Eu me apaixonei por Tituba

Daiene Oliveira
Enne Oliveira
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3 min readFeb 4, 2021

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Uma ficção histórica encantadora, Maryse Condé consegue engrandecer Tituba ao dar vida a uma história real que foi silenciada pelos historiadores da época. Afinal, qual importância teria a história da bruxa negra de Salem condenada juntamente com outras bruxas — essas conhecidas popularmente em diversos continentes — na atual cidade de Danvers? Além disso, qual importância teria sua trajetória para quem ler essa história hoje?

Condé conseguiu trazer a vida novamente a Tituba, além da voz e do seu protagonismo, sinto Tituba aqui. A partir de uma escrita leve, por vezes com capítulos tão breve mas intensos, onde são revelados seus temores, aflições e desejos mais secretos, que não são apenas dela mas se estendendo para quem o lê. Sinto que apesar de séculos separando a minha existência nesta terra da sua, nossas incertezas sobre a vida, seja sobre o presente ou futuro, se assemelham, talvez por isso eu tenha me identificado tanto com essa leitura.

Somando-se a todo esse contexto de moralismo exacerbado, presente nas nossas vidas até hoje. Condé trabalha um conjunto de elementos — escravidão, intolerância e repressão religiosas, identidade e cultura afrodescendentes — aborda a intersecção dos preconceitos de raça, gênero e classe que dão a tônica e sustentam a vagarosa e, paradoxalmente, a extrema beleza dessa história.

Eu, Tituba, bruxa negra de Salem me trouxe bastantes referências cotidianas principalmente ao final da leitura, com figuras religiosas, santas no catolicismo, orixás no Candomblé e Umbanda. Sobretudo, por morar na Bahia e por vivenciar o sincretismo religioso que perdura por esse estado há bastante tempo e que venho me interessando cada vez mais. Mas, também, pela figura do meu pai, que é crente da magia que as plantas podem trazer para as nossas vidas e que aprendendo com ele, levo essa sabedoria para minha vida. Serei eu uma bruxa?

Tituba aparece na minha vida para trazer, de forma definitiva, a expansão do meu olhar para novos horizontes de forma irredutível e eu, como boa amante de todo e qualquer aprendizado, estou animada e sedenta por esses novos horizontes.

Ao final da sua história — não a real, pois graças ao colonialismo que impera sobre nossos corpos não tivemos a oportunidade de conhecer — mas sim a que Condé nos entregou como um presente, Tituba consegue ser lembrada por quem foi, por suas lutas, histórias e vida. Até mesmo aquelas que geram dúvidas sobre suas realizações e necessidades. Tituba se tornou parte do todo, da terra, das águas e do inconsciente de todos aqueles que souberam da sua passagem na terra e daqueles que acreditam na sua permanência nela enquanto um ser invisível e de luz, que agora tudo sabe.

“Sim, agora estou feliz. Eu entendo o passado. Eu leio o presente. Eu conheço o futuro. Agora, eu sei por que há tanto sofrimento, por que os olhos dos nossos negros e nossas negras são brilhantes de água e de sal. Mas eu também sei que tudo terá fim. Quando? O que importa? Não tenho pressa, estou liberta dessa impaciência que é própria dos humanos.” (p. 246)

Assim como Maryse Condé, me apaixonei por Tituba. Sim, pela heroína que foi nos seus dias amargos percorridos por essas terras. Bem como, pela heroína que Condé construiu em sua memória. Ao finalizar o livro, voltei para o prefácio da extraordinária Conceição Evaristo, já sabendo o que procurar.

“O texto conclama a leitura, quer pela curiosidade pelo desfecho da história, quer pela compreensão lenta de que a “bruxaria” de Tituba, nada mais é do que uma sabedoria construída em outros espaços culturais. Modos diferenciados de relações com a morte, com os mortos e com as forças ancestrais.”

Esse livro me marca e marca um processo que vivencio de crescimento e evolução. Marca a abertura de um baú em minha passagem, trazendo paciência e respeito ao que virá, e sobretudo, gratidão por aquelas que vieram antes e por outras que caminham comigo no hoje.

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