Saúde Coronavírus

Ministério da Saúde pede a instituições federais ‘ampla divulgação’ da cloroquina

Pasta enviou ofício a Fiocruz e hospitais; Sociedade Brasileira de Infectologia e especialistas criticam recomendação, que vai contra orientação da OMS
Hidroxicloroquina, desaconselhada pela OMS no tratamento da Covid-19 Foto: Fernando Moreno / AGIF via AFP
Hidroxicloroquina, desaconselhada pela OMS no tratamento da Covid-19 Foto: Fernando Moreno / AGIF via AFP

RIO - O Ministério da Saúde enviou nesta quinta-feira um ofício a institutos e hospitais federais em que solicita a “ampla divulgação” do uso de cloroquina e hidroxicloroquina para o “tratamento precoce” de pacientes com Covid-19. Segundo o texto, a prescrição do medicamento “integra a estratégia do Ministério da Saúde para reduzir o número de casos que cheguem a necessitar de internação hospitalar”. A orientação vai de encontro ao que afirmam sociedades médicas nacionais e internacionais, especialistas e a própria Organização Mundial de Saúde, que desaconselham o uso do remédio no tratamento à Covid-19.

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A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, foi uma das instituições que receberam o ofício nesta quinta-feira, assinado pelo secretário de Atenção Especializada à Saúde, Luiz Otavio Franco Duarte.

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A cloroquina vem sendo defendida pelo governo, embora não existam resultados que comprovem a eficácia da droga no tratamento ou na prevenção da Covid-19. Diversos estudos apontam que o medicamento não trouxe benefícios para diferentes perfis de pacientes. Em alguns casos, a cloroquina foi até mesmo associada à piora da situação dos pacientes.

No ofício, o Ministério da Saúde afirma que “são medidas essenciais a tomar e divulgar”, entre outras, “a prescrição de cloroquina ou hidroxicloroquina, mediante livre consentimento esclarecido do paciente com diagnóstico clínico de Covid-19, para tratamento medicamentoso precoce, ou seja, nos primeiros dias dos sintomas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)”.

Em nota, a Fiocruz confirmou o recebimento do documento e informou estar “ciente das orientações do Ministério da Saúde sobre o uso off label  (quando o fármaco é utilizado para uma indicação diferente daquela que foi autorizada pelo órgão regulatório, a Anvisa) da cloroquina e da hidroxicloroquina contra a Covid-19”.

A fundação acrescentou que “entende ser de competência dos médicos sua possível prescrição” e que “a instituição participa, por designação do Ministério da Saúde, e é responsável no Brasil pelo estudo clínico Solidariedade, que avalia a eficácia de medicamentos para a Covid-19”.

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Para o neurocientista Miguel Nicolelis, o envio do ofício pelo governo à Fiocruz “é um disparate, uma pressão indevida motivada por razões inomináveis”. Ele completa:

– Só no Brasil uma defunta farmacológica (a cloroquina) continua viva. O Ministério da Saúde enviar uma recomendação dessas para uma das maiores fundações de pesquisa do mundo seria como se eu, neurocientista, mandasse e-mails para os coronéis e generais com pitacos sobre como agir na frente de batalha. São pessoas que não têm nenhum tipo de informação ou formação em farmacologia ou em ciências biológicas querendo ditar regra para uma das maiores instituições científicas do mundo.

Professor de epidemiologia da USP (Universidade de São Paulo), Paulo Lotufo lembra que “o ofício não tem validade jurídica”, já que “a Fiocruz é um instituição de ensino e pesquisa marcada pelos princípios da autonomia universitária que inclui a liberdade de cátedra, ação que é extensiva à pesquisa e à extensão de serviços à sociedade”.

– Por ser um tema da esfera estritamente científica, o Ministério da Saúde poderia  enviar o resultado da avaliação de um comitê científico independente sobre a conduta sugerida para a Fiocruz, dentro da competência técnica consagrada, decidir pela divulgação ou não – diz Lotufo. – Esse ofício não tem validade jurídica nenhuma. Mesmo que fosse do governador de São Paulo para o Hospital das Clínicas, que é uma autarquia estadual, essa determinação não teria qualquer efeito prático.

Nesta sexta-feira, a Sociedade Brasileira de Infectologia divulgou nota em que diz ser “urgente e necessário que a hidroxicloroquina seja abandonada no tratamento de qualquer fase da COVID-19 e que os agentes públicos, incluindo municípios, estados e Ministério da Saúde “reavaliem suas orientações de tratamento, não gastando dinheiro público em tratamentos que são comprovadamente ineficazes e que podem causar efeitos colaterais”.

A SBI pede ainda que o recurso público seja usado em medicamentos “que comprovadamente são eficazes e seguros para pacientes com COVID-19 e que estão em falta”, como anestésicos para intubação, bloqueadores neuromusculares, oxímetros, testes diagnósticos, leitos de UTI e em “recursos humanos (profissionais de saúde) e respiradores”.