TIMES

Por Thaís Contarin — Viçosa, MG


Nicole está preparada para o que está por vir depois de se tornar a primeira jogadora trans a disputar um campeonato profissional em Minas Gerais. E não é para menos. Quase teve o sonho de jogar futebol interrompido por não entender a própria identidade e, depois, ciente dela, teve medo das consequências. Mesmo assim, arriscou.

Neste sábado, ela começou a contar uma nova história no esporte. A atacante fez dois gols no empate do Nacional de Visconde do Rio Branco, time que ela defende, com o Uberlândia pela 1º rodada do Campeonato Mineiro de futebol feminino.

Em entrevista exclusiva ao ge, Nicole relatou o dilema que enfrentou desde o início da adolescência até a vida adulta, as consequências que sofreu ao se assumir mulher transexual quando estava em um time profissional, a desistência forçada do futebol e o retorno aos campos.

Nicole disputa o Campeonato Mineiro feminino pelo Nacional de Visconde do Rio Branco — Foto: Rodrigo Otávio

Impasse

Nicole começou a jogar futebol com seis anos. O sonho de se tornar jogadora profissional começou aos sete, quando passou a disputar jogos no campo. Nessa época, Nicole viajava com o time do bairro onde morava para disputar competições.

– Íamos para fora de Belo Horizonte, no interior, e isso foi criando em mim um sonho muito grande de jogar profissionalmente. Logo eu saí para um time de outro bairro, que tinha uma estrutura melhor, e, cada vez mais, fui procurando times mais preparados e que me dessem a oportunidade de aparecer um pouco mais – lembra.

Nicole, atacante, Nacional de Visconde de Rio Branco, Campeonato Mineiro — Foto: Arcênio Corrêa

Foi assim que aos 15 anos Nicole entrou para uma escolinha de futebol do América-MG. Ela recorda que treinava de quatro a cinco vezes por semana e sempre ficava depois do horário.

– Foi aí que eu passei a desenvolver mais cobrança de faltas, desenvolver as duas pernas e isso foi me capacitando mais – conta.

LEIA MAIS:

Quando estava prestes a completar 18 anos, Nicole entrou na categoria de base do Cavaleiro Negro, time de Belo Horizonte que época formava jogadores para vendê-los a outros times. Foi neste clube que ela disputou o Campeonato Mineiro nas categorias sub-17 e sub-20.

Nicole permaneceu no clube por dois anos. Depois, teve a chance de assinar o primeiro contrato profissional com o Luziense para disputar a Segunda Divisão do Mineiro. Pouco depois, Nicole rompeu os ligamentos de um dos joelhos, precisou passar por uma cirurgia e ficou dez meses afastada dos treinos.

Foi neste ponto que a vida dela se transformou. O tempo longe dos gramados permitiu que Nicole refletisse sobre questões que ela lidava há muitos anos, mas não conseguia encarar.

– Quando eu tinha uns 12 anos, eu já me identificava diferente dos meninos. Isso conflitou a ponto de, no final dos 13 anos, eu parar de jogar futebol por um ano. Eu não sabia o que fazer. Eu não me sentia à vontade nos vestiários com os meninos, eu não me sentia à vontade com o ambiente do futebol masculino e resolvi parar porque eu não estava à vontade – lembra.

Nicole, Nacional de Visconde do Rio Branco, Campeonato Mineiro — Foto: Arcênio Corrêa

A pausa no futebol a levou a outro esporte: o tênis. A identificação, no entanto, não foi o suficiente para tirar o sonho de infância da cabeça e do coração.

– Fiquei um ano jogando tênis, porque era um esporte individual e eu não precisava lidar com grupos, treinadores, jogadores. Tentei me encontrar nesse período, mas não adiantou porque eu não encontrei nada e a vontade de jogar futebol aumentou muito.

Voltei com isso (identificação com o gênero feminino) meio que guardado. Era uma coisa que na época eu não sabia o que era, a gente tinha muito menos informação do que hoje. Então, eu sabia que tinha alguma coisa errada, mas não sabia o quê
— conta Nicole.

