está prestes a se levantar, então<br />
digo que vou atender, imaginando que deve ser o equivalente à porta de <strong>um</strong><br />
engano ao telefone. só que quando chego lá é maura quem está do outro lado e<br />
ela ouviu meus passos, portanto, sabe que estou aqui.<br />
maura: preciso falar com você.<br />
eu: não é meia-noite ou perto disso<br />
maura: só abra a porta.<br />
eu: você vai ficar bufando<br />
maura: vamos lá, <strong>will</strong>. só abra.<br />
é sempre <strong>um</strong> pouco assustador quando ela fala toda objetiva comigo. assim,<br />
enquanto estou abrindo a porta, já tento imaginar como me livrar dela. é como<br />
se alg<strong>um</strong> instinto entrasse em ação.<br />
mãe: quem é<br />
eu: é só a maura.<br />
e, ah merda, maura vai levar o “ só” pro lado pessoal. eu só quero que ela<br />
recolha a lágrima debaixo do olho e passe por cima disso. ela usa delineador<br />
preto suficiente para delinear <strong>um</strong> cadáver, e a pele dela é tão pálida que parece<br />
que acabou de virar vampira. só que sem os dois pontos de sangue no pescoço.
ficamos ali parados no vão da porta porque eu sinceramente não sei aonde<br />
deveríamos ir. não creio que maura já tenha entrado na minha casa, exceto talvez<br />
na cozinha. definitivamente ela nunca esteve no meu quarto, porque é lá que fica<br />
o computador, e maura é o tipo de garota que, no momento em que você a deixa<br />
sozinha, vai direto para o diário ou o computador. além disso, você sabe,<br />
chamar alguém pro seu quarto pode ser interpretado como outra coisa e<br />
certamente não quero que maura pense que vou falar algo do tipo “ ei-por-que-agente-não-senta-na-minha-cama-e-ei-já-que-estamos-sentados-na-minha-cama-quetal-se-eu-colocar-meu-pau-dentro-de-você”.<br />
no entanto, a cozinha e a sala agora<br />
são zonas proibidas por causa da minha mãe, e o quarto dela é zona proibida<br />
porque é o quarto dela. e é por isso que me vejo perguntando a maura se ela<br />
quer ir até a garagem.<br />
maura: a garagem<br />
eu: olha, não vou te pedir que entre por <strong>um</strong> cano de descarga, ok se eu<br />
quisesse fazer <strong>um</strong> pacto suicida com você, optaria pela eletrocussão n<strong>um</strong>a<br />
banheira. você sabe, com <strong>um</strong> secador de cabelo. como os poetas fazem.<br />
maura: está bem.<br />
a maxissérie da minha mãe ainda não chegou ao auge da baboseira romântica,<br />
então sei que maura e eu poderemos conversar sem sermos perturbados. ou, pelo<br />
menos, seremos os únicos perturbados na garagem. parece muito idiota<br />
sentarmos no carro, então abro espaço pra nós perto das coisas do meu pai que<br />
mamãe nunca foi capaz de jogar fora.<br />
eu: então, o que foi<br />
maura: você é <strong>um</strong> imbecil.<br />
eu: esta é a notícia urgente<br />
maura: cale a boca por <strong>um</strong> segundo.
eu: só se você calar a boca também.<br />
maura: pare com isso.<br />
eu: foi você quem começou.<br />
maura: pare, por favor.<br />
eu decido, ok, vou calar a boca. e o que é que ganho quinze malditos<br />
segundos de silêncio. e isso é tudo.<br />
maura: sempre digo pra mim mesma que você não tem a intenção de me<br />
machucar, o que faz com que seja menos doloroso, sabe mas hoje — estou tão<br />
de saco cheio disso. de você. só pra você saber, eu também não quero dormir<br />
com você. eu jamais dormiria com alguém de quem não posso nem ser amiga.<br />
eu: espera <strong>um</strong> segundo — agora não somos mais amigos<br />
maura: não sei o que somos. você sequer me conta que é gay.<br />
essa é <strong>um</strong>a clássica manobra de maura. se ela não obtém <strong>um</strong>a resposta que<br />
quer, vai criar <strong>um</strong> beco sem saída pra encurralar você. como daquela vez em que<br />
vasculhou minha mochila quando eu estava no banheiro e encontrou meu<br />
remédio — eu não o havia tomado de manhã, e por isso o levara pra escola. ela<br />
esperou uns bons dez minutos antes de me perguntar se eu estava tomando<br />
alg<strong>um</strong> medicamento. isso me pareceu <strong>um</strong> pouco despropositado, e eu não queria<br />
falar sobre o assunto, assim disse a ela que não. e o que ela faz então enfia a<br />
mão na minha mochila, tira o frasco de comprimidos e me pergunta para que<br />
eles servem. ela teve sua resposta, mas aquilo não inspirou exatamente<br />
confiança. ficou me dizendo que eu não precisava sentir vergonha da minha<br />
“ condição mental”, e fiquei dizendo a ela que não sentia vergonha — só não<br />
queria falar sobre o assunto com ela. maura não conseguia entender a diferença.<br />
então aqui estamos nós de volta a outro beco sem saída, e, desta vez, é a<br />
coisa de ser gay.
eu: opa, calma aí, mesmo que eu fosse gay, não seria <strong>um</strong>a decisão minha a<br />
de te contar<br />
maura: quem é isaac<br />
eu: porra.<br />
maura: você acha que não consigo ver o que você desenha no caderno<br />
eu: você está brincando comigo. então o problema é isaac<br />
maura: só me diga quem é ele.<br />
essencialmente não quero dizer a ela. ele é meu, não dela. se eu lhe der <strong>um</strong><br />
pedacinho que seja da história, ela vai querer tudo. de alg<strong>um</strong>a maneira distorcida<br />
eu sei que ela está fazendo isso porque acha que é o que eu quero — falar de<br />
tudo, deixá-la saber de tudo sobre mim. mas não é isso que quero. não é o que<br />
ela pode ter.<br />
eu: maura, maura, maura... isaac é <strong>um</strong> personagem. ele não existe de verdade.<br />
porra! é só <strong>um</strong>a coisa em que estou trabalhando. esta — eu não sei — ideia.<br />
tenho essas ideias todas na cabeça. estreladas por esse personagem, isaac.<br />
não sei de onde veio essa merda. é como se tivesse sido me dada por alg<strong>um</strong>a<br />
força divina de criação.<br />
maura parece querer acreditar, mas não acredita de fato.<br />
eu: como o pogo dog. só que não é <strong>um</strong> cachorro, e não está em <strong>um</strong> espeto.<br />
maura: meu deus, tinha esquecido totalmente do pogo dog.<br />
eu: você está brincando ele ia deixar a gente rico!<br />
e ela está caindo na história. está se encostando em mim e, juro por deus, se<br />
fosse <strong>um</strong> cara daria pra ver o pau duro na calça dela.<br />
maura: eu sei que é horrível, mas estou meio aliviada que você não esteja
escondendo algo tão importante de mim.<br />
imaginei que este seria <strong>um</strong> mau momento pra observar que, na verdade, eu<br />
nunca disse que não era gay. só mandei ela se foder.<br />
não sei se existe nada mais horrível que <strong>um</strong>a garota gótica ficando toda<br />
dengosa. maura não está só se encostando; agora está examinando minha mão<br />
como se alguém houvesse carimbado ali o significado da vida. em braille.<br />
eu: é melhor eu voltar para ficar com minha mãe. maura: diz pra ela que<br />
estamos conversando.<br />
eu: prometi que assistiria a esse programa com ela.<br />
o importante aqui é dispensar maura sem que ela perceba que eu a estou<br />
dispensando. porque realmente não quero magoá-la, não quando acabei de trazêla<br />
de volta da beira da última mágoa que supostamente lhe infligi. sei que assim<br />
que maura chegar em casa ela vai mergulhar em seu caderno de poesia macabra,<br />
e estou fazendo o possível pra não obter <strong>um</strong>a avaliação ruim. <strong>um</strong>a vez maura me<br />
mostrou <strong>um</strong> de seus poemas.<br />
me pendure<br />
como <strong>um</strong>a rosa morta<br />
me conserve<br />
e minhas pétalas não vão cair<br />
até você tocá-las<br />
e eu dissolver<br />
e eu escrevi <strong>um</strong> poema de volta pra ela<br />
eu sou como<br />
<strong>um</strong>a begônia morta
pendurada de cabeça pra baixo<br />
porque<br />
como <strong>um</strong>a begônia morta<br />
eu estou cagando<br />
ao qual ela retrucou<br />
nem todas as flores<br />
dependem da luz<br />
pra crescer<br />
então talvez esta noite eu inspire<br />
pensei que seu solo fosse gay<br />
mas talvez haja <strong>um</strong>a chance<br />
pra eu me divertir, não sei<br />
e tirar dele alg<strong>um</strong> romance<br />
tomara que eu nunca tenha de lê-lo ou saber dele, ou mesmo voltar a pensar<br />
nele.<br />
eu me levanto e abro a porta da garagem pra que maura possa sair. digo a ela<br />
que nos vemos na segunda, na escola, e ela responde “ não se eu o vir primeiro”<br />
e eu solto <strong>um</strong> rá rá rá até que ela esteja a <strong>um</strong>a distância segura e eu possa tornar<br />
a fechar a porta.<br />
o grotesco nisso tudo é que tenho certeza de que <strong>um</strong> dia isso vai voltar pra<br />
me assombrar. que <strong>um</strong> dia ela vai dizer que dei corda pra ela, quando a verdade<br />
é que eu estava apenas mantendo-a a distância. preciso encontrar <strong>um</strong> namorado<br />
pra ela. logo. não sou eu que ela quer — ela só quer alguém pra quem ela seja<br />
tudo. e eu não posso ser esse cara.<br />
quando volto pra sala, orgulho & preconceito já está quase chegando ao fim,
o que significa que todo mundo sabe bem em que pé está sua relação com todos<br />
os outros. em geral, a essa altura, minha mãe se encontra mergulhada em lenços<br />
de papel amassados, mas dessa vez não há sequer <strong>um</strong> olho úmido. ela<br />
praticamente confirma isso quando desliga o dvd.<br />
mãe: eu realmente preciso parar com isso. preciso trocar de vida.<br />
penso que ela está falando com ela mesma, ou com o universo, e não<br />
especificamente comigo. no entanto, não posso deixar de pensar que “ trocar de<br />
vida” é algo em que somente <strong>um</strong> completo idiota pode acreditar. como se você<br />
pudesse pegar o carro, ir até <strong>um</strong>a loja e comprar <strong>um</strong>a vida nova. vê-la em sua<br />
caixa brilhante, olhar pela tampa de plástico, visl<strong>um</strong>brar a si mesmo em <strong>um</strong>a<br />
nova vida e dizer: “ uau, pareço muito mais feliz — acho que esta é a vida de<br />
que preciso!”, levá-la até o caixa, pagar no cartão de crédito. se trocar de vida<br />
fosse fácil assim, seríamos <strong>um</strong>a raça em êxtase. mas não somos. então, mãe, sua<br />
vida não está lá fora à sua espera, portanto, não pense que tudo que você precisa<br />
fazer é encontrá-la e trocar pela atual. não, sua vida é essa mesma. e, sim, ela é<br />
<strong>um</strong>a merda. a vida cost<strong>um</strong>a ser assim. portanto, se quer que as coisas mudem,<br />
não precisa trocar de vida. você precisa tirar a bunda da cadeira.<br />
é claro que não digo nada disso. as mães não precisam ouvir esse tipo de<br />
merda dos filhos, a menos que estejam fazendo algo muito errado, como f<strong>um</strong>ar<br />
na cama, ou usar heroína, ou usar heroína enquanto f<strong>um</strong>am na cama. se minha<br />
mãe fosse <strong>um</strong>a garota da minha escola, todos os amigos dela diriam: “ cara, você<br />
só precisa ser comida.” mas, sinto muito, gênios, não existe essa coisa de<br />
trepada terapêutica. a trepada terapêutica é a versão adulta do papai noel.<br />
é meio doentio que minha mente tenha ido da minha mãe pra <strong>um</strong>a trepada,<br />
então fico feliz quando ela se queixa <strong>um</strong> pouco mais sobre si mesma.<br />
mãe: isto está virando rotina, não é sua mãe em casa n<strong>um</strong> sábado à noite,
esperando que darcy apareça.<br />
eu: não existe <strong>um</strong>a resposta pra essa pergunta, não é<br />
mãe: não. provavelmente não.<br />
eu: você já chamou esse tal darcy pra sair<br />
mãe: não. na verdade, ainda não o encontrei.<br />
eu: bem, ele não vai aparecer até você o convidar.<br />
eu dando conselho romântico à minha mãe é meio como <strong>um</strong> peixinho de<br />
aquário dando conselho a <strong>um</strong>a lesma sobre como voar. eu poderia lembrar a ela<br />
que nem todos os caras são canalhas como meu pai, mas ela contraditoriamente<br />
odeia quando falo mal dele. ela provavelmente só está preocupada com o dia em<br />
que vou acordar e perceber que metade dos meus genes são tão orientados pra ser<br />
<strong>um</strong> filho da puta que vou desejar ser <strong>um</strong> filho da puta. bem, mãe, adivinhe só<br />
esse dia aconteceu há muito tempo. e eu gostaria de dizer que é aí que entram os<br />
comprimidos, embora eles lidem apenas com os efeitos colaterais.<br />
deus abençoe os estabilizadores de h<strong>um</strong>or. e todos os h<strong>um</strong>ores serão criados<br />
iguais. eu sou a porra do movimento dos direitos civis do h<strong>um</strong>or.<br />
já está tarde o bastante pra que isaac esteja em casa, então digo a minha mãe<br />
que estou indo pra cama e, pra ser agradável, digo a ela que, se vir alg<strong>um</strong> cara<br />
bonito, assim, de cueca e cavalgando sensualmente a caminho do shopping, vou<br />
passar o número do telefone dela. ela me agradece por isso, e diz que é <strong>um</strong>a<br />
ideia melhor que qualquer <strong>um</strong>a das que suas amigas do pôquer já tiveram. me<br />
pergunto se logo ela estará pedindo a opinião do carteiro.<br />
tem <strong>um</strong>a mensagem pendente à minha espera quando tiro o protetor de tela.<br />
amarradopelopai: vc está aí<br />
amarradopelopai: estou torcendo<br />
amarradopelopai: e esperando<br />
amarradopelopai: e rezando
todos os tipos de comemoração inundam meu cérebro. o amor é muito <strong>um</strong>a<br />
droga.<br />
grayscale: por favor, seja a voz da sanidade que resta no mundo.<br />
amarradopelopai: vc está aí!<br />
grayscale: exato.<br />
amarradopelopai: se vc está contando comigo pra sanidade, a coisa deve estar<br />
feia.<br />
grayscale: é, bem, maura foi até a farmácia fazer <strong>um</strong>a audição pro papel de<br />
bruxa, e quando eu disse a ela que os testes estavam cancelados, ela resolveu<br />
que aceitava<br />
grayscale: <strong>um</strong>a trepadinha no lugar. e então minha mãe começou a dizer que<br />
não tinha vida. ah, e ainda tenho dever de casa pra fazer. ou não.<br />
amarradopelopai: é difícil ser você, hein<br />
grayscale: sem dúvida.<br />
amarradopelopai: você acha que maura sabe a verdade<br />
grayscale: tenho certeza de que ela pensa que sabe.<br />
amarradopelopai: que vaca intrometida.<br />
grayscale: na verdade, não. não é culpa dela eu não querer falar disso. prefiro<br />
dividir com você.<br />
amarradopelopai: e você está. enquanto isso, nenh<strong>um</strong> programa no sábado à<br />
noite passando mais tempo agradável com sua mãe<br />
grayscale: você, querido, é meu programa de sábado à noite.<br />
amarradopelopai: sinto-me honrado.<br />
grayscale: deveria mesmo. como foi o aniversário<br />
amarradopelopai: simples. kara só queria ver <strong>um</strong> filme comigo e janine. boa<br />
companhia, filme fraco. aquele do cara que descobre que a garota com quem ele<br />
casa é <strong>um</strong> sucubo.<br />
amarradopelopai: súcubo
amarradopelopai: súcobo<br />
grayscale: súcubo<br />
amarradopelopai: é, isso. começou muito idiota. depois ficou muito chato.<br />
depois ficou barulhento e idiota. depois teve uns dois minutos em que, de tão<br />
idiota, ficou engraçado. então voltou a ser idiota, e finalmente terminou sem pé<br />
nem cabeça.<br />
amarradopelopai: muito bacana, muito bacana<br />
grayscale: como está kara<br />
amarradopelopai: se recuperando.<br />
grayscale: como assim<br />
amarradopelopai: ela fala muito dos problemas do passado, é <strong>um</strong>a forma de<br />
nos convencer de que estão no passado. e talvez estejam mesmo.<br />
grayscale: você falou pra ela que mandei <strong>um</strong> oi<br />
amarradopelopai: sim. acho que o que eu disse foi: “ <strong>will</strong> diz que quer você<br />
dentro dele”, mas o efeito foi o mesmo. ela disse oi de volta.<br />
grayscale: **suspiro triste** queria estar lá.<br />
amarradopelopai: eu queria estar aí com você agora.<br />
grayscale: mesmo<br />
amarradopelopai: sinsenhor.<br />
grayscale: e se estivesse aqui...<br />
amarradopelopai: o que eu faria<br />
grayscale:<br />
amarradopelopai: deixa eu te dizer o que eu faria.<br />
essa é <strong>um</strong>a brincadeira nossa. na maior parte do tempo não falamos a sério.<br />
assim, são vários os caminhos que podemos seguir. o primeiro consiste<br />
basicamente em zombarmos das pessoas que fazem sexo pela internet inventando<br />
nosso próprio e ridículo diálogo desdenhográfico.
grayscale: quero que você lamba minha clavícula.<br />
amarradopelopai: estou lambendo sua clavícula.<br />
grayscale: aah, como isso é gostoso.<br />
amarradopelopai: clavícula safadinha.<br />
grayscale: h<strong>um</strong>mmmm<br />
amarradopelopai: wwwwwwww<br />
grayscale: rrrrrrrrrrrrrrrr<br />
amarradopelopai: ttttttttttttttttttt<br />
outras vezes optamos pela abordagem ficção romântica. pornô piegas.<br />
amarradopelopai: empurre seu mastro feroz e trêmulo em mim, garanhão<br />
grayscale: seu apêndice ignóbil me enche com o fogo do inferno<br />
amarradopelopai: minha equipe de busca está rastejando em direção à sua<br />
terra de ninguém<br />
grayscale: me regue como <strong>um</strong> peru de natal!!!<br />
e então há noites, como a de hoje, quando o que se segue é a verdade, porque<br />
é o que mais precisamos. ou talvez apenas <strong>um</strong> de nós dois mais precise dela,<br />
mas o outro sabe a hora certa de dá-la.<br />
como agora, quando o que mais desejo no universo é tê-lo ao meu lado. ele<br />
sabe disso, e diz<br />
amarradopelopai: se eu estivesse aí, pararia atrás da sua cadeira e colocaria<br />
minhas mãos em seus ombros, de leve, e os massagearia delicadamente até que<br />
você terminasse sua última frase<br />
amarradopelopai: então eu me inclinaria pra frente e deslizaria as mãos pelos<br />
seus braços e encaixaria meu pescoço no seu e deixaria você se virar para mim e<br />
descansar ali por alg<strong>um</strong> tempo<br />
amarradopelopai: descanso
amarradopelopai: e quando você estivesse pronto, eu o beijaria <strong>um</strong>a vez e me<br />
afastaria, então me sentaria em sua cama e esperaria por você ali, só pra ficarmos<br />
deitados, e você poderia me abraçar, e eu poderia abraçá-lo de volta<br />
amarradopelopai: e sentiríamos tanta paz. ficaríamos completamente em paz.<br />
como a sensação de ter sono, só que com nós dois acordados juntos.<br />
grayscale: isso seria tão maravilhoso.<br />
amarradopelopai: eu sei. eu adoraria também.<br />
não consigo imaginar nós dois dizendo essas coisas em voz alta <strong>um</strong> pro<br />
outro, mas mesmo que eu não consiga imaginar essas palavras, posso imaginar<br />
vivê-las. nem sequer visualizo a cena. em vez disso, estou nela. como me<br />
sentiria com ele aqui. aquela paz. seria tamanha felicidade que fico triste por ela<br />
só existir em palavras.<br />
logo no início, isaac deixou claro pra mim que ele acha as pausas incômodas<br />
— se passasse muito tempo sem que eu respondesse, ele pensaria que eu estava<br />
digitando outra coisa em outra janela, ou que havia saído do computador, ou<br />
que estava mandando mensagens pra outros 12 garotos além dele. e tenho de<br />
admitir que eu sentia os mesmos medos. assim, agora fazemos essa coisa<br />
sempre que estamos n<strong>um</strong>a pausa. simplesmente digitamos<br />
grayscale: estou aqui<br />
amarradopelopai: estou aqui<br />
grayscale: estou aqui<br />
amarradopelopai: estou aqui<br />
até que venha a próxima frase.<br />
grayscale: estou aqui<br />
amarradopelopai: estou aqui<br />
grayscale: estou aqui
amarradopelopai: o que estamos fazendo<br />
grayscale: <br />
amarradopelopai: acho que já está na hora<br />
amarradopelopai: de a gente se encontrar<br />
grayscale: !!!<br />
grayscale: é sério<br />
amarradopelopai: delirantemente<br />
grayscale: está dizendo que eu teria <strong>um</strong>a chance de ver você<br />
amarradopelopai: abraçar de verdade<br />
grayscale: de verdade<br />
amarradopelopai: sim<br />
grayscale: sim<br />
amarradopelopai: sim.<br />
grayscale: sim!<br />
amarradopelopai: estou maluco<br />
grayscale: sim! ☺<br />
amarradopelopai: vou ficar maluco, se não fizermos isso.<br />
grayscale: devíamos.<br />
amarradopelopai: devíamos.<br />
grayscale: ahmeudeusuau<br />
amarradopelopai: vai acontecer, não é<br />
grayscale: agora não podemos mais voltar atrás.<br />
amarradopelopai: estou tão animado...<br />
grayscale: e apavorado<br />
amarradopelopai: ... e apavorado<br />
grayscale: ... mas principalmente animado<br />
amarradopelopai: principalmente animado.<br />
vai acontecer. sei que vai acontecer.
tontos e assustados, escolhemos <strong>um</strong>a data.<br />
sexta-feira. daqui a seis dias<br />
apenas seis dias.<br />
em seis dias, talvez minha vida comece de fato.<br />
isso é tão louco.<br />
e a coisa mais louca de todas é que estou tão animado que quero<br />
imediatamente contar tudo a isaac, embora ele seja a pessoa que já sabe disso.<br />
nem maura, nem simon, nem derek, nem minha mãe — ninguém neste mundo<br />
inteirinho, com exceção de isaac. ele é, ao mesmo tempo, a fonte da minha<br />
felicidade e a pessoa com quem quero partilhá-la.<br />
tenho de acreditar que isso é <strong>um</strong> sinal.
capítulo cinco<br />
Esse é <strong>um</strong> daqueles fins de semana em que não saio de casa pra nada —<br />
literalmente — exceto <strong>um</strong>a ida rápida com minha mãe até a loja de conveniência<br />
White Hen. Esses fins de semana em geral não me aborrecem, mas fico meio<br />
que torcendo pra que Tiny Cooper e/ou Jane liguem e me deem <strong>um</strong>a desculpa<br />
pra usar a identidade que escondi nas páginas de Persuasão na minha estante.<br />
Mas ninguém liga; tampouco Tiny ou Jane aparecem on-line; e está mais frio<br />
que o peito de <strong>um</strong>a bruxa em <strong>um</strong> sutiã de aço, então fico em casa e ponho o<br />
dever de casa em dia. Faço o trabalho de pré-cálculo, e, quando termino, fico<br />
sentado com o livro por <strong>um</strong>as três horas, tentando entender o que acabei de<br />
fazer. É <strong>um</strong> fim de semana desses — do tipo em que você tem tanto tempo que<br />
vai além das respostas e começa a olhar as ideias.<br />
Então, na noite de domingo, quando estou no computador vendo se alguém<br />
está on-line, meu pai coloca a cabeça na porta do quarto. “ Will”, diz ele, “ você<br />
tem <strong>um</strong> segundo pra conversar na sala” Giro na cadeira e me levanto. Meu<br />
estômago se contrai <strong>um</strong> pouco porque a sala é o lugar menos agradável de se<br />
ficar; o lugar onde a não existência do Papai Noel é revelada, onde as avós<br />
morrem, onde testas franzidas olham as notas nos boletins e onde se aprende que<br />
a caminhonete do homem entra na garagem da mulher, e então sai, e então volta<br />
a entrar, e assim por diante, até <strong>um</strong> óvulo ser fertilizado etc. etc.<br />
Meu pai é muito alto, muito magro e muito careca, e tem dedos longos e<br />
finos, que ele tamborila no braço de <strong>um</strong> sofá de estampa floral. Eu me sento de<br />
frente pra ele em <strong>um</strong>a poltrona superacolchoada e superverde. O dedo que<br />
tamborila prossegue por uns 34 anos, mas ele não diz nada, e então eu<br />
finalmente digo:<br />
— Ei, pai.
Ele tem <strong>um</strong>a maneira de falar intensa e muito formal, o meu pai. Sempre fala<br />
como se estivesse informando que você tem câncer em estágio terminal — o<br />
que, na verdade, corresponde a <strong>um</strong>a boa parte do trabalho dele, então faz sentido.<br />
Ele me olha com aqueles olhos tristes e intensos de você-tem-câncer, e diz:<br />
— Sua mãe e eu estamos querendo saber sobre seus planos.<br />
E respondo:<br />
— Hã, bem. Pensei em ir, hã, pra cama daqui a pouco. E depois ir pra<br />
escola. Vou a <strong>um</strong> show na sexta. Já avisei a mamãe.<br />
Ele faz que sim com a cabeça.<br />
— OK, mas depois disso.<br />
— Hã, depois disso Você se refere a, tipo, ir pra faculdade e arr<strong>um</strong>ar <strong>um</strong><br />
emprego e me casar e dar netos a vocês e ficar longe das drogas e viver feliz pra<br />
sempre<br />
Ele quase sorri. É algo excessivamente difícil, fazer meu pai sorrir.<br />
— Tem <strong>um</strong> aspecto desse processo no qual sua mãe e eu estamos<br />
particularmente interessados neste momento particular da sua vida.<br />
— Faculdade<br />
— Faculdade — diz ele.<br />
— Não preciso me preocupar com isso até o ano que vem — observo.<br />
— Nunca é cedo demais pra planejar — insiste ele.<br />
E aí ele começa a falar sobre esse programa na Northwestern em que você<br />
pode fazer o curso de medicina completo, tipo, os seis anos, de maneira que, aos<br />
25 anos, você já é residente, e pode ficar perto de casa, mas, é claro, morar no<br />
campus e blá-blá-blá. Depois de uns 11 segundos, me dou conta de que ele e<br />
mamãe decidiram que eu deveria ir pra esse programa e que estão me<br />
apresentando cedo à ideia, e periodicamente vão tocar nesse assunto ao longo do<br />
próximo ano, pressionando, pressionando e pressionando. Me dou conta<br />
também de que, se eu conseguir entrar, provavelmente irei. Há maneiras piores
de se ganhar a vida.<br />
Sabe como as pessoas cost<strong>um</strong>am dizer com frequência que seus pais estão<br />
sempre certos “ Siga o conselho dos seus pais; eles sabem o que é bom pra<br />
você.” E você sabe como ninguém jamais ouve esse conselho, porque, mesmo<br />
que seja verdade, é tão irritante e condescendente que só te faz querer sair por aí<br />
e, tipo, desenvolver <strong>um</strong>a dependência de metanfetamina e fazer sexo sem<br />
proteção com 87 mil parceiros anônimos Bem, eu ouço os meus pais. Eles<br />
sabem o que é bom pra mim. Honestamente, eu dou ouvidos a qualquer <strong>um</strong>.<br />
Quase todo mundo sabe mais que eu.<br />
E/porém/portanto meu pai não faz ideia, mas toda a sua explicação sobre esse<br />
futuro é inútil; já está tudo certo por mim. Não, estou pensando no quanto me<br />
sinto pequeno nessa cadeira absurdamente grande, e na identidade falsa<br />
aquecendo as páginas de Jane Austen, e se estou mais furioso ou espantado com<br />
Tiny, e pensando na sexta, em me manter longe de Tiny na roda punk enquanto<br />
ele tenta dançar como todo mundo, e no aquecimento ligado forte demais no<br />
clube e todo mundo com a roupa molhada de suor, a música n<strong>um</strong> ritmo tão<br />
vigoroso e <strong>um</strong>a sensação de arrepio que nem ligo sobre o que estão cantando.<br />
E digo:<br />
— É, parece mesmo legal, pai.<br />
E ele fica falando que conhece gente lá, e eu fico balançando a cabeça só<br />
dizendo uh<strong>um</strong>, uh<strong>um</strong>, uh<strong>um</strong>.<br />
Na segunda de manhã, chego à escola vinte minutos adiantado porque minha<br />
mãe tem de estar no hospital às 7h — imagino que alguém tem <strong>um</strong> t<strong>um</strong>or<br />
extragrande ou coisa parecida. Então me encosto no mastro da bandeira no<br />
gramado da frente da escola, esperando Tiny Cooper e tremendo de frio apesar<br />
das luvas e do chapéu, e do casaco e do capuz. O vento sopra, cortante, pelo<br />
gramado, e posso ouvi-lo fustigando a bandeira acima de mim, mas de maneira<br />
nenh<strong>um</strong>a vou entrar naquele edifício <strong>um</strong> nanossegundo antes de o sinal da
primeira aula soar.<br />
Os ônibus descarregam os alunos, e o gramado começa a se encher de<br />
calouros, nenh<strong>um</strong> dos quais parecendo particularmente impressionado comigo.<br />
Então vejo Clint, membro titular do meu ex-Grupo de Amigos, andando em<br />
minha direção, vindo do estacionamento do terceiro ano. Consigo me convencer<br />
de que de fato ele não está vindo em minha direção até que <strong>um</strong> hálito visível<br />
sopra sobre mim como <strong>um</strong>a pequena e malcheirosa nuvem. E não vou mentir:<br />
eu meio que espero que ele esteja prestes a se desculpar pela pequenez mental de<br />
certos amigos dele.<br />
“ Ei, seu puto”, diz ele. Clint chama todo mundo de seu puto. Será <strong>um</strong><br />
elogio Um xingamento Ou talvez sejam as duas coisas de <strong>um</strong>a só vez, o que<br />
precisamente torna o adjetivo tão útil.<br />
Eu me encolho <strong>um</strong> pouco por causa do azed<strong>um</strong>e do hálito dele e<br />
simplesmente digo: “ Ei.” Igualmente evasivo. Todas as conversas que tive com<br />
Clint ou com qualquer outro do Grupo de Amigos são idênticas: todas as<br />
palavras que usamos são despojadas, para que ninguém nunca saiba o que o<br />
outro está dizendo, de modo que toda gentileza seja crueldade, todo egoísmo<br />
seja generoso, todo cuidado seja insensível.<br />
E ele diz:<br />
— Tiny me ligou esse fim de semana pra falar do musical dele. Quer que o<br />
conselho estudantil o financie.<br />
Clint é o vice-presidente do conselho estudantil.<br />
— Ele me contou a porra toda sobre o musical. A história de <strong>um</strong> grande filho<br />
da puta gay e de seu melhor amigo que usa pinça pra tocar punheta porque o pau<br />
dele é muito pequeno. — Ele diz isso tudo com <strong>um</strong> sorriso. Não está sendo<br />
perverso. Não exatamente.<br />
E eu quero dizer: Isso é incrivelmente original. De onde você tira essas<br />
pérolas, Clint Tem alg<strong>um</strong>a fábrica de piadas na Indonésia, onde crianças de
8 anos trabalham 90 horas por semana pra te entregar esse tipo de comentário<br />
espirituoso de alta qualidade Existem boy bands com material mais original.<br />
Mas não digo nada.<br />
— Pois é — continua Clint. — Acho que talvez ajude Tiny na reunião de<br />
amanhã. Porque a peça parece <strong>um</strong>a ideia fantástica. Só tenho <strong>um</strong>a pergunta: você<br />
vai cantar suas próprias músicas Porque eu pagaria pra ver isso.<br />
Rio <strong>um</strong> pouco, mas não muito.<br />
— Não sou muito de drama — respondo, finalmente. Nesse momento, sinto<br />
<strong>um</strong>a presença enorme atrás de mim. Clint levanta muito o queixo pra olhar pra<br />
Tiny e então o c<strong>um</strong>primenta com <strong>um</strong> gesto de cabeça. Ele diz:<br />
— E aí, Tiny — E se afasta.<br />
— Ele tá tentando te roubar de volta — pergunta Tiny.<br />
Faço meia-volta e agora posso falar.<br />
— Você passa o fim de semana todo off-line e sem me ligar, no entanto<br />
encontra tempo pra ligar pra ele em suas contínuas tentativas de arruinar minha<br />
vida social através da magia da música<br />
— Em primeiro lugar, Tiny Dancer não vai arruinar sua vida social, porque<br />
você não tem <strong>um</strong>a. Em segundo, você também não me ligou. Em terceiro, eu<br />
estava muito ocupado! Nick e eu passamos quase todo o fim de semana juntos.<br />
— Pensei que tivesse te explicado por que você não pode ficar com o Nick<br />
— digo, e Tiny está começando a falar outra vez quando vejo Jane, encurvada,<br />
avançando contra o vento. Ela está usando <strong>um</strong> casaco de capuz que não é grosso<br />
o bastante, e vem em nossa direção.<br />
Eu digo oi, ela diz oi, então caminha e para do meu lado como se eu fosse<br />
<strong>um</strong> aquecedor ou algo assim. Jane estreita os olhos, tentando se proteger do<br />
vento, e eu digo: “ Ei, toma aqui meu casaco.” Eu o tiro e ela se enterra nele.<br />
Ainda estou pensando em <strong>um</strong>a pergunta pra fazer a Jane quando o sinal dispara e<br />
todos entramos apressados.
Não vejo Jane durante todo o dia na escola, o que é <strong>um</strong> pouco frustrante,<br />
porque mesmo nos corredores está congelando, e eu fico o tempo todo<br />
preocupado com o fato de que depois das aulas vou congelar até a morte no<br />
caminho até o carro de Tiny. Depois do último tempo, desço correndo e<br />
destranco meu armário. O casaco está embolado lá dentro.<br />
Bem, é possível passar <strong>um</strong> bilhete por <strong>um</strong> armário trancado, através das<br />
aberturas de ventilação. Forçando <strong>um</strong> pouco, até mesmo <strong>um</strong> lápis. Uma vez,<br />
Tiny Cooper enfiou <strong>um</strong> livro do Happy Bunny em meu armário. Mas acho<br />
extraordinariamente difícil imaginar como Jane, que, afinal, não é a pessoa mais<br />
forte do mundo, conseguiu enfiar <strong>um</strong> casaco inteiro pelas pequenas fendas.<br />
Mas não estou aqui pra fazer perguntas, então visto o casaco e saio, a<br />
caminho do estacionamento onde Tiny Cooper está partilhando <strong>um</strong> daqueles<br />
apertos-de-mão-seguidos-por-<strong>um</strong>-abraço com ninguém menos que Clint. Abro a<br />
porta do passageiro e entro no Acura de Tiny. Ele entra logo em seguida, e,<br />
embora eu esteja puto com ele, até sou capaz de apreciar a fascinante e complexa<br />
geometria envolvida no ato de Tiny Cooper entrar em <strong>um</strong> carro minúsculo.<br />
— Tenho <strong>um</strong>a proposta — digo enquanto ele se dedica a outro milagre da<br />
engenharia: o de prender o cinto de segurança.<br />
— Estou lisonjeado, mas não vou dormir com você — responde Tiny.<br />
— Não tem graça nenh<strong>um</strong>a. Ouça, minha proposta é que, se você desistir<br />
dessa coisa de Tiny Dancer, eu vou... bem, o que você quer que eu faça Porque<br />
eu faço qualquer coisa.<br />
— Bem, eu quero que você fique com a Jane. Ou, pelo menos, ligue pra ela.<br />
Depois de eu tão habilmente arranjar pra deixar vocês sozinhos, ela parece ter<br />
ficado com a impressão de que você não quer ficar com ela.<br />
— E não quero — digo. O que é inteiramente verdade e inteiramente<br />
mentira. A verdade estúpida e totalmente abrangente.<br />
— Em que ano acha que estamos, 1832 Quando você gosta de alguém e
essa pessoa gosta de você, põe a porra da boca na boca da outra, abre a boca <strong>um</strong><br />
pouco e então põe só <strong>um</strong> pedacinho da língua pra fora pra esquentar as coisas.<br />
Pelo amor de Deus, Grayson. Todo mundo sempre critica que a juventude da<br />
América é devassa, que são maníacos por sexo, distribuindo punhetas como se<br />
fossem pirulitos, e você não consegue nem beijar <strong>um</strong>a garota que decididamente<br />
gosta de você<br />
— Eu não gosto dela, Tiny. Não assim.<br />
— Ela é maravilhosa.<br />
— Como você pode saber<br />
— Eu sou gay, não cego. O cabelo dela é todo fofo e ela tem o nariz perfeito.<br />
Isso, perfeito. E o quê O que vocês gostam Peitos Ela parece ter peitos. Eles<br />
parecem ser aproximadamente do tamanho normal de peitos. O que mais você<br />
quer<br />
— Não quero falar disso.<br />
Então ele liga o carro e começa a bater a cabeça na buzina ritmicamente.<br />
Peeeeeem. Peeeeeem. Peeeeeem.<br />
— Você está envergonhando a gente — grito acima da buzina.<br />
— Vou ficar fazendo isso até ter <strong>um</strong>a lesão cerebral ou você dizer que vai<br />
ligar pra ela.<br />
Enfio os dedos nos ouvidos, mas Tiny continua a bater a cabeça na buzina.<br />
As pessoas estão nos olhando. Finalmente, digo:<br />
— Está bem. Está bem! ESTÁ BEM!<br />
E a buzina cessa.<br />
— Vou ligar pra Jane. Vou ser legal com ela. Mas ainda assim não quero<br />
ficar com ela.<br />
— Isso é escolha sua. Uma escolha idiota.<br />
— Então — continuo, esperançoso —, nada de Tiny Dancer<br />
Tiny dá a partida no carro.
— Desculpe, Grayson, mas não posso fazer isso. Tiny Dancer é maior que<br />
você ou eu, ou qualquer <strong>um</strong> de nós.<br />
— Tiny, você tem <strong>um</strong>a compreensão bem distorcida de compromisso.<br />
Ele ri.<br />
— Compromisso é quando você faz o que eu digo pra você fazer e eu faço o<br />
que eu quero. O que me lembra: vou precisar de você na peça.<br />
Eu reprimo <strong>um</strong>a risada, porque essa merda vai deixar de ser engraçada se for<br />
apresentada em nosso maldito auditório.<br />
— Nem pensar. Não. NÃO. Além disso, insisto que você não me inclua no<br />
texto.<br />
Tiny suspira.<br />
— Você não entende, não é Gil Wrayson não é você; é <strong>um</strong> personagem<br />
fictício. Não posso simplesmente mudar minha arte porque você se sente<br />
incomodado com ela.<br />
Tento <strong>um</strong>a abordagem diferente.<br />
— Você vai se h<strong>um</strong>ilhar lá em cima, Tiny.<br />
— Vai acontecer, Grayson. Tenho o apoio financeiro do conselho estudantil.<br />
Portanto, cale a boca e lide com o fato.<br />
Eu calo a boca e lido com o fato, mas não telefono pra Jane naquela noite.<br />
Não sou o garoto de recados de Tiny.<br />
Na tarde seguinte, volto de ônibus pra casa, porque Tiny está ocupado na<br />
reunião do conselho estudantil. Ele me liga assim que acaba.<br />
— Ótimas notícias, Grayson! — grita.<br />
— Ótimas notícias pra alguém são sempre más notícias pra outra pessoa —<br />
respondo.<br />
E, de fato, o conselho estudantil aprovou o financiamento de mil dólares pra<br />
montagem e produção do musical Tiny Dancer.
Nessa noite, estou esperando meus pais chegarem em casa para jantarmos e<br />
tentando trabalhar n<strong>um</strong> ensaio sobre Emily Dickinson, mas, principalmente,<br />
estou fazendo o download de tudo que os Maybe Dead Cats já gravaram. Eu<br />
meio que os amo incondicionalmente. E, enquanto fico ouvindo o som deles,<br />
fico querendo dizer a alguém o quanto eles são bons, e aí ligo pra Tiny, mas ele<br />
não atende, e então faço exatamente o que Tiny quer — como sempre. Ligo pra<br />
Jane.<br />
— Ei, Will — diz ela.<br />
— Eu meio que amo incondicionalmente os Maybe Dead Cats — digo.<br />
— É, eles não são maus. Um pouco pseudointelectuais, mas, afinal, não<br />
somos todos<br />
— Acho que o <strong>nome</strong> da banda é, tipo, <strong>um</strong>a referência a <strong>um</strong> físico — observo.<br />
Na verdade, eu sei disso. Acabei de pesquisar a banda na Wikipédia.<br />
— É — concorda ela. — Schrödinger. Só que o <strong>nome</strong> da banda é <strong>um</strong><br />
fracasso total, porque Schrödinger é famoso por apontar esse paradoxo na física<br />
quântica em que, em certas circunstâncias, <strong>um</strong> gato não visível pode estar tanto<br />
vivo quanto morto. E não maybe, talvez, morto.<br />
— Ah — respondo, pois não posso nem fingir que sabia disso. Eu me sinto<br />
<strong>um</strong> completo imbecil, então mudo de assunto. — Ouvi dizer que Tiny Cooper<br />
usou sua Tiny Magia e o musical foi aprovado.<br />
— Sim. Mas, falando nisso, qual é o seu problema com Tiny Dancer<br />
— Você já leu<br />
— Sim. É incrível, se ele conseguir realizá-la.<br />
— Bem, eu sou, assim, o coastro. Gil Wrayson. Esse sou eu, é óbvio. E é...<br />
é constrangedor.<br />
— Você não acha que é meio incrível ser, assim, o coastro na vida de Tiny<br />
— Na verdade, não quero ser o coastro na vida de ninguém — afirmo.<br />
Ela não diz nada como resposta.
— Então, como você está — pergunto após <strong>um</strong> segundo.<br />
— Normal.<br />
— Só normal<br />
— Você encontrou o bilhete no bolso do seu casaco<br />
— O quê... não. Tinha <strong>um</strong> bilhete<br />
— Tinha.<br />
— Ah. Espere aí. — Ponho o telefone na mesa e vasculho os bolsos. O<br />
problema com os bolsos do meu casaco é que, se eu tiver <strong>um</strong> lixo pequeno, tipo<br />
assim, <strong>um</strong>a embalagem de Snickers, mas não tiver nenh<strong>um</strong>a lixeira por perto,<br />
meus bolsos acabam se tornando a lixeira. E não sou muito bom em esvaziar os<br />
bolsos-lixeiras. Assim, levo alguns segundos pra encontrar <strong>um</strong> pedaço de folha<br />
de caderno dobrado. Do lado de fora diz:<br />
Para: Will Grayson<br />
De: A Houdini do Armário<br />
Pego o telefone e digo:<br />
— Ei, encontrei. — Eu me sinto <strong>um</strong> pouquinho enjoado, de <strong>um</strong>a forma que<br />
é, ao mesmo tempo, boa e ruim.<br />
— Então, você leu<br />
— Não — respondo, e me pergunto se não seria melhor não ler o bilhete. Eu<br />
não devia ter ligado pra ela, pra começar. — Espere. — Desdobro o papel:<br />
Sr. Grayson,<br />
O senhor deve sempre se certificar de que não há ninguém olhando quando<br />
destrancar seu armário. Nunca se sabe (18) quando alguém (26) irá gravar (4) a<br />
sua combinação. Obrigada pelo casaco. Creio que o cavalheirismo ainda não<br />
morreu.<br />
Sinceramente,<br />
Jane<br />
P.S.: Gosto do fato de que você trata seus bolsos do jeito que eu trato meu
carro.<br />
Depois de terminar o bilhete, leio outra vez. Ele torna as duas verdades mais<br />
verdadeiras. Eu quero ela. E não quero. Talvez eu seja mesmo <strong>um</strong> robô. Não<br />
tenho a menor ideia do que dizer, então digo a pior coisa possível.<br />
— Muito fofo.<br />
É por isso que tenho de aderir à Regra 2.<br />
No silêncio que se seguiu, tenho tempo de contemplar a palavra fofo — o<br />
quanto é depreciativa, como equivale a chamar alguém de pequeno, como<br />
transforma a pessoa em <strong>um</strong> bebê, como a palavra é <strong>um</strong> letreiro de néon<br />
cintilando na escuridão a mensagem: “ Sinta-se mal em relação a si mesmo.”<br />
E então finalmente ela diz:<br />
— Não é meu adjetivo preferido.<br />
— Desculpe. Quero dizer, é...<br />
— Sei o que você quer dizer, Will. — Ela me corta. — Me desculpe. Eu,<br />
hã, não sei. Acabei de sair de <strong>um</strong> relacionamento, e acho que estou, assim, só<br />
procurando alguém para preencher a vaga, e você é o candidato mais óbvio pra<br />
tanto e, ah, meu Deus, isso soa péssimo. Ah, Deus. Vou desligar.<br />
— Me desculpe o fofo. Não era fofo. Era...<br />
— Esqueça. Esqueça o bilhete, de verdade. Eu nem mesmo... Não se<br />
preocupe com isso, Grayson.<br />
Depois de pôr <strong>um</strong> fim desajeitado à ligação, me dou conta do fim que ela<br />
pretendera dar à frase “ Eu nem mesmo...”. “ Eu nem mesmo... gosto de você,<br />
Grayson, porque você é meio... Como posso dizer isso de forma educada... Não<br />
muito inteligente. Tipo, você teve de procurar aquele físico na Wikipédia. Eu<br />
simplesmente sinto falta do meu namorado, e você não me beijou, então eu<br />
meio que quero só porque você não quis, e, de verdade, não é nada de mais,<br />
mas eu não consigo encontrar <strong>um</strong>a forma de te dizer isso sem ferir seus<br />
sentimentos, e como sou muito mais piedosa e atenciosa do que você com seus
fofos, vou simplesmente interromper a frase em eu nem mesmo.”<br />
Ligo outra vez pra Tiny, dessa vez não pra falar dos Maybe Dead Cats, e ele<br />
atende na metade do primeiro toque e diz:<br />
— Boa noite, Grayson.<br />
Pergunto se ele concorda comigo sobre o provável fim da frase dela, e então<br />
pergunto o que teria causado o curto-circuito em meu cérebro pra chamar o<br />
bilhete de fofo, e como é possível estar ao mesmo tempo atraído e não atraído<br />
por alguém, e se, por acaso, eu não seria <strong>um</strong> robô incapaz de ter sentimentos<br />
verdadeiros, e se você acha que, na verdade, tentar seguir as regras sobre ficar de<br />
boca fechada e não me importar fez de mim <strong>um</strong> tipo de monstro hediondo que<br />
ninguém vai amar nem querer casar. Eu falo tudo isso, e Tiny não diz nada, o<br />
que é basicamente <strong>um</strong>a virada sem precedentes nos acontecimentos, e então,<br />
quando finalmente me calo, Tiny diz h<strong>um</strong>mm daquele seu jeitinho e então<br />
continua — e aqui eu o cito em discurso direto: “ Grayson, às vezes você é<br />
igual. a. <strong>um</strong>a. garota.” E desliga na minha cara.<br />
A frase inacabada fica na minha cabeça a noite toda. E então meu coração de<br />
robô decide fazer alg<strong>um</strong>a coisa — o tipo de coisa que seria apreciada por <strong>um</strong>a<br />
hipotética garota-de-quem-eu-gostaria.<br />
Na escola, sexta, almoço super-rápido, o que é muito fácil de fazer, pois Tiny<br />
e eu estamos em <strong>um</strong>a mesa cheia de Gente do Teatro, e eles estão discutindo<br />
Tiny Dancer, todos falando mais palavras por minuto do que eu falo em <strong>um</strong> dia<br />
inteiro. A curva conversacional segue <strong>um</strong> padrão distinto — as vozes vão<br />
ficando mais altas e mais rápidas, n<strong>um</strong> crescendo, até que Tiny, falando acima<br />
de todos, faz <strong>um</strong>a piada, e a mesa explode n<strong>um</strong>a gargalhada, e as coisas se<br />
acalmam brevemente, então as vozes recomeçam, crescendo e crescendo até a<br />
iminente erupção de Tiny. Assim que percebo esse padrão, fica difícil não<br />
prestar atenção nele, mas tento me concentrar em engolir minhas enchiladas.<br />
Despejo <strong>um</strong>a Coca goela abaixo e me levanto.
