A hermenêutica sistêmico-construtiva 
do direito

A hermenêutica sistêmico-construtiva do direito

Andrey Felipe Lacerda

 

RESUMO

O presente trabalho tem por escopo analisar as mudanças ocorridas no sistema jurídico em relação à complexidade gerada pelo ambiente social, propondo uma metodologia interpretativa capaz de dar respostas mais coerentes aos problemas hodiernos, sempre à luz de um constitucionalismo normativo, inclusivo e transformador do status quo.

Palavras-chave: Hermenêutica. Direitos humanos. Constitucionalização.

 

The systemic-constructive hermeneutics

 

ABSTRACT

The present work has the scope to analyze the changes in the legal system in relation to the complexity generated by the social environment, proposing an interpretative methodology that is able to give coherent answers to modern-day problems, always from the perspective of a normative constitutionalism, inclusive and transformative of the status quo.

Keywords: Hermeneutics. Human rights. Constitutionalization.

 

1 INTRODUÇÃO

Considerando o processo de evolução social pautado no constante ganho de complexidade, pretende-se analisar as grandes transformações ocorridas nos modelos sociais que resultaram na fragmentação de uma eticidade universal e na expansão exacerbada de uma racionalidade instrumental.

Nessa linha, o estudo se volta para a compreensão de um novo modelo de Estado constituído no período do 2º pós-guerra, em nível global e durante o período de redemocratização do Brasil, em nível local, com a promulgação da Constituição da República de 1988. Destarte, pretende-se demonstrar que a estruturação da ordem jurídica passa a se ancorar nas determinações e nos valores da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e nas prescrições dos direitos fundamentais, o que implica a reorientação de todo o sistema jurídico.

Destarte, no decorrer deste trabalho, pretende-se demonstrar a insuficiência do método de subsunção do fato à norma, considerando tanto a complexidade social quanto os dilemas morais postos ao intérprete. Nesse contexto, ganha relevo o controle incidental da constitucionalidade e a atividade interpretativa dos juristas numa hermenêutica sistêmico-constritiva do direito. 

2 A SOCIEDADE MULTICÊNTRICA E OS DIREITOS HUMANOS NA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO

Com o aumento da complexidade da sociedade contemporânea proporcionado pelos avanços científicos e pelo ingresso de novos grupos e atores sociais no discurso jurídico, a sociologia do direito constatou que o modelo liberal, no qual se embasava o exercício do Poder Judiciário, entrou definitivamente em crise, determinando uma nova visão a respeito da legitimação clássica para atuação dos juízes.

Essa nova hermenêutica jurídica começou a transformar paulatinamente a aplicação do direito, propondo uma nova visão contemporânea do processo,1 segundo a qual o espaço do Poder Judiciário é uma reprodução do atual cenário político-social brasileiro, marcado não só pelas demandas individuais, como também pelas ações coletivas dos vários atores sociais.

Assim, questões como: meio ambiente seguro e sadio, relações consumeiristas, democracia, liberdade de informação, liberdade de expressão, biossegurança, tecnologia da informação, proteção de dados, pluralismo, discriminação, liberdade religiosa, orçamento público, políticas públicas, aborto, liberdade sexual, dentre outras, passaram a permear o dia a dia do Poder Judiciário, levando os tribunais a decidir sobre questões éticas, morais, econômicas, científicas e políticas.

Para Tércio Sampaio Ferraz Jr. (2010, p.59): 

"Afinal, hoje, o Estado cresceu para além de sua função garantidora e repressiva, aparecendo muito mais com produtor de serviços de consumo social, regulamentador da economia e produtor de mercadorias. Com isso, foi sendo montado um complexo instrumento jurídico que lhe permitiu, de um lado, organizar sua própria máquina assistencial, de serviços e de produção e, de outro, criar um imenso sistema de estímulos e subsídios. Ou seja, o Estado, hoje, se substitui, ainda que parcialmente, ao mercado na coordenação de economia, tornando-se o centro de distribuição da renda, ao determinar preços, ao taxar, ao criar impostos, ao fixar índices salariais etc. De outro lado, a própria sociedade alterou-se, em sua complexidade, com o aparecimento de fenômenos novos, como organismos internacionais, empresas multinacionais, fantásticos sistemas de comunicação etc."