Nicole com a camisa do Nacional de Visconde do Rio Branco no Centro de Treinamento do time — Foto: Arquivo pessoal

Identidade e a volta ao futebol

Nicole deu mais uma chance ao futebol, mas viveu um impasse durante anos: precisou se manter em uma caixinha que não dava espaço para ela se permitir ser quem começava a entender que era. Com a lesão ligamentar, ela teve tempo para se compreender melhor.

– Eu não me sentia bem naquele ambiente, mas queria jogar futebol. Esses dez meses me fizeram entender. Eu já tinha mais informação e entendia quem eu era. Eu só não podia me expor, me assumir, porque se eu fizesse isso ia acabar o futebol. Quando eu machuquei, eu consegui visualizar.

Eu ia ter uma carreira de 15 a 20 anos vivendo uma vida totalmente ao contrário do que eu queria viver. Eu estava na porta do meu sonho, mas ia esconder para agradar a sociedade. Resolvi me assumir e lidar com as consequências.
— destaca Nicole.

E foram muitas. Ao assumir a identidade que escondia, Nicole automaticamente abriu mão da carreira, do sonho, da família e dos amigos.

– Onze anos sem jogar futebol. Todos os espaços se fecharam, inclusive os de peladas. Meus amigos todos sumiram, minha família me dispensou de casa e eu tive que começar uma nova vida. Totalmente diferente do que era o meu sonho de jogar futebol. Tive que recomeçar tudo, refazer a minha vida sem família e sem amigos. Hoje minha relação com a minha família é excelente, mas na época eles não entenderam nada e eu tive que sair de casa.

Nicole conta que depois de algum tempo decidiu voltar para o tênis.

Nicole no Centro de Treinamento de Visconde do Rio Branco — Foto: Arquivo pessoal

– Fiquei muito boa. Comecei a dar aula e ser requisitada em clubes. No tênis, eu tive um ambiente muito mais agradável de viver, de ter oportunidades do que no futebol.

Em 2018, ela passou a fazer parte do Bharbixas, time LGBTQIA+ de futebol de 7. No ano passado, o time a convidou para disputar um amistoso no Independência e o sonho de infância foi despertado novamente.

– Já tinha 17 anos que eu não jogava campo. Ganhamos de 6 a 1 e eu fiz cinco gols. Eu pensei: “Caramba, eu sou boa nisso ainda. Quero jogar nem que seja amador”. Em 2023, entrei em um time amador, o Transformação, do Aglomerado da Serra, com apoio do presidente Marcus Nascimento e do treinador Antônio Lara. Depois do primeiro jogo alguns técnicos queriam me tirar do campeonato. A organização me bancou, disse que não iam me tirar por eu ser trans. Joguei o campeonato inteiro e fui artilheira.

Depois de disputar essa competição, Nicole tentou jogar outro torneio. Dessa vez, com a chancela da Federação Mineira de Futebol (FMF). No entanto, houve um conflito de dados no momento da inscrição.

– Caiu o registro de 17 anos atrás. Eles (FMF) me falaram que não poderiam me deixar jogar porque meu cadastro estava com o nome antigo e eu precisava atualizar isso – explicou Nicole.

Com o auxílio do Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQIA+, da advogada Josiane Costa e de Thiago Carvalho, da FMF, ela enviou à CBF, em abril de 2023, um documento com exames médicos feitos desde 2019, depoimentos e até mesmo matérias de outras jogadoras trans que atuam em outros países para solicitar a atualização do registro.

O Coletivo entrou em contato direto com o presidente da CBF Ednaldo Rodrigues e Gamil Föppel, diretor jurídico da instituição, para dar auxílio na alteração do registro de Nicole no BID.

– Demos algumas sugestões desde o movimento que eles poderiam fazer para trazer um regulamento que organizasse a inscrição de pessoas trans ou até mesmo fazer a alteração direta a partir dos dados e dos documentos que ela já havia enviado. Eles não fizeram o regulamento, mas fizeram a alteração direta. E eu acho que fica até mais simples, porque se a pessoa chegar para fazer a alteração e a inclusão, eles fazem sem qualquer tipo de burocracia. Isso estabeleceu um caminho para a CBF trabalhar – conta Onã Rodá, fundador do Canarinhos LGBTQIA+.