Tiny ergue a mão pra silenciar o vozerio.<br />
— Aonde você vai, Grayson<br />
— Preciso ir ver <strong>um</strong>a coisa — digo.<br />
Sei a localização aproximada do armário dela. Fica aproximadamente na<br />
frente do mural do corredor, no qual <strong>um</strong>a versão mal pintada do mascote da<br />
nossa escola, Willie, o Wildkit, diz n<strong>um</strong> balão de fala: “ Wildkits Respeitam a<br />
TODOS”, o que é hilário em, pelo menos, 14 níveis diferentes, o décimo quarto<br />
sendo que não existe essa coisa de wildkit. Willie, o Wildkit, parece <strong>um</strong> leão<br />
da montanha, embora, apesar de eu admitir não ser nenh<strong>um</strong> expert em zoologia,<br />
eu esteja razoavelmente seguro de que leões da montanha, na verdade, não<br />
respeitam a todos.<br />
Assim, estou recostado no mural do Willie, o Wildkit, n<strong>um</strong>a posição que<br />
parece que sou eu que estou dizendo que Wildkits Respeitam a TODOS, e<br />
tenho de esperar assim por uns dez minutos, tentando fazer parecer que estou<br />
fazendo alg<strong>um</strong>a coisa e pensando que deveria ter levado <strong>um</strong> livro ou qualquer<br />
coisa pra não ficar tão na cara que estou à espreita, e então finalmente o sinal<br />
para o início da aula soa e o corredor se enche de gente.<br />
Jane vai até o armário, dou <strong>um</strong> passo pro meio do corredor, as pessoas abrem<br />
caminho pra mim e dou outro passo para a esquerda pra ficar no ângulo certo.<br />
Posso ver a mão dela indo até o armário, estreito os olhos e 25-2-11. Me<br />
misturo ao fluxo de alunos e vou pra aula de história.<br />
Sétimo tempo, tenho essa aula de criação de videogames. Acaba que criar<br />
videogames é incrivelmente difícil e nem de perto tão divertido quanto jogá-los,<br />
mas a vantagem da aula é que tenho acesso à internet e meu monitor fica de<br />
costas pro professor quase o tempo todo.<br />
Então mando <strong>um</strong> e-mail para os Maybe Dead Cats.<br />
De: <strong>will</strong>iamgrayson@eths.il.us<br />
Para: thiscatmaybedead@gmail.com
Assunto: Salvem a Minha Vida<br />
Caros Maybe Dead Cats,<br />
Se, por acaso, vocês tocarem “ Annus Miribalis” hoje à noite, será que<br />
poderiam dedicá-la a 25-2-11 (o segredo do armário de <strong>um</strong>a tal garota) Isso<br />
seria incrível.<br />
Desculpe o pedido tão em cima da hora,<br />
Will Grayson<br />
A resposta veio antes mesmo do fim da aula.<br />
Will,<br />
Tudo pelo amor.<br />
MDC<br />
Assim, depois da aula, Jane, Tiny e eu vamos ao Frank’s Franks, <strong>um</strong>a<br />
lanchonete de cachorro-quente a alg<strong>um</strong>as quadras do clube. Sento-me em <strong>um</strong>a<br />
mesa perto de Jane, o quadril dela encostado no meu. Os casacos estão todos<br />
amontoados à nossa frente, ao lado de Tiny. O cabelo dela cai em grandes<br />
cachos sobre os ombros, e ela está usando <strong>um</strong>a blusa de alças finas nada<br />
apropriada ao clima, além de muita maquiagem nos olhos.<br />
Porque este é <strong>um</strong> lugar de cachorro-quente muito chique, <strong>um</strong> garçom anota<br />
nossos pedidos. Jane e eu pedimos <strong>um</strong> cachorro-quente e <strong>um</strong> refrigerante cada<br />
<strong>um</strong>. Tiny pede quatro cachorros-quentes com pão, três sem, <strong>um</strong>a tigela de chilli<br />
e <strong>um</strong>a Coca diet.<br />
— Uma Coca diet — pergunta o garçom. — Você quer quatro cachorrosquentes<br />
com pão, três sem pão, <strong>um</strong>a tigela de chilli e <strong>um</strong>a Coca diet<br />
— Isso mesmo — diz Tiny, e então explica: — Açúcares simples não me<br />
ajudam a ganhar massa muscular.<br />
E o garçom se limita a sacudir a cabeça e falar:
— Aham.<br />
— Pobre do seu sistema digestivo — comento. — Um dia, ele vai se<br />
revoltar, subir e estrangular você.<br />
— Sabe que o Treinador diz que idealmente eu deveria ganhar 15 quilos para<br />
o começo da próxima temporada, se eu quiser ganhar <strong>um</strong>a bolsa da Primeira<br />
Divisão É preciso ser grande. E ganhar peso é muito difícil pra mim. Eu tento<br />
e tento, mas é <strong>um</strong>a batalha constante.<br />
— Você tem mesmo <strong>um</strong>a vida muito dura, Tiny — diz Jane.<br />
Eu rio, e nós trocamos olhares, e então Tiny fala:<br />
— Ah, meu Deus, andem logo com isso.<br />
O que leva a <strong>um</strong> silêncio desconfortável que dura até Jane perguntar:<br />
— Então, cadê Gary e Nick<br />
— Provavelmente fazendo as pazes — diz Tiny. — Terminei com Nick<br />
ontem à noite.<br />
— Fez a coisa certa. Estava condenado desde o início.<br />
— Eu sei, está bem Acho que quero ficar solteiro por <strong>um</strong> tempo.<br />
Eu me viro para Jane e digo:<br />
— Aposto cinco dólares como ele vai estar apaixonado em quatro horas.<br />
Ela ri.<br />
— Três horas. Fechado.<br />
— Feito.<br />
Trocamos <strong>um</strong> aperto de mão.<br />
Depois de comer, andamos <strong>um</strong> pouco pela vizinhança pra matar o tempo e<br />
então entramos na fila diante do Storage Room. Faz frio do lado de fora, mas<br />
junto ao prédio, pelo menos, estamos protegidos do vento. Na fila, pego minha<br />
carteira, passo a identidade falsa pra frente e escondo a carteira de motorista<br />
verdadeira entre <strong>um</strong> cartão do seguro saúde e o cartão de visitas do meu pai.<br />
— Deixe-me ver — pede Tiny, e entrego minha carteira a ele, que diz: —
Puxa, Grayson, pela primeira vez na vida você não parece <strong>um</strong> baitola n<strong>um</strong>a foto.<br />
Pouco antes de chegarmos ao começo da fila, Tiny me empurra pra frente<br />
dele; acho que para ter o prazer de me ver usar a identidade pela primeira vez. O<br />
segurança usa <strong>um</strong>a camiseta que não chega a cobrir sua barriga.<br />
— Identidade — diz ele pra mim.<br />
Puxo a carteira do bolso de trás, tiro a identidade e a entrego. Ele dirige o<br />
feixe da lanterna pra ela, em seguida, o aponta pra mim, então de volta à<br />
identidade, e diz:<br />
— O quê Você acha que não sei fazer conta<br />
E eu resmungo:<br />
— Hein<br />
E o segurança diz:<br />
— Garoto, você tem 20 anos.<br />
E eu digo:<br />
— Não, tenho 22.<br />
E ele me entrega a identidade e diz:<br />
— Bem, sua maldita carteira de motorista diz que você tem 20.<br />
Eu olho pra ela e faço o cálculo. Ela diz que faço 21 no próximo janeiro.<br />
— Hã — murmuro. — É, sim. Desculpe.<br />
Aquele maconheiro idiota e h-o-p-e-l-e-s-s pôs a porra do ano errado na<br />
minha identidade. Eu me afasto da entrada do clube, e Tiny me segue, morrendo<br />
de rir. Jane está dando risadinhas também. Tiny bate com muita força no meu<br />
ombro e diz:<br />
— Só Grayson pra conseguir <strong>um</strong>a identidade falsa que diz que ele tem 20<br />
anos. Totalmente inútil!<br />
E eu reclamo com Jane:<br />
— Seu amigo colocou o ano errado.<br />
E ela diz:
— Sinto muito, Will. — Mas ela não pode sentir tanto assim, senão pararia<br />
de rir.<br />
— Podemos tentar fazer você entrar — sugere Jane, mas eu simplesmente<br />
balanço a cabeça.<br />
— Vão vocês — digo. — Me liguem quando acabar. Vou fazer hora no<br />
Frank’s Franks ou em outro lugar. E, ah, me liguem se tocarem “ Annus<br />
Miribalis”.<br />
E o que acontece é: eles vão. Eles simplesmente voltam para a fila, e eu os<br />
vejo entrar no clube, e nenh<strong>um</strong> deles nem sequer tenta dizer não, não, não<br />
queremos ver o show sem você.<br />
Não me entendam mal. A banda é ótima. Mas ser preterido por causa dela é<br />
<strong>um</strong>a merda mesmo assim. Na fila, eu não tinha sentido frio, mas agora estou<br />
congelando. Está terrivelmente gelado do lado de fora, o tipo de frio em que<br />
respirar pelo nariz faz congelar o cérebro. E aqui estou eu sozinho com a porra da<br />
minha identidade inútil de cem dólares.<br />
Volto andando até o Frank’s Franks, peço <strong>um</strong> cachorro-quente e como<br />
lentamente. Mas sei que não posso ficar comendo esse cachorro-quente pelas<br />
duas ou três horas que eles ficarão por lá — não se pode degustar <strong>um</strong> cachorroquente.<br />
Meu telefone está em cima da mesa, e fico olhando pra ele, torcendo<br />
estupidamente pra que Jane ou Tiny liguem. E, sentado aqui, vou ficando cada<br />
vez mais e mais puto. Essa é <strong>um</strong>a maneira horrível de se deixar alguém —<br />
sentado sozinho n<strong>um</strong> restaurante — só olhando pro nada, sem nem mesmo <strong>um</strong><br />
livro como companhia. Não só com Tiny e Jane; estou puto comigo mesmo,<br />
por deixá-los ir, por não verificar a data na identidade idiota, por ficar aqui<br />
sentado esperando que o telefone toque embora pudesse estar no carro, indo pra<br />
casa. E pensando bem, percebo que esse é o problema em ir pra onde você é<br />
empurrado: às vezes, você é empurrado até aqui.<br />
Estou cansado de ir pra onde sou empurrado. Uma coisa é ser empurrado de
<strong>um</strong> lado para o outro pelos meus pais. Mas Tiny Cooper me empurrar pra cima<br />
de Jane, e depois me empurrar pra <strong>um</strong>a identidade falsa, e depois rir do fracasso<br />
que resultou disso, e então me deixar aqui sozinho com <strong>um</strong> maldito cachorroquente<br />
de segunda categoria quando eu nem sou muito fã de cachorros-quentes<br />
de primeira — isso é estupidez.<br />
Posso vê-lo em minha mente, a cabeça gorda dele rindo. Totalmente inútil.<br />
Totalmente inútil. Nem tanto! Posso comprar cigarros, embora eu não f<strong>um</strong>e.<br />
Posso até me registrar ilegalmente pra votar. Eu posso... Ah, ei. Hã. Bem, até<br />
que é <strong>um</strong>a ideia.<br />
Na frente do Storage Room, tem esse lugar. Do tipo anúncio de néon e sem<br />
vitrines. Bem, eu não gosto particularmente de pornô — ou dos “ Livros<br />
Adultos” prometidos pela placa do lado de fora da porta —, mas de jeito<br />
nenh<strong>um</strong> vou passar a noite toda no Frank’s Franks sem usar minha identidade<br />
falsa. Não. Eu vou até a sex shop. Tiny Cooper não tem colhões pra entrar n<strong>um</strong><br />
lugar assim. De jeito nenh<strong>um</strong>. Estou pensando na história que vou ter quando<br />
Tiny e Jane saírem do show. Ponho <strong>um</strong>a nota de cinco em cima da mesa —<br />
<strong>um</strong>a gorjeta de cinquenta por cento — e ando as quatro quadras. À medida que<br />
me aproximo da porta, começo a me sentir ansioso — mas digo a mim mesmo<br />
que ficar do lado de fora no auge do inverno no centro de Chicago é muito mais<br />
perigoso do que qualquer estabelecimento pode ser.<br />
Abro a porta e entro em <strong>um</strong>a sala muito il<strong>um</strong>inada com luz fluorescente. À<br />
minha esquerda, <strong>um</strong> cara com mais piercings que <strong>um</strong>a almofada de alfinetes está<br />
atrás de <strong>um</strong> balcão, me olhando.<br />
— Você está dando <strong>um</strong>a olhada ou quer fichas — pergunta.<br />
Não tenho a menor ideia de que fichas são essas, então digo:<br />
— Dando <strong>um</strong>a olhada<br />
— Ok. Em frente — responde ele.<br />
— O quê
— Vá em frente.<br />
— Você não vai me pedir a identidade<br />
O sujeito ri.<br />
— Por quê Você tem 16 anos ou algo assim<br />
Ele acertou na mosca, mas digo:<br />
— Não, tenho 20.<br />
— Bem, então. Foi o que imaginei. Vá em frente.<br />
E fico pensando: Ah, meu Deus. Que dificuldade pode haver em conseguir<br />
usar <strong>um</strong>a identidade falsa nesta cidade Isso é ridículo! Não vou tolerar isso.<br />
— Não — insisto. — Peça minha identidade.<br />
— Está certo, cara. Se é isso que faz vibrar suas maracas. — E então, de<br />
forma dramática, ele pede: — Posso ver sua identidade, por favor<br />
— Sim — respondo, e a entrego a ele, que olha o doc<strong>um</strong>ento, me devolve e<br />
diz:<br />
— Obrigado, Ishmael.<br />
— De nada — digo, exasperado. E então estou em <strong>um</strong>a sex shop.<br />
É meio chato, na verdade. Parece <strong>um</strong>a loja com<strong>um</strong> — prateleiras de DVDs e<br />
antigas fitas de VHS e <strong>um</strong> rack de revistas, tudo sob esse ofuscante brilho<br />
fluorescente. Quero dizer, tem, sim, alg<strong>um</strong>as diferenças de <strong>um</strong>a locadora<br />
com<strong>um</strong>, eu acho, como: A. Na locadora com<strong>um</strong>, muito poucos DVDs têm as<br />
palavras comer ou vadia, enquanto aqui o oposto parece ser o caso, e também:<br />
B. Tenho certeza de que a locadora com<strong>um</strong> não tem nenh<strong>um</strong> acessório para<br />
espancamento, enquanto nesse lugar existem vários. Além disso, C. Na locadora<br />
com<strong>um</strong> tem muito poucos itens à venda que fazem você pensar: “ Não faço a<br />
menor ideia do que isso supostamente faz ou onde supostamente faz.”<br />
Afora o Señor con Muchos Piercings, o lugar se encontra vazio, e eu quero<br />
muito sair daqui porque essa é possivelmente a parte mais constrangedora e<br />
desagradável do que foi até aqui <strong>um</strong> dia bastante constrangedor e desagradável.
Mas a incursão será completamente inútil se eu não comprar algo pra provar que<br />
estive aqui. Meu objetivo é encontrar o item que seja a prova mais engraçada,<br />
aquele que fará Tiny e Jane sentirem que eu tive <strong>um</strong>a noite divertida que eles<br />
podem apenas visl<strong>um</strong>brar, e é como eu finalmente venho a me decidir por <strong>um</strong>a<br />
revista em espanhol chamada Mano a Mano.
capítulo seis<br />
nesse momento, quero dar <strong>um</strong> salto à frente no tempo. ou, se isso não<br />
funcionar, fico com voltar no tempo.<br />
quero saltar no tempo porque em vinte horas estarei com isaac em chicago, e<br />
estou disposto a pular tudo nesse meio-tempo pra chegar a ele mais rápido. não<br />
ligo se em dez horas eu ganhasse na loteria, ou se em 12 horas tivesse a chance<br />
de terminar mais cedo o ensino médio. não me importo se em 14 horas eu<br />
pudesse tocar <strong>um</strong>a punheta e ter o orgasmo mais revelador de toda a história não<br />
registrada. avançaria à frente de tudo isso pra estar com Isaac em vez de ter de<br />
me resignar a pensar nele.<br />
quanto a voltar no tempo, é muito simples — quero voltar e matar o cara que<br />
inventou a matemática. por quê porque neste exato momento estou na mesa do<br />
almoço e derek está dizendo<br />
derek: você não está empolgado com as olimpíadas de matemática amanhã<br />
essas simples palavras — olimpíadas de matemática — fazem com que cada<br />
grama de anestesia que já coletei em meu corpo se esvaia imediatamente.<br />
eu: puta que o p…<br />
há quatro atletas de matemática em nossa escola. eu sou o número quatro.<br />
derek e simon são os números <strong>um</strong> e dois, e para participar das competições são<br />
necessários pelo menos quatro membros. (o número três é <strong>um</strong> calouro cujo<br />
<strong>nome</strong> eu deliberadamente esqueço. o lápis dele tem mais personalidade que ele.)<br />
simon: você lembrava, não é<br />
ambos puseram os burgers de carne no prato (é assim que o cardápio da
cantina chama os hambúrgueres — burgers de carne), e estão me olhando com<br />
expressões tão vazias que juro que posso ver as telas dos computadores refletidas<br />
em seus óculos.<br />
eu: não sei. não estou me sentindo muito inclinado à matemática. talvez<br />
vocês devessem me subtrair...<br />
derek: isso não tem graça.<br />
eu: rá-rá! não era para ter!<br />
simon: eu já disse — não precisa fazer nada. n<strong>um</strong>a olimpíada de matemática,<br />
você entra como <strong>um</strong>a equipe, mas é julgado individualmente.<br />
eu: vocês sabem que sou o maior apoiador de vocês nas olimpíadas de<br />
matemática. mas eu, hã, meio que fiz outros planos pra amanhã.<br />
derek: não pode fazer isso.<br />
simon: você disse que iria.<br />
derek: prometo que vai ser divertido.<br />
simon: ninguém mais vai querer ir.<br />
derek: vamos nos divertir.<br />
posso ver que derek está chateado pois parece que está considerando ter <strong>um</strong>a<br />
breve resposta emocional aos estímulos informacionais que lhe estão sendo<br />
apresentados. talvez seja demais, porque ele larga o burger de carne, pega a<br />
bandeja, murmura algo sobre multas na biblioteca e deixa a mesa.<br />
não há a menor dúvida na minha cabeça de que vou dar <strong>um</strong> bolo nesses caras.<br />
a única questão é se posso ou não fazer isso sem me sentir <strong>um</strong> merda. acho que<br />
é <strong>um</strong> sinal de desespero, mas resolvo contar a simon algo remotamente próximo<br />
à verdade.<br />
eu: olhe, você sabe que normalmente eu estaria vibrando com a olimpíada.<br />
mas isso é tipo <strong>um</strong>a emergência. marquei <strong>um</strong>... acho que você pode chamar de
encontro. e preciso muito, muito ver essa pessoa, que está vindo de muito longe<br />
pra me ver. e se houvesse alg<strong>um</strong>a maneira de fazer isso e ir à competição de<br />
matemática com vocês, eu iria. mas não posso. é tipo... se <strong>um</strong> trem está<br />
viajando a 150 quilômetros por hora e ele precisa partir da competição de<br />
matemática e chegar ao meio de chicago em, assim, dois minutos para <strong>um</strong><br />
encontro, nunca vai chegar a tempo. então, tenho de pular no expresso, porque<br />
os trilhos que levam ao encontro só estão sendo assentados dessa vez, e, se eu<br />
pegar o trem errado, vou ficar mais infeliz do que qualquer equação poderia<br />
explicar.<br />
é <strong>um</strong>a sensação tão estranha contar isso a alguém, principalmente a simon.<br />
simon: não importa. você disse que iria e precisa ir. esse é <strong>um</strong> caso em que<br />
quatro menos <strong>um</strong> é igual a zero.<br />
eu: mas, simon...<br />
simon: pare de se lamentar e encontre outro corpo quente pra colocar no carro<br />
do sr. nadler com a gente. ou até mesmo <strong>um</strong> corpo frio, se ele puder ser mantido<br />
na posição vertical por <strong>um</strong>a hora. seria bom pra variar ter alguém que saiba de<br />
fato somar, mas juro que não serei exigente, seu traste.<br />
é incrível como em geral consigo chegar ao fim do dia sem perceber que não<br />
tenho muitos amigos. isto é, <strong>um</strong>a vez que você saia dos top cinco vai encontrar<br />
muito mais a equipe de manutenção do que membros do corpo de estudantes. e,<br />
embora o zelador jim não se importe se eu roubar <strong>um</strong> rolo de papel higiênico de<br />
vez em quando pra “ projetos de arte”, tenho a sensação de que ele não estaria<br />
disposto a perder a noite de sexta-feira n<strong>um</strong>a viagem com os calculidiotas e suas<br />
tietes do corpo docente.<br />
sei que só tenho <strong>um</strong>a chance, e essa não é das mais fáceis. maura esteve o dia<br />
todo de bom h<strong>um</strong>or — bem, <strong>um</strong>a versão bem-h<strong>um</strong>orada de maura, o que
significa que a previsão anuncia chuvisco em vez de tempestade. ela não<br />
mencionara a história de ser ou não gay, e deus sabe que eu também não.<br />
espero até a última aula, sabendo que, sob pressão, é mais provável que ela<br />
diga sim. embora estejamos sentados perto <strong>um</strong> do outro, pego o telefone e,<br />
debaixo da carteira, mando <strong>um</strong>a mensagem de texto pra ela.<br />
eu: o q vc vai fazer amanhã à noite<br />
maura: nada. quer fazer alg<strong>um</strong>a coisa<br />
eu: quem dera. tenho de ir a chicago com minha mãe.<br />
maura: diversão<br />
eu: preciso que vc me substitua nas olimpíadas de matemática. senão s&d<br />
estão fodidos.<br />
maura: vc está brincando, não é<br />
eu: não, eles vão estar fodidos mesmo.<br />
maura: e pq eu iria<br />
eu: pq eu vou te dever 1. e vou te dar 20 pratas.<br />
maura: me deve 3 e me paga 50.<br />
eu: feito.<br />
maura: estou salvando estas mensagens.<br />
a verdade provavelmente acabei de livrar maura de <strong>um</strong>a tarde passeando no<br />
shopping com a mãe, ou fazendo dever de casa, ou espetando <strong>um</strong>a caneta nas<br />
veias pra conseguir alg<strong>um</strong> material pra poesia. depois das aulas, digo a ela que<br />
sem dúvida conhecerá <strong>um</strong> quarto elemento da equipe de alunos, <strong>um</strong> malandro de<br />
alg<strong>um</strong>a cidade da qual nunca ouvimos falar, e os dois vão dar <strong>um</strong>a escapada pra<br />
f<strong>um</strong>ar <strong>um</strong> cigarro de cravo e falar como todos os outros são estúpidos, enquanto<br />
derek e simon e aquele calouro idiota são esmagados em teoremas e<br />
rombazoides. na realidade, estou fazendo maravilhas pela vida social dela.
maura: não abusa.<br />
eu: juro, vai ser legal.<br />
maura: quero 20 pratas adiantadas.<br />
fico feliz por não ter precisado mentir e dizer que ia visitar minha avó doente<br />
ou alg<strong>um</strong>a coisa assim. esse tipo de mentira é perigoso, porque você sabe que,<br />
no minuto que disser que sua avó está doente, o telefone vai tocar, e sua mãe vai<br />
entrar no quarto com notícias muito ruins sobre o pâncreas da sua avó, e embora<br />
você saiba que mentirinhas brancas não causam câncer, ainda assim vai se sentir<br />
culpado pelo resto da vida. maura me faz mais perguntas sobre a viagem a<br />
chicago com minha mãe, e faço parecer que é pra passarmos mais tempo juntos,<br />
e como maura tem pai e mãe felizes, e eu tenho só <strong>um</strong>a mãe deprimida, ganho<br />
seu voto de simpatia. estou pensando tanto em isaac que fico completamente<br />
apavorado de deixar escapar o <strong>nome</strong> dele, mas felizmente o interesse de maura<br />
me mantém alerta.<br />
quando chega a hora de ela seguir seu caminho e eu, o meu, ela faz mais <strong>um</strong>a<br />
tentativa pela verdade.<br />
maura: tem alg<strong>um</strong>a coisa que você queira me dizer<br />
eu: sim. quero te dizer que meu terceiro mamilo está produzindo leite e que<br />
as bandas da minha bunda estão ameaçando se sindicalizar. o que acha que devo<br />
fazer<br />
maura: tenho a sensação de que você não está me contando alg<strong>um</strong>a coisa.<br />
eis o problema com maura: tudo gira em torno dela. sempre. normalmente<br />
não me importo com isso, porque se tudo gira em torno dela, então nada precisa<br />
me dizer respeito. mas, às vezes, o apego dela aos holofotes me envolve e é isso<br />
que eu detesto.<br />
ela está fazendo beicinho pra mim agora, e, a seu favor, trata-se de <strong>um</strong>
eicinho genuíno. não que ela esteja tentando me manipular, fingindo estar<br />
aborrecida. maura não faz esse tipo de bobagem e é por isso que eu a tolero.<br />
posso dizer tudo na cara dela, e isso é valioso em <strong>um</strong> amigo.<br />
eu: vou te contar quando tiver alg<strong>um</strong>a coisa pra contar, ok agora vá pra casa<br />
e estude matemática. aqui... fiz alguns fichamentos pra você memorizar.<br />
procuro na mochila os fichamentos que fiz na sétima aula, meio que sabendo<br />
que maura diria sim. não são exatamente fichas, já que não ando por aí com <strong>um</strong><br />
punhado de papéis de fichário na mochila pra fichar emergências. mas eu fiz<br />
<strong>um</strong>as linhas pontilhadas no papel de modo que ela vai saber onde cortar. cada<br />
<strong>um</strong> deles tem sua própria equação.<br />
2 + 2 = 4<br />
50 x 40 = 2000<br />
834620 x 375002 = quem se importa com esta porra<br />
x + y = z<br />
pau + xoxota = <strong>um</strong> casal homem-mulher feliz<br />
azul + vermelho = roxo<br />
eu - olimpíadas de matemática = eu + gratidão a você<br />
maura olha pra eles por <strong>um</strong> segundo, então dobra o pedaço de papel seguindo<br />
as linhas pontilhadas, fazendo várias dobras, como <strong>um</strong> mapa. ela não sorri nem<br />
nada parecido, mas parece não puta comigo por <strong>um</strong> segundo.<br />
eu: não deixe derek e simon ficarem muito animadinhos, ok leve sempre<br />
<strong>um</strong>a proteção no bolso.<br />
maura: acho que vou conseguir manter minha virgindade n<strong>um</strong>a competição<br />
de matemática.<br />
eu: você diz isso agora, mas vamos ver daqui a nove meses. se for <strong>um</strong>a
menina, você deve chamá-la logorreia. se for <strong>um</strong> menino, escolha trigo.<br />
e de fato me ocorre que, do jeito que a vida é, maura provavelmente vai<br />
conseguir alg<strong>um</strong> cara gato incapacitado para a matemática pra colocar o mais<br />
dele no menos dela, enquanto dá tudo errado pra mim com isaac e eu volto pra<br />
casa, pro consolo da minha própria mão.<br />
decido não dizer nada disso a maura, afinal, pra que agourar nós dois<br />
maura me dá <strong>um</strong> “ bom-dia” de verdade antes de ir e parece ter mais alg<strong>um</strong>a<br />
coisa a dizer, mas decidiu não fazê-lo. outra razão pra me deixar grato.<br />
agradeço a ela outra vez. e outra vez. e outra vez.<br />
com isso resolvido, sigo pra casa e troco e-mails com isaac assim que ele<br />
chega da escola — hoje ele não tem trabalho. repassamos nosso plano <strong>um</strong>as<br />
duas mil vezes. ele diz que <strong>um</strong> amigo sugeriu que nos encontrássemos em <strong>um</strong><br />
lugar chamado frenchy’s, e como não conheço chicago tanto assim, tirando os<br />
lugares aonde se vai nas excursões escolares, digo a ele que tudo bem por mim,<br />
e imprimo as instruções que ele me manda.<br />
quando acabamos, vou ao facebook e olho seu perfil pela milésima<br />
milionésima vez. ele não o atualiza com muita frequência, mas é <strong>um</strong> lembrete<br />
suficientemente bom pra mim de que ele é real. quero dizer, nós trocamos fotos<br />
e conversamos o bastante pra que eu saiba que ele é real — não se trata de<br />
alguém de 46 anos que já preparou <strong>um</strong> lugar pra mim na traseira de sua van sem<br />
identificação. não sou tão idiota assim. vamos nos encontrar em <strong>um</strong> local<br />
público e vou estar com meu celular. mesmo que isaac tenha <strong>um</strong> surto<br />
psicótico, estarei preparado.<br />
antes de ir dormir, olho todas as fotos que tenho dele, como se já não tivesse<br />
memorizado todas elas. tenho certeza de que vou reconhecê-lo no momento em<br />
que o vir. e tenho certeza de que será <strong>um</strong> dos melhores momentos da minha<br />
vida.<br />
a tarde de sexta-feira após a escola é cruel. quero cometer <strong>um</strong> assassinato de
<strong>um</strong>as mil maneiras diferentes, e é o meu armário a vítima. não tenho a menor<br />
ideia do que vestir — e eu não sou absolutamente o tipo de cara o-que-vou-usar,<br />
então é como se eu sequer compreendesse a tarefa diante de mim. cada maldita<br />
peça de roupa que tenho parece ter escolhido este exato momento pra revelar<br />
seus defeitos. visto essa camisa que sempre pensei que ficasse bem em mim, e<br />
de fato ela faz meu peito parecer ter alg<strong>um</strong>a definição. mas então percebo que está<br />
tão pequena que, se eu levantar os braços <strong>um</strong> centímetro sequer, os pelos<br />
púbicos na minha barriga ficarão totalmente expostos. então experimento essa<br />
camisa preta que faz parecer que estou me esforçando muito para impressionar, e<br />
então essa camisa branca que está legal até eu encontrar <strong>um</strong>a mancha perto da<br />
bainha, que espero que seja suco de laranja, mas que é provavelmente de quando<br />
eu enfiei a camisa na calça sem balançar antes. camisetas de bandas são óbvias<br />
demais — se eu usar a camisa de <strong>um</strong>a das bandas favoritas dele, vou parecer<br />
puxa-saco, e se usar a de <strong>um</strong>a que ele não gosta, ele vai pensar que tenho mau<br />
gosto. minha camisa cinza de capuz está blergh demais, e essa camisa azul é<br />
praticamente da mesma cor do jeans, e usar azul da cabeça aos pés é algo que<br />
somente o come-come da Vila Sésamo pode fazer.<br />
pela primeira vez na vida percebo <strong>um</strong>a outra utilidade para os cabides,<br />
quando, depois de 15 minutos experimentando coisas e jogando-as de lado,<br />
tudo que tenho vontade de fazer é pendurar <strong>um</strong> deles no alto da porta do<br />
armário, pôr meu pescoço no buraco e deixar meu peso cair. minha mãe vai<br />
chegar e pensar que se trata de <strong>um</strong>a prática de asfixia autoerótica em que nem<br />
mesmo tive tempo de pôr o pau pra fora, e não vou estar vivo pra dizer a ela que<br />
acho que a asfixia autoerótica é <strong>um</strong>a das coisas mais idiotas em todo o universo,<br />
lá no topo da lista, ao lado de republicanos gays. mas, sim, estarei morto. e vai<br />
ser como <strong>um</strong> episódio de CSI, e os investigadores virão e passarão 43 minutos<br />
mais comerciais vasculhando minha vida e no fim vão levar minha mãe até a<br />
delegacia e fazê-la sentar-se e lhe dizer a verdade.
policial: senhora, seu filho não foi assassinado. ele só estava se arr<strong>um</strong>ando<br />
pra <strong>um</strong> primeiro encontro.<br />
estou meio que sorrindo, imaginando como a cena seria filmada, e então me<br />
lembro de que estou sem camisa no meio do quarto, e que tenho <strong>um</strong> trem pra<br />
pegar. finalmente escolho essa camisa que tem <strong>um</strong>a figurinha de <strong>um</strong> robô feito<br />
com silver tape ou coisa parecida, com as palavras garoto robô em letras<br />
pequenas e minúsculas embaixo dela. não sei por que gosto dessa blusa, mas<br />
gosto. e não sei por que acho que isaac vai gostar, mas acho.<br />
sei que devo estar nervoso, porque na verdade estou pensando como está meu<br />
cabelo, mas quando olho no espelho do banheiro, decido que ele vai ficar do<br />
jeito que quiser, e, como em geral ele fica melhor quando está ventando, vou<br />
simplesmente pôr a cabeça pra fora da janela do trem durante o percurso ou algo<br />
do gênero. eu poderia usar os produtos de cabelo da minha mãe, mas não tenho<br />
a menor vontade de cheirar como borboletas no campo. então, por fim, estou<br />
pronto.<br />
disse à mamãe que a competição de matemática é em chicago — achei que,<br />
se era pra mentir, então ela poderia pensar que chegamos às finais estaduais.<br />
disse a ela que a escola havia fretado <strong>um</strong> ônibus, mas em vez disso sigo para a<br />
estação de trem, sem problemas. Meus nervos estão completamente em<br />
frangalhos a essa altura. tento ler o sol é para todos para a aula de inglês, mas é<br />
como se as letras fossem <strong>um</strong> belo desenho na página e não significassem mais<br />
para mim do que os padrões nos assentos do trem. poderia ser <strong>um</strong> filme de ação<br />
chamado corra que o sol vai derreter! e ainda assim eu não estaria prestando<br />
atenção. assim, fechei os olhos e fiquei ouvindo meu ipod, mas é como se ele<br />
tivesse sido programado por <strong>um</strong> cupido cruel, porque todas as músicas me<br />
fazem pensar em isaac. ele se tornou a pessoa de quem as canções falam. e<br />
embora parte de mim saiba que ele provavelmente vale a pena, outra parte está<br />
gritando pra mim: mais devagar com essa porra. embora vá ser emocionante
ver isaac, também vai ser constrangedor. o importante será não deixar esse<br />
constrangimento tomar conta da gente.<br />
levo cerca de cinco minutos pra pensar em meu histórico de encontros —<br />
cinco minutos é, de fato, todo o tempo que posso preencher — e sou levado de<br />
volta à tra<strong>um</strong>ática experiência de, bêbado, me pegar com carissa nye na festa de<br />
sloan mitchell alguns meses atrás. a parte dos beijos, na verdade, foi excitante,<br />
mas, quando ficou mais sério, o rosto dela exibindo aquela expressão<br />
estupidamente ardente, eu quase caí na gargalhada. tivemos alguns problemas<br />
sérios com o sutiã cortando a circulação do sangue para o cérebro, e quando eu<br />
finalmente tive os peitos dela nas minhas mãos (não que eu tivesse pedido isso),<br />
eu não sabia o que fazer com eles, exceto acariciá-los, como se fossem<br />
cachorrinhos. os cachorrinhos gostaram, e carissa resolveu me dar <strong>um</strong>a esfregada<br />
ou duas também, e eu gostei, porque quando se trata disso, mãos são mãos, e<br />
toque é toque, e seu corpo reage da maneira que seu corpo reage. ele não dá a<br />
mínima para a conversa que se vai ter depois — não só com carissa, que queria<br />
ser minha namorada e de quem tentei me desvencilhar suavemente, mas acabei<br />
magoando de qualquer maneira. não, também precisei lidar com maura, porque<br />
no momento em que ela soube o que aconteceu (não pela minha boca), ficou<br />
puta (exclusivamente comigo). disse que achava que carissa estava me usando, e<br />
agia como se pensasse que eu estava usando carissa, quando na verdade o<br />
negócio todo foi qualquer coisa, e independentemente de quantas vezes eu<br />
dissesse isso a maura, ela se recusava a me deixar em paz. durante semanas<br />
precisei aturar ela gritando “ bem, por que você não liga pra carissa, então”<br />
todas as vezes que discordávamos. só por isso, a pegação já não valeu a pena.<br />
isaac, é claro, é completamente diferente. não só no aspecto do amasso.<br />
embora ele certamente exista. não estou indo pra capital só pra me pegar com<br />
ele. essa pode não ser a última coisa em minha mente, mas também não é nem<br />
de perto a primeira.
pensei que fosse chegar cedo, mas naturalmente, quando me aproximo do<br />
local aonde vamos nos encontrar, estou mais atrasado que a menstruação de <strong>um</strong>a<br />
grávida. caminho pela michigan avenue com as garotas e os garotos turistas a<br />
poucos minutos da hora de ir pra casa, e todos eles parecem que acabaram de<br />
sair de <strong>um</strong> treino de basquete ou de assistir a <strong>um</strong> jogo de basquete na tv.<br />
definitivamente dou <strong>um</strong>a olhada em alguns espécimes, mas é puramente<br />
pesquisa científica. pelos próximos, hã, dez minutos, posso me guardar pra<br />
isaac.<br />
me pergunto se ele já está lá. se está tão nervoso quanto eu. se passou tanto<br />
tempo quanto eu escolhendo <strong>um</strong>a camisa. se por alg<strong>um</strong>a aberração da natureza<br />
estaremos usando a mesma coisa. como se estivéssemos assim tão predestinados<br />
que deus decidisse tornar isso totalmente óbvio.<br />
mãos suadas. confere. ossos trêmulos. confere. a sensação de que todo o<br />
oxigênio do ar foi substituído por gás hélio. sim. olho o mapa 15 vezes por<br />
segundo. faltam cinco quadras. faltam quatro quadras. faltam três quadras. faltam<br />
duas quadras. state street. a esquina. à procura da frenchy’s. pensando que vai<br />
ser <strong>um</strong>a lanchonete fashion. ou <strong>um</strong> café. ou <strong>um</strong>a loja de discos independentes.<br />
ou mesmo <strong>um</strong> restaurante decadente.<br />
então chegando lá e descobrindo... é <strong>um</strong>a sex shop.<br />
pensando que talvez a sex shop tenha recebido o <strong>nome</strong> de alg<strong>um</strong><br />
estabelecimento próximo. talvez esse seja o bairro frenchy’s, e tudo tenha o<br />
<strong>nome</strong> frenchy’s, como quando se vai ao centro da cidade e se encontra a<br />
lanchonete do centro e a lavanderia do centro e o instituto de ioga do centro.<br />
mas não. dou a volta no quarteirão. tento o outro lado. verifico o endereço várias<br />
vezes.<br />
e lá estou eu. de volta àquela porta.<br />
lembro que foi o amigo de isaac que sugeriu o lugar. ou pelo menos foi o que<br />
ele disse. se isso é verdade, talvez seja <strong>um</strong>a piada e o pobre isaac chegou aqui
primeiro e está à minha espera lá dentro, mortificado. ou talvez seja alg<strong>um</strong> tipo<br />
de teste cósmico. tenho de atravessar o rio de extremo constrangimento a fim de<br />
alcançar o paraíso do outro lado.<br />
que se foda, concluo.<br />
com o vento frio soprando à minha volta, eu entro.
capítulo sete<br />
Ouço o bing eletrônico, me viro e vejo <strong>um</strong> garoto entrando. Naturalmente,<br />
não lhe pedem a identidade, e, embora ele esteja no lado peludo da puberdade,<br />
não existe a menor chance de ele ter 18 anos. Pequeno, de olhos arregalados,<br />
muito louro e absolutamente apavorado — tão assustado quanto eu<br />
provavelmente estaria se já não tivesse sido levado ao limite pela conspiração<br />
anti-Will Grayson envolvendo A. Jane, B. Tiny, C. O espécime cheio de<br />
piercings atrás do balcão e D. O Sr. McCópia chapadão.<br />
Mas, de qualquer forma, o garoto está me olhando com <strong>um</strong> nível de<br />
intensidade que acho muito perturbador, sobretudo levando-se em conta o fato<br />
de eu estar segurando <strong>um</strong> exemplar da Mano a Mano. Tenho certeza de que<br />
existem várias maneiras fantásticas de indicar ao estranho menor de idade de pé<br />
ao lado da Grande Muralha de Vibradores que eu, na verdade, não sou fã da<br />
Mano a Mano, mas a estratégia particular que escolho é murmurar: “ É, hã, para<br />
<strong>um</strong> amigo.” O que é verdade, mas A. Não é <strong>um</strong>a desculpa muito convincente, e<br />
B. Ela sugere que sou o tipo de cara que é amigo do tipo de cara que gosta da<br />
Mano a Mano, e sugere ainda que C. Sou o tipo de cara que compra revistas<br />
pornô para os amigos. Logo depois de dizer “ É para <strong>um</strong> amigo”, me dou conta<br />
de que deveria ter dito: “ Estou tentando aprender espanhol.”<br />
O garoto continua a me olhar, e, após alguns instantes, estreita os olhos,<br />
forçando a visão. Sustento o olhar dele por alguns segundos, mas em seguida<br />
desvio. Por fim, ele passa por mim e entra no corredor dos vídeos. Parece que<br />
está procurando por alg<strong>um</strong>a coisa específica, e que essa coisa específica não está<br />
relacionada a sexo, e, nesse caso, suspeito que não vai encontrá-la aqui. Ele<br />
serpenteia na direção dos fundos da loja, onde se vê <strong>um</strong>a porta aberta, a qual<br />
acredito que deva estar de alg<strong>um</strong>a forma ligada às “ fichas”. Tudo que quero é<br />
dar o fora daqui com meu exemplar de Mano a Mano, então vou até o cara dos
piercings e digo:<br />
— É só isso, por favor.<br />
Ele registra na caixa.<br />
— Nove e oitenta e três — diz.<br />
— Nove DÓLARES — pergunto, incrédulo.<br />
— E oitenta e três centavos — acrescenta ele.<br />
Balanço a cabeça. Essa brincadeira está ficando extraordinariamente cara, mas<br />
não vou voltar para o bizarro rack de revistas e procurar <strong>um</strong>a pechincha.<br />
Vasculho os bolsos e reúno algo perto de quatro dólares. Suspiro, e então levo a<br />
mão ao bolso traseiro e entrego ao cara meu cartão de débito. Meus pais olham<br />
o extrato, mas não vão distinguir Frenchy’s de Denny’s.<br />
O sujeito olha o cartão. Olha pra mim. Olha o cartão. Olha pra mim. E <strong>um</strong><br />
segundo antes de ele falar, eu me dou conta: meu cartão diz William Grayson.<br />
Minha identidade diz Ishmael J. Biafra.<br />
Bem alto, o cara diz:<br />
— William. Grayson. William. Grayson. Onde foi que eu vi esse <strong>nome</strong><br />
antes Ah, certo. NÃO foi na sua carteira de motorista.<br />
Pondero minhas opções por <strong>um</strong> instante e então digo, bem baixinho:<br />
— O cartão é meu. Eu sei a senha. Apenas... registre.<br />
Ele passa o cartão pela máquina e diz:<br />
— Não tô nem aí, garoto. O dinheiro é o mesmo.<br />
E, nesse exato momento, sinto o garoto logo atrás de mim, me olhando<br />
outra vez, e então eu faço meia-volta, e ele diz:<br />
— O que você disse<br />
Só que não está falando comigo, está falando com o Piercings.<br />
— Eu disse que não tô nem aí pra identidade dele.<br />
— Você não me chamou<br />
— De que porra você tá falando, garoto
— William Grayson. Você falou William Grayson Alguém aqui me<br />
chamou<br />
— Hã Não, garoto. William Grayson é esse cara aqui — diz ele, me<br />
apontando com a cabeça. — Bem, há duas correntes de pensamento, creio, mas<br />
é o que diz neste cartão.<br />
E o garoto me olha confuso por <strong>um</strong> instante e por fim pergunta:<br />
— Qual é o seu <strong>nome</strong><br />
Isso está me apavorando. A Frenchy’s não é <strong>um</strong> lugar para conversas.<br />
Assim, digo simplesmente para o Piercings:<br />
— Você pode me dar a revista — E Piercings a entrega a mim em <strong>um</strong>a<br />
sacola plástica de <strong>um</strong> preto completamente opaco e sem identificação, pela qual<br />
me sinto muito grato, e em seguida me dá o cartão e a nota fiscal. Saio pela<br />
porta, corro meia quadra pela Clark e então me sento no meio-fio e espero meu<br />
pulso desacelerar.<br />
O que está começando a acontecer quando meu companheiro menor de idade<br />
e peregrino na Frenchy’s vem correndo até mim e pergunta:<br />
— Quem é você<br />
Eu me levanto e respondo:<br />
— Hã, eu sou Will Grayson.<br />
— W-I-L-L G-R-A-Y-S-O-N — pergunta, soletrando impossivelmente<br />
rápido.<br />
— Hã, sim — digo. — Por que a pergunta<br />
O garoto me olha por <strong>um</strong> segundo, a cabeça inclinada, como se pensasse que<br />
eu poderia estar passando <strong>um</strong> trote nele. Então finalmente diz:<br />
— Porque eu também sou Will Grayson.<br />
— Tá de sacanagem — pergunto.<br />
— Não — diz o cara.<br />
Não consigo decidir se ele é paranoico ou esquizofrênico, ou ambos, mas
nesse momento ele puxa <strong>um</strong>a carteira emendada com silver tape do bolso<br />
traseiro e me mostra <strong>um</strong>a carteira de motorista do Illinois. Nossos <strong>nome</strong>s do<br />
meio, pelo menos, são diferentes, mas... sim.<br />
— Bem — digo —, foi bom te conhecer. — E começo a me afastar, porque,<br />
nada contra o cara, mas não quero puxar assunto com alguém que frequenta lojas<br />
pornôs, mesmo que, tecnicamente falando, eu mesmo seja <strong>um</strong> cara que frequenta<br />
lojas pornôs. Mas ele toca o meu braço, e parece pequeno demais pra ser<br />
perigoso, então torno a me virar e ele pergunta:<br />
— Você conhece Isaac<br />
— Quem<br />
— Isaac<br />
— Não conheço nenh<strong>um</strong> Isaac, cara — digo.<br />
— Era para eu encontrá-lo naquele lugar, mas ele não está lá. Você não se<br />
parece com ele, mas pensei... Eu não sei o que pensei. Como é que... Que<br />
diabos está acontecendo — O garoto gira em <strong>um</strong> círculo rápido, como se<br />
estivesse procurando <strong>um</strong> cameraman ou coisa parecida. — Foi Isaac quem<br />
mandou você fazer isso<br />
— Acabei de dizer, cara: não conheço nenh<strong>um</strong> Isaac.<br />
Ele se vira outra vez, mas não tem ninguém atrás dele. Ele ergue os braços<br />
para o ar e diz:<br />
— Eu não sei nem sobre o que surtar agora.<br />
— Esse está sendo <strong>um</strong> dia maluco pra Will Graysons por toda parte —<br />
observo.<br />
Ele balança a cabeça e então se senta no meio-fio, e eu o acompanho, pois<br />
não há mais nada a fazer. Ele me examina com atenção, então desvia os olhos, e<br />
depois me olha de novo. E aí dá <strong>um</strong> beliscão de verdade no próprio braço.<br />
— É claro que não. Meus sonhos não são tão estranhos assim.<br />
— É — digo. Não consigo descobrir se ele quer que eu fale com ele, e
também não consigo descobrir se quero falar com ele, mas, passado <strong>um</strong> minuto,<br />
digo: — Então, hã, como você conheceu o Isaac me-encontre-na-sex-shop<br />
— Ele é só... <strong>um</strong> amigo. Nos conhecemos na internet faz muito tempo.<br />
— Na internet<br />
Se é que é possível, Will Grayson consegue encolher-se ainda mais. Com os<br />
ombros curvados, fita com intensidade a sarjeta da rua. Eu sei, naturalmente,<br />
que existem outros Will Graysons. Já joguei meu <strong>nome</strong> no Google suficientes<br />
vezes pra saber disso. Mas nunca pensei que fosse ver <strong>um</strong>. Por fim, ele diz:<br />
— É.<br />
— Você nunca viu esse cara pessoalmente — insisto.<br />
— Não — confirma ele —, mas já o vi, assim, n<strong>um</strong>as mil fotos.<br />
— Ele é <strong>um</strong> homem de 50 anos — digo assertivamente. — Um pervertido.<br />
De <strong>um</strong> Will pra outro: não tem a menor chance de Isaac ser quem você pensa<br />
que ele é.<br />
— Ele provavelmente só... Eu não sei, talvez tenha encontrado outra droga<br />
de Isaac no ônibus e esteja preso no Mundo Bizarro.<br />
— Por que diabos ele te pediria que fosse para a Frenchy’s<br />
— Boa pergunta. Por que alguém iria a <strong>um</strong>a sex shop — Ele me dirige <strong>um</strong><br />
sorriso <strong>um</strong> pouco presunçoso.<br />
— Boa pergunta — observo. — Sim, é verdade. Mas tem <strong>um</strong>a história por<br />
trás disso.<br />
Espero <strong>um</strong> segundo para que Will Grayson me pergunte sobre a minha<br />
história, mas ele não pergunta. Então começo a contar assim mesmo. Conto a<br />
ele sobre Jane, Tiny Cooper e os Maybe Dead Cats e “ Annus Miribalis”, e o<br />
segredo do armário de Jane e o atendente da loja copiadora que não sabia contar,<br />
e arranco dele alg<strong>um</strong>as risadas ao longo da história, mas na maior parte do<br />
tempo ele fica lançando olhares para a Frenchy’s, à espera de Isaac. O rosto dele<br />
parece alternar entre esperança e raiva. Na verdade, ele presta muito pouca
atenção em mim, o que eu acho ok, de verdade, porque só estou contando<br />
minha história para ele por contar, falando com <strong>um</strong> estranho porque essa é a<br />
única maneira segura de falar, e o tempo inteiro mantenho a mão no bolso,<br />
segurando o celular, porque quero ter certeza de que vou senti-lo vibrando se<br />
alguém ligar.<br />
E então ele me conta sobre Isaac, que são amigos há <strong>um</strong> ano, e que ele<br />
sempre quis encontrá-lo porque não existe ninguém igual a Isaac no subúrbio<br />
onde ele mora, e logo me ocorre que Will Grayson gosta de Isaac de <strong>um</strong>a<br />
maneira não-completamente-platônica.<br />
— Então eu pergunto: que pervertido de 50 anos faria isso — diz Will. —<br />
Que pervertido passaria <strong>um</strong> ano de sua vida conversando comigo, me contando<br />
tudo sobre seu eu falso, enquanto conto a ele tudo sobre meu eu real E se <strong>um</strong><br />
pervertido de 50 anos fez isso, por que não apareceu na Frenchy’s pra me<br />
estuprar e matar Mesmo n<strong>um</strong>a noite totalmente impossível, isso é totalmente<br />
impossível.<br />
Reflito sobre isso por <strong>um</strong> segundo.<br />
— Não sei — respondo, por fim. — As pessoas são estranhas pra cacete,<br />
caso você não tenha percebido.<br />
— É. — Ele não está mais olhando a todo instante para a entrada da<br />
Frenchy’s, apenas pra frente. Posso vê-lo com o canto do olho, e tenho certeza<br />
de que ele pode me ver com o canto do seu, mas na maior parte do tempo não<br />
estamos olhando <strong>um</strong> para o outro, e sim para o mesmo ponto na rua, onde os<br />
carros passam, barulhentos, meu cérebro tentando dar <strong>um</strong> sentido a todas as<br />
impossibilidades, todas as coincidências que me trouxeram aqui, todas as coisas<br />
falsas-e-verdadeiras. E ficamos em silêncio por <strong>um</strong> tempo tão longo que tiro o<br />
celular do bolso, olho pra ele e confirmo que ninguém ligou, então torno a<br />
guardá-lo, e aí finalmente sinto Will desviando o olhar do tal ponto na rua e<br />
voltando-o pra mim, até dizer:
— O que você acha que isso significa<br />
— O quê — pergunto.<br />
— Não existem tantos Will Graysons assim — diz. — Tem de significar<br />
alg<strong>um</strong>a coisa, <strong>um</strong> Will Grayson encontrar outro Will Grayson em <strong>um</strong>a sex shop<br />
aleatória que nenh<strong>um</strong> dos dois Will Graysons frequenta.<br />
— Você está sugerindo que Deus levou dois Will Graysons de Chicagoland,<br />
menores de idade, até a Frenchy’s ao mesmo tempo<br />
— Não, babaca — continua ele —, mas quero dizer que isso deve significar<br />
alg<strong>um</strong>a coisa.<br />
— Sim — retruco. — É difícil acreditar em coincidências, porém é ainda<br />
mais difícil acreditar em outra coisa. — Nesse exato momento, o celular ganha<br />
vida na minha mão, e, quando o estou tirando do bolso, o telefone de Will<br />
Grayson começa a tocar.<br />
E, até mesmo pra mim, isso é coincidência demais. Ele murmura: “ Meu<br />
Deus, é Maura” como se eu fosse saber quem é Maura, e fica olhando o aparelho,<br />
parecendo não ter certeza se deve ou não atender. Minha ligação é de Tiny.<br />
Antes de abrir o telefone, digo a Will:<br />
— É meu amigo Tiny. — E estou olhando pra Will; para o fofo e perdido<br />
Will.<br />
Abro o telefone.<br />
— Grayson! — berra Tiny acima do barulho da música. — Estou<br />
apaixonado por esta banda! Vamos ficar mais <strong>um</strong>as duas músicas e então vou aí<br />
pegar você. Onde você está, baby Onde está meu lindo bebezinho Grayson<br />
— Estou do outro lado da rua — grito de volta. — E é melhor você se<br />
ajoelhar e agradecer ao doce Senhor, porque, Tiny, eu tenho <strong>um</strong> cara pra você.
capítulo oito<br />
estou surtando tanto que se tirassem <strong>um</strong> palhaço do meu rabo eu não ficaria<br />
nada surpreso.<br />
talvez tudo fizesse <strong>um</strong> pouco de sentido se esse OUTRO WILL GRAYSON<br />
que se encontra bem ao meu lado não fosse absolutamente <strong>um</strong> <strong>will</strong> grayson, mas<br />
em vez disso o campeão medalha de ouro das olimpíadas da loucura. não que ao<br />
vê-lo pela primeira vez eu tivesse pensado comigo mesmo: ei, o <strong>nome</strong> daquele<br />
garoto deve ser <strong>will</strong> grayson também. não, a única coisa que pensei foi: ei, esse<br />
não é isaac. a idade certa, mas o rosto completamente errado. então o ignorei.<br />
voltei-me para o dvd que fingia examinar, de <strong>um</strong> filme pornô intitulado o som e<br />
a fera. era sobre “ sexo animal”, com <strong>um</strong>as pessoas na capa usando fantasias de<br />
vaca (<strong>um</strong> úbere). fiquei feliz que nenh<strong>um</strong>a vaca de verdade houvesse sido<br />
machucada (ou saciada) durante as filmagens. ainda assim. não é a minha praia.<br />
ao lado dele estava <strong>um</strong> dvd intitulado transando no leito de morte, que tinha<br />
<strong>um</strong>a cena de hospital na capa. era como grey’s anatomy, só que com menos grey<br />
e mais anatomy. pensei por <strong>um</strong> instante: mal posso esperar pra contar isso a<br />
isaac, esquecendo, é claro, que ele deveria estar aqui comigo.<br />
não que eu pudesse não tê-lo visto entrar; o lugar estava vazio, exceto por<br />
mim, o.w.g., e o atendente, que parecia o pillsbury doughboy, o bonequinho de<br />
massa da pillsbury company, se a massa tivesse ficado fora da geladeira por <strong>um</strong>a<br />
semana inteira. creio que todas as outras pessoas usavam a internet para obter<br />
seus produtos pornôs. e a frenchy’s não era exatamente convidativa — tinha a<br />
il<strong>um</strong>inação de <strong>um</strong>a loja de conveniências, que fazia todo o plástico parecer<br />
muito mais plástico e o metal parecer muito mais metálico, e as pessoas nuas<br />
nas capas dos dvds parecerem ainda menos sensuais e mais com pornografia<br />
barata. passando por boquete em moisés e deleite vespertino em agosto, eu me<br />
vi nessa bizarra seção de itens em formato de pênis. como minha mente é, no
fundo, cheia de merda, comecei imediatamente a imaginar <strong>um</strong>a sequência de toy<br />
story intitulada sex toy story, na qual todos esses consolos e vibradores<br />
subitamente ganham vida e têm de fazer coisas como atravessar a rua a fim de<br />
voltar pra casa.<br />
mais <strong>um</strong>a vez, enquanto todos esses pensamentos me ocorriam, eu também<br />
pensava em dividi-los com isaac. esse era o meu ponto fraco.<br />
minha atenção só foi desviada quando ouvi meu <strong>nome</strong> ser dito pelo cara atrás<br />
do balcão. que foi como encontrei o.w.g.<br />
portanto, é isso: vou a <strong>um</strong>a sex shop para encontrar isaac e, em vez disso, o<br />
que consigo é outro <strong>will</strong> grayson.<br />
deus, você é <strong>um</strong>a porra de <strong>um</strong> babaca.<br />
naturalmente, nesse momento isaac está galgando os degraus da babaquice<br />
também. minha esperança é de que, na verdade, ele seja <strong>um</strong> filho da puta<br />
dominado pelo nervosismo — tipo, quem sabe ele apareceu e descobriu que o<br />
lugar que seu amigo recomendou era <strong>um</strong>a sex shop e ficou tão mortificado que<br />
fugiu dali, chorando. isso é possível. ou talvez ele esteja apenas atrasado. tenho<br />
de dar a ele pelo menos <strong>um</strong>a hora. o trem pode ter ficado preso em <strong>um</strong> túnel ou<br />
alg<strong>um</strong>a coisa assim. não seria a primeira vez. ele está vindo de ohio, afinal. as<br />
pessoas de ohio se atrasam o tempo todo.<br />
meu telefone toca praticamente ao mesmo tempo que o de o.w.g... embora<br />
seja pateticamente improvável que vá ser isaac, minhas esperanças ainda se<br />
elevam.<br />
então vejo que é maura.<br />
eu: meu deus, é maura.<br />
a princípio, decido não atender, mas então o.w.g. atende o dele.<br />
o.w.g.: é meu amigo tiny.