O direito até então compreendido pelo seu determinismo e completude, acostumado a dar soluções prontas contidas em seus códigos e conceitos, se depara com o Caos. Hoje o sistema jurídico é acionado para dar respostas aos mais variados problemas sociais, que vão desde matérias de extrema expertise e racionalidade técnica, a dilemas morais.

O problema da complexidade e da falta de respostas prontas é abordado por Ricardo Aronne (2006, p.24) ao tratar de complexidade e caos no discurso jurídico:

 "Complexidade que faz com que os operadores tenham de conhecer minúcias de áreas inesperadas do conhecimento, em função do conteúdo dos processos, não obstante e até mesmo em razão do comparecimento de peritos e assistentes técnicos especializados, em apoio aos mesmos. A palavra final, sobre a sanidade ou paternidade de alguém, pode não vir de um médico nem de um geneticista. Pode vir de um juiz. Pode contrariar integralmente a conclusão de um laudo. Seu preço? Um bom fundamento. Razão. Racionalidade. Seu meio? Sistema e discurso. Remédios? Recursos. Trajetória? Caótica. Medo? Indeterminação. Instabilidade. Alguém gostaria que fosse diferente? A História responde.

 Não obstante, o Direito pode ser chamado a responder se o plano de orçamento da União Federal está adequado. A responder se a técnica empregada por um neurocirurgião ao proceder a uma intervenção, foi a mais adequada ou não. Até mesmo se um indivíduo é ou não um bom pai, merecedor da guarda de seus filhos. Se o projeto de um veículo foi corretamente desenvolvido ou não e, se não bastasse, se os responsáveis pela empresa tinham ou não consciência disso antes do lançamento do produto no mercado! Observe-se que todas as questões apontadas são, ao menos em tese, cotidianas do operador do Direito. E sempre têm de ser respondidas. Certo ou não, o non liquet, não é possível ao Direito. Pode-se-lhe perguntar da razoabilidade do que evoco. E ele terá de responder. Conforme sua inafastabilidade (art. 5º, XXXV, CF/88), Medo? Vertigem? Não. Caos."

  Nesse flanco, pretende-se analisar a sociedade e o direito pelas lentes de um paradigma sistêmico, que nos permite compreender a complexidade e as mudanças ocorridas na história, as quais se projetam no direito de forma tão intensa que por vezes chegam a ofuscar a visão do jurista.

Para Luhmann o elemento que distingue a sociedade dos outros sistemas (biológico, psíquico, cibernético) é a comunicação, compreendida como qualquer ato de comunicar (gestos, sinais, símbolos, desenhos, linguagem, escrita etc..) que emite uma mensagem sujeita à compreensão. Distinguir significa indicar, pois no momento em que indicamos alguma coisa, estamos diferenciando-a de outras. Ao indicar um sistema, ele se diferencia do entorno, transformando todos os outros subsistemas em ambiente. Trata-se de uma teoria que trabalha com a diferença entre sistema e ambiente, essa diferença se dá conforme a perspectiva do sistema indicado. A sociedade contemporânea (pós-moderna), por exemplo, é composta por diversos subsistemas sociais (jurídico, econômico, político, artístico, moral..) que formam o ambiente uns dos outros. Ao indicar um sistema (jurídico, por exemplo) ele se diferencia dos demais (econômico, político, artístico, moral...) que passam a funcionar como o seu ambiente. No ambiente, o fluxo comunicativo é desordenado e extremamente rico em possibilidades, possibilitando diversas compreensões de uma mesma mensagem, o que dificulta a condensação de sentido.