Com o registro atualizado, a missão de Nicole passou a ser a busca por um time que abrisse as portas para ela.

Eu sinto que o universo olhou para mim e pensou: ‘Vai, menina. Vou te dar outra chance. Vou te devolver alguns anos do que você não teve’, sabe?
— confessa Nicole

Oportunidade e reconhecimento

Quando teve a situação regularizada no BID, Nicole começou a procurar uma equipe para jogar profissionalmente. Foi nesse período que ela conheceu Lucas, treinador do time feminino do Nacional de Visconde do Rio Branco, e teve a oportunidade de participar da seletiva do clube para a montagem do elenco que disputaria o Campeonato Mineiro feminino.

– Eu acompanhei os treinos e vi que ela estava se destacando muito. O Lucas chegou para mim e disse que ela era trans. Eu respondi que, se a FMF e a CBF estivessem de acordo, teria o nosso apoio. O que eu fiz foi comunicar os nossos patrocinadores e todos eles também deram total apoio – contou Júlio Xavier, presidente do clube.

A indicação que levou Nicole até o time partiu de Túlio Hoffmann, técnico do time feminino do Fluminense. Ele viu Nicole atuar pelo Transformação e entrou em contato com o presidente do clube mineiro para sugerir a contratação. De acordo com Nicole, o comandante do Flu seguiu em contato com Júlio Xavier mesmo após a aprovação da jogadora na seletiva para prestar auxílio caso houvesse alguma adversidade.

Nicole ao lado das companheiras de time — Foto: Rodrigo Otávio

Nicole possui vínculo não profissional, ou seja, amador, com o clube. Segundo informações passadas pela FMF, atletas que disputam o Campeonato Mineiro feminino não precisam, necessariamente, ter registro profissional. De acordo com o regulamento, elas podem ser inscritas com vínculo não profissional e não existe limite de amadoras para disputar a competição.

“Onda de ódio” e apoio

Antes mesmo da estreia no profissional, Nicole sabia que precisaria se preparar para enfrentar, mais uma vez, críticas e preconceito. No entanto, ela afirma que está preparada para lidar com a “onda de ódio”.

– Eu faço terapia e converso muito sobre isso. Eu já tenho 38 anos. Não vou poder ter uma carreira tão longa. Com um bom preparo físico, talvez eu consiga jogar mais uns quatro ou cinco anos. A Formiga, com 44 anos, ainda jogava. O meu grande objetivo de carreira é abrir portas, abrir esse diálogo. A Tiffany fez isso no vôlei há uns anos e ela sofreu muito.

Você vai catalisar tudo de ruim que vai vir. É claro que vai ter a parte boa, você vai ajudar muita gente. Mas vocês está na frente e todas as pedras vão chegar em você primeiro. Eu estou preparada para isso. Quando virar notícia, estou me preparando para receber essa onda de ódio, mas sei também que vai vir uma onda de incentivo até maior.
— declara a jogadora.

De acordo com o presidente da equipe, o clube também se preparou para apoiar Nicole em possíveis ataques.

– Antes dela vir, reunimos todo mundo e teve um consenso geral entre comissão técnica e diretoria de que todo mundo vai apoiá-la. Ela precisa dessa acolhimento até por causa desse preconceito imaturo das pessoas – afirma Júlio Xavier.

Com apoio fora de campo, Nicole garante que está pronta para fazer a diferença dentro dele.

– Dentro de campo eu vou ajudar, mas fora de campo eu preciso que eles me ajudem. Eles vão ser uma barreira para mim e me ajudar a segurar o que vier. Eles me deram essa oportunidade e falaram que eu posso ficar tranquila – finalizou.

📲 Confira as notícias do esporte no ge Zona da Mata
📲 Siga o ge no Instagram e no Facebook

MAIS ESPORTE: veja os vídeos do ge Zona da Mata e da TV Integração

Mais do ge