se o.w.g. vai atender o dele, concluo que é melhor eu atender o meu também.<br />
além disso, lembro que maura me fez <strong>um</strong> favor hoje. se mais tarde eu souber que<br />
a competição das olimpíadas de matemática foi atacada por <strong>um</strong> esquadrão de<br />
nerds de h<strong>um</strong>anas frustrados brandindo uzis, vou me sentir culpado por não ter<br />
atendido o telefone e dado a chance de maura dizer adeus.<br />
eu: rápido — qual a raiz quadrada da minha cueca<br />
maura: oi, <strong>will</strong>.<br />
eu: essa resposta lhe concede zero ponto.<br />
maura: como está chicago<br />
eu: absolutamente sem vento!<br />
maura: o que você está fazendo<br />
eu: ah, estou de papo com <strong>will</strong> grayson.<br />
maura: foi o que pensei.<br />
eu: como assim<br />
maura: cadê a sua mãe<br />
uh-oh. isso cheira a armadilha. será que maura ligou pra minha casa será que<br />
falou com minha mãe movimento do pedal, marcha ré!<br />
eu: por acaso sou babá da minha mãe (rá rá)<br />
maura: pare de mentir, <strong>will</strong>.<br />
eu: ok, ok. eu meio que precisava dar <strong>um</strong>a escapada sozinho. pra ir a <strong>um</strong><br />
show mais tarde.<br />
maura: que show<br />
porra! não consigo lembrar a que show o.w.g. disse que ia. e ele ainda está<br />
ao telefone, então não posso perguntar.<br />
eu: <strong>um</strong>a banda da qual você nunca ouviu falar.
maura: experimenta me dizer.<br />
eu: hã, é esse o <strong>nome</strong> deles. “ <strong>um</strong>a banda da qual você nunca ouviu falar”.<br />
maura: ah, eu já ouvi falar deles.<br />
eu: aham.<br />
maura: acabei de ler <strong>um</strong>a resenha do álb<strong>um</strong> deles na spin.<br />
eu: legal.<br />
maura: é, o <strong>nome</strong> do álb<strong>um</strong> é “ isaac não vem, seu filho da puta mentiroso”.<br />
isso não é bom.<br />
eu: esse é <strong>um</strong> <strong>nome</strong> bem idiota pra <strong>um</strong> disco.<br />
como como como como<br />
maura: desista, <strong>will</strong>.<br />
eu: minha senha.<br />
maura: o quê<br />
eu: você hackeou a minha senha. você vem lendo meus e-mails, não é<br />
maura: do que você está falando<br />
eu: de isaac. como você sabe do meu encontro com isaac<br />
ela devia ter espiado enquanto eu verificava meu e-mail na escola. devia ter<br />
visto as teclas que digitei. ela roubou a droga da minha senha.<br />
maura: eu sou isaac, <strong>will</strong>.<br />
eu: não seja idiota. ele é <strong>um</strong> cara.<br />
maura: não é não. ele é <strong>um</strong> perfil. eu o criei.<br />
eu: tá, sei.<br />
maura: fui eu quem o criou.<br />
não. não não não não não não não não não não não não não.
eu: o quê<br />
não por favor nada de o quê não não por favor não porra não NÃO.<br />
maura: isaac não existe. nunca existiu.<br />
eu: você não pode...<br />
maura: você cai tão fácil.<br />
EU CAIO tão fácil!<br />
PUTA QUE PARIU.<br />
eu: diga que você está brincando.<br />
maura: ...<br />
eu: isto não está acontecendo.<br />
o outro <strong>will</strong> grayson encerrou a ligação e está me olhando.<br />
o.w.g.: você está bem<br />
está chegando. aquele momento de “ <strong>um</strong>a bigorna acabou mesmo de cair na<br />
minha cabeça” passou e estou sentindo. ah senhor estou sentindo a bigorna.<br />
eu: sua. puta. desprezível.<br />
sim, as sinapses estão transmitindo a informação agora. atualizações: isaac<br />
nunca existiu. era só sua amiga se fazendo passar por ele. era tudo <strong>um</strong>a mentira.<br />
tudo <strong>um</strong>a mentira.<br />
eu: sua. piranha. horrorosa.<br />
maura: por que garotas nunca são chamadas de bundões<br />
eu: não vou insultar as bundas assim. elas pelo menos servem a <strong>um</strong>
propósito.<br />
maura: olhe, eu sabia que você ia ficar com raiva...<br />
eu: você SABIA que eu ia ficar com RAIVA!!<br />
maura: eu ia te contar.<br />
eu: nossa, obrigado.<br />
maura: mas você não me contou.<br />
o.w.g. está parecendo muito preocupado agora. então cubro o telefone com a<br />
mão por <strong>um</strong> segundo e falo com ele.<br />
eu: na verdade, eu não estou nada bem. provavelmente estou vivendo o pior<br />
minuto da minha vida. não vá embora.<br />
o.w.g. faz que sim com a cabeça.<br />
maura: <strong>will</strong> olhe, desculpe.<br />
eu: ...<br />
maura: você não achou de fato que ele ia te encontrar em <strong>um</strong>a sex shop,<br />
achou<br />
eu: ...<br />
maura: foi <strong>um</strong>a piada.<br />
eu: ...<br />
maura: <strong>will</strong><br />
eu: é só meu respeito pelos seus pais que vai me impedir de te assassinar<br />
imediatamente. mas por favor entenda <strong>um</strong>a coisa: eu nunca, jamais vou falar<br />
com você, passar bilhetinhos, mandar mensagem ou falar por nenh<strong>um</strong>a porra de<br />
linguagem de sinais outra vez. prefiro comer merda de cachorro cheia de gilete<br />
do que ter alg<strong>um</strong>a coisa a ver com você.<br />
termino a ligação antes que ela possa dizer mais alg<strong>um</strong>a coisa. desligo o
telefone. me sento no meio-fio. fecho os olhos. e grito. se todo o meu mundo<br />
vai despencar à minha volta, então vou fazer o barulho correspondente. quero<br />
gritar até todos os meus ossos se partirem.<br />
<strong>um</strong>a vez. duas. mais outra.<br />
então paro. sinto as lágrimas, e torço para que, se eu mantiver os olhos<br />
fechados, possa contê-las dentro de mim. estou tão além do patético que quero<br />
abrir os olhos e ver isaac ali, ouvi-lo dizer que maura está maluca. ou ouvir o<br />
outro <strong>will</strong> grayson me dizer que isso, também, pode ser descartado como<br />
coincidência. é ele de fato o <strong>will</strong> grayson para quem maura vem enviando e-<br />
mails. ela confundiu os <strong>will</strong> graysons.<br />
mas a realidade. bem, a realidade é a bigorna.<br />
respiro fundo e, pelo som, pareço entupido.<br />
o tempo todo.<br />
o tempo todo era maura.<br />
não isaac.<br />
não isaac.<br />
nunca.<br />
tem mágoa. tem dor. e tem mágoa-e-dor-ao-mesmo-tempo.<br />
estou sentindo mágoa-e-dor-ao-mesmo-tempo.<br />
o.w.g.: hã... <strong>will</strong><br />
pela cara dele, a mágoa-e-dor-ao-mesmo-tempo pode ser vista muito<br />
claramente em meu rosto.<br />
eu: sabe aquele cara que eu ia encontrar<br />
o.w.g.: isaac.<br />
eu: pois é, isaac. bem, acabou que ele não era <strong>um</strong> cara de 50 anos. era minha<br />
amiga maura, fazendo <strong>um</strong>a brincadeira.
o.w.g.: <strong>um</strong>a puta de <strong>um</strong>a piada maldosa.<br />
eu: sim. estou sentindo isso.<br />
não tenho a menor ideia se estou falando com ele porque ele também se<br />
chama <strong>will</strong> grayson ou se porque me contou <strong>um</strong> pouco do que está acontecendo<br />
com ele ou se porque ele é a única pessoa no mundo disposta a me ouvir neste<br />
momento. todos os meus instintos estão me dizendo para me enrolar n<strong>um</strong>a bola<br />
bem pequena e rolar para o esgoto mais próximo — mas não quero fazer isso<br />
com o.w.g... sinto que ele merece mais do que ser <strong>um</strong>a testemunha ocular de<br />
minha autodestruição.<br />
eu: alg<strong>um</strong>a coisa assim já aconteceu com você<br />
o.w.g. faz que não com a cabeça.<br />
o.w.g.: receio que estejamos em terreno novo aqui. meu melhor amigo, tiny,<br />
<strong>um</strong>a vez ia me inscrever no concurso garoto do mês da revista seventeen sem me<br />
contar, mas não creio que seja a mesma coisa.<br />
eu: como você descobriu<br />
o.w.g.: ele achou que o texto precisava ser revisado, então me pediu pra fazer<br />
isso.<br />
eu: você ganhou<br />
o.w.g.: eu disse a ele que enviaria para a revista e então guardei. ele ficou<br />
arrasado por eu não ter ganhado... mas acho que teria sido pior se isso tivesse<br />
acontecido.<br />
eu: você poderia ter conhecido a miley cyrus. jane teria morrido de ciúme.<br />
o.w.g.: acho que antes jane teria morrido de rir.<br />
não posso evitar — imagino isaac rindo também.<br />
e então tenho que matar essa imagem.
porque isaac não existe.<br />
tenho a sensação de que vou perder o controle outra vez.<br />
eu: por quê<br />
o.w.g.: por que jane morreria de rir<br />
eu: não, por que maura faria isso<br />
o.w.g.: sinceramente, não sei.<br />
maura. isaac.<br />
isaac. maura.<br />
bigorna.<br />
bigorna.<br />
bigorna.<br />
eu: sabe o que é <strong>um</strong>a merda no amor<br />
o.w.g.: o quê<br />
eu: o fato de estar tão ligado à verdade.<br />
as lágrimas estão começando a voltar. porque essa dor — sei que estou<br />
desistindo de tudo. isaac. esperança. o futuro. aqueles sentimentos. aquela<br />
palavra. estou desistindo de tudo, e isso dói.<br />
o.w.g.: <strong>will</strong><br />
eu: acho que tenho de fechar os olhos por <strong>um</strong> minuto e sentir o que preciso<br />
sentir.<br />
fecho os olhos, fecho meu corpo, tento excluir tudo mais. percebo o.w.g. se<br />
levantando. queria que ele fosse isaac, embora saiba que ele não é. queria que<br />
maura não fosse isaac, embora saiba que ela é. queria ser outra pessoa, embora<br />
saiba que nunca, jamais vou conseguir escapar do que fiz e do que foi feito
comigo.<br />
senhor, me mande amnésia. me faça esquecer cada momento que na verdade<br />
eu jamais tive com isaac. me faça esquecer que maura existe. deve ter sido isso<br />
que minha mãe sentiu quando meu pai disse que estava tudo acabado. agora eu<br />
entendo. eu entendo. as coisas que você mais quer são aquelas que te destroem<br />
no fim.<br />
ouço o.w.g. falando com alguém. <strong>um</strong>a recapitulação sussurrada de tudo que<br />
acabou de acontecer.<br />
ouço passos se aproximando. tento me acalmar <strong>um</strong> pouco, então abro os<br />
olhos... e vejo esse cara gigantesco de pé na minha frente. quando ele vê que o<br />
estou vendo, dá <strong>um</strong> sorriso enorme. ele tem covinhas do tamanho da cabeça de<br />
<strong>um</strong> bebê, eu juro.<br />
cara gigantesco: olá. eu sou o tiny.<br />
ele estende a mão. não estou exatamente no estado de espírito para apertos de<br />
mão, mas vai ser desagradável se eu simplesmente deixá-lo ali, então estendo a<br />
minha mão também. no entanto, em vez de apertá-la, ele me puxa e me faz ficar<br />
de pé.<br />
tiny: alguém morreu<br />
eu: sim, eu.<br />
ele sorri outra vez.<br />
tiny: bem, então... bem-vindo à vida após a morte.
capítulo nove<br />
Pode-se falar muitas coisas ruins sobre Tiny Cooper. Eu sei, porque já falei.<br />
Mas, pra <strong>um</strong> cara que não sabe absolutamente nada sobre como conduzir os<br />
próprios relacionamentos, Tiny Cooper é quase brilhante quando se trata de<br />
lidar com o coração partido das outras pessoas. Tiny é como <strong>um</strong>a esponja<br />
gigante sugando a dor do amor perdido aonde quer que vá. E é assim com Will<br />
Grayson. O outro Will Grayson, eu quero dizer.<br />
Jane está <strong>um</strong>a loja adiante, n<strong>um</strong> vão de porta, falando ao telefone. Olho pra<br />
ela, mas ela não está olhando pra mim, e me pergunto se eles tocaram a música.<br />
Uma coisa que Will — o outro Will — falou pouco antes de Tiny e Jane<br />
chegarem fica dando voltas na minha cabeça: o amor está ligado à verdade.<br />
Penso neles como gêmeos tristemente unidos.<br />
— Obviamente — diz Tiny — ela não passa de <strong>um</strong>a pilha quente e<br />
f<strong>um</strong>egante de merda, mas, mesmo assim, dou a ela todo o crédito pelo <strong>nome</strong>.<br />
Isaac. Isaac. Eu quase poderia me apaixonar por <strong>um</strong>a garota, se o <strong>nome</strong> dela<br />
fosse Isaac.<br />
O outro Will Grayson não ri, mas Tiny não se abala.<br />
— Você deve ter ficado apavorado quando percebeu que era <strong>um</strong>a sex shop,<br />
certo Tipo, quem quer encontrar alguém ali.<br />
— E justamente quando seu xará está comprando <strong>um</strong>a revista — completo,<br />
erguendo a sacola preta e pensando que Tiny irá puxá-la e checar minha compra.<br />
Mas ele não faz isso. Ele simplesmente diz:<br />
— Isso é ainda pior que o que aconteceu comigo e Tommy.<br />
— O que aconteceu com você e Tommy — pergunta Will.<br />
— Ele disse que era louro natural, mas a tintura dele era tão ruim que parecia<br />
<strong>um</strong> cabelo de boneca; como o da Barbie. Além disso, Tommy não era apelido<br />
de Tomás, como ele me contou. Era do velho e banal Thomas.
Will diz:<br />
— É, isso é pior. Muito pior.<br />
Obviamente não tenho muito com que contribuir para a conversa, e, de<br />
qualquer forma, Tiny está agindo como se eu não existisse, então sorrio e digo:<br />
— Vou deixar vocês dois sozinhos agora. — E então olho para o outro Will<br />
Grayson, que está meio que oscilando, como se pudesse cair se o vento<br />
a<strong>um</strong>entasse. Tenho vontade de dizer alg<strong>um</strong>a coisa, pois sinto muito por ele, de<br />
verdade, mas nunca sei o que dizer. Assim, digo apenas o que estou pensando.<br />
— Sei que é <strong>um</strong>a merda, mas, n<strong>um</strong> certo sentido, é bom.<br />
Ele me olha como se eu tivesse acabado de dizer alg<strong>um</strong>a coisa absolutamente<br />
idiota, o que é claro que fiz.<br />
— O amor e a verdade ligados <strong>um</strong> ao outro, quero dizer. Eles tornam <strong>um</strong> ao<br />
outro possível, sabe<br />
O garoto me dirige mais ou menos <strong>um</strong> oitavo de <strong>um</strong> sorriso e então se volta<br />
pra Tiny, que — para ser justo — é obviamente o melhor terapeuta. A sacola<br />
preta com a Mano a Mano não parece mais engraçada, então eu simplesmente<br />
largo ela no chão perto de Tiny e de Will. Eles sequer percebem.<br />
Jane agora está no meio-fio, na ponta dos pés, quase inclinada para a rua<br />
entulhada de táxis. Um grupo de universitários passa e olha pra ela, <strong>um</strong><br />
erguendo as sobrancelhas para o outro. Ainda estou pensando na ligação entre o<br />
amor e a verdade — o que me faz ter vontade de contar a verdade pra ela (a<br />
verdade completa, contraditória) porque, caso contrário, n<strong>um</strong> certo nível, não<br />
sou igual àquela garota Não sou igual à garota fingindo ser Isaac<br />
Vou até ela e tento tocar em seu cotovelo, mas meu toque é leve demais e só<br />
atinjo o casaco. Ela se volta pra mim e vejo que ainda está no celular. Faço <strong>um</strong><br />
gesto que tem a intenção de dizer: “ Ei, não tem pressa, fale o quanto quiser”,<br />
mas que provavelmente significa: “ Ei, olha pra mim! Minhas mãos estão tendo<br />
espasmos.” Jane ergue <strong>um</strong> dedo. Faço que sim com a cabeça. Ela fala suave,
docemente no telefone: “ Sim, eu sei. Eu também.”<br />
Dou <strong>um</strong> passo atrás, cruzando a calçada, e me recosto na parede de tijolos<br />
entre a Frenchy’s e <strong>um</strong> restaurante japonês fechado. À minha direita, Will e<br />
Tiny conversam. À minha esquerda, Jane conversa. Pego o telefone, como se<br />
fosse mandar <strong>um</strong>a mensagem de texto, mas simplesmente percorro minha lista<br />
de contatos. Clint. Jane. Mamãe. Papai. Pessoas de quem já fui amigo. Pessoas<br />
que são simples conhecidas. Tiny. Nada depois do T. Não é muito para <strong>um</strong><br />
telefone que tenho há três anos.<br />
— Oi — diz Jane. Levanto os olhos, fecho o telefone e sorrio pra ela. —<br />
Desculpe pelo show.<br />
— Ah, tudo bem — respondo, porque está tudo bem mesmo.<br />
— Quem é o cara — pergunta ela, apontando.<br />
— Will Grayson — digo.<br />
Ela me olha, estreitando os olhos, confusa.<br />
— Conheci <strong>um</strong> cara chamado Will Grayson naquela sex shop — conto. —<br />
Fui lá pra usar minha identidade falsa, e ele foi lá encontrar o namorado falso.<br />
— Meu Deus, se eu soubesse que isso ia acontecer, teria desistido do show.<br />
— É — digo, tentando não parecer chateado. — Vamos dar <strong>um</strong>a volta.<br />
Ela concorda. Caminhamos na direção da Michigan Avenue, a Magnificent<br />
Mile, endereço de todas as maiores lojas de Chicago. A essa hora, está tudo<br />
fechado e os turistas que inundam as amplas calçadas durante o dia já voltaram<br />
para seus hotéis, cinquenta andares acima de nós. Os sem-teto que mendigam<br />
junto aos turistas também se foram, e somos praticamente apenas Jane e eu. Não<br />
se pode dizer a verdade sem falar, então estou contando a ela toda a história,<br />
tentando fazê-la parecer engraçada, tentando fazê-la mais grandiosa que qualquer<br />
show dos MDC poderia ser. E, quando termino, faz-se <strong>um</strong>a pausa e ela diz:<br />
— Posso te fazer <strong>um</strong>a pergunta aleatória<br />
— Claro.
Estamos passando pela Tiffany, e eu paro por <strong>um</strong> segundo. As luzes pálidas<br />
da rua il<strong>um</strong>inam a frente da loja apenas o suficiente para que, através do vidro<br />
triplo e de <strong>um</strong>a grade de segurança, eu possa ver <strong>um</strong>a vitrine vazia — a silhueta<br />
de <strong>um</strong> pescoço de veludo cinza, sem nenh<strong>um</strong>a joia.<br />
— Você acredita em revelações — pergunta. Recomeçamos a andar.<br />
— Hã, pode traduzir a pergunta<br />
— Tipo, você acredita que a atitude das pessoas possa mudar Um dia você<br />
acorda e percebe alg<strong>um</strong>a coisa de <strong>um</strong>a forma como nunca viu antes, e b<strong>um</strong>, <strong>um</strong>a<br />
revelação. Alg<strong>um</strong>a coisa está diferente para sempre. Você acredita nisso<br />
— Não — digo. — Não acredito que nada aconteça de repente. Tiny, por<br />
exemplo Você acha que Tiny se apaixona todos os dias De jeito nenh<strong>um</strong>. Ele<br />
acha que sim, mas, na verdade, não se apaixona. Quero dizer, qualquer coisa<br />
que aconteça de repente provavelmente vai desacontecer de repente, sabe<br />
Ela não diz nada por alg<strong>um</strong> tempo. Apenas anda. Minha mão está para baixo,<br />
perto da dela, e elas se esbarram, mas nada acontece entre nós.<br />
— É. Talvez você tenha razão — diz ela, por fim.<br />
— Por que está perguntando isso — indago.<br />
— Não sei. Não há nenh<strong>um</strong> motivo, de fato.<br />
Nossa língua tem <strong>um</strong>a longa e celebrada história. E, em todo esse tempo,<br />
ninguém jamais fez <strong>um</strong>a “ pergunta aleatória” sobre “ revelações” por “ nenh<strong>um</strong><br />
motivo”. “ Perguntas aleatórias” são as menos aleatórias de todas as perguntas.<br />
— Quem teve a revelação — pergunto.<br />
— Hã, acho que, na verdade, você é, assim, a pior pessoa possível para eu<br />
falar sobre isso — diz ela.<br />
— Como assim<br />
— Sei que foi bastante idiota da minha parte ter ido ao show — continua ela<br />
aleatoriamente. Chegamos a <strong>um</strong> banco de plástico e ela se senta.<br />
— Está tudo bem — respondo, me sentando ao lado dela.
— Na verdade, não está nada bem, assim, na maior escala possível. Acho<br />
que a questão é que estou <strong>um</strong> pouco confusa.<br />
Confusa. O telefone. A voz doce, feminina. Revelações. Finalmente, percebo<br />
a verdade.<br />
— O ex-namorado — digo. Sinto meu estômago afundar, como se estivesse<br />
nadando nas profundezas do mar, e compreendo a verdade: eu gosto dela. Ela é<br />
bonita, e inteligente precisamente da maneira correta (<strong>um</strong> pouco pretensiosa), e<br />
tem <strong>um</strong>a suavidade em seu rosto que aguça tudo que diz, e eu gosto dela, e não<br />
se trata apenas de eu dever ser sincero com ela; eu quero isso. É assim que essas<br />
coisas estão ligadas, acho. — Tenho <strong>um</strong>a ideia — completo.<br />
Posso senti-la me olhando, e ajusto o capuz do meu casaco. Minhas orelhas<br />
queimam, geladas.<br />
Ela pergunta:<br />
— Que ideia<br />
— A ideia é que, por dez minutos, a gente esqueça que tem sentimentos. E<br />
esqueça de proteger a si ou a outras pessoas, e simplesmente diga a verdade. Por<br />
dez minutos. E então podemos voltar a ser idiotas.<br />
— Gostei — concorda ela. — Mas você começa.<br />
Puxo a manga do casaco pra cima e olho o relógio. 10h42.<br />
— Pronta — pergunto. Ela faz que sim com a cabeça. Olho o relógio<br />
novamente. — Ok... Já. Eu gosto de você. E eu não sabia que gostava até<br />
pensar em você naquele show com outro cara, mas agora eu sei, e percebo que<br />
isso faz de mim <strong>um</strong> baitola mas, sim, gosto de você. Acho que você é<br />
sensacional, e muito gata (e, por gata, quero dizer linda, mas não quero dizer<br />
linda porque é clichê, mas você é) e nem me importo que você seja esnobe<br />
quando se trata de música.<br />
— Não é esnobismo; é bom gosto. Já que eu namorava esse garoto e sabia<br />
que ele estaria no show e eu queria ir com você em parte porque sabia que
Randall estaria lá, mas também queria ir mesmo sem você porque sabia que ele<br />
estaria lá, e então ele me viu quando os MDC tocavam “ A Brief Overview of<br />
Time Travel Paradoxes”, e ele estava gritando no meu ouvido que teve <strong>um</strong>a<br />
revelação e que agora sabe que devemos ficar juntos e eu dizia, tipo, acho que<br />
não, e ele citou <strong>um</strong> poema de e. e. c<strong>um</strong>mings que diz que beijos são <strong>um</strong> <strong>destino</strong><br />
melhor que a sabedoria e então acaba que ele pede que os MDC dediquem <strong>um</strong>a<br />
música pra mim, o que era o tipo de coisa que ele nunca teria feito antes, e sinto<br />
que mereço alguém que goste de mim de forma consistente, o que você parece<br />
não fazer... E eu não sei.<br />
— Qual música<br />
— “ Annus Miribalis”. Hã, ele é a única pessoa que conhece o segredo do<br />
meu armário da escola, e pediu que dedicassem ao segredo do meu armário, o<br />
que é simplesmente... Quero dizer, não sei. É isso. É.<br />
Embora esses sejam os minutos da verdade, não conto a ela sobre a música.<br />
Não posso. É constrangedor demais. A questão é que, vindo do seu exnamorado,<br />
é meigo. E vindo do cara que não quis te beijar no seu Volvo<br />
laranja, é simplesmente estranho e talvez até cruel. Ela tem razão ao dizer que<br />
merece alguém consistente, e talvez eu não possa ser isso. Assim mesmo, eu<br />
esculacho o cara.<br />
— Detesto muito caras que ficam citando poemas pras garotas, já que<br />
estamos sendo sinceros. Além disso, a sabedoria é <strong>um</strong> <strong>destino</strong> melhor que a<br />
maioria dos beijos. É certamente melhor que beijar idiotas que só leem poesia<br />
pra poder usá-la com as garotas.<br />
— Meu Deus — diz ela. — O Will Sincero e o Will Normal são tão<br />
fascinantemente diferentes!<br />
— Pra dizer a verdade, prefiro o sujeito com<strong>um</strong>, medíocre, ordinário com sua<br />
despreocupação de olhos vidrados e queixo caído aos caras que tentam acabar<br />
com minha compostura lendo poesia e ouvindo música de qualidade duvidável.
Eu dei duro pra conseguir esse controle. Comi o pão que o diabo amassou na<br />
escola por causa disso. Conquistei essa merda honestamente.<br />
— Bem, você nem conhece ele — retruca ela.<br />
— E nem preciso — respondo. — Olhe, você está certa. Talvez eu não goste<br />
de você da maneira como alguém deveria gostar de você. Não gosto de você da<br />
maneira te-liga-e-lê-<strong>um</strong>-poema-pra-você-toda-noite-antes-de-dormir. Eu sou<br />
maluco, ok Às vezes eu penso, tipo, meu Deus, ela é supergata e inteligente e<br />
meio pretensiosa, mas é <strong>um</strong>a pretensão que só me faz querer ela, e então outras<br />
vezes acho que é <strong>um</strong>a ideia incrivelmente ruim, que namorar você seria como<br />
<strong>um</strong>a série de tratamentos de canal desnecessários intercalados com ocasionais<br />
sessões de beijos e abraços.<br />
— Meu Deus, isso é <strong>um</strong>a ofensa.<br />
— Na verdade não é, porque eu penso as duas coisas! E não tem importância,<br />
porque sou seu Plano B. Talvez eu seja seu Plano B porque me sinto dessa<br />
maneira, e talvez eu me sinta dessa maneira porque sou seu Plano B, mas,<br />
independentemente disso, significa que você deveria estar com Randall e eu<br />
deveria estar em meu estado natural de exílio de relacionamentos autoimposto.<br />
— Tão diferente! — repete ela. — Você pode ser sempre assim<br />
— Provavelmente não — respondo.<br />
— Quantos minutos ainda temos<br />
— Quatro — digo.<br />
E então estamos nos beijando.<br />
Dessa vez sou eu quem me inclino, e ela não se afasta. Está frio, e nossos<br />
lábios estão secos, os narizes <strong>um</strong> pouco molhados, as testas suadas debaixo dos<br />
chapéus de lã. Não posso tocar o rosto dela, embora eu queira, porque estou de<br />
luvas. Mas, meu Deus, quando os lábios dela se abrem, tudo fica quente e seu<br />
hálito açucarado está na minha boca, que provavelmente tem gosto de cachorroquente,<br />
mas eu não ligo. Ela beija como quem devora docemente alg<strong>um</strong>a coisa,
e não sei onde tocá-la porque eu quero ela inteira. Quero tocar seus joelhos e<br />
seus lábios e a barriga e as costas e tudo dela, mas estamos envoltos nessas<br />
roupas todas, então parecemos dois marshmallows batendo <strong>um</strong> contra o outro, e<br />
ela sorri pra mim enquanto ainda nos beijamos porque também sabe o quanto<br />
isso é ridículo.<br />
— Melhor que a sabedoria — pergunta ela.<br />
— Páreo duro — digo, e retribuo o sorriso enquanto a puxo mais pra perto<br />
de mim.<br />
Nunca soube como era querer alguém — não querer namorar essa pessoa ou<br />
o que seja, mas querer ela, querer ela. E agora eu sei. Então talvez eu acredite<br />
em revelações.<br />
Ela se afasta de mim apenas o bastante pra dizer:<br />
— Qual é o meu sobre<strong>nome</strong><br />
— Não tenho a menor ideia — respondo imediatamente.<br />
— Turner. É Turner.<br />
Eu lhe dou <strong>um</strong> último e suave beijo, e então ela volta a se sentar direito,<br />
embora sua mão enluvada permaneça na minha cintura, sobre a jaqueta.<br />
— Está vendo, nós nem mesmo nos conhecemos. Eu tenho de descobrir se<br />
acredito em revelações, Will.<br />
— Não posso acreditar que o <strong>nome</strong> dele seja Randall. Ele não estuda na<br />
Evanston, estuda<br />
— Não, ele estuda na Latina. A gente se conheceu em <strong>um</strong> recital de poesia.<br />
— É claro que sim. Meu Deus, posso até ver o filho da puta: ele é alto e<br />
despenteado, e pratica alg<strong>um</strong> esporte, futebol, provavelmente, mas finge nem<br />
gostar porque tudo de que gosta é poesia, música e você, e ele acha que você é<br />
<strong>um</strong> poema e é o que ele te diz, e ele é banhado em confiança e provavelmente<br />
em spray para o corpo.<br />
Ela ri, sacudindo a cabeça.
— O que foi — pergunto.<br />
— Polo aquático — responde. — Não é futebol.<br />
— Ah, meu Deus. É claro. Polo aquático. É, nada soa mais punk rock que<br />
polo aquático.<br />
Ela pega o meu braço e olha meu relógio.<br />
— Um minuto — diz ela.<br />
— Você fica mais bonita com o cabelo pra trás — digo a ela, apressado.<br />
— Mesmo<br />
— Sim, de outro jeito você fica parecendo <strong>um</strong> pouco com <strong>um</strong> cachorrinho.<br />
— Você fica mais bonito quando fica em pé reto — diz ela.<br />
— Tempo! — exclamo.<br />
— Ok — diz. — Pena que não podemos fazer isso com mais frequência.<br />
— Qual parte — pergunto, sorrindo. Ela se levanta.<br />
— Preciso ir pra casa. Limite idiota de meia-noite pra chegar em casa no fim<br />
de semana.<br />
— É — concordo. Pego o celular. — Vou ligar pra Tiny e dizer a ele que<br />
estamos indo embora.<br />
— Eu vou pegar <strong>um</strong> táxi.<br />
— Só vou ligar…<br />
Mas ela já está na beira da calçada, os dedos dos pés de seu tênis de cano alto<br />
fora do meio-fio, a mão erguida. Um táxi para. Ela me abraça rapidamente —<br />
<strong>um</strong> abraço todo ponta dos dedos e omoplatas — e vai embora sem dizer outra<br />
palavra.<br />
Nunca estive sozinho na cidade assim tão tarde, e está tudo deserto. Ligo pra<br />
Tiny. Ele não atende. A ligação cai no correio de voz. “ Você ligou para o<br />
correio de voz de Tiny Cooper, escritor, produtor e estrela do novo musical<br />
Tiny Dancer: A História de Tiny Cooper. Lamento, mas parece que alg<strong>um</strong>a<br />
coisa mais fabulosa que sua ligação está acontecendo neste momento. Quando os
níveis de fabuloso caírem <strong>um</strong> pouco, ligo pra você. BIPE.”<br />
— Tiny, da próxima vez que você tentar me arr<strong>um</strong>ar com <strong>um</strong>a garota com<br />
<strong>um</strong> namorado secreto, pode pelo menos me avisar que ela tem <strong>um</strong> namorado<br />
secreto Além disso, se não me ligar de volta em cinco minutos, vou supor que<br />
você encontrou <strong>um</strong> caminho de volta pra Evanston. Além disso, você é <strong>um</strong><br />
babaca. Isso é tudo.<br />
Há táxis na Michigan Avenue e <strong>um</strong> fluxo constante de trânsito, mas assim<br />
que entro em <strong>um</strong>a rua lateral, Huron, tudo é silêncio. Passo por <strong>um</strong>a igreja e<br />
então subo a State Street em direção à Frenchy’s. Três quadras antes posso ver<br />
que Tiny e Will não estão mais lá, e ainda assim ando até a frente da loja. Olho<br />
para <strong>um</strong> lado e para o outro da rua, mas não vejo ninguém, e, além do mais,<br />
Tiny jamais cala a boca, portanto eu o ouviria se ele estivesse por perto.<br />
Reviro os detritos no bolso do meu casaco à procura das chaves, e então as<br />
pego. Elas estão envoltas no bilhete que Jane me escreveu, o bilhete da Houdini<br />
do Armário.<br />
Estou andando na rua em direção ao carro quando vejo <strong>um</strong>a sacola plástica<br />
preta na calçada, tremulando no vento. Mano a Mano. Eu deixo a sacola ali,<br />
pensando que provavelmente acabei de fazer o dia de alguém amanhã.<br />
Pela primeira vez em muito tempo, dirijo sem música. Não estou feliz —<br />
não estou feliz por Jane e o Sr. Randall Polo Aquático Cara de Babaca IV, não<br />
estou feliz por Tiny me abandonar sem nem mesmo <strong>um</strong> telefonema, não estou<br />
feliz por minha carteira falsa insuficientemente falsa — mas, no escuro da Lake<br />
Shore, com o carro devorando todos os sons, tem alg<strong>um</strong>a coisa no<br />
entorpecimento dos meus lábios depois de tê-la beijado que quero reter comigo,<br />
alg<strong>um</strong>a coisa que parece pura, que parece a verdade singular.<br />
Chego em casa quatro minutos antes do toque de recolher e encontro meus<br />
pais no sofá, os pés da minha mãe no colo do meu pai. Ele tira o som da TV e<br />
pergunta:
— Como foi<br />
— Bem legal — respondo.<br />
— Eles tocaram “ Annus Miribalis” — pergunta minha mãe, porque eu<br />
gostei tanto dessa música que botei pra ela ouvir. Imagino que ela esteja<br />
perguntando em parte pra parecer moderninha e em parte pra se certificar de que<br />
fui mesmo ao show. Provavelmente vai verificar a relação das músicas tocadas<br />
mais tarde. Eu não fui ao show, é claro, mas sei que eles tocaram essa.<br />
— Sim — digo. — Sim. Foi bom.<br />
Fico olhando pra eles por <strong>um</strong> segundo, e então completo:<br />
— Ok, vou dormir.<br />
— Por que não assiste a <strong>um</strong> pouco de TV conosco — convida meu pai.<br />
— Estou cansado — respondo simplesmente, e me viro pra sair.<br />
Mas não vou pra cama. Vou para o meu quarto, fico on-line e começo a ler<br />
sobre e. e. c<strong>um</strong>mings.<br />
Na segunda-feira, pego <strong>um</strong>a carona cedo pra escola com minha mãe. Nos<br />
corredores, passo por pôster após pôster de Tiny Dancer.<br />
TESTES HOJE NO NONO TEMPO NO TEATRO. PREPARE-SE PARA<br />
CANTAR. PREPARE-SE PARA DANÇAR. PREPARE-SE PARA SER<br />
FABULOSO.<br />
PARA O CASO DE NÃO TER VISTO O PÔSTER ANTERIOR, OS<br />
TESTES PARA O MUSICAL SERÃO REALIZADOS HOJE.<br />
CANTE & DANCE & CELEBRE A TOLERÂNCIA NO MAIS<br />
IMPORTANTE MUSICAL DE NOSSOS TEMPOS.<br />
Acelero pelos corredores e então subo a escada até o armário de Jane e coloco<br />
através das frestas da ventilação o bilhete que escrevi ontem à noite:
Para: A Houdini do Armário<br />
De: Will Grayson<br />
Ref: Um Expert na Esfera dos Bons Namorados<br />
Querida Jane,<br />
Só para você saber: e. e. c<strong>um</strong>mings traiu as duas esposas. Com prostitutas.<br />
Atenciosamente,<br />
Will Grayson
capítulo dez<br />
tiny cooper.<br />
tiny cooper.<br />
tiny cooper.<br />
fico dizendo o <strong>nome</strong> dele sem parar na minha cabeça.<br />
tiny cooper.<br />
tiny cooper.<br />
é <strong>um</strong> <strong>nome</strong> ridículo, e a coisa toda é ridícula, e eu não conseguiria parar se<br />
tentasse.<br />
tiny cooper.<br />
se eu o disser vezes suficientes, talvez aceite o fato de isaac não existir.<br />
começa naquela noite. diante da frenchy’s. ainda estou em choque. não sei<br />
dizer se é estresse pós-tra<strong>um</strong>ático ou tra<strong>um</strong>a pós-estresse. o que quer que seja,<br />
<strong>um</strong>a boa parte da minha vida acabou de ser apagada, e não tenho a menor<br />
vontade de preencher o novo espaço. deixe-o vazio, digo. apenas me deixe<br />
morrer.<br />
tiny, porém, não me deixa. ele está fazendo o jogo do já-passei-por-coisapior,<br />
que nunca funciona, porque ou a pessoa passou por algo que absolutamente<br />
não é pior (“ ele não era louro natural”) ou diz alg<strong>um</strong>a coisa que é tão pior que<br />
você tem a sensação de que seus sentimentos estão sendo completamente<br />
negados. (“ bem, <strong>um</strong>a vez <strong>um</strong> cara me deu <strong>um</strong> bolo n<strong>um</strong> encontro… e acabou<br />
que ele tinha sido comido por <strong>um</strong> leão! a última palavra que ele disse foi o meu<br />
<strong>nome</strong>!”)<br />
ainda assim, ele está tentando ajudar. e acho que devia aceitar, já que estou<br />
precisando.<br />
de sua parte, o.w.g. também está tentando ajudar. tem <strong>um</strong>a garota rondando
no fundo, e não tenho a menor dúvida de que se trata da (in)fame jane. a<br />
princípio, a tentativa de o.w.g. de ajudar é ainda pior que a de tiny.<br />
o.w.g.: sei que é <strong>um</strong>a merda, mas n<strong>um</strong> certo sentido é bom.<br />
isso é tão inspirador quanto <strong>um</strong> filme de hitler transando com a namorada e<br />
se divertindo horrores. vai ao encontro do que eu chamo de a regra da bosta de<br />
passarinho. sabe, quando as pessoas te dizem que é sinal de boa sorte quando<br />
<strong>um</strong> pássaro caga em você e acreditam nisso! eu tenho vontade de sacudi-las e<br />
dizer: “ cara, você não percebe que toda essa superstição foi criada porque<br />
ninguém pôde pensar em nada melhor pra dizer a alguém que tinha acabado de<br />
ser cagado” e que as pessoas fazem isso o tempo todo — e não só com algo tão<br />
temporário quanto bosta de passarinho. perdeu o emprego é <strong>um</strong>a grande<br />
oportunidade! fracassou na vida só tem <strong>um</strong>a direção a seguir: pra cima!<br />
abandonado por <strong>um</strong> namorado que nunca existiu sei que é <strong>um</strong>a merda, mas<br />
n<strong>um</strong> certo sentido é bom!<br />
estou prestes a destituir o.w.g. de seu direito de ser <strong>um</strong> <strong>will</strong> grayson, mas<br />
então ele continua.<br />
o.w.g.: o amor e a verdade ligados <strong>um</strong> ao outro, quero dizer. eles tornam <strong>um</strong><br />
ao outro possível, sabe<br />
não sei o que me espanta mais — o fato de <strong>um</strong> estranho me dar ouvidos, ou<br />
o fato de ele, na técnica, estar absolutamente correto.<br />
o outro <strong>will</strong> grayson se afasta, me deixando com minha nova companhia que<br />
tem o tamanho de <strong>um</strong>a geladeira e que me olha com tamanha sinceridade que<br />
tenho vontade de bater nele.<br />
eu: você não precisa ficar. sério.<br />
tiny: o quê e deixar você aqui no desalento
eu: isso está tão mais além de desalento. isso é desespero completo.<br />
tiny: awwwww.<br />
e então ele me abraça. imagine ser abraçado por <strong>um</strong> sofá. é essa a sensação.<br />
eu (sufocando): estou sufocando.<br />
tiny (acariciando meu cabelo): pronto, pronto.<br />
eu: cara, você não está ajudando.<br />
eu o empurro, afastando-o. ele parece magoado.<br />
tiny: você me chamou de cara!<br />
eu: desculpe. é só que, eu...<br />
tiny: só estou tentando ajudar!<br />
é por isso que eu devia carregar comprimidos extras. acho que nesse<br />
momento nós dois podíamos fazer uso de <strong>um</strong>a dose dupla.<br />
eu (de novo): desculpe.<br />
então ele olha pra mim. e é estranho, porque o que quero dizer é que ele está<br />
me olhando de verdade. o que me deixa completamente desconfortável.<br />
eu: o que foi<br />
tiny: quer ouvir <strong>um</strong>a música de tiny dancer: a história de tiny cooper<br />
eu: como<br />
tiny: é <strong>um</strong> musical que estou produzindo. é baseado na minha vida. acho que<br />
<strong>um</strong>a das canções pode ajudar neste momento.<br />
estamos n<strong>um</strong>a esquina, diante de <strong>um</strong>a sex shop. há pessoas passando.<br />
moradores de chicago — não se pode ser menos musical que as pessoas de
chicago. eu me encontro em <strong>um</strong> estado completamente destruído. minha mente<br />
está infartando. a última coisa que preciso é que a “ prima-dona” cante. no<br />
entanto, eu faço alg<strong>um</strong> protesto decido viver o resto da vida dentro do sistema<br />
do metrô, me alimentando de ratos não. apenas faço que sim com a cabeça,<br />
mudo, porque ele quer tanto cantar a tal canção que eu me sentiria desprezível se<br />
dissesse não.<br />
com <strong>um</strong>a inclinação da cabeça, tiny começa a cantarolar <strong>um</strong> pouco pra si<br />
mesmo. assim que encontra o tom, ele fecha os olhos, abre os braços e canta:<br />
pensei que você dos meus sonhos realidade iria fazer<br />
mas não era você, não era você<br />
pensei que dessa vez em tudo novo iria crer<br />
mas não era você, não era você<br />
imaginei todas as coisas que a gente iria viver<br />
mas não era você, não era você<br />
e agora sinto em meu coração a calamidade<br />
não é verdade, não é verdade<br />
posso ser grandalhão e medroso parecer<br />
mas a minha fé no amor não irei perder!<br />
do curso com frequência eu resvalo<br />
mas não vou desmontar de meu fiel cavalo!<br />
não era você, agora eu sei<br />
mas há mais na vida do que eu imaginei<br />
pensei que você fosse <strong>um</strong> garoto com visão,
seu convencido, egoísta, megera aberração<br />
você me chutou até que roxo me vi<br />
mas com essa experiência eu cresci<br />
é verdade, e eu quero mais é que vá se foder<br />
existem caras melhores pra conhecer<br />
não vai ser você, comprende vous<br />
nunca, jamais será tu.<br />
tiny não se limita a cantar esses versos — ele os interpreta. é como <strong>um</strong><br />
desfile saindo de sua boca. não tenho a menor dúvida de que as palavras<br />
atravessam o lago michigan e se espalham por quase todo o canadá, seguindo<br />
pro polo norte. os fazendeiros de saskatchewan estão chorando. papai noel está<br />
se virando pra sra. noel e dizendo: “ que porra é essa” estou completamente<br />
mortificado, mas aí tiny abre os olhos e me olha com <strong>um</strong> carinho tão óbvio que<br />
não tenho ideia do que fazer. ninguém tenta me oferecer algo assim há séculos.<br />
exceto isaac, e ele não existe. não importa o que se possa dizer de tiny, ele<br />
decididamente existe.<br />
ele me pergunta se quero dar <strong>um</strong>a volta. mais <strong>um</strong>a vez, faço que sim com a<br />
cabeça, mudo. não é como se eu tivesse algo melhor para fazer.<br />
eu: quem é você<br />
tiny: tiny cooper!<br />
eu: você não pode se chamar tiny de verdade.<br />
tiny: não. isso é ironia.<br />
eu: ah.<br />
tiny (fazendo tsc): não precisa ficar fazendo “ ah” pra mim. não tenho<br />
problemas com isso. tenho ossos largos.
eu: cara, não são só os seus ossos.<br />
tiny: isso só significa que tem mais de mim pra amar!<br />
eu: mas isso requer muito mais esforço.<br />
tiny: querido, eu valho a pena.<br />
o bizarro é que preciso admitir que tem alg<strong>um</strong>a coisa <strong>um</strong> pouco atraente nele.<br />
não consigo entender. é como, sabe quando às vezes você vê <strong>um</strong> bebê sexy<br />
espere, isso soa péssimo. não é isso que quero dizer. mas é, assim, embora seja<br />
grande como <strong>um</strong>a casa (e também não estou falando de <strong>um</strong>a casa pobre), ele tem<br />
a pele superlisa e olhos muito verdes e tudo está em, assim, proporção. por<br />
isso, não sinto a repulsa que esperaria sentir em relação a alguém com três vezes<br />
o meu tamanho. quero dizer a ele que eu deveria estar por aí matando pessoas<br />
agora, não dando <strong>um</strong>a volta com ele. mas tiny tira <strong>um</strong> pouco do homicídio da<br />
minha cabeça, o que não quer dizer que isso não vai estar lá mais tarde.<br />
enquanto andamos até o millenni<strong>um</strong> park, tiny me conta tudo sobre tiny<br />
dancer e como ele batalhou para escrever, atuar, dirigir, produzir, coreografar,<br />
desenhar o figurino, projetar a il<strong>um</strong>inação, o cenário e buscar patrocínio. ele<br />
parece fora de si e como estou me esforçando para sair de mim também, tento<br />
segui-lo. como era no caso com maura (porra de bruxa anta vadia mussolini alqaeda<br />
darth vader não entidade), eu não preciso dizer nada, o que pra mim está<br />
bom.<br />
quando chegamos ao parque, tiny segue em linha reta pro feijão. por alg<strong>um</strong>a<br />
razão, não me surpreendo.<br />
o feijão é essa escultura verdadeiramente idiota que fizeram pro millenni<strong>um</strong><br />
park — creio que na virada do milênio —, e que originalmente tinha outro<br />
<strong>nome</strong>, mas todo mundo começou a chamá-la de feijão e o <strong>nome</strong> pegou. ela é<br />
basicamente <strong>um</strong> grande feijão de metal reflexivo sob o qual você pode andar e<br />
ver sua imagem distorcida. já estive aqui antes em excursões da escola, mas<br />
nunca com alguém tão imenso quanto tiny. em geral, é difícil a princípio
localizar-se no reflexo, mas dessa vez sei que sou o graveto ondulante de pé<br />
perto da imensa bolha de h<strong>um</strong>anidade. tiny dá <strong>um</strong>a risadinha enquanto se vê<br />
dessa forma. <strong>um</strong>a genuína risada hi-hi-hi. odeio quando as garotas fazem essa<br />
babaquice, porque é sempre tão falso. mas com tiny não é falso, nem <strong>um</strong> pouco.<br />
é como se a vida estivesse lhe fazendo cócegas.<br />
depois de tiny tentar <strong>um</strong>a pose de bailarina, de batedor de baseball, de vouincendiar-a-pista-de-dança<br />
e de noviça-rebelde no reflexo do feijão, ele me leva a<br />
<strong>um</strong> banco que dá pra lake shore drive. penso que ele vá estar todo suado porque,<br />
vamos combinar, a maioria dos gordos fica suada só de levantar o dedo<br />
mindinho até a boca. tiny, porém, é fabuloso demais pra suar.<br />
tiny: então, conte seus problemas pro tiny.<br />
não consigo responder, porque da maneira como ele fala, é como se você<br />
pudesse substituir a palavra “ tiny” pela palavra “ mamãe” e a frase ainda soaria a<br />
mesma.<br />
eu: o tiny pode falar normalmente<br />
tiny (em sua melhor voz de anderson cooper): sim, ele pode. mas não é nem<br />
de perto tão divertido quando ele fala assim.<br />
eu: é que você soa tão gay.<br />
tiny: h<strong>um</strong>... tem <strong>um</strong> motivo pra isso<br />
eu: sim, mas... não sei. não gosto de gente gay.<br />
tiny: mas certamente você deve gostar de si mesmo<br />
puta que o pariu, quero ser do planeta desse garoto. ele está falando sério<br />
olho pra ele e vejo que, sim, está.<br />
eu: por que eu deveria gostar de mim ninguém mais gosta.<br />
tiny: eu gosto.
eu: você não me conhece.<br />
tiny: mas quero conhecer.<br />
é tudo tão idiota, porque de repente eu estou gritando<br />
eu: cale a boca! só cale a boca!<br />
e ele parece tão magoado que eu tenho de dizer<br />
eu: não, ah, não é você. ok você é legal. eu não sou. eu não sou legal,<br />
entendeu pare com isso!<br />
porque agora ele não parece magoado; parece triste. triste por mim. ele me<br />
vê. cristo.<br />
eu: isso é tão idiota.<br />
é como se ele soubesse que, se me tocar, eu provavelmente vou me<br />
descontrolar e começar a bater nele e começar a chorar e nunca mais vou querer<br />
vê-lo. assim, em vez disso, ele simplesmente fica ali sentado enquanto eu apoio<br />
a cabeça entre as mãos, como se estivesse literalmente querendo pôr a cabeça no<br />
lugar. e a questão é que ele não precisa me tocar, porque quando alguém como<br />
tiny cooper está perto de você, você tem consciência disso. tudo que ele precisa<br />
fazer é ficar, e você sabe que ele está ali.<br />
eu: merda merda merda merda merda merda merda<br />
e aqui está a coisa doentia, deturpada: parte de mim acha que eu mereço isso.<br />
que talvez, se eu não fosse tão babaca, isaac teria sido real. se eu não fosse <strong>um</strong>a<br />
pessoa tão imperfeita, alg<strong>um</strong>a coisa certa poderia me acontecer. não é justo,<br />
porque eu não pedi que meu pai fosse embora, e não pedi pra ser deprimido, e
não pedi que não tivéssemos dinheiro, e não pedi pra querer trepar com garotos,<br />
e não pedi pra ser tão idiota, e não pedi pra não ter amigos de verdade, e não<br />
pedi pra que metade da merda que sai da minha boca saísse da minha boca. tudo<br />
que eu queria era <strong>um</strong>a porra de <strong>um</strong>a folga, <strong>um</strong>a droga de <strong>um</strong>a coisa boa, e<br />
obviamente era demais pedir isso, era demais querer isso.<br />
não entendo por que esse garoto que escreve musicais sobre si mesmo está<br />
sentado comigo. sou assim tão patético por acaso ele ganha <strong>um</strong>a medalha de<br />
honra ao mérito por catar os pedaços de <strong>um</strong> ser h<strong>um</strong>ano destroçado<br />
afasto a cabeça das mãos. isso não está ajudando. quando volto à tona, olho<br />
pra tiny e acho tudo estranho de novo. ele não só está me observando — ele está<br />
me vendo. os olhos dele estão praticamente reluzindo.<br />
tiny: eu nunca beijo no primeiro encontro.<br />
olho pra ele sem entender nada, e então ele acrescenta:<br />
tiny: ... mas às vezes abro exceções.<br />
e, agora meu choque de antes está se transformando em <strong>um</strong> tipo diferente de<br />
choque, porque naquele momento, embora seja enorme, e embora não me<br />
conheça absolutamente, e embora esteja ocupando aproximadamente três vezes<br />
mais espaço no banco que eu, tiny cooper é surpreendente e inegavelmente<br />
atraente. sim, a pele dele é suave, o sorriso gentil, e principalmente os olhos —<br />
os olhos têm essa louca esperança e louco anseio e ridícula vertigem, e embora<br />
eu ache completamente idiota e embora eu nunca vá sentir as coisas que ele<br />
sente, no mínimo não me importo com a ideia de beijá-lo e ver o que acontece.<br />
ele está começando a ficar vermelho por causa do que disse, e na verdade ele é<br />
tímido demais pra se inclinar pra mim, então eu me pego ficando de pé pra<br />
beijá-lo, mantendo os olhos abertos porque quero ver a surpresa dele e ver sua<br />
felicidade porque não tem como eu ver nem mesmo sentir a minha própria.
não é como beijar <strong>um</strong> sofá. é como beijar <strong>um</strong> garoto. finalmente, <strong>um</strong> garoto.<br />
ele fecha os olhos. sorri quando paramos.<br />
tiny: não foi assim que imaginei que a noite fosse terminar.<br />
eu: eu que o diga.<br />
tenho vontade de fugir. não com ele. só não quero voltar pra escola ou pra<br />
vida. se minha mãe não estivesse esperando por mim, eu provavelmente faria<br />
isso. tenho vontade de fugir porque perdi tudo. tenho certeza de que, se dissesse<br />
isso pra tiny cooper, ele ressaltaria que perdi tanto as coisas boas quanto as<br />
ruins. me diria que o sol vai nascer amanhã, ou alg<strong>um</strong>a merda do gênero. mas<br />
eu não acreditaria nele. não acredito em nada disso.<br />
tiny: ei — eu nem sei o seu <strong>nome</strong>.<br />
eu: <strong>will</strong> grayson.<br />
com isso, tiny dá <strong>um</strong> pulo do banco, quase me jogando na grama.<br />
tiny: não!<br />
eu: hã... sim<br />
tiny: bem, isso não é a cereja do bolo<br />
com isso, ele começa a rir e a gritar<br />
tiny: eu beijei <strong>will</strong> grayson! eu beijei <strong>will</strong> grayson!<br />
quando ele vê que isso me apavora mais que tubarões, volta a sentar e diz<br />
tiny: fico feliz que tenha sido você.<br />
penso no outro <strong>will</strong> grayson. me pergunto como ele está se saindo com jane.