No paradigma sistêmico a sociedade é compreendida como um grande e complexo ambiente comunicativo, sendo impossível observar e descrever o todo a partir de um único ponto de vista privilegiado. Os sistemas comunicativos funcionam de forma autônoma, sendo assim, não se submetem às verdades e certezas estranhas a sua linguagem, pois cada um deles tem sua função e racionalidade própria, características que possibilitam a evolução e rearticulação necessária para que possam responder às pressões exercidas pelo ambiente. Porém, deve-se ressaltar que este funcionamento não se dá de foram autárquica, isso quer dizer que sua estrutura operativa é fechada, mas que existem pontos de contato onde há uma abertura cognitiva que permite a entrada (input) de um tipo de comunicação estranha a sua racionalidade intrínseca, que será procedimentalizada no seu interior e posteriormente devolvida ao ambiente de forma mais concreta e objetiva (output). Este é o objetivo da teoria, que se volta para a redução da complexidade da comunicação.

Outra proposta sistêmica com a qual também trabalhamos é a de Jürgen Habermas, que traz o conceito adicional de “mundo da vida”, em que impera a “ação comunicativa”. Assim, a sociedade também é compreendida como fluxo de comunicação, mas, sob a perspectiva habermasiana, esse fluxo ocorre tanto nos sistemas sociais quanto no mundo da vida. Os sistemas são formados por racionalidades instrumentais (“racionalidade-com- respeito-a-fins”), isto é, são esferas de comunicação técnico-científicas orientadas para a busca do êxito, distinguindo-se em dois subtipos: (i) Ação instrumental, que diz respeito à utilização de objetos para a satisfação de interesses e necessidades humanas, baseada em regras técnicas, sendo definida como um tipo de comportamento dirigido a alcançar determinados fins por meio do uso de objetos; (ii) Ação estratégica, que ocorre quando há aplicação da racionalidade instrumental às relações interpessoais, implica a escolha racional de uma linguagem para influenciar um adversário ou para satisfazer interesses pessoais ou institucionais. No agir estratégico não há alteridade, ou seja, o outro não apresenta ao agente estratégico como sujeito, mas como objeto, meio para a consecução de seus objetivos egocêntricos ou institucionais.

O mundo da vida é um sistema comunicativo diferente, pois nele não impera a “racionalidade-com-respeito-a-fins” e sim o “agir comunicativo”, que é voltado para o entendimento intersubjetivo. Isto é, uma forma de discurso onde cada um expressa suas concepções e percepções da cultura, da sociedade e de sua própria personalidade, sem a pretensão de universalidade, voltando-se ao entendimento mútuo, à integração social, à produção da solidariedade sob o aspecto da coordenação da ação e à formação da identidade a partir da relação com o outro. Em suma, é uma forma de interação centrada na alteridade, que visa contrastar diferentes percepções e visões de mundo e permite uma postura crítica na concepção semântica, de significações e conteúdos em torno de valores morais e padrões éticos, permitindo o contato entre a tradição e a inovação cultural.

De acordo com o modelo sociológico descritivo de Luhmann, a sociedade evolui na medida em que suas interações comunicativas se tornam mais complexas, surgindo a necessidade do sistema social alterar seus próprios elementos para se adequar às práticas inovadoras, até então improváveis no seio social. Com o ganho de complexidade das interações sociais, as dúvidas quanto ao comportamento esperado se multiplicam, pois o padrão de conduta expectável passa a admitir outros tipos de comportamento, os quais não eram esperados.

A função dos sistemas sociais é justamente reduzir esta complexidade, proporcionada pelo aumento de possibilidades comportamentais que poderiam se realizar, e, considerando também, que cada comportamento poderia ocorrer de forma diferente3. O comportamento desviante, compreendido como prática inovadora seria, portanto, o elemento precursor da evolução social.

Porém, em sociedades segmentárias (pré-modernas) não havia possibilidade para se selecionar o comportamento inesperado, de modo a contrastá-lo com o paradigma vigente, e, num segundo momento, reintegrá-lo as práticas sociais, tornando as interações comunicativas mais ricas em possibilidades, na medida em que este “comportamento novo” fosse reintegrado às estruturas preexistentes, forçando-as a se rearticular de forma harmônica.

