Quando a desobediência civil é permitida para um cristão?

Miguel Angelo Pricinote
7 min readFeb 2, 2022

Desobediência civil é uma decisão racional deliberada em descumprir uma norma estatal e confrontar o poder temporal vigente, de modo racional, qualquer que seja a razão ou o objetivo.

O motivo da desobediência ao Estado pode ser legítimo ou ilegítimo, universal, particular, material, moral ou espiritual, sempre levando em conta o sistema de valores que é reconhecido em uma dada sociedade para categorizar o ato de desobediência. Vejamos.

Um exemplo interessante é do escritor americano Henry Thoreau que recusou, por imperativo moral, pagar os seus impostos no ano de 1846, atitude que lhe valeu o cárcere. Ele apresentou então como razão para a sua recusa o destino do seu dinheiro: financiar um sistema abjecto e um governo injusto, se não corrupto, que aceitava a escravatura e empreendia uma guerra desumana contra o México.

Thoreau acreditava na dissidência jurídica do indivíduo, dando-lhe um alto grau de soberania individual e reconhecendo-lhe o direito a viver à margem, que um mau governo, um governo autoritário, não permite, tratando os seres humanos como gado e obrigando-os ao cumprimento rígido das leis e das normas, mesmo as mais iníquas, o que se torna do ponto de vista do autor uma forma de escravização humana e razão bastante para o afastamento, a dissidência ou desobediência do ser humano moral, preocupado com a justiça e a liberdade.

A Bíblia por sua vez narra casos importantes de desobediência civil. Por exemplo, no livro de Êxodo, o faraó egípcio deu o comando claro a duas parteiras hebreias que deveriam matar todos os bebês judeus do sexo masculino. Porém as parteiras desobedeceram a ordem de Faraó e “temeram a Deus e não fizeram como lhes ordenara o rei do Egito; antes, deixaram viver os meninos” (Êxodo 1:17).

Já no livro de Josué, Raabe desobedeceu diretamente a ordem do rei de Jericó de entregar os espiões israelitas que haviam entrado na cidade para obter inteligência para a batalha. Em vez disso, ela os desceu por uma corda para que pudessem escapar. Apesar de Raabe ter recebido uma ordem clara do alto funcionário do governo, ela resistiu ao comando e foi resgatada da destruição da cidade quando Josué e o exército israelense a destruíram.

Outro exemplo de desobediência civil, de acordo com a submissão bíblica, encontra-se no livro de Primeiro a Reis. Esse capítulo apresenta brevemente um homem chamado Obadias que “temia muito ao Senhor”. Quando a rainha Jezabel estava matando os profetas de Deus, Obadias tomou uma centena deles e escondeu-os dela para que pudessem viver. Tal ato estava em claro desafio aos desejos da autoridade governante.

O Livro de Daniel registra vários exemplos de desobediência civil. O primeiro é encontrado no capítulo 3, onde Sadraque, Mesaque e Abede-Nego se recusaram a se curvar diante do ídolo de ouro em desobediência ao comando do rei Nabucodonosor. O segundo é no capítulo 6, onde Daniel desafia o decreto do rei Dario de não orar a ninguém além do rei. Em ambos os casos, Deus resgatou o Seu povo da pena de morte que foi imposta.

Já no Novo Testamento, o livro de Atos registra a desobediência civil de Pedro e João às autoridades que estavam no poder na época. Depois que Pedro curou um homem nascido coxo, Pedro e João foram presos por pregarem sobre Jesus. As autoridades religiosas estavam determinadas a impedi-los de ensinar sobre Jesus. No entanto, Pedro disse: “Julgai se é justo diante de Deus ouvir-vos antes a vós outros do que a Deus; pois nós não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos” (Atos 4:19–20). Mais tarde, os governantes confrontaram os apóstolos novamente e lembraram-lhes de seu mandamento de não ensinar sobre Jesus, mas Pedro respondeu: “Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens” (Atos 5:29).

Um último exemplo de desobediência civil é encontrado no livro de Apocalipse, onde o Anticristo ordena a todos aqueles que estão vivos durante o fim dos tempos a adorar uma imagem de si mesmo. Mas o apóstolo João, que escreveu Apocalipse, declara que aqueles que se tornam cristãos na época desobedecerão ao Anticristo e a seu governo e se recusarão a adorar a imagem (Apocalipse 13:15), assim como os companheiros de Daniel violaram o decreto de Nabucodonosor para adorar o seu ídolo.

Então assim como Thoreau que defendia a desobediência civil por questões morais, a Bíblia apresenta vários casos que aconteceram pelo mesmo motivo. Neste contexto as pessoas devem resistir a um governo que comande ou obrigue o mal e devem trabalhar de forma não-violenta para mudar a situação. E a desobediência civil é uma resposta natural quando as leis ou comandos governamentais violam diretamente a moral cristã.

Por fim, os cristãos são ordenados a orar por seus líderes e para que Deus intervenha em Seu tempo para mudar qualquer caminho ímpio que estão buscando:

“Antes de tudo, pois, exorto que se use a prática de súplicas, orações, intercessões, ações de graças, em favor de todos os homens, em favor dos reis e de todos os que se acham investidos de autoridade, para que vivamos vida tranquila e mansa, com toda piedade e respeito” (1 Timóteo 2:1–2).