eu: não é como se eu fosse material pra seventeen, né<br />
os olhos de tiny se il<strong>um</strong>inam.<br />
tiny: ele te falou sobre isso<br />
eu: sim.<br />
tiny: ele foi roubado. fiquei tão furioso que escrevi <strong>um</strong>a carta pro editor. mas<br />
eles nunca a publicaram.<br />
sinto essa profunda pontada de ciúme que o.w.g. tenha <strong>um</strong> amigo como tiny.<br />
não consigo imaginar alguém escrevendo <strong>um</strong>a carta pro editor por minha causa.<br />
não posso imaginar alguém sequer dando <strong>um</strong>a declaração pro meu obituário.<br />
penso em tudo que aconteceu, e como, quando eu chegar em casa, não vou<br />
ter ninguém pra quem contar. então olho pra tiny e, surpreendendo a mim<br />
mesmo, dou outro beijo nele. porque, afinal, que se foda. totalmente que se<br />
foda.<br />
isso continua por alg<strong>um</strong> tempo. estou ficando totalmente gigante por beijar<br />
alguém gigante. e no meio dos beijos ele me pergunta onde moro, o que<br />
aconteceu esta noite, o que quero fazer da minha vida, qual meu sorvete<br />
preferido. respondo às perguntas que posso (basicamente, onde moro e o sabor<br />
do sorvete) e digo a ele que não tenho a menor ideia em relação ao resto.<br />
não há ninguém observando a gente, mas estou começando a achar que tem.<br />
então paramos e não posso deixar de pensar em isaac, e em como, embora toda<br />
essa coisa do tiny seja <strong>um</strong> desenrolar interessante, no geral as coisas ainda são<br />
horríveis, do tipo <strong>um</strong> furacão-destruiu-a-minha-casa. tiny é tipo o único cômodo<br />
que restou de pé. sinto que lhe devo alg<strong>um</strong>a coisa por isso, então digo<br />
eu: estou feliz que você exista.<br />
tiny: estou feliz por existir neste momento.<br />
eu: você não tem ideia do quanto está enganado a meu respeito.
tiny: você não tem ideia do quanto está enganado a respeito de si mesmo.<br />
eu: pare com isso.<br />
tiny: só se você parar.<br />
eu: estou avisando você.<br />
não tenho a menor ideia do que a verdade tem a ver com o amor, e viceversa.<br />
não estou nem pensando em termos de amor aqui. é muito, muito, muito<br />
cedo pra isso. mas acho que estou pensando em termos da verdade. quero que<br />
isso seja verdadeiro. e mesmo enquanto protesto com tiny e protesto comigo<br />
mesmo, a verdade está se tornando cada vez mais clara.<br />
é hora de descobrirmos como isso tudo vai funcionar.
capítulo onze<br />
Estou apoiado no meu armário, dez minutos antes de tocar o primeiro sinal,<br />
quando Tiny chega em disparada pelo corredor, em seus braços <strong>um</strong> monte de<br />
cartazes anunciando a audição pra Tiny Dancer.<br />
— Grayson! — grita.<br />
— Oi — respondo. Eu me levanto, pego <strong>um</strong> pôster dele e o seguro contra a<br />
parede. Ele larga os outros no chão e começa a prender com fita adesiva,<br />
rasgando a mesma com os dentes. Ele cola o pôster, então pegamos os que ele<br />
largou no chão, damos alguns passos e repetimos o processo. E o tempo todo<br />
ele fala. O coração dele bate, e as pálpebras piscam, e ele respira, e os rins<br />
produzem toxinas, e ele fala, e tudo isso de modo totalmente involuntário.<br />
— Me desculpe por não voltar pra Frenchy’s pra encontrar você, mas<br />
imaginei que você deduziria que peguei <strong>um</strong> táxi, o que, de fato, fiz, e de<br />
qualquer forma, Will e eu tínhamos andado até o Feijão e, assim, Grayson, eu<br />
sei que já disse isso antes, mas eu gosto dele de verdade. Afinal, é preciso<br />
gostar mesmo de alguém pra andar até o Feijão com essa pessoa e ouvi-la falar<br />
do namorado, que nem era homem, e eu ainda cantei pra ele. E Grayson, estou<br />
falando sério: dá pra acreditar que beijei Will Grayson Eu. Beijei. Will.<br />
Grayson. Porra. E nada pessoal, porque, como já te disse <strong>um</strong> zilhão de vezes,<br />
acho você <strong>um</strong> cara muito gente boa, mas teria apostado meu colhão esquerdo<br />
que nunca ficaria com Will Grayson, sabe<br />
— Aham… — digo, mas ele não espera nem eu chegar ao fim do ham para<br />
recomeçar.<br />
— E ele me manda mensagens, assim, a cada 42 segundos, e as mensagens<br />
dele são brilhantes, o que é bacana porque é só <strong>um</strong>a vibraçãozinha agradável na<br />
perna, <strong>um</strong> simples lembrete-na-coxa de que ele... Olha, chegou <strong>um</strong>a.<br />
Eu continuo segurando o pôster enquanto ele tira o telefone do bolso do
jeans.<br />
— Aww.<br />
— O que diz — pergunto.<br />
— É confidencial. Acho que ele meio que confia em mim pra não comentar<br />
as mensagens, sabe<br />
Eu podia ressaltar o quão ridículo era alguém confiar em Tiny pra não falar<br />
sobre alg<strong>um</strong>a coisa, mas não faço isso. Ele cola o pôster e começa a andar pelo<br />
corredor. Eu o sigo.<br />
— Bem, fico feliz que sua noite tenha sido tão incrível. Enquanto isso, eu<br />
estava sendo surpreendido por <strong>um</strong> garoto que joga polo aquático, ex-namorado<br />
de Ja…<br />
— Bem, em primeiro lugar — diz, me cortando —, que importância isso<br />
tem para você Você não está interessado em Jane. Em segundo, eu não o<br />
chamaria de garoto. Ele é <strong>um</strong> homem. Um ex-namorado esculpido,<br />
imaculadamente concebido e sarado.<br />
— Você não está ajudando.<br />
— Só estou dizendo; ele não faz o meu tipo, mas é <strong>um</strong>a verdadeira maravilha<br />
pra se admirar. E que olhos! Como safiras queimando nos cantos escuros do seu<br />
coração. Mas, seja como for, eu não sabia que eles tinham sido namorados. Eu<br />
nem tinha ouvido falar do cara. Só pensei que fosse <strong>um</strong> cara bonito dando em<br />
cima dela. Jane nunca fala comigo sobre homens. Não sei por quê; sou<br />
totalmente confiável em relação a esse tipo de coisa.<br />
Tem sarcasmo na voz — só o suficiente — pra me fazer rir. Ele fala por cima<br />
da risada.<br />
— É impressionante quanta coisa não sabemos sobre as pessoas, sabe<br />
Fiquei pensando nisso o fim de semana todo falando com Will. Ele se<br />
apaixonou por Isaac, que acabou sendo alguém inventado. Isso parece algo que<br />
só acontece na internet, mas na verdade acontece o tempo todo na vida real
também.<br />
— Bem, Isaac não foi inventado. Ele era apenas <strong>um</strong>a garota. Quero dizer,<br />
aquela tal Maura é Isaac.<br />
— Não, ela não é — diz ele simplesmente.<br />
Estou segurando o último dos pôsteres enquanto ele o prega na porta de <strong>um</strong><br />
banheiro masculino. O cartaz diz: VOCÊ É FABULOSO SE FOR,<br />
APAREÇA HOJE NO NONO TEMPO NO AUDITÓRIO. Ele termina de colar<br />
e então nos dirigimos para a aula de pré-cálculo, os corredores começando a se<br />
encher.<br />
A confusão de <strong>nome</strong>s Isaac/Maura me faz lembrar de <strong>um</strong>a coisa.<br />
— Tiny — digo.<br />
— Grayson — responde ele.<br />
— Você pode, por favor, dar outro <strong>nome</strong> àquele personagem em sua peça, o<br />
coadjuvante<br />
— Gil Wrayson<br />
Faço que sim com a cabeça. Tiny levanta as mãos e anuncia:<br />
— Não posso mudar o <strong>nome</strong> de Gil Wrayson! É tematicamente vital pra toda<br />
a produção.<br />
— Sinceramente, não estou com h<strong>um</strong>or para as suas palhaçadas — afirmo.<br />
— Não estou de palhaçada com você. O <strong>nome</strong> dele tem de ser Wrayson.<br />
Pronuncie o <strong>nome</strong> devagar, atento ao som. Ray-sin. Rays-in. Tem duplo<br />
sentido: Gil Wrayson está passando por <strong>um</strong>a transformação. E precisa deixar os<br />
raios de sol entrarem, aqueles raios vindo sob a forma das canções de Tiny, a<br />
fim de se transformar em seu verdadeiro eu. Não mais ser <strong>um</strong>a ameixa, mas <strong>um</strong>a<br />
uva-passa banhada de sol. Você não vê<br />
— Ah, vamos lá, Tiny. Se isso é verdade, então por que diabos o <strong>nome</strong> dele<br />
é Gil<br />
Isso o detém por <strong>um</strong> momento.
— H<strong>um</strong>m — diz, olhando o corredor ainda quieto. — O <strong>nome</strong> simplesmente<br />
sempre me pareceu certo. Mas suponho que eu possa mudar. Vou pensar a<br />
respeito, ok<br />
— Obrigado — respondo.<br />
— Por nada. Agora deixe de frescura.<br />
— O quê<br />
Chegamos aos armários, e, embora outras pessoas possam ouvi-lo, ele fala<br />
alto como sempre.<br />
— Blá-blá, Jane não gosta de mim, embora eu também não goste dela. Bláblá,<br />
Tiny deu o meu <strong>nome</strong> a <strong>um</strong> personagem na peça dele. Tipo, há pessoas no<br />
mundo com problemas de verdade, sabe É preciso manter a perspectiva.<br />
— Cara, VOCÊ está ME dizendo pra manter a perspectiva Jesus Cristo,<br />
Tiny! Eu só queria saber se Jane tinha namorado.<br />
Tiny fecha os olhos e respira fundo, como se fosse eu que o estivesse<br />
irritando.<br />
— Como eu disse, eu nem sabia que ele existia, ok Mas então eu o vi<br />
conversando com ela, e dava pra ver só pela postura dele que o cara estava<br />
interessado nela. E, quando ele se afastou, tive de ir até ela e perguntar quem ele<br />
era, e ela disse: “ Meu ex-namorado”, e eu disse: “ Ex! Você precisa resgatar<br />
aquele gato de volta imediatamente!”<br />
Estou olhando pra lateral larga do rosto de Tiny Cooper. Ele está olhando<br />
pro outro lado, pro armário. Ele parece meio entediado, mas nesse momento<br />
suas sobrancelhas se erguem, e por <strong>um</strong> segundo eu penso que ele percebeu o<br />
quanto estou puto com o que acabou de dizer, mas ele leva a mão ao bolso do<br />
jeans e pega o telefone.<br />
— Você não fez isso — digo.<br />
— Desculpe, sei que não devia ler mensagens enquanto estamos<br />
conversando, mas estou apaixonado no momento.
— Não estou falando de mensagens, Tiny. Você não falou pra Jane voltar<br />
com aquele cara.<br />
— Mas é claro que falei, Grayson — responde ele, ainda olhando pro<br />
telefone. Agora ele está escrevendo, respondendo a Will enquanto conversamos.<br />
— Ele era lindo, e você me disse que não gostava dela. Então agora gosta<br />
Garoto típico; está interessado desde que ela não esteja.<br />
Tenho vontade de socá-lo no rim por estar errado e por estar certo. Mas isso<br />
só me machucaria. Não sou nada além de <strong>um</strong> pequeno personagem na história<br />
de Tiny Cooper, e não tem nada que eu possa fazer exceto ser empurrado de <strong>um</strong><br />
lado pro outro até que o ensino médio acabe, e eu possa finalmente escapar de<br />
sua órbita, finalmente deixando de ser <strong>um</strong>a lua girando em torno de seu gordo<br />
planeta.<br />
E então percebo o que posso fazer. A arma de que disponho. Regra 2: Calar a<br />
boca. Passo por ele e me dirijo à aula.<br />
— Grayson — chama ele.<br />
Não respondo.<br />
Não digo nada na aula de pré-cálculo quando ele milagrosamente se coloca<br />
em sua carteira. E não digo nada quando ele me diz que nesse momento não sou<br />
sequer seu Will Grayson favorito. Não digo nada quando ele me diz que enviou<br />
45 mensagens ao outro Will Grayson nas últimas 24 horas, e sinceramente acho<br />
que isso é demais. Não digo nada quando ele segura o telefone debaixo do meu<br />
nariz, me mostrando alg<strong>um</strong> texto de Will Grayson que supostamente vou<br />
adorar. Não digo nada quando ele me pergunta por que diabos não estou falando<br />
com ele. Não digo nada quando ele diz: “ Grayson, você simplesmente estava<br />
me dando nos nervos e eu só disse aquilo tudo pra fazer você calar a boca. Mas<br />
não era minha intenção te calar tanto assim.” Não digo nada quando ele diz:<br />
“ Não, sério, fala comigo”, e nada quando ele fala baixinho, mas ainda assim<br />
alto o suficiente pra que as pessoas ouçam: “ De verdade, Grayson, me desculpe,
ok Me desculpe.”<br />
E então, felizmente, a aula começa.<br />
Cinquenta minutos depois, o sinal toca, e Tiny me segue, saindo pro<br />
corredor como <strong>um</strong>a sombra inchada, dizendo: “ Sério, vai, isso é ridículo.” Não<br />
se trata nem mais de querer torturá-lo. Só estou me deleitando na glória de não<br />
precisar ouvir a carência e a impotência da minha própria voz.<br />
No almoço, me sento sozinho na extremidade de <strong>um</strong>a mesa comprida onde<br />
estão vários membros do meu antigo Grupo de Amigos. Um cara chamado<br />
Alton diz: “ E aí, viado” e eu respondo: “ Tudo bem”, e então esse outro cara,<br />
Cole, pergunta: “ Você vai na festa de Clint Vai ser irado”, o que me faz pensar<br />
que esses caras, na verdade, não me rejeitam, embora <strong>um</strong> deles tenha acabado de<br />
me chamar de viado. Aparentemente, ter Tiny Cooper como seu melhor-e-único<br />
amigo não o prepara bem para as complexidades da socialização masculina.<br />
Eu digo:<br />
— É, vou tentar dar <strong>um</strong>a passada lá — embora eu não saiba quando vai ser a<br />
festa.<br />
Então <strong>um</strong> garoto careca chamado Ethan diz:<br />
— Ei, você vai fazer teste pra peça gay de Tiny<br />
— Meu Deus, não — respondo.<br />
— Acho que eu vou — diz ele, e eu levo <strong>um</strong> segundo tentando entender se<br />
ele está brincando ou não. Todos começam a rir e falar ao mesmo tempo,<br />
querendo fazer com que seu insulto seja o primeiro, mas ele simplesmente ri e<br />
diz:<br />
— As garotas adoram homens sensíveis. — Ele gira na cadeira e grita pra<br />
mesa de trás, onde a namorada dele, Anita, está sentada. — Baby, eu não fico<br />
sexy cantando<br />
— E como — responde ela.
Então ele olha, satisfeito, pra todos nós. Ainda assim, os garotos zombam<br />
dele. Eu me mantenho praticamente calado, mas, no fim do meu sanduíche de<br />
queijo e presunto, estou rindo das piadas deles nos momentos apropriados, o<br />
que, acho eu, significa que estou almoçando com eles.<br />
Tiny me encontra quando estou colocando a bandeja na esteira. Jane está com<br />
ele, e ambos me acompanham. A princípio, ninguém fala. Jane está usando <strong>um</strong><br />
suéter com capuz verde militar, o capuz cobrindo sua cabeça. Ela parece quase<br />
injustamente linda, como se o tivesse escolhido com o propósito expresso de<br />
me provocar. E diz:<br />
— Hilária essa, Grayson. Tiny me disse que você fez voto de silêncio.<br />
Faço que sim com a cabeça.<br />
— Por quê — pergunta.<br />
— Hoje só estou falando com garotas bonitas — respondo, e sorrio.<br />
Tiny tem razão — a existência do cara do polo aquático torna mais fácil<br />
flertar.<br />
Jane sorri.<br />
— Acho que Tiny é <strong>um</strong>a garota bastante bonita.<br />
— Mas por quê — implora Tiny quando dobro em <strong>um</strong> corredor. O<br />
labirinto de corredores idênticos, diferenciados apenas por diferentes murais do<br />
Wildkit, que cost<strong>um</strong>ava me apavorar. Deus, pensar que naquela época meu<br />
maior medo era <strong>um</strong> corredor. — Grayson, por favor. Você está me MATANDO.<br />
Tenho consciência de que até onde me lembro, pela primeira vez, Tiny e<br />
Jane estão me seguindo.<br />
Tiny decide me ignorar, e diz a Jane que espera <strong>um</strong> dia ter mensagens<br />
suficientes de Will Grayson pra fazer <strong>um</strong> livro, porque as mensagens dele são<br />
como poesia.<br />
Antes que eu possa me conter, digo:<br />
— “ Devo igualar-te a <strong>um</strong> dia de verão” passa a ser “ vc é quente q nem
agosto”.<br />
— Ele fala! — grita Tiny e passa o braço em volta do meu ombro. — Eu<br />
sabia que você ia se recuperar! Ele agora será conhecido como Phil Wrayson!<br />
Phil Wrayson, que deve Phil-trar os raios de sol de Tiny, a fim de se tornar seu<br />
verdadeiro eu. É perfeito. — Faço que sim com a cabeça. As pessoas ainda<br />
concluirão que sou eu, mas ele… Bem, ele está fingindo tentar.<br />
— Ah, mensagem! — Tiny pega o telefone, lê a mensagem, deixa escapar<br />
<strong>um</strong> sonoro suspiro e começa a tentar digitar <strong>um</strong>a resposta com as mãos<br />
enormes. Enquanto ele digita com os polegares, eu digo:<br />
— Eu escolho quem vai fazer esse papel.<br />
Tiny faz que sim com a cabeça, distraído.<br />
— Tiny — repito —, eu escolho quem vai fazer esse papel.<br />
Ele levanta os olhos.<br />
— O quê Não, não, não. Eu sou o diretor. Sou o autor, o produtor, o<br />
diretor, o assistente de figurino e o diretor de elenco.<br />
E Jane intervém:<br />
— Vi você fazer que sim com a cabeça, Tiny. Você já concordou.<br />
Ele apenas ri com desdém, então chegamos ao meu armário, e Jane meio que<br />
me puxa pelo cotovelo, me afastando de Tiny, e diz baixinho:<br />
— Sabe, você não pode dizer coisas assim.<br />
— Eu erro falando, erro ficando calado — explico, sorrindo.<br />
— Eu só… Grayson, eu só… Você não pode dizer essas coisas.<br />
— Que coisas<br />
— Sobre garotas bonitas.<br />
— Por que não — pergunto.<br />
— Porque ainda estou pesquisando sobre a relação entre polo aquático e<br />
revelações. — Ela tenta <strong>um</strong> sorriso breve, de lábios apertados.<br />
— Quer ir aos testes de Tiny Dancer comigo — pergunto. Os polegares de
Tiny ainda estão digitando sem parar.<br />
— Grayson, não posso… Quero dizer, estou meio comprometida, sabe<br />
— Não estou te convidando pra <strong>um</strong> encontro. Estou chamando você pra <strong>um</strong>a<br />
atividade extracurricular. Vamos sentar no fundo do auditório e rir dos garotos<br />
fazendo o teste pro meu papel.<br />
Não leio a peça de Tiny desde o verão passado, mas, pelo que me lembro,<br />
são uns nove papéis importantes: Tiny, a mãe dele (que faz <strong>um</strong> dueto com<br />
Tiny), Phil Wrayson, os alvos amorosos de Tiny: Kaleb e Barry e <strong>um</strong> casal<br />
hétero fictício que faz o personagem de Tiny acreditar em si mesmo ou algo do<br />
gênero. E há também <strong>um</strong> coro. No total, Tiny precisa de trinta pessoas no<br />
elenco. Calculo que devam aparecer <strong>um</strong>as 12 pessoas na audição.<br />
Mas, quando chego ao auditório depois da aula de química, já tem pelo<br />
menos cinquenta pessoas em torno do palco e nas primeiras fileiras de cadeira,<br />
esperando que os testes comecem. Gary corre de <strong>um</strong> lado pro outro entregando a<br />
todos alfinetes de fralda e pedaços de papel com números escritos à mão, os<br />
quais os candidatos prendem em suas roupas. E, como se trata de gente de<br />
teatro, estão todos falando. Todos eles. Ao mesmo tempo. Não precisam ser<br />
ouvidos; só precisam falar.<br />
Eu me sento na última fileira, <strong>um</strong>a cadeira antes do corredor, para que Jane<br />
possa ficar com o corredor. Ela chega logo depois e se senta ao meu lado, avalia<br />
a situação por <strong>um</strong> instante e então diz:<br />
— Em alg<strong>um</strong> lugar ali na frente, Grayson, tem alguém que terá de olhar<br />
dentro da sua alma a fim de incorporar você corretamente.<br />
Estou prestes a responder quando a sombra de Tiny passa sobre nós. Ele se<br />
ajoelha ao nosso lado, entregando a cada <strong>um</strong> de nós <strong>um</strong>a prancheta.<br />
— Por favor, escrevam <strong>um</strong> breve comentário sobre cada pessoa que vocês<br />
considerariam para o papel de Phil. Além disso, estou pensando em escrever <strong>um</strong><br />
pequeno papel pra <strong>um</strong> personagem chamado Janey.
Então ele segue marchando confiantemente pelo corredor.<br />
— Pessoal! — grita. — Pessoal, por favor, sentem-se.<br />
As pessoas correm para as primeiras fileiras enquanto Tiny corre para o palco.<br />
— Não temos muito tempo — diz ele, com a voz estranhamente afetada. Está<br />
falando como pensa que o pessoal de teatro fala, acho. — Primeiro, preciso saber<br />
se vocês sabem cantar. Um minuto de <strong>um</strong>a música pra cada <strong>um</strong>; se forem<br />
chamados de volta, então vão para a leitura de <strong>um</strong> personagem. Podem escolher<br />
sua música, mas saibam de <strong>um</strong>a coisa: Tiny. Cooper. Odeia. “ Over”. “ The”.<br />
“ Rainbow”.<br />
Ele desce do palco com <strong>um</strong> pulo dramático, e então grita:<br />
— Número 1, me faça amar você.<br />
Número 1, <strong>um</strong>a loura tímida que se identifica como Marie F, sobe a escada<br />
ao lado do palco e se curva para <strong>um</strong> microfone. Ela olha por trás da franja na<br />
direção dos fundos do auditório, onde se lê em letras maiúsculas grandes e roxas<br />
WILDKITS SÃO IRADOS. Então prossegue, provando o contrário com <strong>um</strong>a<br />
interpretação incrivelmente ruim de <strong>um</strong>a baladinha da Kelly Clarkson.<br />
— Ah, meu Deus — diz Jane baixinho. — Ah, Deus. Faça com que isso<br />
termine logo.<br />
— Não sei do que você está falando — murmuro. — Essa garota é perfeita<br />
pro papel de Janey. Ela canta desafinado, adora pop comercial e namora baitolas.<br />
— Ela me dá <strong>um</strong>a cotovelada.<br />
Número 2 é homem, <strong>um</strong> garoto robusto com cabelo comprido demais pra ser<br />
considerado normal, porém curto demais pra ser considerado comprido. Ele<br />
canta <strong>um</strong>a música de <strong>um</strong>a banda aparentemente chamada Damn Yankees — Jane<br />
sabe quem são, naturalmente. Não sei como é a versão original, mas a<br />
interpretação macaco gritador a cappella desse cara deixa muito a desejar.<br />
— Parece que alguém acabou de dar <strong>um</strong> chute no saco dele — diz Jane.<br />
E eu respondo:
— Se ele não parar logo, é isso que alguém vai fazer.<br />
No Número 5, já estou torcendo por <strong>um</strong>a interpretação medíocre de algo<br />
inofensivo como “ Over the Rainbow”, e suspeito que Tiny também, a julgar<br />
pelo modo como seu animado “ Isso foi ótimo! Vamos entrar em contato com<br />
você” transformou-se em <strong>um</strong> “ Obrigado. Próximo”<br />
As músicas variam de clássicos de jazz a covers de boy bands, mas todos os<br />
candidatos têm <strong>um</strong>a coisa em com<strong>um</strong>: são meio que péssimos. Quero dizer,<br />
claro que ninguém é ruim da mesma maneira, e nem todos são ruins o tempo<br />
todo, mas todo mundo é ruim, pelo menos <strong>um</strong> pouco. Fico pasmo quando meu<br />
companheiro do almoço, Ethan, Número 19, demonstra ser o melhor até então,<br />
cantando <strong>um</strong>a canção de <strong>um</strong> musical chamado Despertar da Primavera. O cara<br />
sabe cantar.<br />
— Ele podia representar você — diz Jane. — Se deixasse o cabelo crescer e<br />
desenvolvesse <strong>um</strong>a marra.<br />
— Eu não sou marrento…<br />
— … é o tipo de coisa que pessoas marrentas dizem. — Jane sorri.<br />
Vejo duas potenciais Janes na próxima hora. Número 24 canta <strong>um</strong>a versão<br />
melosa estranhamente boa de <strong>um</strong>a canção de Eles e Elas. A outra garota,<br />
Número 43, tem cabelo liso oxigenado com mechas azuis e canta “ Mary tinha<br />
<strong>um</strong> Carneirinho”. Alg<strong>um</strong>a coisa na distância entre canções infantis e cabelos<br />
azuis me parecem bem típicos de Jane.<br />
— Eu voto nela — declara Jane assim que a garota chega à segunda estrofe.<br />
A última candidata é <strong>um</strong>a criatura diminuta, de olhos grandes, chamada<br />
Hazel, que canta <strong>um</strong>a canção de Rent. Quando ela termina, Tiny sobe correndo<br />
no palco pra agradecer a todos, dizer o quanto foram brilhantes, o quanto<br />
impossivelmente difícil será a decisão e que a chamada para a segunda fase dos<br />
testes será publicada depois de amanhã. Todos saem em fila, passando por nós,<br />
e então finalmente Tiny se arrasta pelo corredor.
— Você tem muito trabalho pela frente — digo a ele.<br />
Ele faz <strong>um</strong> gesto dramático de futilidade.<br />
— Não vimos muitos futuros astros da Broadway aqui — reconhece.<br />
Gary se aproxima e diz:<br />
— Gostei dos números 6, 19, 31 e 42. Os outros, bem... — E então Gary<br />
leva a mão ao peito e começa a cantar. — Somewhere over the rainbow, way up<br />
high / The sound of singing wildkits, makes me wanna die.<br />
— Meu Deus — digo. — Você parece <strong>um</strong> cantor de verdade. Como<br />
Pavarotti.<br />
— Bem, exceto pelo fato de ele ser <strong>um</strong> barítono — comenta Jane, sua<br />
presunção musical aparentemente estendendo-se inclusive ao mundo da ópera.<br />
Tiny estala os dedos de <strong>um</strong>a das mãos, animado, enquanto aponta para Gary.<br />
— Você! Você! Você! Para o papel de Kaleb. Parabéns.<br />
— Você quer que eu represente <strong>um</strong>a versão ficcional do meu ex-namorado<br />
— pergunta Gary. — Acho que não.<br />
— Então Phil Wrayson! Não me importo. Escolha o seu papel. Meu Deus,<br />
você canta melhor que todos eles.<br />
— Isso! — digo. — Eu escolho você.<br />
— Mas eu teria de beijar <strong>um</strong>a garota — diz ele. — Argh.<br />
Não me lembro de meu personagem beijando nenh<strong>um</strong>a garota, e começo a<br />
perguntar a Tiny sobre isso, mas ele me corta, dizendo: “ Andei reescrevendo.”<br />
Tiny bajula Gary <strong>um</strong> pouco mais e ele então concorda em me representar, e,<br />
honestamente, aceito. Enquanto seguimos pelo corredor, saindo da cantina, Gary<br />
se vira pra mim, inclinando a cabeça e estreitando os olhos.<br />
— Como é ser Will Grayson Preciso saber como é isso por dentro.<br />
Ele ri, mas também parece aguardar <strong>um</strong>a resposta. Eu sempre pensei que ser<br />
Will Grayson significasse ser eu, mas aparentemente não é isso. O outro Will<br />
Grayson também é Will Grayson, e agora Gary também vai ser.
— Eu só tento calar a boca e não me importar com nada — digo.<br />
— Palavras tão comoventes. — Gary sorri. — Irei basear seu personagem<br />
nos atributos dos rochedos na margem do lago: silenciosos, apáticos e,<br />
considerando-se o pouco que se exercitam, surpreendentemente esculpidos.<br />
Todos riem, exceto Tiny, que está enviando <strong>um</strong>a mensagem pelo telefone.<br />
Quando saímos do corredor, vejo Ethan encostado no pedestal do troféu<br />
Wildkit, a mochila nas costas. Vou até ele e digo:<br />
— Nada mau hoje.<br />
Ele sorri e diz:<br />
— Só espero não ser bonito demais pra representar você. — E sorri<br />
novamente.<br />
Retribuo o sorriso, embora ele pareça <strong>um</strong> tanto sério.<br />
— Vejo você sexta na festa na casa do Clint — pergunta ele.<br />
— Sim, talvez — respondo. Ele ajusta a mochila em <strong>um</strong> ombro e se afasta,<br />
com <strong>um</strong> aceno da cabeça. Atrás de mim, ouço Tiny implorar dramaticamente:<br />
— Alguém me diga que vai dar tudo certo!<br />
— Vai dar tudo certo — diz Jane. — Atores medíocres acabam crescendo e<br />
prestando.<br />
Tiny respira fundo, espanta alg<strong>um</strong> pensamento da mente e conclui:<br />
— Você tem razão. Juntos serão melhores que a simples soma de suas partes.<br />
Cinquenta e cinco pessoas fizeram teste pra minha peça! Meu cabelo está incrível<br />
hoje! Tirei B n<strong>um</strong> trabalho de inglês!<br />
O celular dele faz <strong>um</strong> z<strong>um</strong>bido.<br />
— E acabei de receber <strong>um</strong>a mensagem do meu novo Will Grayson favorito.<br />
Você está totalmente certa, Jane: tudo vai dar Tiny.
capítulo doze<br />
tudo começa quando chego em casa, vindo de chicago. já tenho 27<br />
mensagens de tiny em meu celular. e ele tem 27 minhas. isso cons<strong>um</strong>iu a maior<br />
parte da viagem de trem. no restante do tempo, eu calculava o que precisava<br />
fazer no momento em que passasse pela porta. porque, se a inexistência de isaac<br />
vai pesar sobre mim, preciso me livrar de alg<strong>um</strong>as outras coisas a fim de não<br />
desabar direto no chão. eu já estou pouco me fodendo. isto é, não que eu<br />
pensasse que dava a mínima antes. mas aquilo era <strong>um</strong> pouco-me-fodendo<br />
amador. agora é a liberdade do tipo pouco-me-fodendo.<br />
mamãe está à minha espera na cozinha, bebericando <strong>um</strong> chá, folheando <strong>um</strong>a<br />
daquelas revistas idiotas em que celebridades ricas exibem suas casas. ela<br />
levanta os olhos quando entro.<br />
mãe: como foi em chicago<br />
eu: olhe, mãe, eu sou totalmente gay, e agradeceria se você pudesse deixar de<br />
lado o surto agora, porque, sim, temos o resto de nossas vidas pra lidar com<br />
isso, porém quanto mais cedo atravessarmos a parte da agonia, melhor.<br />
mãe: a parte da agonia<br />
eu: você sabe, você rezando pela minha alma, me xingando por não te dar<br />
netinhos com <strong>um</strong>a esposa e dizendo o quanto está decepcionada.<br />
mãe: você acha mesmo que eu faria isso<br />
eu: é seu direito, acho. mas se quiser pular essa etapa, está bom pra mim.<br />
mãe: acho que quero pular essa etapa.<br />
eu: mesmo<br />
mãe: mesmo.<br />
eu: uau. quero dizer, isso é legal.<br />
mãe: você me dá pelo menos <strong>um</strong> ou dois segundos pra ficar surpresa
eu: claro. afinal, essa não devia ser a resposta que você esperava quando me<br />
perguntou como foi em chicago.<br />
mãe: acho que é seguro dizer que não era a resposta que eu estava esperando.<br />
estou olhando o rosto dela para ver se está reprimindo tudo, mas parece que é<br />
isso mesmo. o que é espetacular, levando-se toda a situação em consideração.<br />
eu: você vai me dizer que sempre soube<br />
mãe: não. mas eu andava me perguntando quem era isaac.<br />
ah, merda.<br />
eu: isaac você também estava me espionando<br />
mãe: não. é só que...<br />
eu: o quê<br />
mãe: você dizia o <strong>nome</strong> dele dormindo. eu não estava espiando. mas dava pra<br />
ouvir.<br />
eu: uau.<br />
mãe: não fique bravo.<br />
eu: como eu poderia ficar bravo<br />
sei que essa é <strong>um</strong>a pergunta boba. já provei que posso ficar bravo com muitas<br />
coisas. <strong>um</strong>a vez acordei no meio da noite e jurei que minha mãe havia instalado<br />
<strong>um</strong> alarme de f<strong>um</strong>aça no teto enquanto eu dormia. então irrompi no quarto dela<br />
e comecei a gritar como ela podia pôr <strong>um</strong>a coisa no meu quarto sem me dizer<br />
nada, e ela acordou e com toda a calma disse que o alarme contra f<strong>um</strong>aça ficava<br />
no corredor, e eu a arrastei pra fora da cama pra mostrar, e naturalmente não<br />
havia nada no teto do meu quarto — eu só havia sonhado. e ela não gritou<br />
comigo nem nada assim. apenas me disse que voltasse a dormir. e o dia<br />
seguinte foi péssimo pra ela, mas nem <strong>um</strong>a só vez minha mãe disse que tinha
elação com o fato de eu tê-la acordado no meio da noite.<br />
mãe: você viu isaac em chicago<br />
como explicar isso a ela quero dizer, se disser que fui até a cidade pra ir a<br />
<strong>um</strong>a sex shop encontrar <strong>um</strong> cara que no final não existia, os ganhos da noite de<br />
pôquer das próximas semanas vão ser gastos n<strong>um</strong>a consulta com o dr. keebler.<br />
mas, quando está atenta, ela sabe quando estou mentindo. não quero mentir<br />
neste momento. assim, distorço a verdade.<br />
eu: sim, vi. o apelido dele é tiny. é assim que o chamo, embora ele seja<br />
enorme. na verdade, sabe, ele é muito legal.<br />
aqui estamos em território mãe-filho completamente desconhecido. não só<br />
nesta casa — talvez em toda a américa.<br />
eu: não fique preocupada. fomos só até o millenni<strong>um</strong> park e conversamos <strong>um</strong><br />
pouco. alguns amigos dele estavam lá também. não vou ficar grávido.<br />
minha mãe ri.<br />
mãe: bem, isso é <strong>um</strong> alívio.<br />
ela se levanta da mesa da cozinha e, antes que eu me dê conta, está me dando<br />
<strong>um</strong> abraço. e, por <strong>um</strong> momento, não sei o que fazer com meus braços, e então<br />
digo a mim mesmo: seu idiota, abrace ela também. então faço isso, e espero<br />
que ela comece a chorar, porque <strong>um</strong> de nós dois deveria estar chorando. no<br />
entanto, ela tem os olhos secos quando se afasta de mim — <strong>um</strong> pouco turvos,<br />
talvez, mas eu já a vi quando as coisas não vão bem, quando tudo está<br />
totalmente <strong>um</strong>a merda, e assim sei o suficiente pra reconhecer que essa não é<br />
<strong>um</strong>a dessas ocasiões. estamos bem.
mãe: maura ligou alg<strong>um</strong>as vezes. parecia aborrecida.<br />
eu: bem, ela que vá pro inferno.<br />
mãe: <strong>will</strong>!<br />
eu: desculpe. não era minha intenção dizer isso em voz alta.<br />
mãe: o que aconteceu<br />
eu: não quero entrar em detalhes. só vou te dizer que ela me magoou muito,<br />
muito mesmo, e preciso que isso pare por aqui. se ela ligar pra cá, quero que<br />
você diga a ela que nunca mais quero falar com ela. não diga que não estou em<br />
casa. não minta quando eu estiver no quarto. diga a ela a verdade — que acabou<br />
e que nunca mais estará desacabado. por favor.<br />
seja porque concorda ou porque sabe que não tem sentido discordar quando<br />
estou assim, mamãe faz que sim com a cabeça. tenho <strong>um</strong>a mãe muito<br />
inteligente, no fim das contas.<br />
já é hora de ela ir — achei que isso fosse acontecer depois do abraço —, mas,<br />
como ainda está por ali, tomo a iniciativa.<br />
eu: vou pra cama. vejo você amanhã.<br />
mãe: <strong>will</strong>...<br />
eu: sério, foi <strong>um</strong> dia muito longo. obrigado por ser tão, você sabe,<br />
compreensiva. te devo <strong>um</strong>a. <strong>um</strong>a das grandes.<br />
mãe: não se trata de dever nada...<br />
eu: eu sei. mas você sabe o que quero dizer.<br />
não quero sair enquanto não estiver claro que está tudo bem em eu sair.<br />
afinal, isso é o mínimo que posso fazer.<br />
ela se inclina e beija a minha testa.<br />
mãe: boa noite.<br />
eu: boa noite.
então vou pro meu quarto, ligo o computador e crio <strong>um</strong> novo <strong>nome</strong> de<br />
usuário.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: tiny<br />
bluejeansbaby: aqui!<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: você está pronto<br />
bluejeansbaby: pra quê<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: pro futuro<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: porque acho que ele acaba de começar<br />
*<br />
tiny me manda <strong>um</strong> arquivo com <strong>um</strong>a das canções de tiny dancer. diz que<br />
espera que vá me inspirar. eu a passo pro meu ipod e ouço no caminho pra<br />
escola na manhã seguinte.<br />
Houve <strong>um</strong> tempo de neblina<br />
Em que pensei gostar de vagina<br />
Mas eis que veio <strong>um</strong> verão<br />
E algo melhor captou meu coração<br />
Eu soube no momento em que ele ocupou o beliche de cima<br />
O quanto desesperadamente eu queria criar <strong>um</strong> clima<br />
Joseph Templeton Oglethorpe Terceiro<br />
Fez meu coração cantar feito <strong>um</strong> pássaro brejeiro<br />
Verão de alegria!<br />
Tão adorável! Tão gay!<br />
Verão de alegria!<br />
Definiu o ano inteiro, eu sei!
Mamãe e Papai não sabiam que estavam me deixando de quatro<br />
No momento em que me mandaram pro acampamento de teatro<br />
Tantos Hamlets entre os quais escolher<br />
Alguns atormentados, alguns gatinhos<br />
Eu estava pronto para a esgrima<br />
Ou para seguir de Ofélia o caminho<br />
Havia garotos que me chamavam de irmã<br />
E irmãs que me ensinaram sobre garotos<br />
Joseph me sussurrava doces bobagens<br />
E eu o alimentava com biscoitos<br />
Verão de alegria!<br />
Tão cheio de frutas! Tão completo!<br />
Verão de alegria!<br />
Percebi que Anjo era meu papel predileto!<br />
Mamãe e Papai não sabiam que eu dava a seu dinheiro tão bom proveito<br />
Quando em nossa produção de Rent aprendi sobre o amor perfeito<br />
Tantos beijos nas passarelas<br />
Tanta competição pelos papéis<br />
Nos apaixonávamos tão completamente<br />
Entre tantas raças, sexualidades e fiéis...<br />
Verão de alegria!<br />
Chegou tão rápido ao fim!<br />
Verão de alegria!<br />
Meu coração ainda ouve seu clarim!
Joseph e eu não chegamos a setembro<br />
Mas não se pode apagar a brasa colorida<br />
Nunca mais hei de voltar<br />
À estrada heterossexual nesta vida<br />
Pois agora todo dia<br />
(Sim, todos os dias)<br />
É verão de<br />
alegria!<br />
como nunca prestei atenção a musicais, não sei se todos soam assim tão gays<br />
ou se é apenas o de tiny. desconfio que eu acharia todos gays assim. não estou<br />
inteiramente certo de como isso pode me inspirar a fazer qualquer coisa que não<br />
seja me inscrever n<strong>um</strong> curso de teatro, o que nesse momento é tão provável<br />
quanto eu convidar maura pra sair. no entanto, tiny me disse que eu era a<br />
primeira pessoa a ouvir a música, além da mãe dele, então isso conta alg<strong>um</strong>a<br />
coisa. mesmo que seja bobo, é <strong>um</strong> tipo doce de bobeira.<br />
até consegue desviar minha cabeça da escola e de maura por alguns minutos.<br />
mas, assim que chego lá, ela está bem diante de mim, e lembro que a montanha<br />
se trata de <strong>um</strong> vulcão, e não posso evitar o desejo de querer lançar lava pra todos<br />
os lados. passo direto pelo lugar em que cost<strong>um</strong>amos nos encontrar, mas isso<br />
não a detém. ela vem atrás de mim, dizendo todas as coisas que estariam em <strong>um</strong><br />
cartão da hallmark, se a hallmark fizesse cartões pra pessoas que inventam<br />
namorados virtuais pra outras pessoas e então são pegas na mentira.<br />
maura: me desculpe, <strong>will</strong>. não era minha intenção te magoar nem nada. eu só<br />
estava brincando. não percebi o quanto você estava levando a sério. e sou <strong>um</strong>a<br />
vaca total por isso, eu sei. mas só fiz porque era a única maneira de me<br />
aproximar de você. não me ignora, <strong>will</strong>. fala comigo!
vou apenas fingir que ela não existe. porque todas as outras opções<br />
acarretariam minha expulsão e/ou prisão.<br />
maura: por favor, <strong>will</strong>. estou muito, muito arrependida.<br />
agora ela está chorando, e eu não ligo. as lágrimas são pro seu próprio<br />
benefício, não pro meu. ela que sinta a dor que sua poesia deseja. isso não tem<br />
nada a ver comigo. não mais.<br />
ela tenta me passar bilhetinhos durante a aula. derrubo-os da minha mesa e os<br />
largo no chão. ela me manda mensagens de texto, e eu as deleto sem ler. ela<br />
tenta se aproximar de mim no começo do almoço, e ergo <strong>um</strong> muro de silêncio<br />
que nenh<strong>um</strong>a melancolia gótica pode escalar.<br />
maura: muito bem. entendo que esteja com raiva. mas ainda vou estar aqui<br />
quando você não estiver mais com tanta.<br />
quando as coisas se quebram, não é o ato de quebrar em si que impede que<br />
elas se refaçam. é porque <strong>um</strong> pedacinho se perde — as duas bordas que restam<br />
não se encaixam, mesmo que queiram. a forma inteira mudou.<br />
eu nunca, jamais voltarei a ser amigo de maura. e quanto mais cedo ela<br />
perceber isso, menos irritante vai ser.<br />
quando falo com simon e derek, descubro que eles derrotaram os desafiantes<br />
da trigo<strong>nome</strong>tria ontem, assim pelo menos sei que não estão mais furiosos<br />
comigo por abandoná-los. meu lugar na mesa do almoço continua seguro. nos<br />
sentamos e comemos em silêncio durante pelo menos cinco minutos, até que<br />
simon fala.<br />
simon: então, como foi seu grande encontro em chicago<br />
eu: você quer mesmo saber<br />
simon: sim — se foi grande o bastante pra você se retirar de nossa
competição, quero saber como foi.<br />
eu: bem, a princípio ele não existiu, mas em seguida existiu e aí foi tudo<br />
bem. antes, quando falei com você a respeito, tomei muito cuidado pra não usar<br />
nenh<strong>um</strong> pro<strong>nome</strong>, mas agora não dou mais a mínima.<br />
simon: espere <strong>um</strong> segundo... você é gay<br />
eu: é. suponho que seja essa a conclusão correta pra você tirar.<br />
simon: isso é nojento!<br />
essa não é exatamente a reação que eu esperava de simon. apostava em algo<br />
<strong>um</strong> pouco mais próximo da indiferença.<br />
eu: o que é nojento<br />
simon: você sabe. colocar seu negócio no lugar por onde ele, hã, defeca.<br />
eu: em primeiro lugar, não coloquei meu negócio em lugar alg<strong>um</strong>. e você se<br />
dá conta, não é, de que quando <strong>um</strong> cara e <strong>um</strong>a garota transam, ele põe o<br />
negócio dele onde ela urina e menstrua<br />
simon: ah. eu não havia pensado nisso.<br />
eu: exatamente.<br />
simon: ainda assim, é estranho.<br />
eu: não mais do que tocar punheta para personagens de videogames.<br />
simon: quem te contou isso<br />
ele bate na cabeça de derek com o garfo de plástico.<br />
simon: você contou isso a ele<br />
derek: não contei nada!<br />
eu: deduzi sozinho. de verdade.<br />
simon: são só os personagens femininos.<br />
derek: e alguns feiticeiros!<br />
simon: CALA A BOCA!
não era assim, tenho de admitir, que imaginei que seria ass<strong>um</strong>ir ser gay.<br />
felizmente, tiny me manda mensagens a cada cinco minutos mais ou menos.<br />
não sei como ele faz isso na aula sem ser pego. talvez esconda o telefone nas<br />
dobras da barriga ou algo no gênero. qualquer que seja o caso, eu me sinto<br />
grato. porque é difícil odiar demais a vida quando você tem alguém<br />
interrompendo o seu dia com coisas como<br />
ESTOU TENDO PENSAMENTOS GAYS FELIZES A SEU RESPEITO<br />
e<br />
QUERO TRICOTAR UM SUÉTER PRA VC. QUE COR<br />
e<br />
ACHO QUE ACABEI DE ME DAR MAL NUM TESTE DE<br />
MATEMÁTICA PORQUE ESTAVA PENSANDO DEMAIS EM VC<br />
e<br />
O QUE RIMA COM JULGAMENTO POR SODOMIA<br />
depois<br />
VIL LOBOTOMIA<br />
depois<br />
MEU ROBÔ TITIA<br />
depois<br />
MEU ROBÔ SE DELICIA!<br />
Depois<br />
MEU ROBÔ É UMA VADIA<br />
depois<br />
ALIÁS — É PRA CENA EM Q O FANTASMA DE OSCAR WILDE ME<br />
APARECE EM SONHO<br />
entendo apenas metade do que ele está falando, e em geral isso me irrita<br />
profundamente. mas, com tiny, isso não importa tanto. talvez <strong>um</strong> dia eu
entenda. e, se não entender, viver absorto também pode ser divertido. o<br />
gorducho está me transformando em <strong>um</strong> molenga. é doentio, de verdade.<br />
ele também me envia pelo celular todas essas perguntas sobre como vão as<br />
coisas, o que estou fazendo, como me sinto e quando ele vai me ver de novo.<br />
não posso evitar — acho que é meio parecido com o que vivi com isaac. só que<br />
sem a distância. dessa vez, sinto que conheço a pessoa com quem estou falando.<br />
porque tenho a sensação de que, com tiny, o que você vê é o que ele é. ele não<br />
esconde nada. eu quero ser assim. só que sem ter de ganhar, digamos, 150<br />
quilos para isso.<br />
depois da escola, maura me alcança no armário.<br />
maura: simon me disse que agora você é oficialmente gay. que “ encontrou<br />
alguém” em chicago.<br />
não te devo coisa nenh<strong>um</strong>a, maura. muito menos <strong>um</strong>a explicação.<br />
maura: o que você está fazendo, <strong>will</strong> por que falou isso pra ele<br />
porque de fato conheci alguém, maura.<br />
maura: fale comigo.<br />
nunca. vou deixar que o ato de fechar meu armário fale por mim. vou deixar<br />
que o som dos meus passos fale por mim. vou deixar que o fato de não olhar pra<br />
trás fale por mim.<br />
está vendo, maura, não dou a mínima.<br />
naquela noite, tiny e eu falamos pelo computador durante quatro horas.<br />
minha mãe me deixa em paz e até permite que eu fique acordado até tarde.<br />
alguém com <strong>um</strong> perfil falso deixa <strong>um</strong> comentário em minha página do
myspace me chamando de viado. não creio que seja maura; alguém mais da<br />
escola deve ter ouvido.<br />
quando olho em minha caixa de correio todas as mensagens que guardei ali,<br />
vejo que o rosto de isaac foi substituído por <strong>um</strong> quadrado cinza cortado por <strong>um</strong><br />
X vermelho.<br />
“ este perfil não existe mais”, diz.<br />
assim, as mensagens dele permanecem, mas ele se foi.<br />
vejo alg<strong>um</strong>as pessoas me lançando olhares estranhos na escola no dia<br />
seguinte e me pergunto se seria possível refazer o caminho que a fofoca percorreu<br />
partindo de derek ou de simon até o garoto alto e arrogante que me fuzila com<br />
os olhos. naturalmente, é possível que o garoto alto e arrogante tenha sempre<br />
me fuzilado com os olhos, e eu só esteja notando agora. tento não dar a mínima.<br />
maura está quieta, mas pres<strong>um</strong>o que seja porque está planejando o próximo<br />
ataque. queria dizer a ela que não vale a pena. talvez nossa amizade não estivesse<br />
mesmo destinada a durar mais que <strong>um</strong> ano. talvez as coisas que nos<br />
aproximaram — melancolia, desgraça, sarcasmo — não foram concebidas para<br />
nos manter unidos. a merda é que sinto falta de isaac, mas não sinto dela.<br />
mesmo sabendo que isaac era ela. nenh<strong>um</strong>a daquelas conversas tem mais<br />
importância. lamento sinceramente que maura tenha chegado a esse nível de<br />
insanidade pra me fazer contar a verdade — teria sido melhor para os dois se não<br />
tivéssemos sido amigos em primeiro lugar. não vou tentar puni-la — não vou<br />
sair contando pra todos o que fez, nem pôr <strong>um</strong>a bomba em seu armário, nem<br />
gritar com ela na frente de todo mundo. só quero que ela vá embora. só isso. the<br />
end.<br />
pouco antes do almoço, <strong>um</strong> garoto chamado gideon me aborda diante do meu<br />
armário. na verdade, não nos falamos desde o sétimo ano, quando fazíamos
dupla no laboratório de ciências da terra. então ele se destacou nos estudos, e eu<br />
não. sempre gostei dele e mantivemos <strong>um</strong> relacionamento do tipo oi-nocorredor.<br />
ele cost<strong>um</strong>a ser o dj nas festas, principalmente aquelas a que não vou.<br />
gideon: oi, <strong>will</strong>.<br />
eu: oi.<br />
tenho certeza de que ele não está aqui pra me criticar. a camiseta dele do lcd<br />
soundsystem meio que revela isso.<br />
gideon: então, é... ouvi dizer que você talvez seja, você sabe...<br />
eu: ambidestro filatelista homossexual<br />
ele sorri.<br />
gideon: é. e, eu não sei, mas, quando me dei conta de que eu era gay, foi<br />
muito ruim que ninguém dissesse algo como “ muito bem”. então eu só quis vir<br />
aqui dizer...<br />
eu: muito bem<br />
ele fica vermelho.<br />
gideon: bem, parece idiota assim. mas essa é a essência. bem-vindo ao clube.<br />
é <strong>um</strong> clube muito pequeno nesta escola.<br />
eu: espero que não haja taxas...<br />
ele fita os próprios sapatos.<br />
gideon: hã, não. não é <strong>um</strong> clube de fato.<br />
se tiny fosse da nossa escola, imagino que seria mesmo <strong>um</strong> clube. e ele seria<br />
o presidente.
sorrio. gideon levanta os olhos e vê.<br />
gideon: talvez, se você quiser, não sei, a gente pode tomar <strong>um</strong> café ou<br />
alg<strong>um</strong>a coisa depois da escola...<br />
demoro <strong>um</strong> segundo.<br />
eu: você está me chamando pra sair<br />
gideon: h<strong>um</strong>, talvez<br />
bem aqui no corredor. com toda essa gente à nossa volta. impressionante.<br />
eu: o negócio é o seguinte: eu adoraria sair com você. mas... tenho <strong>um</strong><br />
namorado.<br />
essas palavras estão de fato saindo da minha boca.<br />
im-pressionante.<br />
gideon: ah.<br />
pego meu celular e mostro a ele a caixa de entrada cheia de mensagens de<br />
tiny.<br />
eu: juro que não estou inventando isso só pra fugir de <strong>um</strong> encontro com<br />
você. o <strong>nome</strong> dele é tiny. estuda na evanston.<br />
gideon: você tem muita sorte.<br />
essa não é <strong>um</strong>a palavra que cost<strong>um</strong>a ser aplicada a mim.<br />
eu: por que você não senta comigo, simon e derek no almoço<br />
gideon: eles também são gays<br />
eu: só se você for <strong>um</strong> feiticeiro.