Nas sociedades arcaicas, comunicações inesperadas eram exceções que colocavam em risco a própria estrutura social. O desvio era algo estranho à comunidade, nesse contexto a interação ritualística tem um papel relevante, pois as expectativas eram condensadas através da repetição de praticas que refletem e modelam os comportamentos cotidianos esperados como evidentes. Nesse modelo, a comunicação se dava precipuamente por meio de interação entre presentes (não havia escrita), o que tornava ínfima a probabilidade de um desvio. O baixo grau de variação comportamental e a falta de meios de comunicação (escrita, pintura, livros impressos etc.) favoreciam a reprodução da sociedade de acordo com a tradição, havia, portanto, baixa complexidade, uma vez que não se gerava dúvida quanto ao comportamento do outro e a comunicação era precária, impossibilitando o contraste com outras culturas e paradigmas.

O direito afirmava-se, em caso de desapontamento das expectativas, por meio da autotutela da vítima ou de seu respectivo clã. Havia uma resposta imediata à ofensa, sendo inconcebível, àquela época, a presença de um procedimento de aplicação normativo- jurídica. O que também favorecia a reprodução do modelo de interações tradicional, pois o comportamento desviante era imediatamente contido. Destarte, inexistia qualquer diferença entre moral, poder, direito, costumes e convencionalismo social. Esse modelo estrutural impedia a variação do comportamento improvável, impossibilitando a seleção de novas condutas aptas a reorientar a prática social.

O direito das culturas pré-modernas (sociedade medieval) consagrou a institucionalização de procedimentos de aplicação jurídica, estabelecendo, portanto, uma diferenciação hierárquica da sociedade, uma vez que a dominação política encontrava-se no topo, pertencendo exclusivamente à camada superior. Verificou-se então o ganho de complexidade deste modelo de sociedade, pois o comportamento desviante era avaliado como algo interno à sociedade, a ser tratado por procedimentos jurídicos fundados em representações morais (e, ao mesmo tempo religiosas), validas para todas as esferas da sociedade.

Nesse modelo já se percebe uma evolução, no sentido de ganho de complexidade e formação de novas estruturas, pois tanto a aplicação quanto a execução do direito passaram foram delegadas a um terceiro, com fundamento em normas e valores abstratos, materializados através de um procedimento jurídico. Entretanto, essas as normas e princípios abstratos, de acordo com os quais a atividade aplicadora do juiz se orientava, eram compreendidos como imutáveis, pois o direito era concebido como algo verdadeiro e incontestável. Mesmo com a criação de procedimentos jurídicos, constata-se que, naquela época, as questões jurídicas estavam intimamente vinculadas aos rituais divinatórios, tornado o comportamento desviante algo repudiado tanto pela moral divina, quanto pelo direito, o que tornava extremamente difícil a seleção do comportamento inovador, capaz de mudar paradigmas e concepções de mundo, resultando na estagnação evolutiva da sociedade.

Na transição das culturas pré-modernas para a sociedade moderna, a concepção jusnaturalista desempenhou importante papel evolutivo, no sentido da positivação do direito. A dicotomia entre natural e positivo implicou a delimitação da esfera do direito invariável e do direito variável. Porém, conforme a concepção jusnaturalista, o mutável permanecia subordinado ao imutável. A pretensão de validade da decisão legiferante, proferida pelo monarca, expressava-se através da invocação dos princípios jusnaturais e sua autoridade fundava-se na concepção mística de que ele era o representante de Deus na terra. Nesse contexto, o valor moral e ético presente nas normas jurídicas garantiam efetividade máxima ao direito posto, regulando todo o comportamento social. Ainda não se verificava a autonomia do direito, que permanecia conectado às construções morais estabelecidas pelas estruturas dominantes da sociedade.

Durante a era pré-moderna o direito, a moral, as concepções do “bom” e do “correto”, assim como os demais valores positivos que orientavam a sociedade fundiam-se com a religião e com o poder, formando um amálgama holístico que proporcionava a estabilidade das estruturas de dominação da sociedade, gerando expectativas de comportamento que se adequassem ao modelo estrutural. Desta forma também se impedia o comportamento desviante, compreendido como algo interno à sociedade, a ser tratado por procedimentos de aplicação jurídica fundados em representações morais e, ao mesmo tempo, religiosas válidas para todas as esferas da sociedade.