Um ponto importante é que conceito de Estado é estranho ao Novo Testamento. Ele tem sua origem na antiguidade pagã. Em seu lugar, no Novo Testamento, o conceito de Autoridade. Estado significa comunidade ordenada, autoridade é o poder que cria e mantém a ordem. No conceito de Estado incluem-se governo e governados, o conceito de autoridade só se refere aos governantes. Teologicamente só o conceito de autoridade é aproveitável, o de Estado não. Assim mesmo, naturalmente não podemos evitar o termo “Estado” nas reflexões concretas.

Sendo assim o tema da desobediência civil, pode concluir que, biblicamente, a obediência cristã à autoridade civil não é incondicional. Tanto o estado como os magistrados, em sentido amplo, significando qualquer servidor revestido de incumbência pública, não têm permissão para ultrapassarem as liberdades individuais e, portanto, a coerção estatal não pode ser considerada como correto e a tributação pela tributação também não é uma obrigação, assim como o dízimo é uma ordenança, mas seu pagamento é voluntário.

Por fim, certamente, uma das coisas mais belas do cristianismo é a simplicidade com que a Palavra de Deus nos mostra o modo de vida que devem ter aqueles que em Cristo creem. A defesa de Pedro quando pressionado pelas autoridades por estar ensinando o evangelho no Templo, após já ter sido preso por fazê-lo, resume toda a teologia tratada neste estudo em uma simples e suficiente tese: “Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens”.

Consequentemente, fica claro à conclusão de que a Bíblia não oferece qualquer tipo de apoio a existência de estados com grande concentração de poder. Ao contrário, as Escrituras Sagradas nos chamam a atenção para os perigos que um governo grande e despótico traz para uma sociedade. Conquanto, em decorrência que todas as pessoas são pecadoras e, portanto, corruptíveis, é impossível existir um governo humano ideal. Pois a Bíblia considera maldito o homem que confia no homem. A maior parte dos problemas que encontramos na Bíblia à nível de nações ocorrem justamente pela grande concentração de poder nas mãos de governantes.

O estatismo, pode ser entendido, como uma contrafação do governo humano. Ele distorce o objetivo das leis e da existência das autoridades, colocando o estado numa posição semelhante, igual ou até superior ao próprio Deus. E quando isso ocorre, as autoridades que fazem parte desse sistema acabam por se tornar também divindades, tendo um poder arbitrário sobre todas as vidas. Desta forma, conclui-se com alto grau de certeza que a Bíblia Sagrada não defende valores como: estado de direito, democracia representativa, divisão dos poderes, federalismo, existência de impostos, coerção estatal, o império da lei.

Sendo assim, o cristão deve acreditar que o estado não pode salvar o mundo. Só Deus pode. A Bíblia não apresenta o Senhor Jesus ou qualquer um dos apóstolos gastando qualquer tempo ou energia em ensinar os crentes a reformar o mundo pagão de suas práticas idólatras, imorais e corruptas através do governo. Em vez disso, os apóstolos ordenaram os cristãos do primeiro século, assim como nós hoje, a proclamar o evangelho e viver vidas que dão evidência clara do poder transformador do Evangelho.

O propósito original da igreja, dado por Deus, não se encontra em ativismo político. Portanto a missão dos cristãos não reside na mudança da nação através de uma reforma política, mas na mudança de coração através da Palavra de Deus. Quando as pessoas acham que o crescimento e a influência de Cristo podem de alguma forma se aliar com a política do governo, eles corrompem a missão da igreja. O nosso mandato cristão é espalhar o evangelho de Cristo e pregar contra os pecados do nosso tempo. Só à medida que os corações dos indivíduos em uma cultura são alterados por Cristo é que a cultura começa a refletir essa mudança.

Justamente sobre esse ponto, os propósitos do Papa Francisco (1936-) buscam ressonância em relação ao estado, pois o Bispo de Roma defende publicamente leis acerca a tributação dos lucros, e sua repartição para com os mais pobres, sobre o perigo dos equilíbrios entre aqueles que têm muito e aqueles que têm pouco. O Conselho Ecumênico das Igrejas, há muito tempo, lança um alerta sobre esses problemas. Assim a Igreja Católica passa a se posicionar não somente sobre o mundo interior do indivíduo, mas se comprometa e manifeste os valores cristãos, também aos governantes com objetivo de amplificar os valores que salvarão o mundo.

Entretanto, é claro que o engajamento político não é eficiente para a busca de melhorias. Por fim, devemos nos lembrar da natureza dos partidos e movimentos políticos simplesmente oferta, o que as pessoas estão demandando, ou seja, dizendo o que elas querem ouvir, e como isso acontece exclusivamente para se manter o alinhamento do estado com a população e assim a perpetuação do poder. Logo, quando a igreja entra em questões políticas estão sendo pouco eficientes, visto que haverá mais pessoas conformadas com a salvação pela via política, e menos pessoas desejosas de buscar a Deus.

E em consonância aos pensamentos bíblicos em relação a independência dos indivíduos em relação ao estado, os libertários, por sua vez, também querem a abolição em relação ao Estado. Logo, pode-se concluir que a ação tanto libertária quanto a cristã são um processo de mudança individual, e a via política além de não contribuir para este fim, tende a perverter tais ações.

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