<strong>um</strong> minuto depois mando <strong>um</strong>a mensagem pra tiny.<br />
FIZ UM NOVO AMIGO GAY.<br />
e ele responde<br />
PROGRESSO!!!<br />
então<br />
VOCÊ DEVIA FORMAR UMA AGH!<br />
ao que respondo<br />
UM PASSO DE CADA VEZ, BIG BOY<br />
e ele retruca<br />
BIG BOY — ADOREI!<br />
as mensagens prosseguem pelo resto do dia e noite adentro. é incrível, de<br />
verdade, com que frequência se pode escrever pra alguém com <strong>um</strong> limite baixo<br />
de caracteres. é tão idiota, porque a sensação que tenho é de que tiny está<br />
passando o dia comigo. como se estivesse presente quando ignoro maura,<br />
converso com gideon ou descubro que ninguém vai me assassinar com <strong>um</strong><br />
machado na aula de educação física porque estou transmitindo <strong>um</strong>a vibe<br />
homossexual.<br />
ainda assim, não é o bastante. porque me sentia assim às vezes com isaac. e<br />
não vou deixar esse relacionamento acontecer todo na minha cabeça.<br />
assim, nessa noite, ligo pra tiny e falo com ele. digo que quero que ele venha<br />
me visitar. e ele não inventa desculpas. não diz que é impossível. em vez disso,<br />
pergunta
tiny: quando<br />
admito que existe <strong>um</strong> certo grau de se importar em não se importar. ao dizer<br />
que você não se importa se o mundo desmorona, está dizendo que quer que ele<br />
se mantenha de pé, nas suas condições.<br />
quando encerro minha conversa com tiny e desligo, minha mãe entra no meu<br />
quarto.<br />
mãe: como está indo<br />
eu: bem.<br />
e é verdade, pela primeira vez.
capítulo treze<br />
Acordo com o som do meu despertador berrando ritmicamente, e parece alto<br />
como <strong>um</strong>a sirene de ambulância, gritando comigo com tamanha ferocidade que<br />
quase chega a ferir meus sentimentos. Rolo na cama e estreito os olhos na<br />
escuridão: 5h43 da manhã. Meu alarme não toca antes das 6h37.<br />
E só então percebo: o barulho não vem do meu despertador. É de <strong>um</strong>a<br />
buzina, estridente, soando <strong>um</strong>a espécie de terrível canção de sereias pelas ruas de<br />
Evanston, <strong>um</strong> anúncio uivante de desgraça. Buzinas não tocam assim tão cedo,<br />
não com tamanha insistência. Deve ser <strong>um</strong>a emergência.<br />
Levanto correndo da cama, visto <strong>um</strong> jeans e corro na direção da porta da<br />
frente. Sinto alívio ao ver tanto minha mãe quanto meu pai vivos, correndo para<br />
a entrada. Digo: “ Meu Deus, o que está acontecendo” e minha mãe se limita a<br />
dar de ombros e meu pai pergunta: “ Isso é <strong>um</strong>a buzina de carro” Chego à porta<br />
primeiro e espio pelo vidro lateral.<br />
Tiny Cooper está estacionado diante da minha casa, buzinando<br />
metodicamente.<br />
Corro pra fora e só quando me vê ele para de buzinar. A janela do passageiro<br />
se abre.<br />
— Meu Deus, Tiny. Você vai acordar toda a vizinhança.<br />
Vejo <strong>um</strong>a lata de Red Bull dançando em sua mão imensa e trêmula. A outra<br />
mão permanece na buzina, pronta pra apertá-la a qualquer momento.<br />
— Precisamos ir — diz ele, a voz apressada. — Ande, vamos vamos vamos<br />
vamos vamos.<br />
— Qual é o problema com você<br />
— Temos de ir pra escola. Explico depois. Entre no carro. — Ele soa tão<br />
freneticamente sério, e eu estou tão cansado, que nem penso em questioná-lo.<br />
Então simplesmente entro em casa correndo, calço meias e sapatos, escovo os
dentes, digo aos meus pais que vou pra escola mais cedo e entro apressado no<br />
carro de Tiny.<br />
— Cinco coisas, Grayson — começa ele ao engatar o carro e acelerar, sem<br />
que a mão trêmula jamais abandone a lata de Red Bull.<br />
— O que foi Tiny, qual é o problema<br />
— Não há nenh<strong>um</strong> problema. Está tudo certo. As coisas não podiam estar<br />
mais certas. Podiam ser menos cansativas. Menos agitadas. Menos cafeinadas.<br />
Mas não podiam ser mais certas.<br />
— Cara, você tomou metanfetamina<br />
— Não, tomei Red Bull. — Ele me entrega a latinha, e eu a cheiro, tentando<br />
descobrir se o Red Bull está misturado com alg<strong>um</strong>a coisa. — E café —<br />
acrescenta. — Então ouça, Grayson. Cinco coisas.<br />
— Não posso acreditar que você acordou todos os meus vizinhos às 5h43<br />
sem nenh<strong>um</strong> motivo.<br />
— Na verdade — diz ele, a voz mais alta do que parece necessário tão cedo<br />
—, eu te acordei por cinco razões, que é o que estou tentando te dizer, só que<br />
você fica me interrompendo, o que é <strong>um</strong>a coisa muito, assim, Tiny Cooper de<br />
se fazer.<br />
Conheço Tiny Cooper desde que ele era <strong>um</strong> aluno muito grande e muito gay<br />
do quinto ano. Já o vi bêbado e sóbrio, faminto e saciado, barulhento e mais<br />
barulhento ainda, apaixonado e com saudade. Já o vi em bons e maus<br />
momentos, na saúde e na doença. E em todos esses anos, ele nunca antes fez<br />
<strong>um</strong>a piada autodepreciativa. Não posso deixar de pensar: talvez Tiny Cooper<br />
devesse fritar os miolos com cafeína mais vezes.<br />
— Ok, quais são as cinco coisas — pergunto.<br />
— Um: terminei de selecionar o elenco da peça ontem à noite, por volta das<br />
23h, enquanto estava no skype com Will Grayson. Ele me ajudou. Eu imitei<br />
todos os candidatos em potencial e ele me ajudou a decidir quem era o menos
horrível.<br />
— O outro Will Grayson — corrigi.<br />
— Dois — continua ele, como se não tivesse me ouvido. — Logo depois,<br />
Will foi dormir. E eu pensei comigo mesmo: sabe, faz oito dias que o conheci,<br />
e tecnicamente não gostei de alguém que também gostasse de mim por oito dias<br />
em toda a minha vida, a menos que você conte meu relacionamento com<br />
Bethany Keene no terceiro ano, o que obviamente não se pode fazer, já que ela é<br />
<strong>um</strong>a garota.<br />
“ Três, e então eu estava pensando nisso, deitado na cama, olhando pro teto e<br />
pude ver as estrelas que colamos lá no sexto ano ou sei lá. Você lembra As<br />
estrelas que brilham no escuro, o cometa e tudo mais”<br />
Faço que sim com a cabeça, mas ele não olha pra mim, embora estejamos<br />
parados em <strong>um</strong> sinal.<br />
— Bem — continua ele —, eu estava olhando praquelas estrelas e elas<br />
estavam se apagando porque fazia alguns minutos que eu havia desligado a luz,<br />
e então vivenciei <strong>um</strong> despertar espiritual ofuscante. Do que trata Tiny Dancer<br />
Quero dizer, qual é o tema, Grayson Você leu.<br />
Pres<strong>um</strong>o que, como sempre, ele esteja fazendo <strong>um</strong>a pergunta retórica, então<br />
não digo nada pra que ele prossiga reclamando, porque, por mais doloroso que<br />
seja admitir isso, tem algo de maravilhoso no palavrório de Tiny,<br />
principalmente em <strong>um</strong>a rua silenciosa quando ainda estou semiadormecido.<br />
Tem alg<strong>um</strong>a coisa no simples ato de ele falar que é vagamente prazeroso,<br />
embora eu preferisse que não fosse. É alg<strong>um</strong>a coisa em sua voz, não no tom ou<br />
na dicção cafeinada e veloz, mas na voz propriamente dita — sua familiaridade,<br />
acho, porém também em seu aspecto inesgotável.<br />
Mas ele não diz nada por <strong>um</strong> tempo e então percebo que ele espera, sim, que<br />
eu responda. Não sei o que ele quer ouvir, então no fim digo simplesmente a<br />
verdade.
— Tiny Dancer é sobre Tiny Cooper — respondo.<br />
— Exatamente! — grita ele, socando o volante. — E nenh<strong>um</strong> grande<br />
musical é sobre <strong>um</strong>a pessoa, não mesmo. E é esse o problema. Esse é todo o<br />
problema com a peça. Ela não fala de tolerância ou compreensão ou amor ou<br />
qualquer outra coisa. Fala de mim. E, assim, nada contra mim. Quero dizer, sou<br />
mesmo fabuloso. Não sou<br />
— Você é <strong>um</strong> pilar do que é mais fabuloso na comunidade — digo a ele.<br />
— Sim, exato — retruca ele. Está sorrindo, mas é difícil dizer até que ponto<br />
está brincando. Estamos chegando à escola agora, o lugar inteiramente morto,<br />
nem <strong>um</strong> único carro no estacionamento dos professores. Ele entra no lugar de<br />
cost<strong>um</strong>e, pega a mochila no banco traseiro, salta e começa a atravessar o lugar<br />
deserto. Eu o sigo.<br />
— Quatro — diz ele. — Então percebi que, apesar de meu grande e incrível<br />
caráter fabuloso, a peça não pode ser sobre mim. Precisa ser sobre algo ainda<br />
mais fabuloso: o amor. O muito esplendoroso manto de mil cores do amor em<br />
toda a sua miríade de glórias. E, assim, tinha de ser revisada. E rebatizada. E<br />
então tive de ficar acordado a noite toda. E escrevi feito louco, escrevi <strong>um</strong><br />
musical intitulado Me abrace mais forte. Vamos precisar de mais cenários do<br />
que pensei. E mais! E mais! Mais vozes no coro. O coro deve ser como <strong>um</strong>a<br />
porra de <strong>um</strong> muro de canções, sabe<br />
— Claro, sim. Qual é a quinta coisa<br />
— Ah, tá. — Ele contorce o ombro, livrando-o da mochila, e a desliza para o<br />
peito. Abre o zíper da divisória da frente, vasculha o conteúdo por <strong>um</strong> momento<br />
e então tira <strong>um</strong>a rosa feita inteiramente de fita adesiva verde. E a entrega a mim.<br />
— Quando fico estressado — explica — fico habilidoso. Ok. Ok. Vou para o<br />
auditório começar a esboçar alg<strong>um</strong>as cenas, ver como o material novo fica no<br />
palco.<br />
Eu paro de andar.
— Hã, você precisa que eu ajude ou algo assim<br />
Ele balança a cabeça negativamente.<br />
— Sem ofensa, Grayson, mas quais são exatamente suas qualidades para o<br />
teatro<br />
Ele já está se afastando, e tento ficar na minha, firme, mas finalmente corro<br />
atrás dele até os degraus da escola, porque tenho <strong>um</strong>a pergunta urgente.<br />
— Então por que diabos você me acordou às 5h43 da madrugada<br />
Ele se volta para mim. É impossível não sentir a imensidão de Tiny quando<br />
ele se agiganta sobre os ombros pra trás, sua largura quase bloqueando<br />
inteiramente a visão da escola atrás de si, seu corpo como <strong>um</strong> feixe de<br />
minúsculos tremores. Seus olhos estão arregalados de maneira pouco natural,<br />
como os de <strong>um</strong> z<strong>um</strong>bi.<br />
— Bem, eu precisava contar pra alguém — diz.<br />
Fico pensando nisso por <strong>um</strong> minuto, e então o sigo até o auditório. Pela<br />
próxima hora, observo Tiny correr de <strong>um</strong> lado pro outro do teatro como <strong>um</strong><br />
lunático alvoroçado, murmurando para si mesmo. Ele coloca fita adesiva no<br />
chão pra marcar seus cenários imaginários, faz piruetas pelo palco enquanto<br />
sussurra letras de músicas em ritmo acelerado, e, de vez em quando, grita:<br />
— Não é sobre Tiny! É sobre o amor!<br />
Então as pessoas começam a entrar para a aula de teatro no primeiro tempo, e<br />
Tiny e eu vamos para a aula de pré-cálculo, onde Tiny executa o milagre do<br />
Homem-Grande-na-Carteira-Pequena e eu sinto o assombro cost<strong>um</strong>eiro. As aulas<br />
são <strong>um</strong> tédio e então, na hora do almoço, estou sentado com Gary, Nick e Tiny;<br />
Tiny falando sobre seu despertar espiritual ofuscante de <strong>um</strong>a maneira que —<br />
nada contra Tiny — meio que deixa implícito que talvez ele não tenha<br />
internalizado completamente a ideia de que a terra não gira em torno do eixo<br />
Tiny Cooper, e então pergunto a Gary:<br />
— Ei, cadê a Jane
E Gary responde:<br />
— Tá doente.<br />
Ao que Nick acrescenta:<br />
— Com a doença vou-passar-o-dia-no-jardim-botânico-com-meu-namorado.<br />
Gary lança a Nick <strong>um</strong> olhar de desaprovação.<br />
Tiny rapidamente muda o assunto, e eu tento rir em todos os momentos<br />
apropriados pelo restante do almoço, mas não estou mais ouvindo.<br />
Sei que ela está namorando o Sr. Bobalhão McPolo Aquático, e sei que, às<br />
vezes, quando namora, você pratica atividades idiotas, como ir ao jardim<br />
botânico, mas, apesar de todo esse conhecimento que deveria me proteger, ainda<br />
me sinto <strong>um</strong> merda pelo resto do dia. Um dia desses, fico me dizendo, você vai<br />
aprender a calar a boca de verdade e não se importar. E até lá... Bem, até lá<br />
vou ficar respirando fundo porque a sensação que tenho é de que o ar me foi<br />
tirado. Apesar de não chorar, certamente eu me sinto muito pior do que no fim<br />
de Todos os cães merecem o céu.<br />
Ligo pra Tiny depois da escola, mas cai no correio de voz, então mando <strong>um</strong>a<br />
mensagem de texto pra ele: “ O Will Grayson original solicita o prazer de <strong>um</strong><br />
telefonema quando possível.” Ele só liga às 21h30. Estou no sofá, assistindo a<br />
<strong>um</strong>a estúpida comédia romântica com meus pais. Os pratos de nosso jantar<br />
chinês-pra-viagem-colocado-em-pratos-de-verdade-pra-que-você-tenha-a-sensaçãode-que-é-feito-em-casa<br />
ocupam a mesa de centro. Meu pai está cochilando, como<br />
sempre acontece quando não está trabalhando. Minha mãe se senta mais perto de<br />
mim do que parece necessário.<br />
Assistindo ao filme, não consigo parar de pensar em querer estar no ridículo<br />
jardim botânico com Jane. Só caminhando, ela vestindo agasalho de capuz e eu<br />
fazendo piadas com os <strong>nome</strong>s das plantas em latim, e ela dizendo que Ficaria<br />
verna seria <strong>um</strong> bom <strong>nome</strong> pra <strong>um</strong> grupo de hip hop nerdcore que só faz rap em<br />
latim, e assim por diante. Na verdade, posso visualizar a maldita cena por
completo, o que faz com que meu desespero chegue quase a ponto de me queixar<br />
com minha mãe sobre a situação, mas isso só vai significar perguntas sobre Jane<br />
pelos próximos sete a dez anos. Meus pais têm tão poucos detalhes sobre minha<br />
vida particular que sempre que esbarram em alg<strong>um</strong>a migalha, agarram-se a ela<br />
por éons. Gostaria que fossem mais hábeis em esconder seu desejo de que eu<br />
tivesse toneladas de amigos e namoradas.<br />
Portanto/mas/e Tiny liga, e eu digo: “ Oi”, e então me levanto e vou pro<br />
meu quarto e fecho a porta, e nesse tempo todo Tiny não diz nada. Então digo:<br />
— Alô<br />
E ele fala distraído:<br />
— Sim, oi.<br />
Eu o ouço digitar.<br />
— Tiny, você está digitando<br />
Após <strong>um</strong> momento, ele diz:<br />
— Espere <strong>um</strong> segundo. Deixe eu terminar esta frase.<br />
— Tiny, você ligou pra mim.<br />
Silêncio. Digitação. E então:<br />
— Sim, eu sei. Mas, hã, tenho de mudar a última música. Não pode falar de<br />
mim. Precisa falar de amor.<br />
— Queria não ter dado aquele beijo nela. Essa história toda do namorado<br />
meio que está roendo o meu cérebro.<br />
E então fico em silêncio e, instantes depois, ele finalmente diz:<br />
— Desculpe, Will acaba de me mandar <strong>um</strong>a mensagem. Está me contando<br />
sobre o almoço com esse novo amigo gay que fez. Sei que não é <strong>um</strong> encontro,<br />
já que é na cantina, mas ainda assim... Gideon. Ele parece gostoso. É incrível<br />
que Will esteja se abrindo tanto. Ele tipo saiu do armário pro mundo inteiro.<br />
Juro por Deus que acho que ele escreveu pro presidente dos Estados Unidos,<br />
dizendo: “ Caro Sr. Presidente, eu sou gay. Atenciosamente, Will Grayson.”
Isso é de <strong>um</strong>a beleza fodida, Grayson.<br />
— Você ouviu o que eu disse<br />
— Jane e o namorado comeram seu cérebro — responde, sem interesse.<br />
— Eu juro, Tiny, que às vezes... — Então me contenho, evitando dizer algo<br />
patético, e recomeço: — Quer fazer alg<strong>um</strong>a coisa depois da escola amanhã<br />
Jogar dardos ou alg<strong>um</strong>a coisa na sua casa<br />
— Ensaio, depois reescrever alguns trechos, depois Will ao telefone, depois<br />
cama. Você pode assistir ao ensaio, se quiser.<br />
— Não — respondo. — Tudo bem.<br />
Depois que desligo, tento ler Hamlet <strong>um</strong> pouco, mas não entendo o texto<br />
muito bem e tenho de ficar olhando a margem à direita, onde eles definem as<br />
palavras, e isso me faz me sentir <strong>um</strong> idiota.<br />
Não muito inteligente. Não muito bonito. Não muito legal. Não muito<br />
engraçado. Esse sou eu: não muito.<br />
Estou deitado por cima da colcha, ainda de roupa, o livro no peito, os olhos<br />
fechados, a mente em disparada. Estou pensando em Tiny. A coisa patética que<br />
queria dizer a ele ao telefone — mas não disse — era o seguinte: quando você é<br />
pequeno, você tem <strong>um</strong>a coisa. Pode ser <strong>um</strong> cobertorzinho, <strong>um</strong> animal de pelúcia<br />
ou qualquer outra coisa. Pra mim, era <strong>um</strong> cãozinho da pradaria de pelúcia que<br />
ganhei de Natal quando tinha 3 anos. Nem sei onde encontraram <strong>um</strong> cão da<br />
pradaria de pelúcia, mas, seja como for, ele se sentava nas patas traseiras e eu o<br />
chamava de Marvin, e o arrastava de <strong>um</strong> lado pro outro, puxando-o pelas<br />
orelhas, até ter uns 10 anos.<br />
E então, a certa altura, não era nada pessoal contra Marvin, mas ele começou<br />
a passar mais tempo no armário com meus outros brinquedos, e depois mais<br />
tempo ainda, até que finalmente Marvin se tornou residente fixo do armário.<br />
Mas, por muitos anos ainda, às vezes, eu tirava Marvin do armário e ficava<br />
com ele <strong>um</strong> pouco — não por mim, mas por Marvin. Sabia que era loucura,
mas ainda assim fazia.<br />
E o que eu queria dizer a Tiny é que, às vezes, me sinto como se eu fosse o<br />
Marvin dele.<br />
Lembro da gente juntos: de Tiny e eu na educação física na escola, e de como<br />
as fábricas de trajes esportivos não faziam shorts grandes o bastante e ele parecia<br />
sempre estar usando <strong>um</strong>a sunga bem justa. Tiny dominando no queimado<br />
apesar de sua largura, e sempre me deixando terminar em segundo pelo simples<br />
fato de me colocar em sua sombra e não me queimar até o fim. Tiny e eu na<br />
Parada do Orgulho Gay em Boys Town, em nosso nono ano, ele dizendo:<br />
“ Grayson, eu sou gay”, e eu retrucando: “ Ah, é mesmo E o céu é azul O sol<br />
nasce no leste O Papa é católico”, e ele continuando: “ E Tiny Cooper é<br />
fabuloso Os pássaros choram de emoção quando ouvem Tiny Cooper cantar”<br />
Penso em quanta coisa depende de <strong>um</strong> melhor amigo. Quando você acorda de<br />
manhã, senta, põe os pés no chão e se levanta. Você não escorrega até a borda da<br />
cama e olha pra baixo pra se certificar de que o chão está lá. O chão está sempre<br />
lá. Até o dia em que não está.<br />
É idiotice culpar o outro Will Grayson por algo que estava acontecendo antes<br />
que o outro Will Grayson existisse. E, no entanto...<br />
No entanto continuo pensando nele, e pensando em seu olhar fixo na<br />
Frenchy’s, esperando alguém que não existia. Em minha lembrança, seus olhos<br />
ficam cada vez maiores, quase como se ele fosse <strong>um</strong> personagem de mangá. E<br />
então penso no cara, Isaac, que era <strong>um</strong>a garota. Mas as coisas que foram ditas e<br />
que fizeram Will ir até a Frenchy’s encontrar aquele cara — essas coisas foram<br />
ditas. Elas eram reais.<br />
De repente, pego meu celular na mesinha de cabeceira e ligo pra Jane. Caixa<br />
postal. Olho pro relógio no telefone: são 21h42. Ligo pra Gary. Ele atende no<br />
quinto toque.<br />
— Will
— Oi, Gary. Você sabe onde a Jane mora<br />
— Hã, sim<br />
— Pode me dar o endereço<br />
Ele faz <strong>um</strong>a pausa.<br />
— Você está stalkeando ela, Will<br />
— Não, eu juro. Tenho <strong>um</strong>a pergunta de ciências — digo.<br />
— Você tem <strong>um</strong>a pergunta de ciências n<strong>um</strong>a noite de terça-feira às 21h42<br />
— Exatamente.<br />
— Wesley, 1.712.<br />
— E onde fica o quarto dela<br />
— Eu preciso dizer, cara, que meu radar de stalker está entrando na zona<br />
vermelha neste momento.<br />
Não digo nada, à espera.<br />
E então ele finalmente completa:<br />
— Se estiver diante da casa, fica de frente, à esquerda.<br />
— Maravilha, obrigado.<br />
No caminho pra porta pego as chaves no balcão da cozinha, e meu pai<br />
pergunta onde estou indo, e tento me safar com: “ sair”, mas isso só resulta<br />
n<strong>um</strong>a pausa na TV. Ele se aproxima, como se para me lembrar de que é apenas<br />
<strong>um</strong> pouquinho mais alto que eu, e diz com ar severo:<br />
— Sair com quem e para onde<br />
— Tiny quer minha ajuda com a peça idiota dele.<br />
— De volta às 23h — diz minha mãe do sofá.<br />
— Ok — respondo.<br />
Ando pela rua até o carro. Posso ver minha respiração, mas não sinto frio,<br />
exceto nas mãos sem luvas, e fico parado ao lado do carro por <strong>um</strong> segundo,<br />
olhando o céu, a luz laranja vindo da cidade ao sul, as árvores que margeiam a<br />
rua, desfolhadas, imóveis na brisa. Abro a porta, o que quebra o silêncio, e
dirijo <strong>um</strong> quilômetro até a casa de Jane. Encontro <strong>um</strong>a vaga meia quadra depois<br />
da casa e volto caminhando até a construção antiga, de dois andares, com <strong>um</strong>a<br />
varanda grande. Essas casas não são baratas. Tem <strong>um</strong>a luz acesa no quarto da<br />
frente à esquerda, mas, assim que chego lá, desisto de me aproximar. E se ela<br />
estiver trocando de roupa E se estiver deitada na cama e vir <strong>um</strong> assustador<br />
rosto de homem pressionado contra a vidraça E se ela estiver se pegando com<br />
Randall McBaitola Assim, mando <strong>um</strong>a mensagem de texto pra ela: “ Entenda<br />
isso da forma menos stalker possível: estou diante da sua casa.” São 21h47.<br />
Decido que vou esperar até 21h50 e então vou embora. Enfio <strong>um</strong>a das mãos no<br />
bolso do jeans e seguro o telefone com a outra, pressionando o botão do vol<strong>um</strong>e<br />
todas as vezes que a tela apaga. Ela mostra 21h49 há pelo menos dez segundos<br />
quando a porta da frente se abre e Jane espia do lado de fora.<br />
Aceno muito discretamente, a mão chegando sequer a se elevar acima da<br />
cabeça. Jane leva <strong>um</strong> dedo aos lábios e então, teatralmente, sai da casa na ponta<br />
dos pés e fecha a porta muito devagar. Desce os degraus da varanda, e à luz da<br />
varanda posso ver que está usando o mesmo agasalho de capuz verde, só que<br />
agora com calça de pijama de flanela vermelha e meias. Sem sapatos.<br />
Ela vem até mim e sussurra:<br />
— É <strong>um</strong> prazer ligeiramente assustador vê-lo aqui.<br />
E eu digo:<br />
— Tenho <strong>um</strong>a pergunta científica.<br />
Ela sorri e faz que sim com a cabeça.<br />
— É claro que tem. Você está se perguntando como é cientificamente<br />
possível que esteja prestando oh-tão-mais atenção em mim agora que tenho <strong>um</strong><br />
namorado, sendo que estava totalmente desinteressado antes. Infelizmente, a<br />
ciência se sente perplexa diante dos mistérios da psicologia masculina.<br />
Mas eu tenho de fato <strong>um</strong>a pergunta de ciências — sobre Tiny e mim, e sobre<br />
ela, e sobre gatos.
— Você pode me explicar sobre o gato de Schrödinger<br />
— Venha — diz ela, segurando o meu casaco e me puxando pela calçada.<br />
Caminho ao lado dela, sem dizer nada, enquanto ela murmura:<br />
— Deus, Deus, Deus, Deus, Deus, Deus, Deus.<br />
E eu digo:<br />
— Qual é o problema<br />
E ela diz:<br />
— Você. Você, Grayson. Você é o problema.<br />
E eu pergunto:<br />
— O quê<br />
E ela responde:<br />
— Você sabe.<br />
E eu digo:<br />
— Não sei.<br />
E ela, ainda andando e sem me olhar, diz:<br />
— Provavelmente existem garotas que não querem garotos aparecendo na<br />
casa delas aleatoriamente n<strong>um</strong>a noite de terça com perguntas sobre Edwin<br />
Schrödinger. Tenho certeza de que existem garotas assim. Mas elas não moram<br />
na minha casa.<br />
Paramos <strong>um</strong>as cinco ou seis casas depois da de Jane, perto de onde meu carro<br />
está estacionado, e então ela se vira na direção de <strong>um</strong>a propriedade com <strong>um</strong>a<br />
placa de à venda e sobe os degraus até <strong>um</strong> balanço na varanda. Ela se senta e<br />
bate a mão no lugar ao seu lado.<br />
— Ninguém mora aqui — pergunto.<br />
— Não. Está à venda há mais ou menos <strong>um</strong> ano.<br />
— Você provavelmente beijou o Bobalhão neste balanço.<br />
— É provável — responde. — Schrödinger estava fazendo <strong>um</strong> experimento<br />
mental. Muito bem, <strong>um</strong> estudo havia acabado de ser publicado, arg<strong>um</strong>entando
que se <strong>um</strong> elétron pode estar em <strong>um</strong> dentre quatro lugares diferentes, está tipo<br />
em todos os quatro lugares ao mesmo tempo até o momento em que alguém<br />
determina em qual dos quatro lugares ele está. Isso faz sentido<br />
— Não — respondo. Ela está usando meias curtas brancas, e posso ver seu<br />
tornozelo quando ela ergue os pés no ar pra manter o balanço em movimento.<br />
— Certo, não faz o menor sentido. É alucinantemente estranho. Então<br />
Schrödinger tenta destacar isso. Ele diz: ponha <strong>um</strong> gato dentro de <strong>um</strong>a caixa<br />
lacrada com <strong>um</strong> pouquinho de material radioativo que possa ou não,<br />
dependendo da localização de suas partículas subatômicas, fazer com que <strong>um</strong><br />
detector de radiação acione <strong>um</strong> martelo que libera veneno na caixa e mata o gato.<br />
Entendeu<br />
— Acho que sim — respondo.<br />
— Assim, de acordo com a teoria de que elétrons estão em todas-as-posiçõespossíveis<br />
até que sejam determinados, o gato está tanto vivo quanto morto até<br />
abrirmos a caixa e descobrirmos se ele está vivo ou morto. Schrödinger não<br />
estava promovendo a matança de gatos nem nada. Só estava dizendo que parecia<br />
<strong>um</strong> pouco improvável que <strong>um</strong> gato pudesse estar simultaneamente vivo e<br />
morto.<br />
Mas isso não me parece assim tão improvável. Para mim, parece que todas as<br />
coisas que mantemos em caixas lacradas estão, ao mesmo tempo, vivas e<br />
mortas até abrirmos a caixa, que o não visto está tanto lá como não está. Talvez<br />
seja por isso que não consigo parar de pensar nos olhos imensos do outro Will<br />
Grayson na Frenchy’s: porque ele tinha acabado de dar o gato vivo-e-morto<br />
como morto. Percebo que é por isso que nunca me coloco em <strong>um</strong>a situação em<br />
que eu realmente precise de Tiny, e por que segui as regras em vez de beijá-la<br />
quando ela estava disponível: escolhi a caixa fechada.<br />
— Ok — digo. Sem olhar pra ela. — Acho que entendi.<br />
— Bem, isso não é tudo, na verdade. É <strong>um</strong> pouco mais complicado.
— Não creio que eu seja inteligente o suficiente para compreender algo mais<br />
complicado — afirmo.<br />
— Não se subestime — diz ela.<br />
O balanço da varanda range enquanto tento repensar tudo. Olho pra ela.<br />
— Por fim, eles concluíram que manter a caixa fechada na verdade não<br />
mantém o gato vivo-e-morto. Mesmo que você não veja o gato no estado em<br />
que ele se encontra, qualquer que seja, o ar observa. Portanto, manter a caixa<br />
fechada apenas mantém você no escuro, não o universo.<br />
— Entendi — respondo. — Mas deixar de abrir a caixa não mata o gato.<br />
Não estamos mais falando de física.<br />
— Não — diz ela. — O gato já estava morto, ou vivo, conforme o caso.<br />
— Bem, o gato tem <strong>um</strong> namorado — falo.<br />
— Talvez o físico goste do fato de o gato ter <strong>um</strong> namorado.<br />
— É possível — concordo.<br />
— Amigos — diz ela.<br />
— Amigos — repito. Selamos o acordo com <strong>um</strong> aperto de mãos.
capítulo quatorze<br />
minha mãe insiste que, antes de eu ir a qualquer lugar com tiny, ele tem de<br />
vir jantar aqui em casa. tenho certeza de que ela consulta todos os websites de<br />
predadores sexuais antes. não acredita que eu o tenha conhecido na internet. e,<br />
dadas as circunstâncias, não posso mesmo culpá-la. ela fica <strong>um</strong> pouco surpresa<br />
quando eu concordo com o plano, mesmo que eu diga<br />
eu: só não pergunte sobre os 43 ex-namorados dele, está bem ou por que<br />
anda por aí carregando <strong>um</strong> machado.<br />
mãe: ...<br />
eu: estou brincando em relação ao machado.<br />
mas, na verdade, nada do que eu possa falar consegue acalmar a mulher. é<br />
insano. ela coloca aquelas luvas de borracha amarelas e começa a esfregar com a<br />
intensidade que você em geral reserva para quando alguém vomita em cima da<br />
mobília. digo que não precisa fazer aquilo, porque afinal tiny não vai comer no<br />
chão. mas ela apenas faz <strong>um</strong> gesto com a mão me dispensando e me manda<br />
limpar o quarto.<br />
eu tenho a intenção de limpar o quarto. tenho, de verdade, mas tudo que<br />
consigo fazer é limpar o histórico do meu navegador da web, e então me sinto<br />
totalmente exausto. não pense que não limpo a meleca da minha cama de<br />
manhã. sou <strong>um</strong> cara bastante limpo. todas as roupas sujas estão enfiadas no<br />
fundo do armário. ele não vai vê-las.<br />
por fim, é a hora de ele chegar. na escola, gideon me pergunta se estou<br />
nervoso com a visita de tiny, e digo a ele que não. mas, claro, isso é mentira.<br />
estou nervoso principalmente por causa da minha mãe e de como ela vai agir.<br />
estou esperando por ele na cozinha, e ela corre de <strong>um</strong> lado para o outro feito
louca.<br />
mãe: eu devia arr<strong>um</strong>ar a salada.<br />
eu: por que você devia arr<strong>um</strong>ar a salada<br />
mãe: tiny não gosta de salada<br />
eu: eu disse pra você que acho que tiny comeria bebês focas se a gente<br />
servisse isso. mas o que estou perguntando é: por que você precisa arr<strong>um</strong>ar a<br />
salada quem a desarr<strong>um</strong>ou eu nem cheguei perto. foi você quem bagunçou a<br />
salada, mãe se foi você, É MELHOR ARRUMAR!<br />
estou fazendo piada, mas ela não acha a menor graça. e eu penso: não era eu<br />
quem devia estar surtando aqui tiny vai ser o primeiro n-n-n- (não consigo)<br />
namor-r-r- (vamos lá, <strong>will</strong>) namora-namora (aqui vamos nós) namorado meu que<br />
ela conhece. embora, se ela continuar falando de salada, talvez eu tenha de<br />
trancá-la no quarto antes de ele chegar.<br />
mãe: tem certeza de que ele não é alérgico a nada<br />
eu: fique. calma.<br />
como se de repente eu tivesse habilidades supercaninas, ouço <strong>um</strong> carro<br />
parando na entrada de casa. antes que minha mãe possa me mandar pentear o<br />
cabelo e calçar sapatos, já estou saindo pela porta e vendo tiny desligar a<br />
ignição.<br />
eu: corra! corra!<br />
mas o rádio está tão alto que tiny não consegue me ouvir. ele apenas sorri.<br />
quando abre a porta, dou <strong>um</strong>a olhada no carro dele.<br />
eu: mas que...!
é <strong>um</strong> mercedes prata — o tipo de carro que você esperaria ver dirigido por<br />
<strong>um</strong> cirurgião plástico — e não o tipo de cirurgião plástico que conserta os<br />
rostos estragados de bebês africanos famintos, mas o tipo de cirurgião plástico<br />
que convence as mulheres de que a vida delas acabará se aparentarem mais de 12<br />
anos.<br />
tiny: saudações, terráqueo! venho em paz. leve-me ao seu líder!<br />
devia ser estranho tê-lo à minha frente em nosso segundo encontro apenas, e<br />
devia ser muito excitante estar prestes a ser arrebatado naqueles grandes braços,<br />
mas, na realidade, ainda estou embasbacado com o carro.<br />
eu: por favor, me diga que você roubou isso.<br />
ele parece <strong>um</strong> pouco confuso, e ergue a bolsa de compras que está segurando.<br />
tiny: isto<br />
eu: não. o carro.<br />
tiny: ah. bem, de fato eu roubei.<br />
eu: você roubou<br />
tiny: sim, da minha mãe. meu carro estava quase sem gasolina.<br />
que bizarro. todas as vezes em que nos falamos, trocamos mensagens ou sei<br />
lá o quê, sempre imaginei tiny n<strong>um</strong>a casa como a minha, ou <strong>um</strong>a escola como a<br />
minha, ou n<strong>um</strong> carro como o que eu talvez ganhe <strong>um</strong> dia — <strong>um</strong> carro quase da<br />
minha idade, provavelmente comprado de <strong>um</strong>a velha que não tenha mais<br />
permissão para dirigir. agora percebo que não é nada disso.<br />
eu: você mora n<strong>um</strong> casarão, né<br />
tiny: grande o bastante pra me caber!<br />
eu: não é disso que estou falando.
não tenho a menor ideia do que estou fazendo. porque mudei totalmente<br />
nosso ritmo, e embora ele esteja bem diante de mim agora, não é como deveria<br />
ser.<br />
tiny: vem cá, vem.<br />
e, com isso, ele põe a sacola no chão e abre os braços pra mim, e seu sorriso<br />
é tão largo que eu seria <strong>um</strong> babaca de fazer qualquer coisa que não fosse seguir<br />
direto para suas boas-vindas. <strong>um</strong>a vez ali, ele se inclina e me beija de leve.<br />
tiny: olá.<br />
eu o beijo de volta.<br />
eu: olá.<br />
ok, então essa é a realidade: ele está aqui. ele é real. nós somos reais. eu não<br />
deveria me importar com o carro dele.<br />
minha mãe já tirou o avental quando entramos em casa. embora eu tenha<br />
avisado a ela que ele tem o formato de utah, ainda há <strong>um</strong> breve momento de<br />
perplexidade quando ela vê tiny pessoalmente pela primeira vez. ele deve estar<br />
acost<strong>um</strong>ado a isso, ou talvez não se importe, porque segue direto até ela e<br />
começa a dizer todas as coisas certas, sobre o quanto está entusiasmado em<br />
conhecê-la, o quão incrível é ela preparar o jantar e o quanto a casa é<br />
maravilhosa.<br />
mamãe indica a ele o sofá e pergunta se quer beber alg<strong>um</strong>a coisa.<br />
mãe: temos coca, coca diet, limonada, suco de laranja…<br />
tiny: aah, eu adoro limonada.<br />
eu: não é limonada de verdade. é só refresco sabor limão.
tanto minha mãe quanto tiny me olham como se eu fosse a porra do grinch.<br />
eu: não queria que você ficasse todo animado na expectativa de limonada de<br />
verdade!<br />
não posso evitar — estou vendo nosso apartamento através dos olhos dele,<br />
nossa vida toda pelos olhos dele — e tudo parece tão… pobre. as manchas de<br />
infiltração no teto e o tapete de cor entediante e a tv de décadas. a casa inteira<br />
cheira a dívida.<br />
mãe: por que você não se senta com tiny e eu pego <strong>um</strong>a coca pra você<br />
eu tomei meu remédio de manhã, juro. mas é como se ele tivesse ido parar<br />
na minha perna e não no meu cérebro, porque simplesmente não consigo me<br />
sentir feliz. eu me sento no sofá e assim que minha mãe sai da sala, a mão de<br />
tiny está na minha mão, seus dedos acariciando os meus.<br />
tiny: está tudo bem, <strong>will</strong>. estou adorando estar aqui.<br />
sei que ele está tendo <strong>um</strong>a semana ruim. sei que as coisas não têm saído do<br />
jeito dele e que ele está preocupado que o show vá ser <strong>um</strong> fracasso. ele o está<br />
reescrevendo diariamente. (“ quem diria que seria tão complicado introduzir o<br />
amor em 14 músicas”) sei que ele estava esperando esse encontro — e sei que<br />
eu estava esperando esse encontro. mas agora tenho que parar de olhar adiante e<br />
começar a olhar para o lugar em que estou. é difícil.<br />
recosto-me no ombro carnudo de tiny.<br />
não posso acreditar que eu fique excitado com alg<strong>um</strong>a coisa a qual me refiro<br />
como “ carnudo”.<br />
eu: esta é a parte ruim, ok então foque na parte boa. prometo que virá logo.
quando minha mãe retorna, ainda estou recostado ali. ela não hesita, não<br />
para, não parece se importar. pousa nossas bebidas e então volta correndo pra<br />
cozinha. ouço o fogão abrir e fechar, em seguida o ruído de <strong>um</strong>a espátula<br />
raspando em <strong>um</strong> tabuleiro. <strong>um</strong> minuto depois, ela está de volta com <strong>um</strong>a<br />
travessa de minicachorros-quentes e minirrolinhos primavera. tem até duas<br />
tigelinhas, <strong>um</strong>a com ketchup e a outra com mostarda.<br />
tiny: h<strong>um</strong>mm!<br />
caímos dentro. tiny começa a contar à mamãe sobre a semana que teve e dar<br />
tantos detalhes sobre me abrace mais forte que eu vejo que ela está totalmente<br />
perdida. enquanto ele fala, ela permanece acima de nós, até que finalmente digo<br />
que deveria se juntar a nós e se sentar. assim, ela puxa <strong>um</strong>a cadeira e se põe a<br />
ouvir, até mesmo comendo <strong>um</strong> ou dois rolinhos primavera.<br />
a situação começa a parecer mais normal. tiny aqui. minha mãe vendo nós<br />
dois. eu sentado de modo que pelo menos <strong>um</strong>a parte do meu corpo está sempre<br />
em contato com o dele. é quase como se eu estivesse de volta ao millenni<strong>um</strong><br />
park com ele, continuando nossa primeira conversa, como se manipulasse o<br />
tempo, e isso é o que se espera que aconteça. como sempre, a única pergunta é<br />
se vou estragar tudo.<br />
quando não tem mais comida pra beliscar, minha mãe recolhe os pratos e<br />
avisa que o jantar vai estar pronto em alguns minutos. assim que ela deixa a<br />
sala, tiny se vira pra mim.<br />
tiny: amei sua mãe.<br />
sim, penso, ele é o tipo de pessoa que pode amar alguém assim facilmente.<br />
eu: ela não é má.
quando ela volta pra nos dizer que o jantar está pronto, tiny se levanta de <strong>um</strong><br />
salto do sofá.<br />
tiny: aah! eu quase esqueci.<br />
ele pega a sacola de compras que trouxe e a entrega à minha mãe.<br />
tiny: <strong>um</strong> presente pra dona da casa!<br />
mamãe parece surpresa de verdade. tira <strong>um</strong>a caixa da sacola — tem <strong>um</strong> laço e<br />
tudo mais. tiny volta a se sentar pra que ela não se sinta constrangida de se<br />
sentar pra abri-la. com muito cuidado, ela desfaz o laço. então levanta a tampa<br />
da caixa delicadamente, abrindo-a. vê-se <strong>um</strong> forro de esp<strong>um</strong>a preta, e alg<strong>um</strong>a<br />
coisa envolta em plástico bolha. com mais cuidado ainda, ela retira o papel e<br />
ergue <strong>um</strong>a tigela simples de vidro.<br />
a princípio, não entendo. quero dizer, é <strong>um</strong>a tigela de vidro. mas mamãe<br />
prende o fôlego. ela pisca pra impedir as lágrimas. porque não se trata apenas de<br />
<strong>um</strong>a simples tigela de vidro. é perfeita. é tão lisa e perfeita que nós todos nos<br />
sentamos ali e a fitamos por <strong>um</strong> momento, enquanto minha mãe gira o objeto<br />
lentamente nas mãos. mesmo em nossa sala pobre, ela captura a luz.<br />
ninguém lhe dá nada parecido há séculos. talvez nunca tenha dado. ninguém<br />
jamais lhe dá nada bonito assim.<br />
tiny: eu mesmo escolhi!<br />
ele não tem a menor ideia. não tem a menor pista do que acaba de fazer.<br />
mãe: ah, tiny…<br />
ela está sem palavras. mas eu posso ver. é a maneira como ela segura a tigela.<br />
é a maneira como olha pra ela.
eu sei o que o cérebro a está mandando fazer — dizer que é demais, que ela<br />
não poderia aceitar tal coisa. mesmo que ela a queira muito. mesmo que a ame<br />
muito.<br />
por isso, sou eu quem diz<br />
eu: é linda. muito obrigado, tiny.<br />
eu o abraço, transmitindo-lhe meu obrigado dessa maneira também. então<br />
minha mãe põe a tigela na mesinha de centro que ela limpou até brilhar. ela está<br />
se levantando, e está abrindo os braços, e então ele a abraça também.<br />
isso é o que eu nunca me permito precisar.<br />
e, é claro, venho precisando disso o tempo todo.<br />
pra falar a verdade, tiny come a maior parte do frango à parmegiana no jantar,<br />
e conduz a maior parte da conversa também. falamos principalmente sobre coisas<br />
idiotas — por que minicachorros-quentes são mais saborosos que cachorros<br />
quentes de tamanho normal, por que cachorros são melhores que gatos, por que<br />
o musical cats teve tanto sucesso nos anos 1980 quando sondheim superou<br />
lloyd webber (na verdade, nem minha mãe nem eu contribuímos muito pra esse<br />
tema). em determinado momento, tiny vê o postal de da vinci que mamãe tem<br />
na geladeira e pergunta a ela se já foi à itália. assim ela conta a ele da viagem<br />
que fez com três amigas de faculdade no terceiro ano, e parece <strong>um</strong>a história<br />
interessante, pela primeira vez. ele diz a ela que gosta de nápoles ainda mais que<br />
de roma porque as pessoas em nápoles são intensamente de onde são. ele conta<br />
que escreveu <strong>um</strong>a música sobre viagens em seu musical, mas acabou não<br />
incluindo a canção. e canta alguns versos para a gente:<br />
Uma vez tendo ido a Nápoles,<br />
é difícil fazer compras em Staples.<br />
E <strong>um</strong>a vez tendo ido a Milão,
difícil fazer no Au Bon Pain a refeição.<br />
Uma vez tendo ido a Veneza,<br />
você busca os prazeres da mesa.<br />
E foge da culinária enfadonha,<br />
Quando experimenta rigatoni em Bolonha.<br />
Ser <strong>um</strong> gay transatlântico<br />
acaba não sendo tão romântico.<br />
Porque quando você a Roma viaja,<br />
é difícil voltar para casa.<br />
pela primeira vez que me lembro, minha mãe parece estar se divertindo<br />
totalmente. ela até cantarola <strong>um</strong> pouco, acompanhando. quando tiny termina, os<br />
aplausos dela são genuínos. calculo que seja hora de pôr <strong>um</strong> fim na<br />
confraternização deles, antes que tiny e minha mãe fujam juntos para formar <strong>um</strong>a<br />
banda.<br />
eu me ofereço pra lavar a louça, e mamãe age como se estivesse totalmente<br />
chocada com isso.<br />
eu: eu lavo a louça o tempo todo.<br />
ela olha séria para tiny.<br />
mãe: é verdade, ele lava.<br />
então cai na gargalhada.<br />
não estou gostando muito disso, embora esteja ciente de que essa história<br />
poderia ter rolado de muitas maneiras piores.<br />
tiny: quero ver o seu quarto!
não se trata de <strong>um</strong> pedido do tipo ei!-meu-zíper-está-comichando! quando<br />
tiny diz que quer ver o seu quarto, isso significa que ele quer ver... o seu quarto.<br />
mãe: vão lá. eu cuido da louça.<br />
tiny: obrigado, sra. grayson.<br />
mãe: anne. me chame de anne.<br />
tiny: obrigado, anne!<br />
eu: é, obrigado, anne.<br />
tiny bate em meu ombro. creio que sua intenção é fazer isso de leve, mas<br />
tenho a sensação de que alguém acabou de passar com <strong>um</strong> volkswagen em cima<br />
do meu braço.<br />
eu o levo pro meu quarto, e até consigo fazer <strong>um</strong> tchantchantchan! ao abrir a<br />
porta. ele vai até o centro do quarto e observa tudo, sorrindo o tempo todo.<br />
tiny: peixinhos dourados!<br />
ele vai direto ao aquário. explico a ele que, se os peixinhos dourados <strong>um</strong> dia<br />
dominarem o mundo e decidirem realizar <strong>um</strong> julgamento por crimes de guerra,<br />
estou condenado, porque a taxa de mortalidade do meu pequeno aquário é<br />
muito, muito mais alta do que se eles vivessem no fosso de <strong>um</strong> restaurante<br />
chinês.<br />
tiny: qual o <strong>nome</strong> deles<br />
oh, deus.<br />
eu: sansão e dalila.<br />
tiny: mesmo<br />
eu: ela é <strong>um</strong>a vadia.
ele se inclina pra olhar mais de perto a comida dos peixes.<br />
tiny: você dá remédio tarja preta pra eles<br />
eu: ah, não. esses são meus.<br />
é a única maneira de eu lembrar de alimentar os peixes e tomar meus<br />
remédios: deixá-los juntos. mas me ocorre que eu devia ter arr<strong>um</strong>ado o quarto<br />
melhor. porque é claro que agora tiny está ficando vermelho e não vai perguntar<br />
mais nada, e embora eu não queira entrar em detalhes, também não quero que<br />
ele pense que estou em tratamento contra sarna nem nada no gênero.<br />
eu: é pra depressão.<br />
tiny: ah, eu também me sinto deprimido. às vezes.<br />
estamos chegando perigosamente perto das conversas que tive com maura,<br />
quando ela dizia que sabia exatamente o que eu estava passando, e eu tinha de<br />
explicar que, não, ela não sabia, porque a tristeza dela nunca tinha sido tão<br />
profunda quanto a minha. não tinha a menor dúvida de que tiny pensava que<br />
ficava deprimido, mas isso provavelmente era porque ele não tinha nada com<br />
que comparar. no entanto, o que eu poderia dizer que eu não só me sentia<br />
deprimido — era como se a depressão fosse meu núcleo, de cada pedaço meu, da<br />
mente aos ossos que se às vezes o céu dele não parecia azul, o meu estava<br />
sempre negro que eu odiava tanto aqueles comprimidos porque eu sabia o<br />
quanto dependia deles pra viver<br />
não, eu não podia dizer nada disso. porque, no fim das contas, ninguém quer<br />
ouvir isso. não importa o quanto a pessoa goste de você ou te ame, ninguém<br />
quer ouvir isso.<br />
tiny: qual deles é sansão e qual é dalila<br />
eu: sinceramente esqueci.
tiny examina minha estante de livros, corre a mão pelo meu teclado, gira o<br />
globo que ganhei quando terminei o quinto ano.<br />
tiny: olhe! <strong>um</strong>a cama!<br />
por <strong>um</strong> segundo, penso que ele vai pular em cima dela, o que certamente<br />
acabaria com o estrado. mas, com <strong>um</strong> sorriso quase tímido, ele se senta com<br />
cuidado na borda.<br />
tiny: confortável!<br />
como foi que acabei namorando esse donut polvilhado que é essa pessoa<br />
com <strong>um</strong> suspiro não hostil, eu me sento perto dele. o colchão decididamente<br />
está afundando na direção dele.<br />
mas, antes do inevitável passo seguinte, meu telefone vibra na mesa. decido<br />
ignorá-lo, mas ele toca de novo e tiny me diz pra checar.<br />
abro o aparelho e leio o que diz a tela.<br />
tiny: de quem é<br />
eu: é só gideon. ele quer saber como tudo está indo.<br />
tiny: gideon, é<br />
há <strong>um</strong> tom inconfundível de suspeita na voz de tiny. fecho o aparelho e volto<br />
pra cama.<br />
eu: você não está com ciúme de gideon, está<br />
tiny: ora, porque ele é bonito, jovem e gay, e encontra você todos os dias<br />
que razão há pra eu ter ciúmes<br />
dou <strong>um</strong> beijo nele.
eu: você não tem motivo nenh<strong>um</strong> pra ter ciúme. somos só amigos.<br />
<strong>um</strong>a coisa me ocorre então, e eu começo a rir.<br />
tiny: o que foi<br />
eu: tem <strong>um</strong> garoto na minha cama!<br />
trata-se de <strong>um</strong> pensamento tão gay e tão idiota. tenho vontade de gravar “ EU<br />
ODEIO O MUNDO” no meu braço <strong>um</strong>as cem vezes pra me redimir.<br />
a cama de fato não é grande o bastante pra nós dois. vou parar no chão duas<br />
vezes. continuamos com as roupas — mas é quase como se isso não tivesse<br />
importância. porque estamos nos beijando loucamente. ele é grande e forte, mas<br />
eu o igualo no empurra-e-puxa. não demora para que estejamos completamente<br />
desarr<strong>um</strong>ados e com calor.<br />
quando estamos exaustos, ficamos simplesmente ali, deitados. o batimento<br />
cardíaco dele é muito forte.<br />
ouvimos minha mãe ligar a tv. os detetives começam a conversar. tiny corre<br />
a mão por baixo da minha camisa.<br />
tiny: cadê seu pai<br />
estou totalmente despreparado para a pergunta. fico tenso.<br />
eu: não sei.<br />
o toque de tiny tenta me tranquilizar. sua voz tenta me acalmar.<br />
tiny: está tudo bem.<br />
mas não consigo lidar com isso. então me sento, arrancando-nos de nosso<br />
ritmo de respiração sonhador, fazendo-o afastar-se <strong>um</strong> pouco pra poder me ver
claramente. o impulso em mim é alto e claro: não posso fazer isso. não por<br />
causa do meu pai — não me importo tanto assim com meu pai, de verdade —,<br />
mas por causa de todo esse processo de saber tudo.<br />
brigo comigo mesmo.<br />
pare.<br />
fique aqui.<br />
fale.<br />
tiny está esperando. tiny está olhando pra mim. tiny está sendo gentil,<br />
porque ainda não sabe quem sou, o que sou. nunca retribuirei a gentileza. o<br />
melhor que posso fazer é dar a ele razões pra desistir.<br />
tiny: me diga. o que você quer falar<br />
não me pergunte, tenho vontade de adverti-lo. mas já estou falando.<br />
eu: olha, tiny, estou tentando me comportar da melhor forma possível, mas<br />
você precisa entender, estou sempre à beira de alg<strong>um</strong>a coisa ruim. e às vezes<br />
alguém como você pode me fazer olhar pro outro lado, de modo que eu não<br />
saiba o quanto estou perto de cair. mas eu sempre acabo virando a cabeça.<br />
sempre. sempre caminho pela borda desse precipício. e é <strong>um</strong>a merda o que<br />
enfrento todos os dias, e essa merda não vai desaparecer tão cedo. é muito legal<br />
ter você aqui, mas quer saber quer mesmo que eu seja sincero<br />
ele devia ver isso como o aviso que é. mas não. ele faz que sim com a<br />
cabeça.<br />
eu: parecem <strong>um</strong>as férias. não creio que você saiba como é isso. o que é bom<br />
— você não ia querer. você não tem a menor ideia do quanto odeio isso. odeio<br />
o fato de que estou arruinando a noite neste momento, arruinando tudo…<br />
tiny: você não está.