A sociedade não era funcionalmente diferenciada, sua estrutura era bipolarizada (diferenciação hierárquica). O “polo de cima”, era composto pelo amálgama da estrutura política de dominação, reproduzido, simultaneamente, com base na diferença entre poder superior e inferior, na semântica moral, constituída com base na distinção (moral) entre o bem e o mal, e também na diferença (religiosa) entre divino e profano.

Esse amálgama prevalecia sobre todas as outras esferas de comunicação da sociedade, que assim permaneciam indiferenciadas, determinadas de fora para dentro. A semântica do bem, apontava, sobretudo, para a parte superior da estrutura de dominação social (política) ocupada pela nobreza, já a semântica do mal referia-se, especialmente, ao polo inferior, expressando-se na plebe. Os “de baixo” só praticam o bem, isto é, condutas avaliadas positivamente pela sociedade, quando atuassem de acordo com os modelos comportamentais que lhes fossem determinados pelos “de cima”, estes, por sua vez, só cometeriam o mal, ou seja, condutas reprovadas pela sociedade se agissem conforme os padrões daqueles. Assim, funcionava a eticidade universal que conferia validade a toadas as esferas do agir e do vivenciar, proporcionando estabilidade e segurança para a dominação dos estamentos inferiores.

Destarte, segundo o modelo pré-moderno, as demais esferas de comunicação da sociedade – ciência, arte, direito, economia etc. – estariam subordinadas a esse centro justificador, composto por moral impregnada pela religião e dominação política. A arte, o saber, o direito e a economia estavam semanticamente subordinados à diferença entre o bem e o mal, assim como orientados pelos critérios do poder superior ou inferior. Assim sendo, a diferença entre licitude e ilicitude – direito/não direito – não se distinguia nitidamente da diferença entre bem e mal, ao revés confundiam-se. O seu lado positivo conectava-se com a superioridade na dominação e o seu lado negativo, com a inferioridade. O mesmo acontecia com as diferenças “ter/não ter” (economia), “verdadeiro/falso” (ciência) e “belo/feio” (arte).

Após o triunfo dos ideais iluministas (que fomentaram o surgimento das mais diversas racionalidades, em oposição às justificações religiosas de compreensão do mundo) e dos movimentos liberais burgueses (os quais derrubaram a concepção de poder teocrático dos soberanos), verificou-se o rompimento deste amálgama holístico8 e a consequente fragmentação da sociedade, que passou a ser destituída de um núcleo duro conceitual, que funcionasse como eixo de calibração ético, filosófico, religioso, etc. Segundo Marcelo Neves (2009, p.24) a sociedade tornara-se “multicêntrica”:

 "O incremento da complexidade social levou ao impasse da formação social diferenciada hierarquicamente da pré-modernidade, fazendo emergir a pretensão crescente de autonomia das esferas de comunicação, em termos de sistemas diferenciados funcionalmente na sociedade moderna. Há não só um desintricamento de lei, poder e saber, nem apenas a obtenção da liberdade religiosa e econômica pelo homem, mas um amplo processo de diferenciação sistêmico-funcional. Mediante esse processo, a sociedade torna-se ‘multicêntrica’ ou ‘policontextual’. Isso significa, em primeiro lugar, que a diferença entre sistema e ambiente, desenvolve-se em diversos âmbitos de comunicação, de tal maneira que se afirmam distintas pretensões contrapostas de autonomia sistêmica. E, em segundo lugar, na medida em que toda diferença se torna ‘centro do mundo’, a policontextualidade implica uma pluralidade de autodescrições da sociedade, levando à formação de diversas racionalidades parciais conflitantes. Falta, então, uma diferença última, suprema, que possa impor-se contra todas as outras diferenças. Ou seja, não há um centro da sociedade que possa ter uma posição privilegiada para sua observação e descrição; não há um sistema ou mecanismo social a partir do qual todos os outros possam ser compreendidos."

  A modernidade é marcada pela razão difusa, ou seja, não há um centro da sociedade que possa ter uma posição privilegiada para sua observação e descrição, cada esfera de comunicação torna-se “centro do mundo”. Essa concepção permitiu toda a evolução técnico-científica da sociedade, uma vez que a ciência não encontrava limites naquele amálgama holístico (direito-moral-ética-religião). Assim tanto as ciências exatas, quanto a arte, a economia e o direito desenvolveram seus métodos e verdades próprios, permitindo a evolução técnico-científica que legou o progresso à humanidade. Porém, segundo Habermas, esse encantamento com a ciência permitiu uma hipertrofia da razão instrumental em detrimento do agir comunicativo.

Destarte, sob os olhares do paradigma moderno, o mundo do “dever-ser” permanece trancafiado numa linguagem jurídica subjugado ao sistema político-econômico e os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade aprisionados num discurso filosófico ou político. Essa cisão entre valores e direito foi utilizada por Kelsen para a construção de um sistema normativo puro, dotado de cientificidade, uma vez que possibilitava a previsibilidade e a certeza de que as decisões políticas do ente soberano fossem obedecidas. Questões como legitimidade e compatibilidade com a Constituição eram decididas pela verificação formal de competência para edição de atos normativos, bem como pela observância do correto procedimento.

Essa autonomia entre os subsistemas sociais fomentada pela racionalidade difusa permitiu, gradativamente, a imposição do poder mais eficaz e o isolamento dos valores em seu próprio universo, o que permitiu a ascensão de regimes totalitaristas como o comunismo, fascismo e o nazismo, na medida em que este poder tem a possibilidade de corromper o funcionamento autônomo dos demais subsistemas.

As correntes da metodologia jurídica da modernidade, fundadas na razão instrumental, composta pelo escalonamento de regras como fator de coordenação da atividade de proteção do direito e determinante do conteúdo da sua juridicidade, ignoram a própria essência do direito, reduzindo-o à lei positiva. Valores jurídicos (justiça, bem comum, liberdade, segurança) não conseguem ser mais do que construções formais, vazias de significado. Isso implica, em ultima instância, a crise de eficácia social de alguns direitos (efetividade), uma vez que normas plenamente eficazes, isto é, aptas a produzir efeitos terminam por não produzir efeito algum em determinados setores da sociedade.

Somente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 as fronteiras entre os valores e o mundo do “dever-ser” começam a se entrelaçar, com a inserção de valores em documentos essencialmente jurídicos, como a Declaração e suas respectivas Convenções e Protocolos, a Comunidade Internacional ciente das atrocidades cometidas pelos regimes totalitários e da exclusão social gerada pelos arquétipos da modernidade, optou por editar uma nova programação para o sistema jurídico em nível global, forçando as ordens constitucionais a se readequarem segundo os seus princípios e propósitos na busca da promoção e respeito da dignidade da pessoa humana.

 Sob essa ótica, verificamos que atualmente existe uma conexão entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e nossa ordem Constitucional, em virtude dos seguintes dispositivos: (i) Art. 4º, II – que estabelece a prevalência dos direitos humanos no âmbito das relações internacionais; (ii) Art. 5º,§ 2º que diz expressamente que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, os quais formam um “bloco de constitucionalidade” para além do texto da Constituição, significando que no controle de constitucionalidade, essencial para a construção da norma no novo paradigma, os tratados de direitos humanos são diretamente aplicáveis por força do art. 5º, § 1º, bem como pelo compromisso assumido pelo Brasil de não invocar o seu direito interno para deixar de aplicar pactos internacionais (art. 27, Convenção de Viena Sobre o Direito dos tratados); (iii) Art. 5º, § 3º – que, segundo a melhor doutrina,10 impede a denúncia no âmbito internacional, dos tratados ratificados com quorum equivalente aos de emenda constitucional.

Nesse sentido, sábia é a lição de Flávia Piovesan (2011, p.92):

 "Ao romper com a sistemática das Cartas anteriores, a Constituição de 1988, ineditamente, consagra o primado do respeito aos direitos humanos, como paradigma propugnado para a ordem institucional. Esse princípio invoca a abertura da ordem jurídica interna ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos. A prevalência dos direitos humanos, como princípio a reger o Brasil no âmbito internacional, não implica apenas o engajamento do País no processo de elaboração de normas vinculadas ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, mas sim a busca da plena integração entre tais regras na ordem jurídica interna brasileira. [...] Ao prescrever que “os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais” a contrario sensu, a Carta de 1988 está a incluir, no catálogo de direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil seja parte. Esse processo de inclusão implica a incorporação pelo Texto Constitucional de tais direitos (...)"