eu: estou.<br />
tiny: quem disse<br />
eu: eu digo.<br />
tiny: eu não tenho voz<br />
eu: não. acabei de arruinar tudo. você não tem voz.<br />
tiny toca minha orelha de leve.<br />
tiny: sabe, você fica todo sexy quando está destrutivo.<br />
os dedos dele descem pelo meu pescoço, sob a gola.<br />
tiny: eu sei que não posso mudar seu pai, sua mãe ou seu passado. mas sabe<br />
o que posso fazer<br />
sua outra mão sobe pela minha perna.<br />
eu: o quê<br />
tiny: outra coisa. é isso que posso lhe dar. outra coisa.<br />
estou tão acost<strong>um</strong>ado a fazer aflorar a dor nas pessoas. mas tiny se recusa a<br />
entrar nesse jogo. enquanto trocamos mensagens o dia todo, e mesmo aqui<br />
pessoalmente, ele está sempre tentando chegar ao coração das coisas. e isso<br />
significa que ele sempre supõe que haja <strong>um</strong> coração aonde chegar. acho isso<br />
ridículo e admirável ao mesmo tempo. quero a outra coisa que ele tem pra me<br />
dar, ainda que eu saiba que nunca vai ser algo que eu possa de fato pegar e tomar<br />
posse.<br />
sei que não é tão fácil quanto tiny diz. mas ele está se esforçando tanto. então<br />
eu me rendo. eu me rendo à outra coisa.<br />
mesmo que meu coração não acredite totalmente.
capítulo quinze<br />
No dia seguinte, Tiny não está na aula de pré-cálculo. Deduzo que esteja<br />
debruçado em alg<strong>um</strong> lugar, escrevendo canções em <strong>um</strong> caderno comicamente<br />
pequeno. Isso não me incomoda muito. Eu o vejo entre o segundo e o terceiro<br />
tempo de aula quando passo por seu armário; o cabelo parece sujo e os olhos<br />
arregalados.<br />
— Overdose de Red Bull — pergunto ao me aproximar dele.<br />
Tiny responde em <strong>um</strong> rompante furioso.<br />
— A peça estreia em nove dias, Will Grayson é <strong>um</strong>a graça, está tudo bem.<br />
Olha, Grayson, tenho de ir pro auditório. Até o almoço.<br />
— O outro Will Grayson — digo.<br />
— O quê, hein — pergunta Tiny, fechando ruidosamente a porta do<br />
armário.<br />
— O outro Will Grayson é <strong>um</strong>a graça.<br />
— Isso, isso mesmo — responde ele.<br />
Ele não está em nossa mesa de almoço, nem Gary, Nick ou Jane, nem<br />
ninguém, e eu não quero a mesa inteira pra mim, então levo a bandeja pro<br />
auditório, imaginando que vou encontrar todo mundo por lá. Tiny encontra-se<br />
de pé no meio do palco, <strong>um</strong> caderno n<strong>um</strong>a das mãos e o celular na outra,<br />
gesticulando enlouquecido. Nick está sentado na primeira fileira. Tiny está<br />
falando com Gary no palco, e como a acústica é fantástica em nosso auditório,<br />
posso ouvir exatamente o que ele está dizendo, mesmo lá de trás.<br />
— O que você precisa lembrar em relação a Phil Wrayson é que ele é<br />
totalmente apavorado. Em relação a tudo. Ele age como se não ligasse pra nada,<br />
porém está mais perto de desmoronar do que qualquer outro na peça inteirinha.<br />
Quero ouvir o tremor na voz dele quando cantar, a carência que ele espera que<br />
ninguém possa ouvir. Porque tem de ser isso que o torna tão irritante, sabe As
coisas que ele diz não são irritantes; é a maneira como ele as diz. Assim,<br />
quando Tiny está colando aqueles pôsteres sobre Orgulho, e Phil não para de<br />
falar sobre os estúpidos problemas com garotas que arranjou pra si mesmo,<br />
temos de ouvir o que é irritante. Mas você também não pode exagerar. É <strong>um</strong>a<br />
coisa bem sutil, cara. É a pedrinha no sapato.<br />
Fico ali parado por <strong>um</strong> minuto, esperando que ele me veja, e então ele<br />
finalmente me vê.<br />
— Ele é <strong>um</strong> PERSONAGEM, Grayson — grita. — É <strong>um</strong> PERSONAGEM<br />
DE FICÇÃO.<br />
Ainda segurando a bandeja, dou meia-volta e saio. Me sento do lado de fora<br />
do auditório no piso de cerâmica do corredor, encosto na vitrine de <strong>um</strong> troféu e<br />
como <strong>um</strong> pouco.<br />
Fico esperando por ele. Que ele venha e peça desculpas. Ou então que venha<br />
e grite comigo por ser tão fresco. Fico esperando que aquelas portas duplas de<br />
madeira escura se abram, e Tiny saia intempestivamente e comece a falar.<br />
Sei que é imaturo da minha parte, mas não me importo. Às vezes, você<br />
precisa que seu melhor amigo atravesse as portas. Mas ele não vem. Por fim,<br />
sentindo-me pequeno e idiota, sou eu quem se levanta e entreabre a porta. Tiny<br />
está cantando, feliz, sobre Oscar Wilde. Fico ali parado por <strong>um</strong> momento, ainda<br />
esperando que ele me veja, e nem percebo que estou chorando até que esse som<br />
distorcido escapa de mim quando inspiro. Fecho a porta. Se Tiny me vê, ele<br />
não faz sequer <strong>um</strong>a pausa que acuse minha presença.<br />
Atravesso o corredor, a cabeça tão baixa que a água salgada pinga da ponta do<br />
meu nariz. Saio pela porta principal — o ar frio, o sol cálido — e desço os<br />
degraus. Sigo pela calçada até chegar ao portão de segurança, então mergulho<br />
nas moitas. Alg<strong>um</strong>a coisa em minha garganta dá a impressão de que vai me<br />
sufocar. Atravesso os arbustos exatamente como Tiny e eu fizemos no primeiro<br />
ano, quando fugimos para ir a Boys Town ver a Parada do Orgulho Gay, onde
ele saiu do armário pra mim.<br />
Sigo até <strong>um</strong> campo da Liga Júnior que fica a meio caminho entre minha casa<br />
e a escola. Fica bem perto de outra escola, e, quando eu era pequeno, cost<strong>um</strong>ava<br />
ir lá muitas vezes sozinho, depois das aulas por exemplo, só pra pensar. Às<br />
vezes, eu levava <strong>um</strong> bloco ou algo assim e tentava desenhar, mas gostava<br />
principalmente de ir lá. Dou a volta pela cerca atrás da última base, me sento no<br />
banco de reservas, minhas costas apoiadas na parede de al<strong>um</strong>ínio aquecida pelo<br />
sol, e choro.<br />
Eis o que eu gosto no banco de reservas: estou ao lado da terceira base, e<br />
posso ver o diamante de terra à minha frente e as quatro fileiras de arquibancadas<br />
de madeira a <strong>um</strong> dos lados; e, do outro lado, o campo externo e o diamante<br />
seguinte mais além; e então <strong>um</strong> grande parque e, mais adiante, a rua. Posso ver<br />
as pessoas caminhando com seus cães e <strong>um</strong> casal andando contra o vento. Mas<br />
com as costas contra a parede, com esse teto de al<strong>um</strong>ínio sobre minha cabeça,<br />
ninguém pode me ver, a menos que eu possa vê-los.<br />
A raridade da situação é o tipo de coisa que te faz chorar.<br />
Tiny e eu de fato jogamos na Liga Júnior juntos — não neste campo, mas<br />
em <strong>um</strong> que ficava mais perto de nossas casas, a partir do terceiro ano<br />
fundamental. Foi assim que ficamos amigos, eu acho. Tiny era forte pra<br />
caramba, é claro, mas não muito bom com o taco. No entanto, ele liderava a<br />
liga quando se tratava de ser acertado por arremessos. Havia muito o que acertar.<br />
Eu fazia <strong>um</strong>a respeitável primeira base e não liderava a liga em nada.<br />
Apoiei os cotovelos nos joelhos como fazia quando estava assistindo a alg<strong>um</strong><br />
jogo de <strong>um</strong> banco como esse. Tiny sempre se sentava ao meu lado, e embora só<br />
jogasse porque o treinador tinha de colocar todo mundo pra jogar, ele era<br />
superentusiasmado. Ficava gritando: “ Ei, rebatedor, rebatedor. Ei, rebatedor<br />
rebatedor, BALANCE, rebatedor”, e então por fim ele mudava para: “ Queremos<br />
<strong>um</strong> arremessador, não <strong>um</strong> banana!”
Depois veio o sexto ano: Tiny jogava na terceira base, e eu estava na<br />
primeira. Estávamos no começo do jogo, e estávamos ou ganhando de pouco ou<br />
perdendo de pouco — não me lembro. Sinceramente, eu nem olhava pro placar<br />
quando estava jogando. O beisebol, pra mim, era apenas <strong>um</strong>a daquelas coisas<br />
estranhas e terríveis que os pais fazem por razões que não se pode compreender,<br />
como vacinas contra gripe e a igreja. Então o rebatedor acertou a bola, que<br />
seguiu pra Tiny. Tiny aparou e atirou a bola para a primeira com seu braço de<br />
canhão, e eu me estiquei para apanhá-la, tomando o cuidado de manter <strong>um</strong> pé na<br />
base. A bola acertou minha luva e imediatamente caiu, porque me esqueci de<br />
fechar a mão. O corredor estava em segurança, e o erro nos custou <strong>um</strong> run ou<br />
algo assim. Depois que o inning terminou, voltei pro banco de reservas. O<br />
treinador — acho que o <strong>nome</strong> era Sr. Frye — inclinou-se em minha direção.<br />
Tive consciência do tamanho de sua cabeça, o boné erguendo-se alto acima do<br />
rosto gordo, e ele disse: “ CONCENTRE-SE em PEGAR a BOLA. PEGUE a<br />
BOLA, entendeu Meu Deus!” Senti meu rosto quente, e, com aquele tremor na<br />
voz que Tiny indicou pra Gary, eu disse: “ Sinto muito, treinador”, e o Sr. Frye<br />
respondeu: “ Eu também, Will. Eu também.”<br />
E então Tiny recuou e deu <strong>um</strong> soco no nariz do Sr. Frye. Simples assim. E<br />
dessa forma nossas carreiras na Liga Júnior chegaram ao fim.<br />
Não doeria se ele não estivesse certo — se eu, lá no fundo, não soubesse que<br />
minha fraqueza o exaspera. E talvez ele pense como eu, que a gente não escolhe<br />
os amigos, e ele está preso a esse baitola irritante que não consegue lidar<br />
consigo mesmo, que não consegue segurar a bola na mão enluvada, que não<br />
consegue levar <strong>um</strong> esporro do treinador, que se arrepende de escrever cartas ao<br />
editor em defesa de seu melhor amigo. Essa é a verdadeira história da nossa<br />
amizade: Não sou eu quem está preso a Tiny. É ele quem está preso a mim.<br />
Se não posso fazer mais nada, posso aliviá-lo desse peso.<br />
Levo muito tempo pra parar de chorar. Uso a luva como lenço enquanto
observo a sombra do telhado do banco de reservas deslizar pelas minhas pernas<br />
esticadas enquanto o sol sobe para o topo do céu. Por fim, sinto as orelhas<br />
congeladas à sombra do banco, então me levanto, atravesso o parque e sigo pra<br />
casa. No caminho, examino minha lista de contatos no celular por <strong>um</strong> tempo e<br />
então ligo pra Jane. Não sei por quê. Sinto que preciso ligar para alguém. Sinto,<br />
estranhamente, como se ainda quisesse que alguém abrisse as portas duplas do<br />
auditório. Cai na caixa postal.<br />
“ Desculpe, Tarzan, Jane não se encontra disponível. Deixe <strong>um</strong>a mensagem.”<br />
“ Oi, Jane, é o Will. Só queria falar com você. Eu… sinceridade radical<br />
Acabei de passar uns cinco minutos correndo a lista de todo mundo pra quem eu<br />
podia ligar e você foi a única pessoa pra quem eu quis ligar, porque eu gosto de<br />
você. Gosto muito. Acho que você é incrível. Você é simplesmente… mais.<br />
Mais inteligente e mais engraçada e mais bonita e simplesmente… mais. Sim.<br />
Isso é tudo. Tchau.”<br />
Quando chego em casa, telefono pro meu pai. Ele atende no último toque.<br />
— Você pode ligar pra escola e dizer que estou doente Precisei vir pra casa<br />
— digo.<br />
— Você está bem, companheiro<br />
— Sim, estou bem — respondo, mas o tremor está na minha voz, e sinto<br />
como se fosse recomeçar com os soluços por alg<strong>um</strong>a razão, e ele diz:<br />
— Ok. Ok. Vou ligar.<br />
Quinze minutos depois, estou afundado no sofá da sala, os pés na mesa de<br />
centro. Olho pra TV, só que ela não está ligada. Estou com o controle remoto<br />
na mão esquerda, mas não tenho energia nem pra pressionar o maldito botão de<br />
ligar.<br />
Ouço a porta da garagem se abrir. Meu pai entra pela cozinha e se senta ao<br />
meu lado, bem perto.<br />
— Quinhentos canais — diz ele após <strong>um</strong> momento —, e não está passando
nada.<br />
— Você tirou o dia de folga<br />
— Eu sempre posso conseguir alguém pra me cobrir — responde ele. —<br />
Sempre.<br />
— Estou bem — digo.<br />
— Sei que está. Eu só queria estar em casa com você, só isso.<br />
Pisco, afugentando alg<strong>um</strong>as lágrimas, mas meu pai tem a decência de não<br />
falar nada a respeito. Então ligo a TV e encontramos <strong>um</strong> programa chamado Os<br />
Iates Mais Impressionantes do Mundo, sobre iates que têm, tipo, campos de<br />
golfe ou o que seja, e toda vez que mostram alg<strong>um</strong> recurso sofisticado, ele diz:<br />
“ É IM-PRES-SIO-NAN-TE!” com sarcasmo, embora seja mesmo meio<br />
impressionante. É e não é, suponho.<br />
E então meu pai tira o som da TV e diz:<br />
— Sabe o Dr. Porter<br />
Faço que sim com a cabeça. É o cara que trabalha com a mamãe.<br />
— Eles não têm filhos, por isso, são ricos.<br />
Eu rio.<br />
— Mas eles têm esse barco que mantêm em Belmont Harbor, <strong>um</strong> desses<br />
gigantes com armários de madeira de cerejeira importada da Indonésia e <strong>um</strong>a<br />
cama king-size giratória acolchoada com penas de águias ameaçadas de extinção<br />
e tudo mais. Sua mãe e eu fomos a <strong>um</strong> jantar no barco com os Porter há alguns<br />
anos, e no período de <strong>um</strong>a única refeição, naquelas duas horas, o barco passou<br />
de a experiência mais extraordinariamente luxuosa para <strong>um</strong> simples barco.<br />
— Imagino que haja <strong>um</strong>a moral nessa história.<br />
Ele ri.<br />
— Você é o nosso iate, companheiro. Sabe todo aquele dinheiro que teria ido<br />
pra <strong>um</strong> iate, todo o tempo que nós teríamos passado viajando pelo mundo Em<br />
vez disso, tivemos você. O iate acabou sendo <strong>um</strong> simples barco. Mas você...
você não pode ser comprado a crédito, e não pode ser abatido do imposto de<br />
renda. — Ele vira o rosto na direção da TV e, após <strong>um</strong> momento, diz: —<br />
Tenho tanto orgulho de você que acabo tendo orgulho de mim. Espero que você<br />
saiba disso.<br />
Faço que sim com a cabeça, a garganta apertada, olhando agora pra <strong>um</strong><br />
comercial sem som de sabão em pó. Um segundo depois, ele murmura pra si<br />
mesmo:<br />
— Crédito, pessoas, cons<strong>um</strong>ismo… Tem <strong>um</strong> trocadilho aí em alg<strong>um</strong> lugar.<br />
Eu pergunto:<br />
— E se eu não quisesse ir praquele programa na Northwestern Ou e se eu<br />
não for aceito<br />
— Bem, então eu deixaria de amar você — diz ele, mantendo a expressão<br />
séria por <strong>um</strong> segundo, então ri e liga o som da TV.<br />
•••<br />
Mais tarde, resolvemos fazer <strong>um</strong>a surpresa pra minha mãe com chilli de peru<br />
pro jantar. Estou picando cebola quando a campainha toca. Imediatamente sei<br />
que é Tiny, e sinto esse estranho alívio irradiar do meu plexo solar.<br />
— Eu atendo — digo. Passo espremido por meu pai na cozinha e vou<br />
correndo até a porta.<br />
Não é Tiny, mas Jane. Ela me olha, os lábios apertados.<br />
— Qual o segredo do meu armário<br />
— Vinte-cinco-dois-onze — digo.<br />
Ela me bate de brincadeira no peito.<br />
— Eu sabia! Por que você não me falou<br />
— Eu não conseguia chegar à conclusão de qual de várias verdades era a mais<br />
verdadeira — respondo.<br />
— Temos de abrir a caixa — continua ela.
— Hã — digo. Dou <strong>um</strong> passo à frente pra poder fechar a porta atrás de mim,<br />
mas ela não recua, então agora estamos quase nos encostando. — O gato tem<br />
namorado — ressalto.<br />
— Na verdade, eu não sou o gato. O gato somos nós. Eu sou <strong>um</strong>a física.<br />
Você é <strong>um</strong> físico. O gato somos nós.<br />
— Hã, ok — retruco. — A física tem namorado.<br />
— A física não tem namorado. A física deu o fora no namorado no jardim<br />
botânico porque ele não parava de falar que ia pras Olimpíadas de 2016, e havia<br />
essa vozinha na cabeça da física chamada Will Grayson, dizendo: “ E nas<br />
Olimpíadas você vai representar os Estados Unidos ou o Reino da<br />
Babacolândia” Então a física rompeu com o namorado e insiste que a caixa seja<br />
aberta, porque ela, tipo, não consegue parar de pensar no gato. A física não se<br />
importa se o gato estiver morto; ela só precisa saber.<br />
Nos beijamos. As mãos dela estão geladas no meu rosto, ela tem gosto de<br />
café, o cheiro da cebola ainda está no meu nariz, e meus lábios estão ressecados<br />
por causa do interminável inverno. E é incrível.<br />
— Sua opinião profissional como física — pergunto.<br />
Ela sorri.<br />
— Acredito que o gato esteja vivo. E o que diz meu estimado colega<br />
— Vivo — respondo. E está mesmo. O que faz com que seja ainda mais<br />
estranho que, enquanto falo com ela, <strong>um</strong>a pequena ferida dentro de mim ainda<br />
esteja aberta. Pensei que seria Tiny na porta, cheio de pedidos de desculpas, as<br />
quais eu lentamente aceitaria. Mas assim é a vida. Nós crescemos. Planetas<br />
como Tiny ganham novas luas. Luas como eu ganham novos planetas. Jane se<br />
afasta de mim por <strong>um</strong> instante e diz:<br />
— Alg<strong>um</strong>a coisa cheira bem. Quero dizer, alg<strong>um</strong>a coisa além de você.<br />
Sorrio.<br />
— Estamos fazendo chilli — conto. — Você quer… Você quer entrar e
conhecer meu pai<br />
— Não quero ser introm…<br />
— Não — retruco. — Ele é legal. Um pouco estranho. Mas legal. Você pode<br />
ficar pro jantar.<br />
— Hã, ok. Deixa eu ligar pra casa. — Fico ali fora tremendo por uns<br />
instantes enquanto ela fala com a mãe:<br />
— Vou jantar na casa de Will Grayson… Sim, o pai dele está aqui… Eles<br />
são médicos… Aham… Ok, te amo.<br />
Entro em casa.<br />
— Pai — digo —, esta é minha amiga Jane.<br />
Ele surge da cozinha usando o avental que diz Cirurgiões têm pegada firme<br />
sobre a camisa e a gravata.<br />
— Dou crédito às pessoas que não resistem ao cons<strong>um</strong>ismo! — diz ele,<br />
animado, tendo encontrado seu trocadilho. Eu rio.<br />
Jane estende a mão, a própria imagem da elegância, dizendo:<br />
— Olá, Dr. Grayson, sou Jane Turner.<br />
— Srta. Turner, é <strong>um</strong> prazer.<br />
— Tudo bem se Jane ficar pro jantar<br />
— Claro, claro. Jane, você nos dá licença <strong>um</strong> instante<br />
Papai me leva pra cozinha, onde se inclina e diz baixinho:<br />
— Era essa a causa dos seus problemas<br />
— Curiosamente, não — respondo. — Mas nós estamos meio que sim.<br />
— Vocês estão meio que sim — murmura ele pra si mesmo. — Vocês estão<br />
meio que sim. — E então, bem alto, diz: — Jane<br />
— Sim, senhor<br />
— Qual é o seu coeficiente de rendimento<br />
— Hã, 9,25, senhor.<br />
Ele olha pra mim, os lábios franzidos, e assente lentamente.
— Aceitável — diz, e então sorri.<br />
— Pai, não preciso da sua aprovação — retruco baixinho.<br />
— Eu sei — responde ele. — Mas pensei que você pudesse gostar assim<br />
mesmo.
capítulo dezesseis<br />
quatro dias antes da apresentação da peça, tiny me liga e diz que precisa tirar<br />
<strong>um</strong> dia pra sua saúde mental. não é só porque o espetáculo está <strong>um</strong> caos. o<br />
outro <strong>will</strong> grayson não está falando com ele. isto é, está falando com ele, mas<br />
não diz nada. parte de tiny está puto por o.w.g. estar “ fazendo essa merda tão<br />
perto da hora da estreia” e parte dele parece estar com muito, muito medo de que<br />
alg<strong>um</strong>a coisa esteja muito, muito errada.<br />
eu: o que eu posso fazer sou o <strong>will</strong> grayson errado.<br />
tiny: só preciso de <strong>um</strong>a dose de <strong>will</strong> grayson. estarei em sua escola daqui a<br />
<strong>um</strong>a hora. já estou na estrada.<br />
eu: você o quê<br />
tiny: você só precisa me dizer onde fica sua escola. já coloquei no google<br />
maps, mas aqueles itinerários são <strong>um</strong>a merda. e a última coisa que meu dia de<br />
saúde mental precisa é que eu vá parar no iowa às 10h por causa do google<br />
maps.<br />
penso que a ideia de <strong>um</strong> “ dia de saúde mental” é algo completamente<br />
inventado pelas pessoas que não têm a menor ideia do que é não ter saúde<br />
mental. a ideia de que sua mente pode ser arejada em 24 horas é meio como<br />
dizer que <strong>um</strong>a doença cardíaca pode ser curada se você comer o cereal matinal<br />
correto. dias de saúde mental só existem para as pessoas que podem se dar ao<br />
luxo de dizer “ não quero ter de enfrentar nada hoje” e então podem tirar o dia<br />
todo de folga enquanto o restante de nós se vê forçado a travar as batalhas que<br />
sempre travamos, sem que ninguém se importe com isso, a menos que a gente<br />
decida trazer <strong>um</strong>a arma pra escola ou arruinar os comerciais da manhã com <strong>um</strong><br />
suicídio.
não digo nada disso a tiny. finjo que quero que ele venha aqui. não o deixo<br />
saber o quanto me apavora deixá-lo ver mais da minha vida. me parece que ele<br />
confundiu seus <strong>will</strong> graysons. não tenho certeza de ser o que pode ajudá-lo.<br />
ficou tão intenso — mais do que com isaac. e não só porque tiny é real. não<br />
sei o que me apavora mais — que ele se importe comigo ou que eu me importe<br />
com ele.<br />
conto a gideon imediatamente sobre a vinda de tiny, principalmente porque<br />
ele é a única pessoa na escola com quem falei de fato sobre tiny.<br />
gideon: uau, que fofo que ele queira ver você.<br />
eu: eu não tinha nem pensado nisso.<br />
gideon: a maior parte dos caras é capaz de dirigir mais de <strong>um</strong>a hora por sexo.<br />
mas poucos fazem isso só pra ver você.<br />
eu: como você sabe disso<br />
é meio estranho que gideon tenha se tornado meu conselheiro para assuntos<br />
gays, posto que ele me contou que o máximo de experiência que já teve foi no<br />
acampamento de escoteiros no verão antes do nono ano. mas acho que ele já<br />
visitou <strong>um</strong> número suficiente de blogs, salas de bate-papo e coisas assim. ah, e<br />
ele assiste ao hbo-on-demand o tempo todo. vivo dizendo a ele que não sei se as<br />
leis de sex and the city se aplicam quando não há nenh<strong>um</strong> sexo e nenh<strong>um</strong>a<br />
cidade, mas então ele me olha como se eu estivesse atirando dardos pontiagudos<br />
nos balões em formato de coração que flutuam em sua mente, então deixo pra lá.<br />
o engraçado é que a maior parte da escola — bem, a parte que se importa,<br />
que não é assim tão grande — pensa que gideon e eu formamos <strong>um</strong> casal.<br />
porque, sabe, eles veem o eu-gay andando pelos corredores com o ele-gay e<br />
imediatamente tiram suas conclusões.<br />
vou dizer <strong>um</strong>a coisa, porém — eu meio que não me importo. porque gideon<br />
é muito gato, e muito legal, e as pessoas que não o desprezam parecem gostar
muito dele. assim, se vou ter <strong>um</strong> namorado hipotético nessa escola, poderia ser<br />
muito pior.<br />
no entanto, é estranho pensar em gideon e tiny finalmente se conhecendo. é<br />
estranho pensar em tiny andando pelos corredores comigo. é como convidar o<br />
godzilla pro baile de formatura.<br />
não consigo visualizar… mas então recebo <strong>um</strong>a mensagem de texto dizendo<br />
que ele está a dois minutos daqui e preciso encarar os fatos.<br />
eu basicamente saio do laboratório no meio da aula de física do sr. jones —<br />
ele nunca nota minha presença mesmo, portanto, contanto que minha parceira de<br />
laboratório, lizzie, me dê cobertura, está tudo bem. digo a verdade a lizzie —<br />
que meu namorado está entrando furtivamente na escola pra me encontrar — e<br />
ela se torna minha cúmplice, porque mesmo que ela normalmente não fosse fazer<br />
isso por mim, definitivamente faria por AMOR. (bem, AMOR e direitos dos<br />
gays — três vivas pras garotas héteros que fazem o máximo para ajudar garotos<br />
gays.)<br />
a única pessoa que me dá tristeza é maura, que bufa <strong>um</strong>a nuvem negra<br />
enquanto explico minha história a lizzie. ela vem tentando arruinar meu<br />
tratamento de silêncio me espionando sempre que pode. não sei se a nuvem<br />
negra é porque ela acha que estou inventando tudo ou porque está revoltada que<br />
eu esteja desprezando a aula de física no laboratório. ou talvez ela apenas esteja<br />
com ciúme de lizzie, o que é engraçado, porque lizzie tem <strong>um</strong> problema de acne<br />
tão grave que parecem picadas de abelha. mas que seja. maura pode bufar até que<br />
todo o muco de seu cérebro escorra da cabeça e forme <strong>um</strong>a poça aos seus pés. eu<br />
não vou responder.<br />
encontro tiny com facilidade diante da escola; ele fica mudando o peso do<br />
corpo de <strong>um</strong> pé pro outro. não vou começar a beijá-lo em território escolar,<br />
então lhe dou <strong>um</strong> abraço masculino (dois pontos de contato! dois apenas!) e<br />
digo a ele que se alguém perguntar, ele deve dizer que vai mudar pra cidade no
outono e está visitando a escola com antecedência.<br />
ele parece <strong>um</strong> pouco diferente desde a última vez que o vi — cansado, acho.<br />
fora isso, porém, sua saúde mental parece perfeita.<br />
tiny: então é aqui que a magia acontece<br />
eu: só se você considerar a cega escravidão aos testes padronizados e aos<br />
formulários de inscrição de faculdades como <strong>um</strong>a forma de magia.<br />
tiny: vamos ver.<br />
eu: como está a peça<br />
tiny: o que falta ao coro em voz, ele compensa em energia.<br />
eu: mal posso esperar pra ver.<br />
tiny: mal posso esperar pra que você veja.<br />
o sinal pro almoço toca quando estamos a meio caminho da cantina. de<br />
repente, tem gente em toda a nossa volta, e notam a presença de tiny da mesma<br />
maneira que notariam alguém que resolvesse ir de sala em sala a cavalo. no<br />
outro dia eu estava rindo com gideon, dizendo que a razão de a escola fazer<br />
todos os nossos armários cinza era pra que gente como eu pudesse se misturar e<br />
passar pelos corredores com segurança. mas com tiny essa não é <strong>um</strong>a opção. as<br />
cabeças se viram.<br />
eu: você sempre chama tanta atenção assim<br />
tiny: nem tanto. acho que as pessoas percebem mais meu tamanho<br />
extraordinário aqui. você se importa se eu segurar sua mão<br />
a verdade é que me importo. mas sei que, como ele é meu namorado, a<br />
resposta deveria ser que não me importo nem <strong>um</strong> pouco. ele provavelmente me<br />
carregaria pra aula no colo se eu lhe pedisse com carinho.<br />
pego a mão dele, grande e escorregadia. mas acho que não consigo esconder a<br />
preocupação no meu rosto, porque ele me olha <strong>um</strong>a vez e solta minha mão.
tiny: deixa pra lá.<br />
eu: não é com você. eu só não sou do tipo de cara que anda de mãos dadas<br />
pelos corredores. nem mesmo se você fosse <strong>um</strong>a garota. nem se fosse <strong>um</strong>a líder<br />
de torcida peituda.<br />
tiny: mas eu fui <strong>um</strong>a líder de torcida peituda.<br />
eu paro e olho pra ele.<br />
eu: você está brincando.<br />
tiny: foi só por uns dias. eu arruinei totalmente a pirâmide.<br />
andamos <strong>um</strong> pouco mais.<br />
tiny: suponho que pôr minha mão no seu bolso traseiro esteja fora de<br />
questão…<br />
eu: *tosse*<br />
tiny: foi só <strong>um</strong>a piada.<br />
eu: posso pelo menos pagar seu almoço talvez tenha até ensopado!<br />
tenho de ficar me lembrando que era isso o que eu queria — isso é o que se<br />
supõe que todo mundo queira. aqui está <strong>um</strong> garoto que é carinhoso comigo. <strong>um</strong><br />
garoto que pega o carro e vem me ver. <strong>um</strong> garoto que não tem medo do que os<br />
outros vão pensar quando nos virem juntos. <strong>um</strong> garoto que acredita que eu<br />
possa melhorar sua saúde mental.<br />
<strong>um</strong>a das mulheres que servem o almoço até ri quando tiny fica todo animado<br />
por causa das empanadas que estão servindo em celebração à semana da herança<br />
latina (ou talvez seja o mês da herança latina). ela o chama de querido quando a<br />
entrega a ele, o que é muito engraçado, pois venho tentando durante os últimos<br />
três anos conquistá-la o suficiente pra não mais ganhar a menor fatia de pizza do<br />
tabuleiro.
quando chegamos à mesa, derek e simon já estão lá — gideon é o único que<br />
falta. como não os avisei sobre nosso convidado especial, eles parecem surpresos<br />
e petrificados quando nos aproximamos.<br />
eu: derek e simon, este é tiny. tiny, estes são derek e simon.<br />
tiny: prazer em conhecê-los!<br />
simon: h<strong>um</strong>m…<br />
derek: muito prazer também. quem é você<br />
tiny: sou o namorado de <strong>will</strong>. da evanston.<br />
ok, agora todos olham pra ele como se ele fosse <strong>um</strong>a besta mágica do world<br />
of warcraft. derek está com <strong>um</strong> ar divertido, de <strong>um</strong>a forma amigável. simon<br />
olha pra tiny, depois pra mim, depois pra tiny, de <strong>um</strong>a forma que só pode<br />
significar que está se perguntando como alguém tão grande e alguém tão franzino<br />
podem fazer sexo.<br />
sinto <strong>um</strong>a mão em meu ombro.<br />
gideon: aí estão vocês!<br />
gideon parece ser a única pessoa na escola que não se mostra chocado com a<br />
aparência de tiny. sem hesitar, estende a outra mão pro c<strong>um</strong>primento.<br />
gideon: você deve ser tiny.<br />
tiny olha pra mão que gideon mantém em meu ombro antes de apertar a que<br />
ele oferece. não parece muito feliz ao dizer<br />
tiny: … e você deve ser gideon.<br />
seu aperto de mão deve ser <strong>um</strong> pouco mais firme que o de hábito, pois<br />
gideon estremece antes que o aperto chegue ao fim. então vai buscar <strong>um</strong>a cadeira
extra para a mesa, oferecendo a tiny o lugar em que normalmente se senta.<br />
tiny: ah, isso não é acolhedor<br />
bem, não. o cheiro da empanada de carne dele me faz sentir como se estivesse<br />
preso em <strong>um</strong> quarto pequeno e quente, cheio de comida de cachorro. simon,<br />
receio, encontra-se em vias de dizer alg<strong>um</strong>a coisa errada, e derek parece pensar<br />
em como vai escrever sobre tudo isso em <strong>um</strong> blog. gideon começa a fazer<br />
perguntas amistosas a tiny, e as respostas de tiny são todas monossilábicas.<br />
gideon: como estava o trânsito até aqui<br />
tiny: bom.<br />
gideon: aqui é muito parecido com a sua escola<br />
tiny: nah.<br />
gideon: soube que você está produzindo <strong>um</strong> musical.<br />
tiny: sim.<br />
por fim, gideon se levanta pra comprar <strong>um</strong> cookie, o que me permite me<br />
inclinar pra tiny e perguntar<br />
eu: por que você está tratando ele como alguém que te deu <strong>um</strong> fora<br />
tiny: não estou!<br />
eu: você nem o conhece.<br />
tiny: conheço o tipo dele.<br />
eu: que tipo<br />
tiny: o tipo pequeno e bonito. eles são encrenca.<br />
acho que ele sabe que foi <strong>um</strong> pouco longe demais, porque imediatamente<br />
acrescenta<br />
tiny: mas ele parece muito legal.
então corre os olhos pela cantina.<br />
tiny: quem é maura<br />
eu: duas mesas à esquerda da porta. sentada sozinha, pobre cordeiro abatido.<br />
rabiscando no caderno.<br />
como se pressentisse nosso olhar, ela ergue os olhos em nossa direção, então<br />
abaixa a cabeça e volta a rabiscar mais furiosamente.<br />
derek: que tal a empanada de carne em todos os meus anos aqui, você é a<br />
primeira pessoa que já vi terminar <strong>um</strong>a dessas.<br />
tiny: não estava mal se você não liga pro fato de estar salgado. é como se<br />
alguém tivesse feito <strong>um</strong>a tortinha de carne-seca.<br />
simon: e há quanto tempo vocês dois estão, assim, juntos<br />
tiny: não sei… quatro semanas, dois dias e 18 horas, eu acho.<br />
simon: então você é o cara.<br />
tiny: que cara<br />
simon: o cara que quase nos fez perder as olimpíadas de matemática.<br />
tiny: se isso é verdade, então eu sinto muito mesmo.<br />
simon: bem, você sabe o que dizem.<br />
derek: simon<br />
simon: os gays sempre põem o pau na frente da matemática.<br />
eu: em toda a história do mundo, ninguém jamais disse isso.<br />
derek: você só está emburrado porque a garota de naperville…<br />
simon: nem pense!<br />
derek: … não quis sentar no seu colo quando você pediu.<br />
simon: o ônibus estava cheio!<br />
gideon volta com cookies pra todos nós.
gideon: é <strong>um</strong>a ocasião especial. o que eu perdi<br />
eu: paus na frente da matemática.<br />
gideon: isso não faz o menor sentido.<br />
eu: exatamente.<br />
tiny está começando a parecer inquieto e não está nem tocando no cookie. é<br />
<strong>um</strong> cookie macio. com gotas de chocolate. devia estar em seu sistema digestivo<br />
a essa altura.<br />
se tiny está perdendo o apetite, não tem a menor possibilidade de chegarmos<br />
ao fim do dia na escola. afinal, se eu não tenho a menor vontade de ir pra aula...<br />
por que tiny teria se ele quer ficar comigo, eu devo ficar com ele. e essa escola<br />
nunca vai permitir isso.<br />
eu: vamos embora.<br />
tiny: mas acabei de chegar.<br />
eu: você já conheceu as únicas pessoas com quem interajo. já provou nossa<br />
excelente cozinha. se quiser, posso te mostrar a vitrine de troféus na saída para<br />
você se deleitar com as conquistas de alunos que agora já têm idade pra sofrer de<br />
disfunção erétil, perda de memória e morte. eu nunca, jamais, vou ser capaz de<br />
demonstrar afeto por você aqui, mas se ficar sozinho comigo, vai ser bem<br />
diferente.<br />
tiny: paus na frente da matemática.<br />
eu: sim. paus na frente da matemática. embora eu já tenha tido aula de<br />
matemática hoje. vou matar aula retroativamente pra ficar com você.<br />
derek: vão! vão!<br />
tiny parece bem satisfeito com essa mudança de planos.<br />
tiny: vou ter você todo pra mim
está no limite do constrangedor admitir isso na frente de outras pessoas,<br />
então eu apenas faço que sim com a cabeça.<br />
pegamos nossas bandejas e nos despedimos. gideon parece <strong>um</strong> pouco<br />
desapontado, mas soa sincero quando diz a tiny que espera que tenhamos a<br />
chance de sair todos juntos mais tarde. tiny diz que também espera, mas não é<br />
como se esperasse mesmo.<br />
quando estamos prestes a sair da cantina, tiny diz que precisa dar mais <strong>um</strong>a<br />
parada.<br />
tiny: tem <strong>um</strong>a coisa que preciso fazer.<br />
eu: o banheiro fica no corredor, à esquerda.<br />
mas não é esse o seu <strong>destino</strong>.<br />
ele está seguindo direto pra mesa de maura.<br />
eu: o que você está fazendo nós não falamos com ela.<br />
tiny: vocês podem não falar — mas tem <strong>um</strong>a ou duas coisinhas que eu<br />
gostaria de dizer.<br />
ela agora está olhando pra gente.<br />
eu: pare.<br />
tiny: fique de fora, grayson. sei o que estou fazendo.<br />
com gestos muitíssimo elaborados, ela põe de lado a caneta e fecha o<br />
caderno.<br />
eu: não, tiny.<br />
mas ele avança e paira acima dela. a montanha veio até maura, e tem algo<br />
para dizer.
<strong>um</strong> lampejo de nervosismo passa pelo rosto de tiny antes de começar. ele<br />
respira fundo. ela olha para ele com <strong>um</strong>a estudada expressão vazia.<br />
tiny: só queria vir até aqui e te agradecer. eu sou tiny cooper, e estou<br />
namorando <strong>will</strong> grayson há quatro semanas, dois dias e 18 horas agora. se você<br />
não tivesse sido <strong>um</strong>a inimiga tão má, egoísta, enganadora e vingativa, nós<br />
nunca teríamos nos conhecido. isso só serve para mostrar que, se você tenta<br />
arruinar a vida de alguém, ela só fica melhor. você só acaba não fazendo mais<br />
parte dela.<br />
eu: tiny, chega.<br />
tiny: acho que ela precisa saber o que está perdendo, <strong>will</strong>. acho que ela<br />
precisa saber a felicidade…<br />
eu: CHEGA!<br />
muita gente ouve isso. tiny certamente sim, porque ele para. e maura<br />
também, porque ela deixa de olhar sem expressão pra ele e começa a olhar sem<br />
expressão pra mim, que estou muito furioso com ambos neste momento. pego<br />
tiny pela mão, mas desta vez é pra puxá-lo dali. maura sorri com deboche, em<br />
seguida abre o caderno e recomeça a escrever. sigo pra porta, então solto a mão<br />
de tiny, volto pra mesa de maura, pego o caderno e arranco a folha em que ela<br />
está escrevendo. nem mesmo leio o que está escrito. só a arranco e amasso e<br />
então jogo o caderno de volta na mesa, derrubando a coca diet dela. não digo<br />
<strong>um</strong>a só palavra. simplesmente vou embora.<br />
estou com tanta raiva que não consigo falar. tiny está atrás de mim, dizendo<br />
tiny: o que foi o que eu fiz<br />
espero até estarmos fora do prédio. espero até chegarmos ao estacionamento.<br />
espero até ele me levar ao carro dele. espero até estarmos dentro do carro. espero<br />
até sentir que posso abrir a boca sem gritar. e então digo:
eu: você não devia ter feito aquilo.<br />
tiny: por quê<br />
eu: POR QUÊ porque não estou falando com ela. porque consegui evitá-la<br />
por <strong>um</strong> mês, e agora você simplesmente me arrastou até ela e a fez pensar que<br />
ela é importante na minha vida.<br />
tiny: ela precisava aprender <strong>um</strong>a lição.<br />
eu: que lição que se ela tentar arruinar a vida de alguém, ela só fica melhor<br />
é <strong>um</strong>a ótima lição, tiny. agora ela pode tentar arruinar a vida de mais pessoas,<br />
porque pelo menos vai ter a satisfação de saber que está lhes fazendo <strong>um</strong> favor.<br />
talvez ela possa até começar <strong>um</strong> serviço de encontros. evidentemente, funcionou<br />
para nós.<br />
tiny: pare com isso.<br />
eu: parar com o quê<br />
tiny: pare de falar comigo como se eu fosse <strong>um</strong> idiota. não sou idiota.<br />
eu: sei que você não é idiota. mas, sem a menor dúvida, você fez <strong>um</strong>a coisa<br />
idiota.<br />
ele ainda nem ligou o carro. ainda estamos sentados no estacionamento.<br />
tiny: não foi assim que planejei o dia.<br />
eu: bem, sabe de <strong>um</strong>a coisa muitas vezes não se tem controle de como vai<br />
ser o seu dia.<br />
tiny: pare. por favor. quero que este seja <strong>um</strong> dia bom.<br />
ele dá a partida no carro. é minha vez de respirar fundo. quem quer ser a<br />
pessoa a dizer a <strong>um</strong>a criança que papai noel não existe é a verdade, não é mas<br />
ainda assim você é <strong>um</strong> babaca se disser.<br />
tiny: vamos a alg<strong>um</strong> lugar que você goste de ir. aonde podemos ir me leve<br />
a alg<strong>um</strong> lugar que seja importante para você.
eu: como o quê<br />
tiny: como… não sei. eu, se preciso me sentir melhor, vou sozinho pro super<br />
target. não sei por quê, mas ver aquelas coisas todas me deixa feliz.<br />
provavelmente é o design. eu nem preciso comprar nada. só de ver todas as<br />
pessoas juntas, ver todas as coisas que eu poderia comprar — todas as cores,<br />
corredor após corredor... às vezes, preciso disso. no caso de jane, é essa loja<br />
indie de discos à qual vamos pra que ela possa olhar vinis antigos enquanto<br />
olho todos os cds de boy bands na banca de dois dólares e tento decidir qual<br />
deles acho o mais bonito. ou pro outro <strong>will</strong> grayson — tem <strong>um</strong> parque na nossa<br />
cidade, onde todos os times da liga júnior jogam. e ele adora o banco de<br />
reservas, porque, quando não tem mais ninguém por perto, é muito silencioso<br />
lá. quando não tem jogo, você pode sentar lá, e então só as coisas que<br />
aconteceram no passado existem. acho que todo mundo tem <strong>um</strong> lugar assim.<br />
você deve ter <strong>um</strong> lugar assim.<br />
penso intensamente no assunto por <strong>um</strong> segundo, mas concluo que, se tivesse<br />
<strong>um</strong> lugar assim, eu saberia na hora. mas nenh<strong>um</strong> lugar tem importância de<br />
verdade pra mim. nunca nem mesmo me ocorreu que eu devia ter <strong>um</strong> lugar que<br />
fosse importante pra mim.<br />
respondo que não com a cabeça.<br />
eu: nada.<br />
tiny: vamos, anda. tem de haver alg<strong>um</strong> lugar.<br />
eu: não tem, está bem só minha casa. meu quarto. é isso.<br />
tiny: ok — então onde fica o balanço mais próximo<br />
eu: você está brincando, não é<br />
tiny: não. tem que haver <strong>um</strong> balanço por aqui.<br />
eu: na escola primária, acho. mas as aulas ainda não acabaram. se nos<br />
pegarem lá, vão pensar que somos sequestradores. vai ficar tudo bem comigo,
mas aposto que você seria julgado como adulto.<br />
tiny: ok, fora a escola primária.<br />
eu: acho que meus vizinhos têm <strong>um</strong>.<br />
tiny: os pais trabalham<br />
eu: acho que sim.<br />
tiny: e os filhos ainda estão na escola. perfeito! você me guia.<br />
foi assim que terminamos estacionando na frente da minha casa e invadindo o<br />
quintal dos vizinhos do lado. o balanço é bastante triste, tanto quanto os<br />
balanços podem ser, mas, pelo menos, é feito para crianças mais velhas.<br />
eu: você não vai sentar aí, vai<br />
mas ele senta, e juro que a estrutura de metal se curva <strong>um</strong> pouco. ele aponta<br />
o balanço perto do dele.<br />
tiny: junte-se a mim.<br />
faz provavelmente uns dez anos que não me sento em <strong>um</strong> balanço. só faço<br />
isso agora pra calar tiny por <strong>um</strong> segundo. nenh<strong>um</strong> dos dois balança de fato —<br />
não creio que a estrutura pudesse resistir a isso. ficamos simplesmente ali<br />
sentados, pendendo acima do chão. tiny se vira, ficando de frente pra mim. eu<br />
também me viro, pondo os pés no chão para evitar que a corrente me desvire.<br />
tiny: agora, assim não está melhor<br />
e eu não me contenho. digo<br />
eu: melhor que o quê<br />
tiny ri e sacode a cabeça.
eu: o que foi por que está balançando a cabeça<br />
tiny: não é nada.<br />
eu: me fale.<br />
tiny: é só engraçado.<br />
eu: O QUE é engraçado<br />
tiny: você. e eu.<br />
eu: que bom que você acha isso engraçado.<br />
tiny: queria que você achasse mais engraçado.<br />
eu nem sei mais sobre o que estamos falando.<br />
tiny: sabe <strong>um</strong>a ótima metáfora pro amor<br />
eu: tenho a sensação de que você está prestes a me falar.<br />
ele se vira e faz <strong>um</strong>a tentativa de balançar mais alto. o balanço geme tanto<br />
que ele para e se vira novamente pra mim.<br />
tiny: a bela adormecida.<br />
eu: a bela adormecida<br />
tiny: sim, porque você precisa abrir caminho através desse incrível matagal<br />
cheio de espinhos a fim de chegar até a bela, e mesmo assim, quando chega lá,<br />
ainda tem de acordá-la.<br />
eu: então eu sou <strong>um</strong> matagal<br />
tiny: e a bela que ainda não está totalmente desperta.<br />
não ressalto que tiny também não é exatamente o que as garotinhas pensam<br />
quando ouvem as palavras príncipe encantado.<br />
eu: é natural que você pense dessa forma.<br />
tiny: por quê
eu: bem, a sua vida é <strong>um</strong> musical. literalmente.<br />
tiny: você está me vendo cantar agora<br />
quase. eu adoraria viver em seu mundo de desenho animado musical, onde<br />
bruxas como maura são derrotadas com <strong>um</strong>a palavra heroica, e todas as criaturas<br />
da floresta ficam felizes quando dois caras gays caminham de mãos dadas pela<br />
campina, e gideon é o pretendente bonito e burro com quem você sabe que a<br />
princesa não pode se casar, porque o coração dela pertence à fera. tenho certeza de<br />
que se trata de <strong>um</strong> mundo adorável, onde essas coisas acontecem. <strong>um</strong> mundo<br />
rico, mimado, colorido. talvez <strong>um</strong> dia eu faça <strong>um</strong>a visita, mas duvido. mundos<br />
assim não tendem a emitir vistos para caras fodidos como eu.<br />
eu: me intriga que alguém como você possa percorrer toda essa distância pra<br />
ficar com alguém como eu.<br />
tiny: isso de novo, não!<br />
eu: como<br />
tiny: estamos sempre tendo essa conversa. mas, se você continuar se<br />
concentrando no porquê de tudo ser tão difícil pra você, nunca vai perceber como<br />
poderia ter sido fácil.<br />
eu: fácil pra você falar!<br />
tiny: o que você quer dizer com isso<br />
eu: exatamente isso. vou decompor pra você. fácil — sem absolutamente<br />
nenh<strong>um</strong>a dificuldade. pra você — o oposto de “ pra mim”. falar — vocalizar, às<br />
vezes, ad nauseam. você tem tudo tão fácil que não percebe que, quando é<br />
difícil, não é <strong>um</strong>a escolha que está fazendo.<br />
tiny: eu sei disso. não estava dizendo...<br />
eu: sim<br />
tiny: eu entendo.<br />
eu: você NÃO entende. porque é tudo fácil pra você.