 Ademais, verificamos também uma conexão em nível substancial, proporcionada pela construção de uma gramática jurídica comum, isto é, pela uniformização do sentido de conceitos jurídicos em nível transnacional, que independe do poder central dos Estados. Sob essa perspectiva, além dos tratados, costumes, convenções e protocolos, existe um conteúdo normativo que emerge em virtude da participação de novos atores sociais, fomentada pela tecnologia da informação e pelos novos meios de comunicação entre ausentes. O processo envolve a ampliação de visões convergentes de justiça, a multiplicação de normas similares em diferentes ordens jurídicas e a aproximação entre os intérpretes do direito.

  Nessa linha, Marcelo Dias Varela (2013, p.166) esclarece que:

 "O direito se internacionaliza a partir da uniformização de categorias jurídicas entre os subsistemas internacionais e entre os direitos nacionais. Expressões que antes tinham múltiplos significados ou não eram objeto de tratamento jurídico passam a ter um tratamento uniforme. O primeiro passo para um diálogo é conhecer o significado das expressões utilizadas pelos demais interlocutores, o que se pode realizar no mundo jurídico com o aprofundamento do direito comparado, processo pelo qual se aprende o conteúdo normativo em outros territórios, ou pela construção de novos conceitos, comum a vários territórios, típicos do processo de interação."

  Com efeito, verificamos pelo preâmbulo do texto constitucional que a sociedade brasileira assumiu um compromisso transformador “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”.

Em decorrência dessa escolha o poder constituinte originário de 1988, erigiu um novo modelo institucional: O Estado Social e Democrático de Direito que vincula todos os seus cidadãos, instituições e agentes, públicos ou privados na consecução de objetivos fundamentais: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

3 A HERMENÊUTICA SISTÊMICO-CONSTRUTIVA

Destarte, diante da complexidade social, bem como da opção pela normatividade dos valores, verifica-se a necessidade de uma hermenêutica construtiva que consiga ressignificar conceitos como: propriedade, contrato, interesse público, crime, capacidade contributiva, isonomia, devido processo legal, desenvolvimento, meio ambiente sadio etc. à luz dos valores contidos na Constituição e nas declarações e tratados de direitos humanos, aplicando-os a uma relação de fato que perturba o sistema jurídico, para então determinar qual a consequência jurídica que deverá ocorrer.

Entendemos que sob o novo paradigma do constitucionalismo normativo, a lógica dos conceitos se inverte. Não levamos a norma aos conceitos, a norma é o produto final da hermenêutica, os conceitos devem ser ressignificados à luz dos valores substanciais da Constituição da República: dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, fraternidade, solidariedade etc. Os quais ganham sentido através da perturbação externa de outros subsistemas sociais (política, moral, religião, economia..) e do mundo da vida, onde impera a ação comunicativa construída intersubjetivamente. Dessa forma o sistema jurídico é cognitivamente aberto às valorações externas, mas operacionalmente fechado, uma vez que utiliza métodos, procedimentos e racionalidade específica.

Assim, fica evidente que a lógica subsuntiva do fato à norma é insuficiente para tratar das questões que exigem uma resposta do sistema jurídico, mas, de outro giro, também é preciso descobrir novos métodos para dar segurança e estabilidade ao sistema jurídico, evitando o decisionismo antidemocrático. O cidadão e os demais operadores do direito precisam saber qual caminho o intérprete seguirá, para que possam fazer suas projeções e concluir qual a possível consequência jurídica.