agora eu o irritei. ele desce do balanço e para bem na minha frente. tem <strong>um</strong>a<br />
veia em seu pescoço que chega a pulsar. ele não consegue parecer furioso sem<br />
também parecer triste.<br />
tiny: PARE DE ME DIZER QUE É TUDO MUITO FÁCIL PRA MIM!<br />
você tem alg<strong>um</strong>a ideia do que está falando porque eu sou <strong>um</strong>a pessoa também.<br />
e também tenho problemas. e embora eles possam não ser os seus problemas,<br />
ainda assim são problemas.<br />
eu: como o quê<br />
tiny: você pode não ter notado, mas eu não sou o que se chamaria<br />
convencionalmente de bonito. na verdade, pode-se até falar que sou o oposto<br />
disso. falar, sabe... vocalizar, às vezes, ad nauseam você acha que se passa <strong>um</strong><br />
só minuto, de qualquer dia, em que eu não tenha consciência do meu tamanho<br />
acha que <strong>um</strong> só minuto se passa sem que eu esteja pensando em como as outras<br />
pessoas me veem embora eu não tenha nenh<strong>um</strong> controle sobre isso não me<br />
entenda mal, eu amo meu corpo. mas não sou tão idiota assim pra achar que<br />
todo mundo ama. o que realmente me aborrece, o que me chateia de verdade, é<br />
que ele é tudo que as pessoas veem. desde quando eu era <strong>um</strong>a criança não-tãopequena.<br />
ei, tiny, quer jogar futebol ei, tiny, quantos hambúrgueres você<br />
comeu hoje ei, tiny, já perdeu o pinto aí embaixo ei, tiny, você vai entrar pro<br />
time de basquete quer queira quer não. só não tente olhar pra gente no<br />
vestiário! isso parece fácil pra você<br />
estou prestes a dizer alg<strong>um</strong>a coisa, mas ele ergue a mão.<br />
tiny: sabe de <strong>um</strong>a coisa estou totalmente em paz com o fato de ser grande. e<br />
eu já era gay muito antes de saber o que era sexo. é assim que eu sou, e isso é<br />
ótimo. não quero ser magro nem convencionalmente bonito nem heterossexual<br />
nem brilhante. não, o que eu quero de verdade, e jamais consigo, é ser
apreciado. você sabe o que é se esforçar ao máximo pra se certificar de que todos<br />
estejam felizes e não ter <strong>um</strong>a só pessoa que reconheça isso posso me matar pra<br />
juntar o outro <strong>will</strong> grayson e jane... nenh<strong>um</strong> reconhecimento, só mágoa. escrevo<br />
<strong>um</strong> musical inteiro que fala basicamente de amor, e o principal personagem nele,<br />
depois de mim, é claro, é phil wrayson, que precisa entender alg<strong>um</strong>as coisas,<br />
mas no geral é <strong>um</strong> cara maravilhoso. e <strong>will</strong> compreende isso não. ele surta.<br />
faço tudo que posso pra ser <strong>um</strong> bom namorado pra você... nenh<strong>um</strong><br />
reconhecimento, só mágoa. tento fazer esse musical pra que ele possa criar<br />
alg<strong>um</strong>a coisa, pra mostrar que todos nós temos alg<strong>um</strong>a coisa pra cantar...<br />
nenh<strong>um</strong> reconhecimento, só mágoa. esse musical é <strong>um</strong> presente, <strong>will</strong>. meu<br />
presente pro mundo. ele não é sobre mim. é sobre o que tenho pra compartilhar.<br />
tem <strong>um</strong>a diferença; eu vejo, mas receio que seja o único. você acha que é fácil<br />
pra mim, <strong>will</strong> está mesmo morrendo de vontade de experimentar esses<br />
tamanhos GG porque toda manhã quando acordo, tenho de me convencer que,<br />
sim, no fim do dia, serei capaz de fazer algo de bom. isso é tudo que peço: ser<br />
capaz de fazer algo de bom. não por mim, seu bebê chorão estúpido, de quem,<br />
por acaso, eu gosto muito, muito. mas pelos meus amigos. por outras pessoas.<br />
eu: mas por que eu quero dizer, o que você vê em mim<br />
tiny: você tem <strong>um</strong> coração, <strong>will</strong>. você até deixa ele aparecer de vez em<br />
quando. eu vejo isso em você. e vejo que precisa de mim.<br />
balanço a cabeça.<br />
eu: você não entende eu não preciso de ninguém.<br />
tiny: isso só significa que precisa ainda mais de mim.<br />
está tão claro pra mim.<br />
eu: você não está apaixonado por mim. está apaixonado pela minha carência.<br />
tiny: quem disse que estou apaixonado por alg<strong>um</strong>a coisa eu disse “ gosto
muito, muito”.<br />
ele para. faz <strong>um</strong>a pausa.<br />
tiny: isso sempre acontece. <strong>um</strong>a variação disso sempre acontece.<br />
eu: eu sinto muito.<br />
tiny: eles também sempre dizem “ eu sinto muito”.<br />
eu: não posso fazer isso, tiny.<br />
tiny: você pode, mas não vai. simplesmente não vai.<br />
é como se eu não tivesse que terminar com ele, porque ele já teve essa<br />
conversa na própria cabeça. eu devia me sentir aliviado por não precisar dizer<br />
nada. mas, em vez disso, só me sinto pior.<br />
eu: não é culpa sua. eu simplesmente não consigo sentir nada.<br />
tiny: mesmo você não está sentindo nada neste momento absolutamente<br />
nada<br />
quero dizer a ele: ninguém nunca me disse como lidar com coisas assim.<br />
abrir mão não devia ser indolor se você nunca aprendeu a segurar<br />
tiny: vou embora agora.<br />
e eu vou ficar. vou ficar neste balanço enquanto ele se afasta. vou ficar em<br />
silêncio enquanto ele entra no carro. vou ficar imóvel enquanto ouço o carro dar<br />
a partida, depois se afastar. vou continuar errado, porque não sei como atravessar<br />
o matagal da minha própria cabeça a fim de alcançar o que quer que eu deva<br />
fazer. vou continuar o mesmo, e o mesmo, e o mesmo, até morrer disso.<br />
minutos se passam antes que eu possa admitir que, sim, embora diga a mim<br />
mesmo que não estou sentindo nada, isso é mentira. quero dizer que estou<br />
sentindo remorso ou arrependimento ou até mesmo culpa. mas nenh<strong>um</strong>a dessas
palavras parece suficiente. o que estou sentindo é vergonha. vergonha pura,<br />
repugnante. não quero ser a pessoa que sou. não quero ser a pessoa que acabou<br />
de fazer o que fiz.<br />
o problema não é nem mesmo tiny.<br />
eu sou horrível.<br />
sou insensível.<br />
tenho medo de que essas coisas sejam mesmo verdade.<br />
volto correndo pra casa. estou começando a soluçar — não estou nem mesmo<br />
pensando, mas meu corpo está se despedaçando. minha mão está tão trêmula<br />
que deixo o chaveiro cair antes de finalmente conseguir enfiar a chave na porta. a<br />
casa está vazia. eu estou vazio. tento comer. tento ir pra cama. nada funciona. eu<br />
sinto as coisas, sim. sinto tudo. e preciso saber que não estou sozinho. assim,<br />
pego o telefone. sem nem mesmo pensar. digito o número e ouço o toque e<br />
assim que atendem, grito no aparelho:<br />
eu: EU TE AMO. ESTÁ ME OUVINDO EU TE AMO!<br />
estou gritando, e meu grito parece tão furioso e tão assustado e tão patético e<br />
tão desesperado. do outro lado da linha, minha mãe me pergunta o que há de<br />
errado, onde estou, o que está acontecendo, e eu digo a ela que estou em casa e<br />
que tudo está confuso, e ela diz que em dez minutos estará em casa, eu vou ficar<br />
bem por dez minutos, e quero dizer a ela que vou ficar bem, porque é isso que<br />
ela quer ouvir, mas então me dou conta de que talvez o que ela queira ouvir seja<br />
a verdade, então digo a ela que sinto as coisas, sinto de verdade, e ela me diz<br />
que é claro que sinto, sempre tive esses sentimentos, e é isso que faz com que às<br />
vezes a vida seja difícil pra mim.<br />
só ouvir a voz dela já me faz sentir <strong>um</strong> pouco melhor, e percebo que, sim,<br />
aprecio o que ela está dizendo, aprecio o que ela está fazendo, e preciso que ela<br />
saiba disso. embora eu não diga imediatamente, pois acho que isso só vai deixá-
la mais preocupada, mas quando ela chega em casa digo a ela, e ela diz que sabe<br />
disso.<br />
conto a ela <strong>um</strong> pouco sobre tiny, e ela diz que parece que estávamos pondo<br />
pressão demais <strong>um</strong> no outro e que não precisa ser amor imediatamente, ou nem<br />
mesmo no fim. quero perguntar o que foi com meu pai e quando foi que tudo se<br />
transformou em ódio e tristeza. mas talvez eu não queira de fato saber. não<br />
agora.<br />
mãe: a carência nunca é <strong>um</strong>a boa base para <strong>um</strong> relacionamento. tem de ser<br />
muito mais que isso.<br />
é bom conversar com ela, mas ao mesmo tempo é estranho, porque ela é<br />
minha mãe, e não quero ser <strong>um</strong> daqueles garotos que acha que a mãe é sua<br />
melhor amiga. quando me recupero o suficiente, as aulas já terminaram faz<br />
tempo, e concluo que posso ficar on-line e ver se gideon também está. então<br />
percebo que, em vez disso, posso mandar <strong>um</strong>a mensagem de texto pra ele. aí<br />
percebo que, na verdade, posso ligar pra ele. por fim, percebo que, na verdade,<br />
posso ligar pra ele e ver se ele quer fazer alg<strong>um</strong>a coisa. porque ele é meu amigo,<br />
e é isso que os amigos fazem.<br />
eu ligo, ele atende. preciso dele, ele responde. vou até a casa dele e conto o<br />
que aconteceu, e ele responde. não é como com maura, que sempre queria tomar<br />
o caminho das trevas. não é como foi com tiny, porque com ele eu estava com<br />
todas essas expectativas de ser <strong>um</strong> bom namorado, o que quer que isso<br />
signifique. não, gideon está pronto pra acreditar tanto no melhor quanto no pior<br />
de mim. em outras palavras: pra acreditar na verdade.<br />
quando nossa conversa chega ao fim, ele me pergunta se vou telefonar pra<br />
tiny. digo a ele que não sei.<br />
só mais tarde decido. estou on-line e vejo que ele também está.<br />
não creio que eu possa nos salvar como namorados, mas pelo menos quero
dizer a ele que, mesmo que ele estivesse errado em relação a mim, não estava<br />
errado em relação a si mesmo. quer dizer, alguém devia estar tentando fazer o<br />
bem no mundo.<br />
então eu tento.<br />
20h15<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: bluejeansbaby<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: tiny<br />
20h18<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: você está aí<br />
21h33<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: você está aí<br />
22h10<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: por favor<br />
23h45<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: você está aí<br />
1h03<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: você está aí<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: você está aí<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: você está aí<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: você está aí<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: você está aí
capítulo dezessete<br />
Três dias antes da peça, Tiny e eu estamos conversando novamente enquanto<br />
esperamos o início da aula de pré-cálculo, mas não há nada dentro de nossas<br />
palavras. Ele se senta ao meu lado e diz: “ Oi, Grayson”, e eu digo: “ Oi”, e ele<br />
diz: “ O que conta de novo”, e eu digo: “ Não muito. E você”, e ele diz: “ Não<br />
muito. A peça está acabando comigo, cara”, e eu digo: “ Posso apostar que<br />
sim”, e ele diz: “ Você tá namorando Jane, hein” e eu digo: “ Meio que sim”, e<br />
ele diz: “ Isso é incrível”, e eu digo: “ É. Como vai o outro Will Grayson”, e<br />
ele diz: “ Bem”, e isso é tudo. Sinceramente, falar com ele é pior que não falar.<br />
Falar com ele me dá a sensação de que estou me afogando em água morna.<br />
Jane está parada diante do meu armário com as mãos atrás das costas quando<br />
chego lá depois do primeiro tempo, e ao me aproximar dela, acontece esse<br />
estranho, mas não necessariamente desagradável momento devemos-nos-beijar,<br />
ou pelo menos eu penso que é isso que o momento é, mas então ela diz:<br />
— Uma merda essa história do Tiny, hein<br />
— O quê — pergunto.<br />
— Ele e o outro Will Grayson. Já era.<br />
Inclino a cabeça pra ela, confuso.<br />
— Não, ele acabou de dizer que estão bem. Perguntei a ele na aula de précálculo.<br />
— Foi ontem, pelo menos segundo Gary e Nick e as 23 outras pessoas que<br />
me contaram isso. N<strong>um</strong> balanço, ao que parece. Ah, a ressonância metafórica.<br />
— Então por que ele não me contou — Ouço minha voz travada quando<br />
pergunto.<br />
Jane pega minha mão e se estica pra dizer em meu ouvido:<br />
— Oi.
Então olho pra ela, tentando agir como se isso não tivesse importância. —<br />
Oi — repete ela.<br />
— Oi — respondo.<br />
— Volte ao normal com ele, OK Só isso. Fale com ele, Will. Não sei se<br />
você percebeu, mas tudo fica melhor pra você quando fala com as pessoas.<br />
— Quer ir lá em casa depois da escola — pergunto.<br />
— Com certeza. — Ela sorri, então gira n<strong>um</strong> semicírculo e se vai. Dá alguns<br />
passos antes de se virar outra vez e dizer: — Fale. Com. Tiny.<br />
Por alg<strong>um</strong> tempo, simplesmente fico parado diante do meu armário. Mesmo<br />
depois de todos os sinais soarem. Sei por que ele não me contou: não é porque<br />
ele se sinta estranho que, pela primeira vez na história da h<strong>um</strong>anidade, esteja<br />
solteiro e eu (meio que) comprometido. Ele disse que o outro Will Grayson ia<br />
bem porque eu não tenho importância.<br />
Tiny pode ignorá-lo quando está apaixonado. Mas, quando Tiny Cooper<br />
mente pra você sobre seu coração partido, o contador Geiger disparou o martelo.<br />
A radiação escapou. A amizade está morta.<br />
Naquele dia, depois da escola, Jane está na minha casa, sentada diante de <strong>um</strong><br />
tabuleiro de Scrabble e de mim. Escrevo caolho, que é <strong>um</strong>a ótima palavra, mas<br />
também abre espaço para <strong>um</strong>a palavra tripla pra ela. “ Ah, meu Deus, eu te<br />
amo”, diz ela, e deve estar bem perto da verdade, porque, se tivesse falado isso<br />
<strong>um</strong>a semana antes, eu não teria nem dado atenção, e agora as palavras pairam no<br />
ar eternamente até que, por fim, ela quebra o constrangimento dizendo:<br />
— Isso é <strong>um</strong>a coisa estranha pra se dizer pra alguém que você começou a<br />
namorar! Ah, uau, que esquisito! — Após <strong>um</strong> momento de silêncio, ela<br />
prossegue: — Ei, para a<strong>um</strong>entar o constrangimento, a gente tá namorando<br />
A palavra revira meu estômago <strong>um</strong> pouco e eu digo:<br />
— Podemos estar não não-namorando
Ela sorri e escreve relho, de 36 pontos. É absolutamente impressionante, a<br />
coisa toda. Suas omoplatas são impressionantes. Seu amor apaixonadamente<br />
irônico pelas novelas dos anos 1980 é impressionante. A maneira como ri das<br />
minhas piadas muito, muito alto é impressionante — e tudo isso só faz com<br />
que seja ainda mais impressionante que ela não preencha o vazio que Tiny<br />
deixou com sua ausência.<br />
Para ser perfeitamente honesto, eu o senti no último semestre, quando ele foi<br />
se tornar presidente da AGH e entrei para o Grupo de Amigos. Provavelmente<br />
foi por isso que escrevi a carta ao editor e assinei. Não porque quisesse que a<br />
escola soubesse que eu a havia escrito, mas porque queria que Tiny soubesse.<br />
No dia seguinte, minha mãe me deixa cedo na escola. Entro e deslizo <strong>um</strong><br />
bilhete para dentro do armário de Jane, o que se tornou <strong>um</strong> hábito pra mim.<br />
Sempre <strong>um</strong> ou dois versos de alg<strong>um</strong> poema na gigantesca antologia de poesia<br />
que minha professora de inglês do segundo ano usava pra dar aula. Eu disse que<br />
não seria o tipo de namorado que lê poemas pra ela, e não sou, mas acho que<br />
sou o tipo de idiota brega que escorrega trechos de poesia pra suas manhãs.<br />
O de hoje: “ Vejo-te melhor no escuro/Não preciso de <strong>um</strong>a luz.” — Emily<br />
Dickinson.<br />
E então me acomodo em meu lugar na aula de pré-cálculo vinte minutos<br />
adiantado. Tento estudar <strong>um</strong> pouco para a prova de química, mas desisto em<br />
vinte segundos. Pego o celular e verifico meu e-mail. Nada. Fico olhando pra<br />
sua carteira vazia, a carteira que ele preenche com <strong>um</strong>a plenitude inimaginável<br />
para o restante de nós.<br />
Resolvo escrever <strong>um</strong> e-mail pra ele, digitando com os polegares em meu<br />
minúsculo teclado. Só estou passando o tempo, na realidade. Fico usando<br />
palavras longas e desnecessárias porque elas fazem a escrita absorver os minutos.<br />
não que eu sinta <strong>um</strong> desejo urgente de sermos amigos, mas queria que
pudéssemos ser <strong>um</strong>a coisa ou outra. embora eu racionalmente saiba que sua<br />
saída de minha vida é <strong>um</strong>a bênção generosa, que na maioria dos dias você não<br />
passa de <strong>um</strong> fardo de 130 quilos acorrentado a mim, e que você claramente<br />
nunca gostou da minha pessoa. sempre reclamei de você e de sua imensidão<br />
generalizada, e agora sinto falta dela. garoto típico, você diria. não sabe o<br />
que tinha até perder. e talvez esteja certo, tiny. sinto muito por <strong>will</strong> grayson.<br />
por nós dois.<br />
O primeiro sinal por fim toca. Salvo o e-mail como rascunho.<br />
Tiny se senta perto de mim e diz: “ Oi, Grayson”, e eu digo: “ Oi, como está<br />
tudo” e ele diz: “ Bem. Hoje tem <strong>um</strong> ensaio geral”, e eu digo: “ Incrível”, e ele<br />
diz: “ O que está acontecendo com você”, e eu digo: “ Este trabalho de inglês<br />
está me matando”, e ele diz: “ É, as minhas notas estão impraticáveis”, e eu<br />
digo: “ É”, e o segundo sinal toca e nós voltamos nossa atenção para o Sr.<br />
Appleba<strong>um</strong>.<br />
Quatro horas depois: estou no meio da fila de pessoas que saem apressadas da<br />
sala de aula de física no quinto tempo quando, pela janela, vejo Tiny passando.<br />
Ele para, gira dramaticamente na direção da porta e espera por mim.<br />
— Nós terminamos — conta ele com naturalidade.<br />
— Foi o que ouvi falar. Obrigado por me contar... depois de contar pra todo<br />
mundo.<br />
— É, bem — diz ele. As pessoas dão a volta em torno de nós como se<br />
fôssemos <strong>um</strong> coágulo sanguíneo na artéria do corredor. — O ensaio vai até tarde<br />
(vamos repassar tudo depois do ensaio geral), mas que tal <strong>um</strong>a ceia Hot Dog<br />
Palace ou algo no gênero<br />
Penso por <strong>um</strong> minuto, lembrando do e-mail não enviado na minha pasta de<br />
rascunhos, e no outro Will Grayson, e em Tiny no palco me falando a verdade<br />
pelas costas, e então digo:
— Acho que não. Estou cansado de ser seu Plano B, Tiny.<br />
Isso não o perturba, naturalmente.<br />
— Bem, acho que te vejo na peça então.<br />
— Não sei se vou conseguir ir, mas vou tentar.<br />
Por alg<strong>um</strong>a razão, é difícil ler a expressão de Tiny, mas acho que tenho <strong>um</strong><br />
palpite. Não sei exatamente por que quero fazê-lo se sentir <strong>um</strong> lixo, mas é o que<br />
quero.<br />
Estou indo para o armário de Jane quando ela surge por trás de mim e<br />
pergunta:<br />
— Posso falar com você <strong>um</strong> minuto<br />
— Pode falar comigo bilhões de minutos — sorrio.<br />
Entramos em <strong>um</strong>a sala de espanhol vazia. Ela gira <strong>um</strong>a cadeira e se senta, e o<br />
encosto da cadeira parece <strong>um</strong> escudo. Ela está usando <strong>um</strong>a camiseta justa<br />
debaixo de <strong>um</strong> casaco de abotoamento duplo, que acaba de tirar. Está<br />
extremamente bonita, tão bonita que me pergunto em voz alta se não podemos<br />
conversar na minha casa.<br />
— Eu acabo ficando distraída na sua casa. — Ela levanta as sobrancelhas e<br />
sorri, mas vejo que isso é forçado. — Você disse ontem que estávamos não nãonamorando,<br />
como se isso não fosse nada demais, e eu sei que faz <strong>um</strong>a semana e<br />
somente <strong>um</strong>a semana, mas eu, na verdade, não quero não não-namorar você; eu<br />
quero ser sua namorada ou não, e acho que a essa altura já está qualificado para<br />
tomar pelo menos <strong>um</strong>a decisão temporária sobre o assunto, porque eu sei que<br />
estou.<br />
Ela abaixa os olhos por <strong>um</strong> segundo, e percebo que seu cabelo dividido ao<br />
meio forma <strong>um</strong> zigue-zague acidental no alto da cabeça, e tomo fôlego pra falar,<br />
mas ela continua:<br />
— Além disso, não vou ficar arrasada nem nada do tipo. Não sou assim. Só<br />
acho que, se você não diz a coisa mais sincera, às vezes, essa coisa nunca se
torna realidade, sabe, e eu...<br />
Nesse momento eu levanto o dedo, porque preciso ouvir o que ela acabou de<br />
dizer e ela fala rápido demais pra que eu possa acompanhar. Continuo com a<br />
mão levantada, pensando que se você não diz a coisa mais sincera, ela nunca se<br />
torna realidade.<br />
Ponho as mãos nos ombros dela.<br />
— Acabo de me dar conta de <strong>um</strong>a coisa. Eu gosto muito, muito de você.<br />
Você é incrível, e eu quero muito ser seu namorado, por causa do que acabou de<br />
dizer, e também porque essa blusa me faz querer te levar pra casa agora e fazer<br />
coisas inqualificáveis enquanto assistimos a filmes da Sailor Moon. Mas-masmas<br />
você está totalmente certa em relação a dizer a coisa mais sincera. Acho<br />
que, se você mantém a caixa fechada por muito tempo, você mata, de fato, o<br />
gato. E, Deus, espero que você não tome isso como algo pessoal, mas amo meu<br />
melhor amigo mais que qualquer <strong>um</strong> no mundo.<br />
Agora ela me olha, estreitando os olhos, confusa.<br />
— É isso. Eu amo Tiny Cooper, porra.<br />
Jane diz:<br />
— Hã, ok. Você está me pedindo pra ser sua namorada ou está me dizendo<br />
que é gay<br />
— Primeira opção. A da namorada. Agora tenho de ir procurar Tiny.<br />
Eu me levanto, dou <strong>um</strong> beijo no zigue-zague dela e então saio em disparada.<br />
Ligo pra ele enquanto atravesso correndo o campo de futebol, pressionando a<br />
tecla do número 1 para discagem rápida. Ele não atende, mas acho que sei aonde<br />
ele pensa que estou indo, então vou para lá.<br />
Assim que vejo o parque à minha esquerda, desacelero para <strong>um</strong>a caminhada<br />
rápida e ofegante, os ombros queimando sob as alças da mochila. Tudo depende<br />
de ele estar no banco de reservas, e é tão improvável que ele vá até lá a três dias<br />
da estreia da peça, e enquanto caminho começo a me sentir <strong>um</strong> idiota: o telefone
dele está desligado porque ele está no ensaio, e corri até aqui em vez de correr<br />
até o auditório, o que significa que agora vou ter de correr de volta para o<br />
auditório, e meus pulmões não foram projetados para <strong>um</strong> uso assim tão<br />
rigoroso.<br />
Desacelero ainda mais quando alcanço o parque, em parte porque estou sem<br />
fôlego e em parte porque, enquanto não posso ver o interior do abrigo do banco<br />
de reservas, ele está lá e não está. Observo <strong>um</strong> casal andando no gramado,<br />
sabendo que eles podem ver o banco, tentando saber pelos olhos deles se veem<br />
<strong>um</strong> gigante sentado no banco de reservas deste campo da Liga Júnior. Mas os<br />
olhos deles não revelam nada e eu simplesmente fico olhando enquanto eles<br />
andam de mãos dadas.<br />
Finalmente, o banco fica à vista. E, porra, ali está ele, sentado bem no meio<br />
daquele banco de madeira.<br />
Vou até ele.<br />
— Você não tem ensaio geral<br />
Ele não diz nada até eu me sentar ao lado dele no gelado banco de madeira.<br />
— Eles precisam de <strong>um</strong> ensaio sem mim. Ou vão acabar se amotinando.<br />
Vamos fazer o ensaio final <strong>um</strong> pouco mais tarde hoje.<br />
— Então, o que o traz ao banco de reservas<br />
— Lembra que, logo depois que saí do armário, em vez de algo como “ Tiny<br />
joga no outro time”, você cost<strong>um</strong>ava dizer: “ Tiny joga no White Sox”<br />
— Sim. Isso é homofóbico — pergunto.<br />
— Não — diz ele. — Bem, provavelmente é, mas não me incomodou. De<br />
qualquer forma, quero pedir desculpas.<br />
— Por quê<br />
Aparentemente, pronunciei as palavras mágicas, pois Tiny respira fundo antes<br />
de começar a falar, como se, imagine só, tivesse muito a dizer.<br />
— Por não dizer na sua cara o que disse a Gary. Não vou pedir desculpas por
ter dito aquilo, porque é a verdade. Você e suas malditas regras. E, às vezes, fica<br />
obsessivo, e tem algo de melodramático em sua atitude antimelodrama, e eu sei<br />
que sou difícil, mas você também é, e essa sua mania de bancar a vítima está<br />
muito velha, e além do mais você é muito egocêntrico.<br />
— O sujo falando do mal-lavado — digo, tentando não ficar puto. Tiny tem<br />
<strong>um</strong> talento incrível pra furar a bolha de amor que sinto por ele. Talvez, penso,<br />
essa seja a razão de ele levar tanto pé na bunda.<br />
— Rá! Verdade. Verdade. Não estou dizendo que sou inocente. Estou<br />
dizendo que você é culpado também.<br />
O casal caminhando sai do meu campo de visão. E então finalmente me sinto<br />
pronto para banir o tremor que Tiny aparentemente pensa que é fraqueza. Eu me<br />
levanto, de modo que ele tenha de olhar pra mim e eu também tenha de olhar<br />
pra ele, e pela primeira vez, fico mais alto.<br />
— Eu amo você — digo.<br />
Ele inclina a cabeça gorda e adorável, como <strong>um</strong> cachorrinho confuso.<br />
— Você é <strong>um</strong> péssimo melhor amigo — continuo. — Péssimo! Você me<br />
abandona totalmente todas as vezes em que arranja <strong>um</strong> namorado, e depois volta<br />
rastejando quando leva <strong>um</strong> fora. Você não me escuta. Parece nem gostar de<br />
mim. Está obcecado pela peça e me ignora totalmente, exceto para me insultar<br />
pra <strong>um</strong> amigo nosso pelas minhas costas. E você explora sua vida e as pessoas<br />
de quem diz gostar para que sua pecinha possa fazer as pessoas te amarem e<br />
pensarem o quanto você é incrível, liberal e espetacularmente gay. Mas sabe de<br />
<strong>um</strong>a coisa Ser gay não é desculpa pra ser filho da puta.<br />
“ Mas você é o número <strong>um</strong> na minha discagem direta e quero que continue<br />
sendo, e peço desculpas por ser também <strong>um</strong> péssimo melhor amigo, e eu te<br />
amo.”<br />
Ele insiste em manter a cabeça virada.<br />
— Grayson, você está se declarando pra mim Porque eu, quero dizer, não é
nada pessoal, mas eu prefiro me tornar hétero a ter <strong>um</strong> caso com você.<br />
— NÃO. Não, não, não. Eu não quero foder com você. Eu só te amo.<br />
Quando foi que quem você quer foder se tornou o mais importante Desde<br />
quando a pessoa que você quer foder é a única pessoa que você ama Isso é tão<br />
estúpido, Tiny! Quero dizer, meu Deus, quem se importa com a porra do sexo!<br />
As pessoas agem como se essa fosse a coisa mais importante que os seres<br />
h<strong>um</strong>anos fazem, mas vamos combinar. Como pode a porra das nossas vidas<br />
evoluídas girar em torno de algo que as lesmas podem fazer Quero dizer, tudo<br />
gira em torno de quem você quer foder e se você fode com essa pessoa Essas<br />
perguntas são importantes, eu acho. Mas não tão importantes assim. Sabe o que<br />
é importante Por quem você morreria Por quem acorda às 5h45 sem nem<br />
saber pra que ele precisa de você De que bêbado você limparia o nariz!<br />
Estou gritando, girando os braços, e até minhas perguntas importantes se<br />
esgotarem, nem percebo que Tiny está chorando. E então suavemente, o mais<br />
suave que já ouvi Tiny dizer qualquer coisa, ele diz:<br />
— Se você pudesse escrever <strong>um</strong>a peça sobre alguém... — E então sua voz<br />
falha.<br />
Eu me sento ao lado dele e o abraço.<br />
— Você está bem<br />
De alg<strong>um</strong>a forma, Tiny Cooper consegue se contorcer de modo que sua<br />
cabeça imensa chore em meu ombro estreito. E depois de <strong>um</strong> tempo, ele diz:<br />
— Longa semana. Longo mês. Longa vida.<br />
Ele se recupera rapidamente, enxugando os olhos com a gola levantada da<br />
camisa polo que está usando por baixo do suéter listrado.<br />
— Quando você namora alguém, tem os indicadores pelo caminho, certo<br />
Vocês se beijam, têm A Conversa, dizem as Três Palavrinhas, vocês se sentam<br />
em <strong>um</strong> balanço e terminam. Pode-se assinalar os pontos em <strong>um</strong> gráfico. E vocês<br />
checam essas coisas <strong>um</strong> com o outro pelo caminho: Posso fazer isso Se eu
disser isso, você dirá também<br />
“ Mas com amigos, não tem nada assim. Estar em <strong>um</strong> relacionamento, isso é<br />
algo que você escolhe. Ser amigo, isso é simplesmente algo que você é.”<br />
Fico apenas olhando pro campo de futebol por <strong>um</strong> minuto. Tiny funga.<br />
— Eu escolheria você — digo. — Porra, eu escolheria você, sim. Quero que<br />
daqui a vinte anos você vá à minha casa com seu cara ou seus filhos adotivos e<br />
quero que a porra dos nossos filhos sejam amigos e quero, tipo, beber vinho e<br />
falar sobre o Oriente Médio, ou sei lá que porra vamos querer fazer quando<br />
formos velhos. Somos amigos há tempo demais pra escolher, mas, se<br />
pudéssemos escolher, eu escolheria você.<br />
— Tá, ok. Você está ficando <strong>um</strong> tanto sentimentaloide, Grayson — diz ele.<br />
— Isso está meio que me assustando.<br />
— Entendi.<br />
— Tipo, nunca mais diga que me ama.<br />
— Mas eu te amo. Não tenho vergonha disso.<br />
— É sério, Grayson, pare com isso. Você está me dando vontade de vomitar.<br />
Eu rio.<br />
— Posso te ajudar com a peça<br />
Tiny leva a mão ao bolso, tira <strong>um</strong> pedaço de folha de caderno e o entrega a<br />
mim.<br />
— Pensei que você nunca fosse pedir — diz ele, sorrindo de forma maliciosa.<br />
Will (e, em menor grau, Jane),<br />
Obrigado por seu interesse em me ajudar nos ajustes finais de Me abrace<br />
mais forte. Eu me sentiria imensamente grato se vocês dois ficassem nos<br />
bastidores na noite de estreia pra ajudar nas trocas de figurino e pra acalmar os<br />
membros do elenco em geral (ok, digamos apenas: eu). Dali vocês terão <strong>um</strong>a<br />
visão excelente da peça.<br />
Além disso, o figurino de Phil Wrayson está excelente, mas ficaria ainda
melhor se tivéssemos alg<strong>um</strong>as roupas típicas de Will Grayson para Gary usar.<br />
E mais: pensei que teria tempo de gravar <strong>um</strong>a playlist pré-show no qual as<br />
faixas ímpares fossem punk rock e as pares temas de musicais. Mas, na verdade,<br />
não terei tempo pra fazer isso; se vocês fizessem, seria verdadeiramente fabuloso.<br />
Vocês formam <strong>um</strong> lindo casal, foi <strong>um</strong> imenso prazer reuni-los e de modo<br />
alg<strong>um</strong> me ressinto pelo fato de ambos deixarem de me agradecer por tornar seu<br />
amor possível.<br />
Eu continuo...<br />
Seu fiel cupido e criado...<br />
Labutando sozinho e recém-solteiro em <strong>um</strong> mar de dor pra levar <strong>um</strong> pouco de<br />
luz a suas vidas...<br />
Tiny Cooper<br />
Rio enquanto leio, e Tiny também, concordando com acenos da cabeça,<br />
apreciando a própria genialidade.<br />
— Sinto muito pelo outro Will Grayson — digo.<br />
O sorriso dele se fecha. Sua resposta parece dirigida mais ao meu xará do que<br />
a mim.<br />
— Nunca houve alguém como ele.<br />
Não acredito nas palavras dele, mas então ele solta o ar com os lábios<br />
fechados, os olhos tristes estreitados olhando para a distância, e passo a<br />
acreditar.<br />
— É melhor eu começar com isso, hein Obrigado pelo convite para os<br />
bastidores.<br />
Ele se levanta e começa a balançar positivamente a cabeça como às vezes faz,<br />
o gesto repetitivo que me diz que está se convencendo de alg<strong>um</strong>a coisa.<br />
— Sim, eu tenho de voltar pra enfurecer o elenco e a equipe técnica com<br />
minha direção tirânica.<br />
— Vejo você amanhã, então — digo.
— E todos os outros dias — retruca ele, me dando <strong>um</strong> tapinha forte demais<br />
entre as omoplatas.
capítulo dezoito<br />
começo a prender a respiração. não como se faz ao passar por <strong>um</strong> cemitério ou<br />
algo assim. não. estou tentando ver quanto tempo aguento antes de desmaiar ou<br />
morrer. é <strong>um</strong> passatempo muito conveniente — você pode praticar em qualquer<br />
lugar. aula. almoço. no mictório. no desconforto do próprio quarto.<br />
a parte ruim é que sempre chega o momento em que volto a inspirar. só<br />
consigo me forçar até ali.<br />
desisti de ter notícias de tiny. eu o magoei, ele me odeia — é simples assim.<br />
e agora que ele não me manda mais mensagens de texto, percebo que ninguém<br />
mais manda. nem mensagens de voz. ninguém mais se importa.<br />
agora que ele não se interessa mais por mim, me dou conta de que ninguém<br />
mais tem tanto interesse assim em mim.<br />
ok, mas tem o gideon. ele não é muito bom com mensagens de texto ou de<br />
voz, mas, quando estamos na escola, está sempre me perguntando como as<br />
coisas estão indo. e sempre paro de não respirar pra responder a ele. às vezes até<br />
falo a verdade.<br />
eu: sério, é assim que vai ser o resto da minha vida não creio que eu tenha<br />
pedido isso.<br />
sei que parece idiotice de adolescente — as farpas! no coração! e nos olhos!<br />
—, mas o padrão parece inevitável. nunca vou conseguir ser <strong>um</strong>a pessoa boa.<br />
sempre vou ser o sangue e a merda das coisas.<br />
gideon: apenas respire.<br />
e eu me pergunto como ele sabe dizer essas coisas.
a única hora que finjo ter tudo sob controle é quando maura está por perto.<br />
não quero que ela me veja desmoronando. pior cenário: ela pisa em todos os<br />
pedaços. cenário ainda pior: ela tenta colá-los outra vez. percebo: estou agora<br />
onde ela estava comigo. no outro lado do silêncio. seria de esperar que o<br />
silêncio traria paz. mas, na verdade, ele é doloroso.<br />
em casa, minha mãe vigia de perto. o que me faz sentir pior, porque agora<br />
estou fazendo ela passar por isso.<br />
naquela noite — do dia em que estraguei tudo com tiny — ela escondeu a<br />
jarra de vidro que ele lhe deu. enquanto eu dormia, guardou a jarra. e o mais<br />
idiota foi que, quando vi que havia desaparecido, a primeira coisa que pensei foi<br />
que minha mãe tinha medo de eu quebrá-la. depois percebi que ela só estava<br />
tentando me proteger de vê-la, de ficar chateado.<br />
na escola, pergunto a gideon<br />
eu: por que perturbado em inglês é upset não devia ser downset<br />
gideon: a primeira coisa que vou fazer é entrar com <strong>um</strong> processo contra os<br />
dicionários de inglês. vamos rasgar <strong>um</strong> novo cu no merriam e atirar o webster<br />
dentro dele.<br />
eu: você é tão idiota.<br />
gideon: só se você me pegar n<strong>um</strong> bom dia.<br />
não digo a gideon que me sinto culpado de estar com ele. porque e se a<br />
ameaça que tiny sentiu vier a ser verdade e se eu o estava enganando sem<br />
saber<br />
eu: é possível enganar <strong>um</strong>a pessoa sem saber<br />
não é a gideon que faço essa pergunta. é à minha mãe.<br />
ela tem tido tanto cuidado comigo. tem pisado em ovos com meus h<strong>um</strong>ores,
agindo como se tudo estivesse bem. mas agora ela se imobiliza.<br />
mãe: por que você está me perguntando isso você traiu tiny<br />
e eu estou pensando: ah, merda, não devia ter perguntado isso.<br />
eu: não. não traí. por que você ficou tão brava<br />
mãe: nada.<br />
eu: não, por quê meu pai traiu você<br />
ela balança a cabeça.<br />
eu: você traiu meu pai<br />
ela suspira.<br />
mãe: não. não é isso. é que... eu não quero que você jamais seja <strong>um</strong> traidor.<br />
não com as pessoas. tudo bem mentir às vezes em relação a coisas — mas nunca<br />
em relação a pessoas. porque <strong>um</strong>a vez que você começa, é muito difícil parar.<br />
você acaba descobrindo como é fácil fazer isso.<br />
eu: mãe<br />
mãe: isso é tudo. por que você está perguntando<br />
eu: por nada. só pensando.<br />
venho pensando muito ultimamente. às vezes, quando estou passando a<br />
marca do minuto prendendo a respiração, além de me imaginar morto, também<br />
penso no que tiny está fazendo. às vezes imagino o outro <strong>will</strong> grayson lá. na<br />
maioria das vezes, eles estão no palco. mas nunca consigo entender o que estão<br />
cantando.<br />
e o estranho é que voltei a pensar em isaac. e em maura. e em como é<br />
estranho que tenha sido <strong>um</strong>a mentira aquilo que me fez mais feliz.
tiny não responde a nenh<strong>um</strong>a das mensagens que mando pela internet. então,<br />
na noite da véspera do musical, decido digitar o <strong>nome</strong> do outro <strong>will</strong> grayson. e<br />
lá está ele. não que eu pense que ele vai compreender totalmente. sim, temos o<br />
mesmo <strong>nome</strong>, mas isso não quer dizer que somos gêmeos psíquicos. ele não vai<br />
se encolher de dor se eu me queimar, nem nada desse tipo. mas naquela noite<br />
em chicago, senti que ele compreendia <strong>um</strong> pouco. e, sim, também quero saber<br />
se tiny está bem.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: oi<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: é o <strong>will</strong> grayson.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: o outro.<br />
WGrayson7: opa. olá.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: tudo bem eu falar com você<br />
WGrayson7: sim. o que você está fazendo acordado à 1h33min48s<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: esperando pra ver se 1h33min49s é <strong>um</strong> pouco melhor. e<br />
você<br />
WGrayson7: se não estou enganado, acabei de ver, via webcam, <strong>um</strong> número<br />
musical revisto que inclui o fantasma de oscar wilde, ao vivo do quarto do<br />
WGrayson7: diretor-autor-astro-etc.-etc.-etc.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: como foi<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: não.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: quero dizer, como ele está<br />
WGrayson7: a verdade<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: sim.<br />
WGrayson7: não creio que já o tenha visto mais nervoso. e não porque ele é<br />
o diretor-autor-astro-etc.-etc., mas porque significa muito pra ele, sabe ele<br />
acredita de verdade que pode mudar o mundo.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: posso imaginar.<br />
WGrayson7: desculpe, está tarde. e eu nem tenho certeza se devia estar
falando sobre tiny com você.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: acabei de consultar os estatutos da sociedade<br />
internacional de <strong>will</strong> graysons e não encontrei nada sobre isso. estamos em<br />
território amplamente não doc<strong>um</strong>entado.<br />
WGrayson7: exatamente. pode haver dragões por aqui.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: <strong>will</strong><br />
WGrayson7: sim, <strong>will</strong>.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: ele sabe que lamento muito<br />
WGrayson7: não sei. segundo minha recente experiência, eu diria que a<br />
mágoa tende a abafar as desculpas.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: eu simplesmente não podia ser aquela pessoa pra ele.<br />
WGrayson7: aquela pessoa<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: a que ele quer de verdade.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: só queria que tudo não fosse tentativa e erro.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: porque é isso que é, não é mesmo<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: tentativa e erro.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: acho que existe <strong>um</strong>a razão para que não chamem o<br />
processo de “ tentativa e acerto”<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: é tentativa-erro<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: tentativa-erro<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: tentativa-erro<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: desculpe. você ainda está aí<br />
WGrayson7: sim.<br />
WGrayson7: se isso fosse há duas semanas, eu teria concordado com você de<br />
coração.<br />
WGrayson7: agora não tenho tanta certeza.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: por quê<br />
WGrayson7: bem, concordo que “ tentativa e erro” seja <strong>um</strong> <strong>nome</strong> bastante
pessimista para o processo. e talvez seja isso mesmo na maior parte das vezes.<br />
WGrayson7: mas acho que o ponto é que não se trata apenas de tentativaerro.<br />
WGrayson7: quase sempre é tentativa-erro-tentativa<br />
WGrayson7: tentativa-erro-tentativa<br />
WGrayson7: tentativa-erro-tentativa<br />
WGrayson7: e é assim que você encontra a coisa certa.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: a coisa certa<br />
WGrayson7: você sabe. a coisa certa.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: é, a coisa certa.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: tentativa-erro-tentativa-a coisa certa<br />
WGrayson7: bem... ainda não fiquei tão otimista assim.<br />
WGrayson7: é mais como tentativa-erro-tentativa-erro-tentativa-erro-tentativaerro-tentativa-erro-tentativa...<br />
pelo menos mais <strong>um</strong>as 15 rodadas... depois<br />
tentativa-erro-tentativa-a coisa certa<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: sinto saudades dele. mas não da maneira como ele iria<br />
querer que eu sentisse.<br />
WGrayson7: você vem amanhã<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: não acho que seria <strong>um</strong>a boa ideia. você acha<br />
WGrayson7: você quem sabe. poderia ser outro erro. ou poderia ser a coisa<br />
certa. só me faça <strong>um</strong> favor e me ligue antes pra que eu possa avisá-lo.<br />
isso parece justo. ele me dá o número do telefone dele e eu dou o meu. gravo<br />
em meu celular antes que eu esqueça. na hora de atribuir o <strong>nome</strong> ao número,<br />
digito apenas <strong>will</strong> grayson.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: qual é o segredo da sua sabedoria, <strong>will</strong> grayson<br />
WGrayson7: acho que é andar com as pessoas certas, <strong>will</strong> grayson.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: bem, obrigado pela ajuda.
WGrayson7: gosto de estar à disposição de todos os ex-namorados do meu<br />
melhor amigo.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: é necessário <strong>um</strong>a aldeia inteira pra namorar tiny cooper.<br />
WGrayson7: exatamente.<br />
<strong>will</strong>upleasebequiet: boa noite, <strong>will</strong> grayson.<br />
WGrayson7: boa noite, <strong>will</strong> grayson.<br />
queria dizer que isso me acalma. queria dizer que caio no sono<br />
imediatamente. mas a noite inteira minha mente fica<br />
tentativa-erro-<br />
tentativa-erro-<br />
tentativa-erro-<br />
de manhã, estou <strong>um</strong> lixo. acordo e penso: hoje é o dia. e então penso: isso<br />
não tem nada a ver comigo. eu nem mesmo o ajudei com a peça. é só que agora<br />
não vou vê-la. eu sei que é justo, mas não me parece justo. a sensação que tenho<br />
é de que estraguei tudo.<br />
no café da manhã, minha mãe percebe meu ódio sem paralelo a mim mesmo.<br />
provavelmente é a maneira como afundo as colheradas de chocolate em pó até o<br />
leite derramar que sugere a ela.<br />
mãe: <strong>will</strong>, qual é o problema<br />
eu: qual não é<br />
mãe: <strong>will</strong>...<br />
eu: está tudo bem.<br />
mãe: não, não está.<br />
eu: como você pode me dizer que não está essa escolha não é minha<br />
ela se senta na minha frente e cobre a minha mão com a dela, embora agora
haja <strong>um</strong>a poça de leite cor de chocolate debaixo do seu pulso.<br />
mãe: você sabe o quanto eu cost<strong>um</strong>ava gritar<br />
não tenho a menor ideia do que ela está falando.<br />
eu: você não grita. você fica em silêncio.<br />
mãe (balançando a cabeça): mesmo quando você era pequeno, mas<br />
principalmente quando seu pai e eu estávamos passando pelo que passamos;<br />
havia ocasiões em que eu tinha de sair de casa, entrar no carro, dobrar a esquina<br />
e gritar até não poder mais. eu gritava, gritava e gritava. às vezes era só barulho.<br />
e às vezes palavrões; todo palavrão que você puder imaginar.<br />
eu: posso pensar em muitos deles. você já gritou “ merdelhéu!”<br />
mãe: não, mas...<br />
eu: e “ foder o cu do palhaço!”<br />
mãe: ...<br />
eu: você devia tentar “ foder o cu do palhaço”. é bastante eficaz.<br />
mãe: o que estou querendo dizer é que tem horas que você precisa botar tudo<br />
pra fora. toda a raiva. toda a dor.<br />
eu: você já pensou em falar com alguém sobre isso quero dizer, eu tenho<br />
uns comprimidos que podem te interessar, mas acho que precisa de <strong>um</strong>a receita.<br />
não é nada de mais — só leva <strong>um</strong>a hora do seu tempo para que deem o<br />
diagnóstico.<br />
mãe: <strong>will</strong>.<br />
eu: desculpe. é só que não é de fato raiva ou dor que estou sentindo. só raiva<br />
de mim mesmo.<br />
mãe: ainda assim é raiva.<br />
eu: mas você não acha que isso não devia contar quero dizer, não é o<br />
mesmo que ter raiva de outra pessoa.
mãe: por que nesta manhã<br />
eu: como assim<br />
mãe: por que você está com raiva de si mesmo justamente hoje<br />
não é que eu tenha planejado anunciar o fato de que estou com raiva. ela meio<br />
que me prepara <strong>um</strong>a armadilha pra eu falar. eu, entre todas as pessoas, posso<br />
respeitar isso. então digo a ela que hoje é o dia da apresentação do musical de<br />
tiny.<br />
mãe: você devia ir.<br />
agora é a minha vez de balançar a cabeça.<br />
eu: sem chance.<br />
mãe: com chance. e <strong>will</strong><br />
eu: sim<br />
mãe: você também devia falar com maura.<br />
afundo as colheradas de chocolate em pó antes que haja <strong>um</strong> meio de ela me<br />
persuadir. quando chego à escola, passo por maura em seu posto de observação e<br />
tento usar o dia como <strong>um</strong>a distração. tento prestar atenção às aulas, mas elas são<br />
tão entediantes que é como se os professores estivessem tentando me levar de<br />
volta aos meus pensamentos. tenho medo do que gideon me dirá se eu<br />
confidenciar a ele, então tento fingir que é <strong>um</strong> dia normal e que não estou<br />
catalogando todas as coisas que fiz de errado nas últimas semanas. dei mesmo<br />
<strong>um</strong>a chance a tiny dei <strong>um</strong>a chance a maura eu não devia tê-lo deixado me<br />
acalmar não devia tê-la deixado explicar por que fez o que fez<br />
finalmente, quando o dia acaba, não posso mais lidar com aquilo sozinho, e é<br />
a gideon que quero recorrer. parte de mim tem esperança de que ele me diga que<br />
não tenho nada do que me envergonhar, que não fiz nada de errado. eu o
encontro em seu armário e digo<br />
eu: dá pra acreditar minha mãe disse que eu devia ir ver a peça de tiny e falar<br />
com maura.<br />
gideon: devia mesmo.<br />
eu: sua irmã usou sua boca como cachimbo de crack ontem à noite você<br />
pirou<br />
gideon: não tenho irmã.<br />
eu: que seja. você entendeu o que eu quis dizer.<br />
gideon: eu vou com você.<br />
eu: o quê<br />
gideon: vou pegar o carro da minha mãe emprestado. você sabe onde fica a<br />
escola de tiny<br />
eu: você tá brincando.<br />
e é então que acontece. é quase espantoso, de verdade. gideon se torna <strong>um</strong><br />
pouco — só <strong>um</strong> pouquinho — mais como eu.<br />
gideon: podemos apenas dizer “ foda-se” pra parte do “ você tá brincando”<br />
tudo bem não estou dizendo que você e tiny deviam ficar juntos pra sempre e<br />
ter bebês imensos e depressivos que têm períodos de magreza maníaca, mas<br />
acho, de verdade, que a maneira como vocês dois se separaram é bastante<br />
desfavorável, e eu apostaria vinte dólares, se eu tivesse vinte dólares, que ele<br />
está sofrendo o mesmo que você. ou talvez tenha encontrado outro namorado.<br />
talvez também chamado <strong>will</strong> grayson. qualquer que seja o caso, você vai ficar<br />
sendo esse pé no saco ambulante e falante a menos que alguém leve essa sua<br />
bunda aonde quer que ele esteja, e neste caso em particular, e em qualquer outro<br />
caso em particular em que você precise de mim, eu sou esse alguém. sou o<br />
cavaleiro com a armadura reluzente. sou seu maldito corcel.
eu: gideon, eu não fazia a menor ideia...<br />
gideon: cale a porra da boca.<br />
eu: diz de novo!<br />
gideon (rindo): cale a porra da boca!<br />
eu: mas por quê<br />
gideon: por que você deveria calar a porra da boca<br />
eu: não — por que você é o meu maldito corcel<br />
gideon: porque você é meu amigo, seu desorientado. porque debaixo de toda<br />
essa negação, você é <strong>um</strong>a pessoa muito, muito legal. e porque desde que o<br />
mencionou pela primeira vez, estou morrendo de vontade de ver esse musical.<br />
eu: ok, ok, ok.<br />
gideon: e a segunda parte<br />
eu: que segunda parte<br />
gideon: falar com maura.<br />
eu: você tá de brincadeira.<br />
gideon: nem <strong>um</strong> pouco. você tem 15 minutos enquanto vou buscar o carro.<br />
eu: não quero.<br />
gideon me lança <strong>um</strong> olhar severo.<br />
gideon: quantos anos você tem três<br />
eu: mas por que eu deveria fazer isso<br />
gideon: aposto que pode responder isso sozinho.<br />
digo que ele está totalmente louco. ele me manda embora e repete que preciso<br />
fazer isso, e que ele vai buzinar quando voltar pra me pegar.<br />
o pior é que sei que ele tem razão. esse tempo todo, pensei que o tratamento<br />
do silêncio estivesse funcionando. porque, afinal, não sinto falta dela. então<br />
percebo que sentir ou não a falta dela não é a questão. a questão é que ainda
estou carregando comigo o que aconteceu, tanto quanto ela. e preciso me livrar<br />
disso. porque nós dois derramamos as toxinas em nossa amizade tóxica. e,<br />
embora eu não tenha exatamente criado <strong>um</strong>a armadilha com <strong>um</strong> namorado<br />
imaginário, certamente contribuí com erros o bastante pras nossas tentativas.<br />
não tem como encontrarmos <strong>um</strong> estado ideal, a coisa. mas acho que estou<br />
vendo que temos de pelo menos chegar a <strong>um</strong>a coisa que possamos tolerar.<br />
saio do prédio e, no fim do dia, lá está ela, no mesmo lugar em que fica no<br />
início. empoleirada em <strong>um</strong> muro, com o caderno na mão. olhando os outros<br />
alunos passando, sem dúvida desdenhando cada <strong>um</strong> deles, inclusive eu.<br />
tenho a sensação de que devia ter preparado <strong>um</strong> discurso. mas, para isso, teria<br />
de saber o que vou dizer. e não tenho a menor ideia, sério. o melhor que<br />
consigo elaborar é<br />
eu: oi<br />
a que ela responde<br />
maura: oi<br />
ela me lança aquele olhar sem expressão. olho pros meus sapatos.<br />
maura: a que devo esse prazer<br />
era assim que falávamos <strong>um</strong> com o outro. sempre. e eu não tenho mais<br />
energia pra isso. não é assim que quero falar com meus amigos. não sempre.<br />
eu: maura, pare.<br />
maura: parar você tá brincando, né você não fala comigo por <strong>um</strong> mês, e,<br />
quando fala, é pra me dizer pra parar<br />
eu: não foi pra isso que vim até aqui...<br />
maura: então por que você veio até aqui
eu: não sei, ok<br />
maura: o que isso quer dizer é claro que você sabe.<br />
eu: olhe. só quero que você saiba que, embora ainda ache que o que fez foi<br />
<strong>um</strong>a grande sacanagem, reconheço que fui sacana com você também. não com a<br />
sacanagem elaborada que você fez comigo, mas ainda assim <strong>um</strong>a sacanagem. eu<br />
deveria simplesmente ter sido sincero com você e dito que não queria falar com<br />
você nem ser seu namorado nem ser seu melhor amigo nem nada desse tipo. eu<br />
tentei — juro que tentei. mas você não queria ouvir o que eu estava dizendo, e<br />
usei isso como desculpa pra ir levando.<br />
maura: você não se importava quando eu era isaac. quando conversávamos<br />
toda noite.<br />
eu: mas aquilo era <strong>um</strong>a mentira! <strong>um</strong>a completa mentira!<br />
agora maura me olhou dentro do olho.<br />
maura: ah, por favor, <strong>will</strong> — você sabe que não existe essa coisa de completa<br />
mentira. há sempre <strong>um</strong>a verdade nela.<br />
não sei como reagir a isso. então digo a primeira coisa que me vem à cabeça.<br />
eu: não era de você que eu gostava. era de isaac. eu gostava de isaac.<br />
a expressão vazia agora desapareceu. há tristeza em seu lugar.<br />
maura: ... e isaac gostava de você.<br />
tenho vontade de dizer: eu só quero ser eu mesmo. e quero estar com alguém<br />
que é apenas ele mesmo. só isso. quero ver através de toda encenação e de todo<br />
o fingimento, e ir direto à verdade. e talvez essa seja a maior verdade que maura<br />
e eu encontraremos — <strong>um</strong> reconhecimento da mentira, e dos sentimentos que<br />
ficaram para trás.
eu: me desculpe, maura.<br />
maura: me desculpe também.<br />
é por isso que chamamos as pessoas de ex, acho — porque os caminhos que<br />
se cruzam no meio acabam se separando no fim. é muito fácil ver esse x como<br />
<strong>um</strong>a anulação. mas não é, porque não tem como anular <strong>um</strong>a coisa assim. o x é<br />
<strong>um</strong> diagrama de dois caminhos.<br />
ouço <strong>um</strong>a buzina e me viro pra ver gideon chegando no carro da mãe.<br />
eu: preciso ir.<br />
maura: então vai.<br />
eu me afasto e entro no carro com gideon e conto a ele tudo que acabou de<br />
acontecer. ele diz que está orgulhoso de mim, e eu não sei o que fazer com isso.<br />
eu: por quê<br />
e ele diz<br />
gideon: por pedir desculpas. eu não tinha certeza se você conseguiria.<br />
digo a ele que também não tinha. mas era o que eu estava sentindo. e eu<br />
queria ser sincero.<br />
de repente — é tipo a próxima coisa de que me dou conta — estamos na<br />
estrada. não tenho nem certeza se vamos chegar a tempo pra peça de tiny. não<br />
tenho nem certeza se devia ir. não tenho nem certeza se quero ver tiny. só quero<br />
ver como ficou a peça.<br />
gideon está assobiando, acompanhando a música do rádio, ao meu lado.<br />
normalmente esse tipo de coisa me irrita, mas dessa vez não.<br />
eu: queria poder mostrar a verdade pra ele.
gideon: pra tiny<br />
eu: sim. você não precisa namorar alguém pra achar que ele é maravilhoso,<br />
certo<br />
prosseguimos <strong>um</strong> pouco mais. gideon recomeça a assobiar. imagino tiny<br />
correndo de <strong>um</strong> lado pro outro nos bastidores. então gideon para de assobiar. ele<br />
sorri e bate no volante.<br />
gideon: por júpiter, acho que já sei!<br />
eu: você disse mesmo isso<br />
gideon: admita. você adora.<br />
eu: estranhamente, adoro mesmo.<br />
gideon: acho que tenho <strong>um</strong>a ideia.<br />
então ele me conta. e não posso acreditar que eu tenha <strong>um</strong> indivíduo com a<br />
mente tão doentia, distorcida e brilhante sentado ao meu lado.<br />
mais do que isso, porém, não posso acreditar que eu esteja prestes a fazer o<br />
que ele está sugerindo.
capítulo dezenove<br />
Jane e eu passamos as horas antes da Noite de Estreia criando a playlist préshow<br />
perfeita, composta — como solicitado — de canções pop punk para as<br />
ímpares e temas de musicais para as pares. “ Annus Miribalis” faz <strong>um</strong>a aparição;<br />
até incluímos a música mais punk do decididamente não punk Neutral Milk<br />
Hotel. Quanto às canções de musicais, escolhemos nove diferentes versões de<br />
“ Over the Rainbow”, incluindo <strong>um</strong>a em ritmo de reggae.<br />
Assim que terminamos a seleção e o download, Jane vai pra casa se arr<strong>um</strong>ar.<br />
Estou ansioso para chegar ao auditório, mas parece injusto com Tiny usar <strong>um</strong><br />
simples jeans e <strong>um</strong>a camiseta de Willy, o Wildkit, no evento mais importante<br />
da vida dele. Assim, ponho <strong>um</strong> dos casacos esportivos do meu pai sobre a<br />
camiseta do Wildkit, ajeito o cabelo e me sinto pronto.<br />
Espero até minha mãe chegar em casa, pego as chaves com ela antes mesmo<br />
que possa abrir totalmente a porta, e sigo pra escola.<br />
Entro no auditório quase vazio — falta ainda mais de <strong>um</strong>a hora para as<br />
cortinas subirem — e sou recebido por Gary, cujo cabelo está pintado mais<br />
claro, cortado bem curto e bagunçado como o meu. Além disso, ele está usando<br />
minhas roupas, que entreguei a ele ontem: calça cáqui, a camisa xadrez de<br />
mangas curtas e botões que eu adoro, e meu tênis de cano alto preto. O efeito<br />
todo seria surreal, exceto pelo fato de as roupas estarem ridiculamente<br />
amarrotadas.<br />
— Puxa, Tiny não conseguiu <strong>um</strong> ferro de passar — pergunto.<br />
— Grayson — diz Gary —, olhe pra sua calça, cara.<br />
Eu olho. Hã. Eu nem sabia que jeans podia amarrotar. Ele passa o braço ao<br />
redor do meu ombro e diz:<br />
— Sempre pensei que isso fizesse parte do seu look.
— Agora faz — observo. — Como estão as coisas Você está nervoso<br />
— Estou <strong>um</strong> pouco, mas não tanto quanto Tiny. Na verdade, você pode ir lá<br />
atrás e, hã, tentar ajudar Isto — diz ele, apontando a roupa —, era pro ensaio<br />
geral. Tenho de colocar meu traje do White Sox.<br />
— Feito — concordo. — Onde ele está<br />
— Banheiro dos bastidores — responde Gary.<br />
Entrego a ele o CD do pré-show, saio em disparada pelo corredor e passo por<br />
trás da pesada cortina vermelha. Sou recebido por <strong>um</strong> bando de atores e técnicos<br />
em vários estágios da caracterização e, pelo menos dessa vez, eles estão quietos,<br />
ocupados em maquiar uns aos outros. Todos os caras do elenco usam uniformes<br />
do White Sox, complementados por tênis e meias altas puxadas sobre as calças<br />
justas. Digo oi para Ethan, o único que conheço de fato, e então estou prestes a<br />
procurar o banheiro quando noto o cenário. É o banco de reservas de <strong>um</strong> campo<br />
de beisebol, muito realista, o que me surpreende.<br />
— Este é o cenário da peça inteira — pergunto a Ethan.<br />
— Meu Deus, não — diz ele. — Tem <strong>um</strong> diferente pra cada ato.<br />
Ouço a distância <strong>um</strong> rugido seguido por <strong>um</strong>a série apavorante de golfadas, e<br />
meu primeiro pensamento é: Tiny incluiu <strong>um</strong> elefante na peça, e o dito cujo<br />
acabou de vomitar, mas então percebo que o elefante é Tiny.<br />
Contra todo e qualquer bom-senso, sigo o som até o banheiro, o que<br />
prontamente se repete. Posso ver os pés dele aparecendo pela base do boxe.<br />
— Tiny — chamo.<br />
— BLLLLAAARRRRGGGGH — responde ele, e então puxa o ar com<br />
desespero antes de dar outra golfada. O cheiro é sufocante, mas dou <strong>um</strong> passo à<br />
frente e entreabro a porta. Tiny, usando o maior uniforme do Sox do mundo,<br />
está abraçado ao vaso sanitário.<br />
— Nervoso ou passando mal<br />
— BLLLLLAAAAAAUUUU.
Não posso deixar de ficar surpreso pelo simples vol<strong>um</strong>e do que jorra pela<br />
boca aberta de Tiny. Identifico uns pedaços de alface, mas gostaria de não ter<br />
identificado, porque aí começo a me perguntar: Tacos Sanduíche de peru E<br />
me vem a sensação de que talvez vá imitá-lo.<br />
— Ok, companheiro, ponha tudo pra fora e você vai ficar bem.<br />
Nick entra intempestivamente no banheiro, gemendo:<br />
— Que cheiro, que cheiro... — E então diz: — Não estraga a porra do<br />
cabelo, Cooper! Mantenha a cabeça fora do vaso. Levamos horas com esse<br />
cabelo!<br />
Tiny cospe e tosse <strong>um</strong> pouco e então emite <strong>um</strong> grasnido:<br />
— Minha garganta. Em carne viva.<br />
Ele e eu percebemos ao mesmo tempo: a voz central do show está arruinada.<br />
Eu o pego por <strong>um</strong>a axila e Nick pela outra, nós o levantamos e o afastamos<br />
dali. Dou a descarga, tentando não olhar o indizível horror dentro do vaso.<br />
— O que foi que você comeu<br />
— Um burrito de frango e <strong>um</strong> de carne do Burrito Palace — responde ele.<br />
Sua voz está toda estranha, o que ele percebe e então tenta cantar. — O que é a<br />
segunda base pra <strong>um</strong>... merda, merda, merda, merda, merda, estraguei a minha<br />
voz. Merda.<br />
Com Nick ainda debaixo de <strong>um</strong> braço de Tiny e eu embaixo do outro,<br />
voltamos até onde está a equipe, e grito:<br />
— Preciso de <strong>um</strong> chá quente com muito mel e <strong>um</strong> pouco de Pepto-Bismol<br />
imediatamente, pessoal!<br />
Jane se aproxima correndo, usando <strong>um</strong>a camiseta branca masculina de gola V<br />
com as palavras Estou com Phil Wrayson escritas à mão.<br />
— Deixe comigo — diz. — Tiny, precisa de mais alg<strong>um</strong>a coisa<br />
Ele levanta <strong>um</strong>a das mãos pra nos silenciar, e então geme:<br />
— O que é isso
— O que é o quê — pergunto.<br />
— Esse barulho. Distante. Isso é... isso é... porra, Grayson, você colocou<br />
“ Over the Rainbow” no CD do pré-show<br />
— Ah, sim — digo. — Repetidamente.<br />
— TINY COOPER ODEIA “ OVER THE RAINBOW”! — Sua voz soa<br />
aguda e dissonante quando ele grita. — Merda, minha voz já era. Merda.<br />
— Fique quieto — recomendo. — Vamos dar <strong>um</strong> jeito nisso, cara. Só não<br />
vomite mais.<br />
— Não tenho mais burrito pra vomitar — responde ele.<br />
— FIQUE QUIETO — insisto.<br />
Ele faz que sim com a cabeça. E, por alguns minutos, enquanto todos correm<br />
de <strong>um</strong> lado pro outro abanando o rosto supermaquiado e sussurrando uns para<br />
os outros o quanto estarão maravilhosos, fico sozinho com <strong>um</strong> Tiny Cooper<br />
calado.<br />
— Eu não sabia que você podia ficar nervoso. Fica nervoso antes de <strong>um</strong> jogo<br />
de futebol — Ele balança a cabeça, dizendo que não. — Ok, só faça que sim<br />
com a cabeça, se eu estiver certo. Você está com medo de que a peça não esteja<br />
boa de fato. — Ele assente. — Preocupado com sua voz. — Assente. — O que<br />
mais Isso é tudo — Ele sacode a cabeça, dizendo que não. — Hã, está<br />
preocupado que ela não vá mudar mentes homofóbicas. — Não. — Está com<br />
medo de vomitar no palco. — Não. — Não sei, Tiny, mas o que quer que<br />
esteja te preocupando, você é maior que essas preocupações. Você vai arrasar lá<br />
no palco. Os aplausos vão durar horas. Mais que a própria peça.<br />
— Will — sussurra ele.<br />
— Cara, poupe sua voz.<br />
— Will — repete.<br />
— Sim<br />
— Não. Will.
— Você está falando do outro Will — digo, e ele se limita a erguer as<br />
sobrancelhas e sorrir tolamente.<br />
— Vou dar <strong>um</strong>a olhada — digo. Faltam vinte minutos para as cortinas<br />
subirem, e o auditório está quase cheio. Paro na beirada do palco, olhando para<br />
a frente por <strong>um</strong> segundo, me sentindo <strong>um</strong> pouco famoso. Então desço correndo<br />
os degraus e lentamente ando pelo corredor à direita do palco. Eu também quero<br />
Will aqui. Quero que seja possível que pessoas como Will e Tiny sejam<br />
amigas, não apenas erros resultados de tentativas.<br />
Embora sinta que conheço Will, mal me lembro de sua aparência. Tento<br />
passar por cada rosto em cada fileira. Mil pessoas enviando mensagens em seus<br />
celulares, rindo e se remexendo em seus assentos. Mil pessoas lendo o programa<br />
no qual, fico sabendo mais tarde, Jane e eu recebemos agradecimentos especiais<br />
por “ serem incríveis”. Mil pessoas esperando pra ver Gary fingindo que sou eu<br />
por alg<strong>um</strong>as horas, sem a menor ideia do que estão prestes a ver. Assim como<br />
eu também não sei, claro — só sei que a peça mudou desde que a li há alguns<br />
meses.<br />
Tanta gente, e tento olhar para cada <strong>um</strong>a delas. Vejo o Sr. Fortson, o<br />
orientador da AGH, sentado com seu companheiro. Vejo dois de nossos<br />
diretores assistentes. E então, quando chego ao meio, meus olhos examinando<br />
os rostos à procura de alg<strong>um</strong> que pareça o de <strong>um</strong> Will Grayson, vejo dois rostos<br />
mais velhos me olhando do corredor. Meus pais.<br />
— O que vocês estão fazendo aqui<br />
Meu pai dá de ombros.<br />
— Você vai ficar surpreso de saber que não foi ideia minha.<br />
Mamãe o cutuca.<br />
— Tiny me escreveu <strong>um</strong>a mensagem muito simpática no Facebook nos<br />
convidando pessoalmente, e achei que foi muito doce da parte dele.<br />
— Você é amiga do Tiny no Facebook
— Sim. Ele solicitou minha amizade — diz minha mãe, falhando epicamente<br />
em linguagem Facebook.<br />
— Bem, obrigado por virem. Eu vou estar nos bastidores, mas, hã, vejo<br />
vocês depois.<br />
— Diga oi a Jane por nós — fala minha mãe, toda sorridente e com ar de<br />
conspiração.<br />
— Farei isso.<br />
Termino de percorrer o corredor e então volto pelo lado esquerdo. Nenh<strong>um</strong><br />
Will Grayson. Quando volto aos bastidores, vejo Jane segurando <strong>um</strong> frasco<br />
gigante de Pepto-Bismol.<br />
Ela o vira de cabeça pra baixo e diz:<br />
— Ele bebeu tudo.<br />
Tiny salta de trás do cenário e canta:<br />
— E agora eu me sinto PErrrrrFEITO! — Sua voz parece boa.<br />
— Rock ’n’ roll — digo a Tiny. Ele vem até mim e me olha, inquiridor. —<br />
Tem <strong>um</strong>as mil e duzentas pessoas na plateia, Tiny — observo.<br />
— Você não o viu — fala ele, concordando de leve com <strong>um</strong> aceno. — Ok.<br />
Sim. Ok. Está ok. Obrigado por me fazer calar a boca.<br />
— E dar descarga em seus dez mil litros de vômito.<br />
— Claro, por isso também. — Ele respira fundo e infla as bochechas, seu<br />
rosto se tornando quase perfeitamente circular. — Acho que está na hora.<br />
Tiny reúne o elenco e a equipe técnica à sua volta. Ele se ajoelha no centro<br />
de <strong>um</strong>a compacta massa de gente, todos se tocando, afinal <strong>um</strong>a das leis da<br />
natureza é que gente de teatro ama se tocar. O elenco está no primeiro círculo em<br />
torno de Tiny, todos — homens e mulheres — vestidos como jogadores do<br />
White Sox. Em seguida o coro, vestido todo de preto no momento. Jane e eu<br />
nos inclinamos também. Tiny diz:<br />
— Eu só quero dizer obrigado a todos vocês e que são todos incríveis, e que
tudo é <strong>um</strong>a questão de saber cair. E também que lamento ter vomitado. E que<br />
vomitei de envenenamento por estar cercado por tanta gente incrível.<br />
Isso provoca alguns risos nervosos.<br />
— Sei que vocês estão apavorados, mas acreditem em mim: vocês são<br />
fabulosos. E, seja como for, não são vocês que estão na berlinda. Vamos lá<br />
tornar alguns sonhos realidade.<br />
Todos meio que gritam e fazem essa coisa em que erguemos <strong>um</strong>a das mãos<br />
na direção do teto e a agitamos no ar. A luz sob as cortinas é apagada. Três<br />
jogadores de futebol empurram o cenário até o lugar correto. Saio do caminho,<br />
ficando parado no breu ao lado de Jane, cujos dedos se entrelaçam com os meus.<br />
Meu coração bate violentamente e só posso imaginar o que é ser Tiny nesse<br />
momento, rezando para que <strong>um</strong> litro de Pepto-Bismol crie <strong>um</strong> revestimento em<br />
suas cordas vocais, que ele não esqueça nenh<strong>um</strong> verso nem caia, nem desmaie,<br />
nem vomite. Já é difícil nos bastidores, e me dou conta da coragem que é<br />
preciso pra subir no palco e dizer a verdade. Pior, pra cantar a verdade.<br />
Uma voz incorpórea diz:<br />
— Para evitar interrupções ao fabuloso, por favor, desliguem seus celulares.<br />
Levo a mão livre ao bolso e passo o meu para o modo vibratório. Sussurro<br />
para Jane: “ Acho que eu estou com vontade de vomitar”, e ela diz: “ Shh”, e eu<br />
sussurro: “ Ei, as minhas roupas estão sempre superamarrotadas”, e ela<br />
sussurra: “ Sim. Shh”, e aperta minha mão. A cortina se abre. Aplausos<br />
educados.<br />
Todos no elenco se sentam no banco de reservas, exceto Tiny, que anda,<br />
nervoso, de <strong>um</strong> lado para o outro na frente dos jogadores.<br />
— Vamos, Billy. Tenha paciência, Billy. Espere a sua vez de arremessar. —<br />
Percebo que Tiny não está representando Tiny, e sim o treinador.<br />
Um calouro gorducho representa Tiny. Ele não consegue parar de agitar as<br />
pernas; não sei dizer se está atuando ou nervoso. Ele diz, exageradamente
afeminado:<br />
— Ei, rebatedor, rebatedor, BALANCE, rebatedor.<br />
Parece que ele está flertando com o rebatedor.<br />
— Idiota — diz alguém no banco. — Nosso jogador está rebatendo.<br />
Gary diz:<br />
— Tiny é feito de borracha. Você, de cola. O que você diz quica nele e volta<br />
pra sua cachola.<br />
Posso ver pelos ombros caídos e o olhar submisso que Gary sou eu.<br />
— Tiny é gay — diz alguém.<br />
O treinador gira na direção do banco e grita.<br />
— Ei! EI! Nada de insultar os companheiros.<br />
— Isso não é insulto — diz Gary.<br />
Mas ele não é mais Gary. Não é Gary falando. Sou eu.<br />
— É só <strong>um</strong>a coisa, tipo, alg<strong>um</strong>as pessoas são gays, assim como outras têm<br />
olhos azuis.<br />
— Cale a boca, Wrayson — diz o treinador.<br />
O garoto representando Tiny olha agradecido pro garoto me representando, e<br />
então <strong>um</strong> dos valentões finge sussurrar:<br />
— Vocês são tão gays <strong>um</strong> com o outro.<br />
E eu digo:<br />
— Não somos gays. Temos oito anos.<br />
Isso aconteceu mesmo. Eu tinha esquecido, mas, vendo o momento<br />
ressuscitado, lembro.<br />
E o garoto diz:<br />
— Você quer ir pra segunda base... COM TINY.<br />
O eu no palco apenas revira os olhos. Então o garoto gorducho representando<br />
Tiny se levanta, dá <strong>um</strong> passo à frente, parando diante do treinador, e canta:<br />
— O que é a segunda base pra <strong>um</strong> gay
E então Tiny dá <strong>um</strong> passo à frente e se junta a ele, em harmonia, e eles se<br />
lançam na melhor canção de musical que já ouvi. O coro canta:<br />
O que é a segunda base pra <strong>um</strong> gay<br />
Seria brincar com peitinhos<br />
Não posso ver como isso possa ser bom<br />
Tem mesmo que ser esse o caminho<br />
Atrás dos dois Tinys cantando de braços dados, os caras do coro — inclusive<br />
Ethan — apresentam <strong>um</strong>a dança coreografada com passos altos, antiquada e<br />
hilariantemente elaborada, seus tacos usados como bengalas e os bonés de<br />
beisebol como cartolas. No meio da performance, metade dos caras brande os<br />
tacos na direção da cabeça dos outros, e, embora de minha visão lateral, dê pra<br />
ver que é pura representação, quando os outros garotos caem dramaticamente pra<br />
trás e a música é interrompida, solto <strong>um</strong>a exclamação com a plateia. Momentos<br />
mais tarde, todos eles se põem de pé com <strong>um</strong> salto em <strong>um</strong> movimento único, e<br />
a música recomeça. Quando chega ao fim, Tiny e o garoto saem dançando do<br />
palco sob gritos estrondosos da multidão, e, quando as luzes se apagam, Tiny<br />
quase aterrissa em meus braços, banhado em suor.<br />
— Nada mau — diz ele.<br />
Eu simplesmente balanço a cabeça, estupefato. Jane o ajuda a tirar o sapato e<br />
diz:<br />
— Tiny, você é <strong>um</strong>a espécie de gênio. — Ele arranca o uniforme de beisebol,<br />
revelando <strong>um</strong>a camisa polo roxa, típica de Tiny, e shorts cáqui.<br />
— Eu sei, né — responde. — Ok, hora de sair do armário pro povo — diz,<br />
e volta correndo pro palco. Jane agarra minha mão e me dá <strong>um</strong> beijo no<br />
pescoço.<br />
É <strong>um</strong>a cena tranquila, Tiny contando aos pais que é “ provavelmente meio<br />
gay”. O pai fica sentado em silêncio, enquanto a mãe canta sobre o amor
incondicional. A canção só é engraçada porque Tiny fica interrompendo com<br />
outras revelações a cada vez que a mãe canta “ Nós vamos sempre amar nosso<br />
Tiny”, tipo: “ Além disso, colei na prova de álgebra” e “ Tem <strong>um</strong>a razão pra sua<br />
vodca parecer aguada” e “ Eu dou as ervilhas do meu prato pro cachorro”.<br />
Quando a canção termina, as luzes voltam a se apagar, mas Tiny não deixa o<br />
palco. Quando as luzes se acendem novamente, não há nenh<strong>um</strong> cenário, mas, a<br />
julgar pelas fantasias elaboradas do elenco, deduzo que estamos em <strong>um</strong>a Parada<br />
do Orgulho Gay. Tiny e Phil Wrayson encontram-se no centro do palco<br />
enquanto as pessoas passam por eles, entoando seus cantos e acenando<br />
exageradamente. Gary está tão parecido comigo que é esquisito. Ele parece mais<br />
com o eu calouro do que Tiny parece o Tiny calouro.<br />
Eles conversam por <strong>um</strong> minuto, e então Tiny diz:<br />
— Phil, eu sou gay.<br />
Aturdido, respondo:<br />
— Não!<br />
E ele diz:<br />
— É verdade.<br />
Balanço a cabeça.<br />
— Você quer dizer, tipo, que está se sentindo gay, tipo, alegre<br />
— Não, quero dizer gay do tipo, aquele cara — aponta pra Ethan, que está<br />
usando <strong>um</strong>a camiseta amarela colada ao corpo — é <strong>um</strong> gato e, se eu conversasse<br />
com ele por <strong>um</strong> tempo e ele fosse legal e me respeitasse como pessoa, eu o<br />
deixaria me beijar na boca.<br />
— Você é gay — pergunto, aparentemente incapaz de compreender.<br />
— Sim. Eu sei. Sei que é <strong>um</strong> choque. Mas eu queria que você fosse o<br />
primeiro a saber. Depois dos meus pais, quero dizer.<br />
E então Phil Wrayson começa a cantar, mais ou menos exatamente o que eu<br />
disse quando isso aconteceu de fato:
— Agora você vai me dizer que o céu é azul, que você usa shampoo de<br />
mulher, que os críticos não gostam de Blink 182. Ah, em seguida, vai me dizer<br />
que o papa é católico, que prostitutas fazem sexo por dinheiro, que Elton John é<br />
brega.<br />
E então a canção se transforma em <strong>um</strong> dueto, com Tiny cantando sua<br />
surpresa com o fato de eu saber que ele é gay e eu cantando que era óbvio.<br />
— Mas eu jogo futebol.<br />
— Cara, você não podia ser mais gay.<br />
— Pensei que minha atuação como hétero merecesse <strong>um</strong> Tony.<br />
— Mas, Tiny, e a sua coleção de mil My Little Ponies<br />
E assim por diante. Não consigo parar de rir, porém, mais que isso, não<br />
consigo acreditar que ele lembre de tudo tão bem, o quanto sempre fomos bons<br />
— apesar dos maus momentos — <strong>um</strong> pro outro. E eu canto:<br />
— Você não me quer, não é<br />
E ele responde:<br />
— Preferiria <strong>um</strong> canguru, poisé.<br />
E atrás da gente o coro jogando as pernas pro alto como dançarinas de<br />
cancan.<br />
Jane põe a mão no meu ombro, me fazendo inclinar, e sussurra:<br />
— Está vendo Ele te ama também.<br />
E eu me viro pra ela e a beijo no rápido momento sem luz entre o fim da<br />
canção e o começo dos aplausos.<br />
Quando a cortina se fecha para <strong>um</strong>a troca de cenário, não posso ver a ovação<br />
de pé, mas posso ouvi-la.<br />
Tiny deixa correndo o palco, gritando:<br />
— UUUUUUUHUL!<br />
— Vocês podiam mesmo ir pra Broadway — digo a ele.<br />
— Ficou muito melhor quando mudei o tema pra amor. — Ele me olha,
com seu meio sorriso, e eu sei que é o mais perto que ele vai chegar. Tiny é o<br />
gay, mas eu sou o sentimental. Faço que sim com a cabeça e sussurro obrigado.<br />
— Desculpe se você se mostra <strong>um</strong> pouco irritante na próxima parte.<br />
Tiny leva a mão ao cabelo e Nick surge do nada, mergulhando por cima de<br />
<strong>um</strong> amplificador para agarrar o braço de Tiny e gritando: “ NÃO TOQUE EM<br />
SEU CABELO PERFEITO.” A cortina se ergue e o cenário é <strong>um</strong> corredor em<br />
nossa escola. Tiny está colando cartazes. Eu o estou irritando, aquele tremor em<br />
minha voz. Não me incomodo, ou pelo menos não me incomodo muito — o<br />
amor está ligado à verdade, afinal. Logo após essa cena, vem <strong>um</strong>a de Tiny<br />
bêbado em <strong>um</strong>a festa, na qual o personagem Janey faz sua única aparição no<br />
palco — <strong>um</strong> dueto com Phil Wrayson, cantado de lados opostos de <strong>um</strong> Tiny<br />
desmaiado, a canção culminando com a voz de Gary repentinamente ganhando<br />
confiança e então Janey e eu debruçando sobre o balbuciante corpo<br />
semiconsciente de Tiny e nos beijando. Eu só consigo ver parcialmente a cena,<br />
porque fico querendo ver o sorriso de Jane enquanto ela assiste.<br />
As músicas ficam cada vez melhores a partir dali, até que, na última canção<br />
antes do intervalo, a plateia inteira canta junto enquanto Oscar Wilde entoa<br />
acima de <strong>um</strong> Tiny adormecido:<br />
A verdade pura e simples.<br />
Raramente é pura e nunca simples de fato.<br />
O que <strong>um</strong> garoto pode fazer<br />
Quando mentira e verdade são ambas pecado<br />
Quando essa termina, a cortina se fecha e as luzes da casa se acendem para o<br />
intervalo. Tiny corre até nós, coloca <strong>um</strong>a mão gigante no ombro de cada <strong>um</strong> e<br />
solta <strong>um</strong> grito de alegria.<br />
— É hilário — digo a ele. — De verdade. É simplesmente... incrível.<br />
— Uhuul! Mas o segundo ato é bem mais triste. É a parte romântica. Ok,
ok, ok, ok, vejo vocês depois — avisa ele, e então corre pra felicitar, e<br />
provavelmente criticar, seu elenco. Jane me leva pra <strong>um</strong> canto isolado atrás do<br />
cenário, nos bastidores, e pergunta:<br />
— Você fez mesmo tudo aquilo Você cuidava dele na Liga Júnior<br />
— Ah, ele cuidava de mim também — respondo.<br />
— A compaixão é excitante — diz ela, e nos beijamos. Minutos depois, vejo<br />
as luzes diminuírem e então reacenderem. Jane e eu seguimos pro nosso ponto<br />
de observação ao lado do palco. As luzes se apagam novamente, sinalizando o<br />
fim do intervalo. E, depois de <strong>um</strong> instante, <strong>um</strong>a voz vinda do alto diz: “ O amor<br />
é o milagre mais com<strong>um</strong>.”<br />
A princípio penso que Deus está, tipo, falando com a gente, mas rapidamente<br />
percebo que é a voz de Tiny soando pelos alto-falantes. O segundo ato está<br />
começando.<br />
Tiny se senta na beira do palco, no escuro, falando: “ O amor é sempre <strong>um</strong><br />
milagre, em todo lugar, sempre. Mas, para nós, é <strong>um</strong> pouco diferente. Não<br />
quero dizer que seja mais milagroso”, diz ele, e as pessoas riem <strong>um</strong> pouco. “ No<br />
entanto, é.” As luzes se acendem lentamente, e só agora vejo que atrás de Tiny<br />
há <strong>um</strong> balanço de verdade que parece ter sido literalmente arrancado de <strong>um</strong><br />
playground e transportado pro palco. “ Nosso milagre é diferente porque as<br />
pessoas afirmam que é impossível. Como está dito em Levítico: ‘Homem não<br />
se deitará com homem.’” Ele olha para baixo, e em seguida para a plateia, e<br />
posso ver que procura o outro Will Grayson e não o encontra. Então ele se<br />
levanta.<br />
“ Mas ali não diz que homem não deve se apaixonar por homem, porque isso<br />
é simplesmente impossível, certo Os gays são animais, satisfazendo seus<br />
desejos animais. É impossível para os animais se apaixonarem. E no entanto...”<br />
De repente, os joelhos de Tiny fraquejam e ele desaba no chão. Eu me<br />
assusto e começo a correr para levantá-lo, mas Jane agarra minha camisa
enquanto Tiny ergue a cabeça na direção da plateia e diz: “ Eu me apaixono e me<br />
apaixono e me apaixono e me apaixono e me apaixono.”<br />
E, nesse mesmo momento, meu telefone vibra em meu bolso. Eu o pego. Na<br />
tela, a identificação da chamada diz: Will Grayson.
capítulo vinte<br />
o que está diante de mim é a coisa mais louca que já vi. de longe.<br />
sinceramente, não pensei que gideon e eu fôssemos chegar a tempo. pra<br />
começar, o trânsito de chicago é cruel, mas nesse caso estava seguindo mais<br />
lento que os pensamentos de <strong>um</strong> drogado. gideon e eu tivemos de fazer <strong>um</strong><br />
concurso de xingamentos pra nos acalmar.<br />
agora que chegamos, estou pensando que não tem como nosso plano<br />
funcionar. é ao mesmo tempo insano e genial, que é exatamente o que tiny<br />
merece. e exigia que eu fizesse várias coisas que em geral não faço, incluindo:<br />
• falar com estranhos<br />
• pedir favores a estranhos<br />
• estar disposto a bancar o completo idiota<br />
• deixar que outra pessoa (gideon) me ajudasse<br />
também depende de <strong>um</strong> número de coisas além do meu controle, entre as<br />
quais:<br />
• a gentileza de estranhos<br />
• a habilidade de estranhos em serem espontâneos<br />
• a habilidade de estranhos em dirigirem com rapidez<br />
• o musical de tiny ter mais de <strong>um</strong> ato<br />
tenho certeza de que vai ser <strong>um</strong> desastre total. mas creio que a questão é que<br />
vou fazer de qualquer jeito.<br />
sei que foi por <strong>um</strong> triz, porque quando gideon e eu entramos no auditório,<br />
<strong>um</strong> balanço está sendo colocado no palco. e não é qualquer balanço. eu o<br />
reconheço. exatamente aquele mesmo balanço. e é aí que a loucura entra em
ação, total.<br />
gideon: puta merda.<br />
a essa altura, gideon sabe tudo que aconteceu. não só comigo e com tiny,<br />
mas comigo e com maura, e comigo e minha mãe, e basicamente comigo e o<br />
mundo inteiro. e nem <strong>um</strong>a só vez ele me disse que eu era idiota, ou mau, ou<br />
horrível, ou que estivesse além de qualquer ajuda. em outras palavras, ele não<br />
disse nenh<strong>um</strong>a das coisas que eu venho dizendo a mim mesmo. em vez disso,<br />
no carro, ele disse<br />
gideon: tudo faz sentido.<br />
eu: faz<br />
gideon: completamente. eu teria feito as mesmas coisas que você fez.<br />
eu: mentiroso.<br />
gideon: não é mentira.<br />
então, totalmente do nada, ele estende o dedo mindinho.<br />
gideon: juro, sem mentiras.<br />
e engancho meu mindinho no dele. seguimos adiante por alg<strong>um</strong> tempo<br />
assim, com meu dedinho enroscado no dele.<br />
eu: o próximo passo agora é a gente virar irmãos com <strong>um</strong> pacto de sangue.<br />
gideon: e vamos dormir <strong>um</strong> na casa do outro.<br />
eu: no quintal.<br />
gideon: e não vamos convidar as garotas.<br />
eu: que garotas<br />
gideon: as garotas hipotéticas que não vamos convidar.<br />
eu: vai ter biscoito com marshmallow
gideon: o que você acha<br />
eu sei que haveria biscoito com marshmallow.<br />
gideon: você sabe que é maluco, certo<br />
eu: isso é novidade<br />
gideon: por fazer o que você está prestes a fazer.<br />
eu: foi ideia sua.<br />
gideon: mas foi você quem fez, não eu. quero dizer, você é quem vai fazer.<br />
eu: vamos ver.<br />
e era estranho, porque enquanto seguíamos pra lá, não era em gideon nem em<br />
tiny que eu estava pensando, mas em maura. ali naquele carro com gideon, tão<br />
completamente à vontade comigo mesmo, eu não podia deixar de pensar que era<br />
isso que ela queria de mim. era isso que ela sempre quis de mim. e nunca seria<br />
assim. mas acho que pela primeira vez entendi por que ela se esforçou tanto. e<br />
por que tiny tentava tanto também.<br />
agora gideon e eu estamos parados no fundo do teatro. olho à minha volta pra<br />
ver quem mais está aqui, mas não consigo ver no escuro.<br />
o balanço continua no fundo do palco enquanto <strong>um</strong> coro de garotos vestidos<br />
de garotos e garotas também vestidas de garotos se enfileira diante dele. dá pra<br />
saber que a cena pretende ser <strong>um</strong> desfile dos ex-namorados de tiny porque,<br />
enquanto se enfileiram, cantam:<br />
coro: somos a parada dos ex-namorados!<br />
não tenho dúvida de que o garoto no fim da fila supostamente sou eu. (ele<br />
está todo vestido de preto e parece muito mal-h<strong>um</strong>orado.)<br />
todos começam a cantar seus versos de rompimento:
ex-namorado 1: você é grudento demais.<br />
ex-namorado 2: quando canta não para mais.<br />
ex-namorado 3: você é tão maciço.<br />
ex-namorado 4: eu sou muito passivo.<br />
ex-namorado 5: sejamos amigos doravante.<br />
ex-namorado 6: não namoro atacantes.<br />
ex-namorado 7: encontrei outro alguém.<br />
ex-namorado 8: não vou me justificar pra ninguém.<br />
ex-namorado 9: eu não sinto mais a chama.<br />
ex-namorado 10: pra mim, foi só <strong>um</strong> programa.<br />
ex-namorado 11: quer dizer que não tá a fim<br />
ex-namorado 12: não consigo tirar a dúvida de mim.<br />
ex-namorado 13: tenho outras coisas a fazer.<br />
ex-namorado 14: tenho outros caras pra satisfazer.<br />
ex-namorado 15: nosso amor só existiu em sua mente.<br />
ex-namorado 16: tenho medo de que minha cama não te aguente.<br />
ex-namorado 17: vou ficar em casa lendo livros em sequência.<br />
ex-namorado 18: acho que está apaixonado é pela minha carência.<br />
é isso — centenas de mensagens de texto e conversas, milhares e mais<br />
milhares de palavras ditas e escritas, todas res<strong>um</strong>idas em <strong>um</strong> único verso. é<br />
nisso que se transformam os relacionamentos <strong>um</strong>a versão reduzida da mágoa,<br />
nada mais. foi mais que isso. eu sei que foi mais que isso.<br />
e talvez tiny saiba também. porque todos os namorados deixam o palco,<br />
exceto o nº 1, e percebo que vamos ver todos eles, e talvez cada <strong>um</strong> tenha <strong>um</strong>a<br />
nova lição para tiny e a plateia.<br />
como vai demorar <strong>um</strong> pouco até chegarmos ao ex-namorado nº 18, concluo<br />
que esse é <strong>um</strong> bom momento pra ligar pro outro <strong>will</strong> grayson. receio que ele<br />
tenha desligado o telefone, mas quando vou pro saguão pra ligar (deixando
gideon guardando <strong>um</strong> lugar pra mim), ele atende e diz que vai me encontrar em<br />
<strong>um</strong> minuto.<br />
eu o reconheço de imediato, embora haja alg<strong>um</strong>a coisa diferente nele também.<br />
eu: oi<br />
o.w.g.: oi<br />
eu: <strong>um</strong> tremendo espetáculo que está rolando aí dentro.<br />
o.w.g.: é mesmo. que bom que você veio.<br />
eu: é. porque, sabe, tive <strong>um</strong>a ideia. bem, na verdade, foi ideia do meu amigo.<br />
mas ouça o que vamos fazer...<br />
explico a ele.<br />
o.w.g.: isso é loucura.<br />
eu: eu sei.<br />
o.w.g.: você acha que estão mesmo aqui<br />
eu: disseram que viriam. mas, mesmo que não tenham vindo, pelo menos<br />
tem eu e você.<br />
o outro <strong>will</strong> grayson parece apavorado.<br />
o.w.g.: você vai ter de ser o primeiro. eu te acompanho, mas não creio que<br />
consiga ser o primeiro.<br />
eu: combinado.<br />
o.w.g.: isso é totalmente doido.<br />
eu: mas tiny vale a pena.<br />
o.w.g.: é, tiny vale a pena.<br />
sei que devíamos voltar pra peça, mas tem <strong>um</strong>a coisa que quero perguntar<br />
agora que ele está na minha frente.
eu: posso te fazer <strong>um</strong>a pergunta pessoal, de <strong>will</strong> grayson pra <strong>will</strong> grayson<br />
o.w.g.: hã... claro.<br />
eu: você acha que as coisas estão diferentes isto é, desde que nos<br />
conhecemos<br />
o.w.g. pensa por <strong>um</strong> instante, em seguida faz que sim com a cabeça.<br />
o.w.g.: sim. acho que não sou mais o <strong>will</strong> grayson que eu era.<br />
eu: nem eu.<br />
abro a porta do auditório e espio lá dentro novamente. já estão no exnamorado<br />
nº 5.<br />
o.w.g.: é melhor eu voltar pros bastidores. jane deve estar se perguntando<br />
aonde eu fui.<br />
eu: jane, é<br />
o.w.g.: é, jane.<br />
é tão fofo: <strong>um</strong>as duzentas emoções diferentes cruzam o rosto dele quando diz<br />
o <strong>nome</strong> dela — de ansiedade extrema a felicidade absoluta.<br />
eu: bem, vamos pros nossos lugares.<br />
o.w.g.: boa sorte, <strong>will</strong> grayson.<br />
eu: boa sorte pra todos nós.<br />
volto lá pra dentro com cuidado e encontro gideon, que me põe a par do que<br />
está acontecendo.<br />
gideon (sussurrando): o ex-namorado nº 6 só falou de suportes atléticos.<br />
chegando a ponto do fetiche, eu diria.
quase todos os ex-namorados são assim — nunca tridimensionais de fato,<br />
mas logo fica evidente que isso é proposital, que tiny está mostrando que jamais<br />
conseguiu conhecê-los em toda sua dimensão, que estava tão absorto pela<br />
própria paixão que não parou pra pensar pelo que estava apaixonado. é de <strong>um</strong>a<br />
verdade de dar agonia, pelo menos para os ex como eu. (vejo alguns outros<br />
garotos se remexendo na cadeira, então provavelmente não sou o único ex na<br />
plateia.) passamos pelos primeiros 17 ex, e então o palco escurece e o balanço é<br />
deslocado para o centro. de repente, tiny está sob o foco das luzes, no balanço, e<br />
é como se minha vida tivesse sido rebobinada e estivesse sendo passada<br />
novamente pra mim, só que musicada. a cena é exatamente como recordo... até<br />
que não é mais, e tiny está inventando esse novo diálogo entre nós.<br />
eu-no-palco: eu sinto muito mesmo.<br />
tiny: não sinta. eu fiquei de quatro por você. e sei o que acontece no fim<br />
quando a gente cai — vamos parar no chão.<br />
eu-no-palco: eu só fico muito chateado comigo. sou a pior coisa no mundo<br />
pra você. sou sua granada de mão sem pino.<br />
tiny: eu gosto da minha granada de mão sem pino.<br />
é engraçado — me pergunto se eu tivesse dito isso, e se ele tivesse dito<br />
aquilo, se então as coisas teriam sido diferentes. porque eu saberia que ele<br />
compreendia, pelo menos <strong>um</strong> pouco. mas acho que ele precisava escrever essa<br />
história como <strong>um</strong> musical pra poder ver. ou dizer.<br />
eu-no-palco: bem, eu não gosto de ser sua granada de mão sem pino. nem a<br />
de ninguém.<br />
mas o estranho é que, pela primeira vez, sinto que o pino está no lugar.<br />
tiny está olhando pra plateia nesse momento. não tem como ele saber que
estou aqui. mas talvez esteja me procurando mesmo assim.<br />
tiny: eu só quero que você fique feliz. comigo, com outra pessoa ou com<br />
ninguém. só quero que você fique feliz. quero que fique de bem com a vida. com<br />
a vida como ela é. e eu também. é tão difícil aceitar que a vida é ser arrebatado.<br />
é ser arrebatado e aterrissar. ser arrebatado e aterrissar. concordo que não é o<br />
ideal. concordo.<br />
ele está falando comigo. está falando consigo mesmo. talvez não haja<br />
diferença.<br />
eu entendo. eu compreendo.<br />
e então ele me perde.<br />
tiny: mas existe <strong>um</strong>a palavra, essa palavra que phil wrayson me ensinou <strong>um</strong>a<br />
vez: weltschmerz. é a depressão que você sente quando o mundo como é não se<br />
alinha com o mundo como você acha que devia ser. eu vivo em <strong>um</strong> grande e<br />
maldito oceano de weltschmerz, sabe e o mesmo acontece com você. e com<br />
todo mundo. porque todo mundo acredita que deveria ser possível só continuar<br />
sendo arrebatado e arrebatado pra sempre, sentir o fluxo de ar no rosto enquanto<br />
se é carregado, esse ar puxando seu rosto e formando <strong>um</strong> sorriso radiante. e isso<br />
deveria ser possível. a gente deveria poder ser arrebatado pra sempre.<br />
e eu penso: não.<br />
sério. não.<br />
porque eu passei a vida sendo carregado. não o tipo de arrebatamento de que<br />
tiny está falando. ele está falando sobre amor. eu estou falando de vida. no meu<br />
tipo de voo, não tem aterrissagem. só tem o choque contra o chão. duro. morto,<br />
ou querendo estar morto. assim o tempo todo em que você está sendo carregado,<br />
a sensação que experimenta é a pior do mundo. porque você sente que não tem<br />
nenh<strong>um</strong> controle. você sabe como termina.
eu não quero ser carregado. tudo que eu quero é me manter em chão sólido.<br />
e o mais estranho é que tenho a sensação de que estou fazendo isso agora.<br />
porque estou tentando fazer alg<strong>um</strong>a coisa de bom. da mesma maneira que tiny<br />
está tentando fazer alg<strong>um</strong>a coisa de bom.<br />
tiny: você ainda é <strong>um</strong>a granada sem pino quando sente que o mundo não é<br />
perfeito.<br />
não, sou <strong>um</strong>a granada sem pino quando o mundo é cruel. mas todas as vezes<br />
em que alguém prova que estou errado, o pino entra <strong>um</strong> pouquinho mais.<br />
tiny: e eu ainda... toda vez que isso acontece comigo, toda vez que caio no<br />
chão, ainda me dói como se nunca tivesse acontecido antes.<br />
ele agora está balançando mais alto, tomando impulso forte com as pernas, o<br />
balanço gemendo. dá a impressão de que a engenhoca toda virá abaixo, mas ele<br />
continua a impulsionar as pernas e fazer força com os braços contra a corrente e<br />
falar.<br />
tiny: porque não podemos parar o weltschmerz. não podemos parar de<br />
imaginar o mundo como deveria ser. o que é incrível! é a minha coisa favorita<br />
sobre nós!<br />
quando ele chega ao topo do movimento agora, está acima do alcance das<br />
luzes, gritando da escuridão para a plateia. em seguida ele volta ao campo de<br />
visão, suas costas e sua bunda vindo velozes em nossa direção.<br />
tiny: e se você quer ter isso, vai ter a queda. na expressão não se diz subindo<br />
de amores. é por isso que amo a gente!<br />
no alto do arco, acima das luzes, ele se solta do balanço. ele é tão
incrivelmente ágil e rápido ao fazê-lo que mal posso ver, mas ele se ergue pelos<br />
braços e leva as pernas ao alto e então larga o balanço e agarra <strong>um</strong>a viga. o<br />
balanço cai antes dele, e todos — a plateia, o coro — arquejam.<br />
tiny: porque sabemos o que vai acontecer quando cairmos!<br />
a resposta a isso é, naturalmente, que vamos cair de bunda. que é exatamente<br />
o que tiny faz. ele solta as vigas, despenca bem diante do balanço e desmorona<br />
no chão. eu me encolho, e gideon segura a minha mão.<br />
não sei dizer se o garoto que me representa está atuando ou não quando<br />
pergunta a tiny se ele está bem. qualquer que seja o caso, tiny gesticula,<br />
dispensando minha imitação, então sinaliza para o regente e, <strong>um</strong> instante<br />
depois, começa <strong>um</strong>a canção suave, as notas de piano bem espaçadas. tiny<br />
recobra o fôlego durante a introdução e recomeça a cantar.<br />
tiny:<br />
é só <strong>um</strong>a questão de cair<br />
você aterrissa e se levanta pra poder cair de novo<br />
é só <strong>um</strong>a questão de cair<br />
não vou ter medo de bater naquele muro outra vez<br />
o caos se instala lá no palco. o coro agarra-se desesperadamente ao refrão. eles<br />
continuam cantando sobre como é a queda, e então tiny dá <strong>um</strong> passo à frente e<br />
diz sua fala acima das vozes.<br />
tiny: talvez esta noite vocês tenham medo de cair, e talvez haja alguém aqui<br />
ou em alg<strong>um</strong> outro lugar em quem vocês estejam pensando, com quem estejam<br />
preocupados, se afligindo, tentando decidir se querem cair, ou como e quando<br />
vão alcançar o solo. e preciso dizer a vocês, amigos, que parem de pensar na<br />
aterrissagem, porque o importante é a queda.
é incrível. é como se ele estivesse se erguendo acima do palco, tão forte é sua<br />
convicção nessas palavras. e eu me dou conta do que tenho de fazer. tenho de<br />
ajudá-lo a perceber que é a convicção, não as palavras, que significam tudo.<br />
tenho de fazê-lo perceber que a questão não é cair. é flutuar.<br />
tiny pede que a<strong>um</strong>entem as luzes. ele olha à volta, mas não me vê.<br />
engulo em seco.<br />
gideon: pronto<br />
a resposta a essa pergunta sempre vai ser não. mas tenho de fazer assim<br />
mesmo.<br />
tiny: talvez haja alg<strong>um</strong>a coisa que vocês tenham medo de dizer, ou alguém<br />
que vocês temam amar, ou alg<strong>um</strong> lugar aonde têm medo de ir. vai doer. vai<br />
doer porque é importante.<br />
não, eu penso. NÃO.<br />
não precisa doer.<br />
eu me ponho de pé. e então quase volto a me sentar. tenho de usar toda<br />
minha força pra ficar de pé.<br />
olho pra gideon.<br />
tiny: mas acabei de cair e ir ao chão, e ainda estou aqui de pé para lhes dizer<br />
que é preciso aprender a amar a queda, porque o que importa é a queda.<br />
estendo meu dedo mindinho. gideon o segura com o seu.<br />
tiny: se deixe arrebatar pelo menos <strong>um</strong>a vez. deixe-se arrebatar!<br />
o elenco inteiro está no palco nesse momento. vejo que o outro <strong>will</strong> grayson<br />
se infiltrou também, e está usando <strong>um</strong> jeans amassado e <strong>um</strong>a camisa xadrez. ao
lado dele, <strong>um</strong>a garota que deve ser jane, vestida com <strong>um</strong>a camiseta que diz<br />
Estou com Phil Wrayson.<br />
tiny faz <strong>um</strong> gesto, e de repente todos no palco estão cantando.<br />
coro: me abrace mais forte, me abrace mais forte<br />
e eu ainda estou de pé. estou fazendo contato visual com o outro <strong>will</strong><br />
grayson, que parece nervoso mas assim mesmo sorri. e estou vendo alg<strong>um</strong>as<br />
pessoas fazendo que sim com a cabeça em minha direção. deus, espero que eles<br />
sejam quem espero que sejam.<br />
de repente, com <strong>um</strong> grandioso gesto, tiny para a música. ele avança até a<br />
frente do palco e o restante do cenário fica escuro. é só ele sob <strong>um</strong> refletor,<br />
olhando para a plateia. ele fica ali parado por <strong>um</strong> instante, absorvendo tudo. e<br />
então encerra o espetáculo dizendo:<br />
tiny: meu <strong>nome</strong> é tiny cooper. e esta é a minha história.<br />
faz-se silêncio então. as pessoas esperam que a cortina desça pra que o<br />
espetáculo encerre definitivamente, para que os aplausos comecem. tenho menos<br />
de <strong>um</strong> segundo. aperto com força o mindinho de gideon, então o solto. levanto<br />
a mão.<br />
tiny me vê.<br />
outras pessoas na plateia me veem.<br />
eu grito<br />
eu: TINY COOPER!<br />
e é isso.<br />
espero de verdade que funcione.<br />
eu: meu <strong>nome</strong> é <strong>will</strong> grayson. e eu te aprecio, tiny cooper!
agora estão todos olhando pra mim, e muitos parecem confusos. não têm a<br />
menor ideia se isso ainda faz parte do espetáculo.<br />
o que eu posso dizer estou dando a ele <strong>um</strong> novo fim.<br />
agora <strong>um</strong> homem de uns vinte e poucos anos vestindo <strong>um</strong> colete hipster se<br />
levanta. ele me olha por <strong>um</strong> segundo, sorri, então se volta para tiny e diz<br />
homem: meu <strong>nome</strong> também é <strong>will</strong> grayson. eu moro em wilmette. e também<br />
te aprecio, tiny cooper.<br />
é a deixa pro homem de 79 anos na última fileira.<br />
senhor: meu <strong>nome</strong> é <strong>will</strong>iam t. grayson, mas pode me chamar de <strong>will</strong>. e com<br />
toda certeza eu te aprecio, tiny cooper.<br />
obrigado, google. obrigado, listas telefônicas on-line. obrigado, detentores do<br />
<strong>nome</strong>.<br />
mulher de quarenta e poucos: oi! eu sou wilma grayson, de hyde park. e eu te<br />
aprecio, tiny cooper.<br />
garoto de dez anos: oi. eu sou <strong>will</strong> grayson. o quarto. meu pai não pôde vir,<br />
mas nós dois te apreciamos, tiny cooper.<br />
devia haver <strong>um</strong> outro. <strong>um</strong> aluno do segundo ano na northwestern.<br />
faz-se <strong>um</strong>a pausa dramática. todos estão olhando ao redor.<br />
e então ELE se levanta. se a frenchy’s pudesse engarrafá-lo e vendê-lo como<br />
produto pornô, provavelmente seriam donos de metade de chicago em <strong>um</strong> ano.<br />
ele é o que aconteceria depois de nove meses se abercrombie trepasse com fitch.<br />
parece <strong>um</strong> astro do cinema, <strong>um</strong> nadador olímpico e o próximo top model<br />
masculino da américa, tudo de <strong>um</strong>a só vez. está usando <strong>um</strong>a camisa prateada e<br />
calça cor-de-rosa. tudo nele brilha.
não é absolutamente o meu tipo, mas...<br />
Deus Gay: meu <strong>nome</strong> é <strong>will</strong> grayson. e eu te amo, tiny cooper.<br />
finalmente, tiny, que esteve atipicamente mudo o tempo todo, diz alg<strong>um</strong>as<br />
palavras.<br />
tiny: 847-555-3982<br />
Deus Gay: 847-555-7363<br />
tiny: ALGUÉM, POR FAVOR, PODE ANOTAR ISSO PRA MIM<br />
metade da plateia faz que sim com a cabeça.<br />
e então faz-se silêncio outra vez. na verdade, é <strong>um</strong> pouco constrangedor. não<br />
sei se me sento ou não.<br />
então ouve-se <strong>um</strong> ruído vindo da parte escura do palco. o outro <strong>will</strong> grayson<br />
dá <strong>um</strong> passo, destacando-se do coro. ele vai até onde tiny está e o olha nos<br />
olhos.<br />
o.w.g.: você sabe o meu <strong>nome</strong>. e eu te amo, tiny cooper. embora não da<br />
mesma maneira que o cara de calça rosa possa te amar.<br />
e então a garota que deve ser jane se pronuncia.<br />
garota: meu <strong>nome</strong> não é <strong>will</strong> grayson, e eu te aprecio de montão, tiny cooper.<br />
é a coisa mais estranha que já vi. <strong>um</strong> a <strong>um</strong>, todos no palco dizem a tiny<br />
cooper que o apreciam. (até o cara chamado phil wrayson — quem diria); e a<br />
plateia entra em cena. fileira a fileira. alguns o dizem. outros cantam. tiny está<br />
chorando. eu estou chorando. todo mundo está chorando.<br />
perco a noção do tempo. então, quando acaba, os aplausos começam. os
aplausos mais altos que já ouvi.<br />
tiny dá <strong>um</strong> passo à frente no palco. as pessoas jogam flores.<br />
ele nos uniu a todos. todos sentimos isso.<br />
gideon: você se saiu muito bem.<br />
torno a ligar nossos mindinhos.<br />
eu: é, nós nos saímos bem.<br />
faço <strong>um</strong> sinal de cabeça pro outro <strong>will</strong> grayson, lá em cima no palco. ele<br />
devolve o gesto. há <strong>um</strong>a conexão entre nós, entre mim e ele.<br />
a verdade, porém<br />
todo mundo tem <strong>um</strong>a.<br />
essa é nossa maldição e nossa bênção. essa é nossa tentativa e nosso erro e<br />
nossa coisa certa.<br />
os aplausos continuam. olho para tiny cooper.<br />
ele pode ser pesado, mas neste momento está flutuando.
Este e-book foi desenvolvido em formato ePub pela<br />
Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A.
Will Grayson Will Grayson<br />
Página do livro na Wikipédia<br />
http://en.wikipedia.org/wiki/Will_Grayson,_Will_Grayson<br />
Perfil do livro no Goodreads<br />
http://www.goodreads.com/book/show/6567017-<strong>will</strong>-grayson-<strong>will</strong>-grayson<br />
Página do livro no Skoob<br />
http://www.skoob.com.br/livro/115612-<strong>will</strong>-grayson-<strong>will</strong>-grayson<br />
Resenha do livro<br />
http://poressaspaginas.wordpress.com/2011/04/25/resenha-<strong>will</strong>-grayson-<strong>will</strong>grayson/<br />
Site do autor John Green<br />
http://johngreenbooks.com/<br />
Site do autor David Levithan<br />
http://www.davidlevithan.com/
S<strong>um</strong>ário<br />
Capa<br />
Rosto<br />
Créditos<br />
Dedicatória<br />
Reconhecimentos<br />
Capítulo <strong>um</strong><br />
Capítulo dois<br />
Capítulo três<br />
Capítulo quatro<br />
Capítulo cinco<br />
Capítulo seis<br />
Capítulo sete<br />
Capítulo oito<br />
Capítulo nove<br />
Capítulo dez<br />
Capítulo onze<br />
Capítulo doze<br />
Capítulo treze<br />
Capítulo quatorze<br />
Capítulo quinze<br />
Capítulo dezesseis<br />
Capítulo dezessete<br />
Capítulo dezoito<br />
Capítulo dezenove<br />
Capítulo vinte<br />
Colofon
Saiba mais