Assim, compreendendo a hermenêutica como trajetória, partimos dos fatos que geram expectativas de comportamento, as quais, caso não se ajustem à frustração, buscam ser estabilizadas pelo sistema jurídico. Essas expectativas são levadas aos conceitos substancializados e posteriormente ao ápice do sistema: a Constituição. Após ganharem o sentido jurídico, essas expectativas dessem, passando por princípios mais concretos e por vezes colidentes, como o da autonomia privada, liberdades econômicas, liberdades de expressão, privacidade, segurança etc. Depois, após maior concretude, descem pelas leis complementares, ordinárias, passando pelos diplomas codificados até reencontrarem o plano da relação fática inicial. Após esta escala piramidal, que envolve uma via ascendente (do concreto para o abstrato) e outra descendente (do abstrato para o concreto) chega-se a norma individual para o caso. Dentro desta pirâmide se faz o controle incidental da constitucionalidade, que envolve a análise das possibilidades fáticas: custo da pretensão, limites orçamentários, formas mais ou menos efetivas de garantir a pretensão e, a dialética dos conceitos: afastando sentidos que não estão de acordo com a substância do sistema como um todo, encontrando-se novos significados e novas perspectivas para os valores constitucionais, encontra-se, assim, o verdadeiro Direito, rico e disperso em sua complexidade.

Desta forma, o direito se abre para os outsiders, tanto o proprietário quanto o sem-terra ou sem teto recebem proteção jurídica, o direito fundamental à moradia, o direito humano ao desenvolvimento, a função social da propriedade, o estatuto da cidade e os meios de desapropriação por interesse social ou para reforma agrária aliados aos institutos de usucapião garantem outra dimensão protetiva no sistema. A validade de um contrato não se sujeita exclusivamente ao dogma do pacta sunt servanda que se aproveita da ignorância da parte mais fraca e utiliza entrelinhas e cláusulas leoninas para garantir privilégios ao detentor do poder econômico, os princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva, permitem a revisão contratual por onerosidade excessiva e, até mesmo, a declaração de nulidade do contrato.

No direito administrativo, o próprio conceito de interesse público deve ser relido à luz dos objetivos fundamentais da república, do direito humano ao desenvolvimento, do direito fundamental à moradia, à educação etc. Destarte, torna-se ilegítimo qualquer ato administrativo que sob o manto daquele conceito se desvirtue desses valores. No processo civil, o conceito de devido processo legal se volta para a instrumentalidade das formas, permite certa flexibilidade entre segurança e celeridade, a depender do objeto da causa, adaptando-se o procedimento as exigências de fato (ex. tutela antecipada, cautelar, remoção do ilícito, etc.). Já no que concerne ao direito ambiental, verifica-se que o art. 225 da CRFB cc art.5º, §2º permite uma constante renovação do conceito “meio ambiente ecologicamente equilibrado” que ganha sentido através das descobertas científicas e tratados internacionais, as quais se substancializam nos princípios da precaução e prevenção. No âmbito criminal, verifica-se que com a construção de uma tipicidade conglobante (formal e material), avalia-se a efetiva lesão a um bem juridicamente tutelado, afastando a consequência jurídica em crimes de bagatela e, de outro lado, torna o direito penal sensível às pressões do ambiente social no que diz respeito aos crimes contra a Administração Pública, ao vedar a aplicação do princípio da insignificância.

Esse preenchimento do sentido normativo do sistema jurídico se dá conforme as pressões exercidas pelo ambiente (formado pelos outros subsistemas sociais: economia, religião, ciência, biologia e pelo “mundo da vida”) Se, por exemplo, o sistema econômico não se adéqua conforme a valoração mais intensa dos princípios sociais colidentes provocará maiores perturbações no sistema jurídico (por meio dos princípios que garantem valores liberais, como a livre iniciativa, por exemplo) a fim de estabilizar suas expectativas em termos normativos.

Nesse ponto, se destaca a tarefa do intérprete, pois é ele quem define qual será o sentido prevalecente. Neste novo paradigma o intérprete deve ser como Hermes que ciente da sua responsabilidade, calça suas sandálias aladas e traz para o cidadão a melhor síntese por meio do direito, buscando a paz e a harmonia, mas também conduzindo as almas podres para o reino de Hades. A teoria sistêmica nos mostra como os sistemas sociais funcionam e demonstram a função quase que divina dos direitos fundamentais, pois em tempos de moralidade difusa, a fundamentação última do comportamento social é dada pelo respeito e promoção deles.

Destarte, fica claro que a culpa das mazelas sociais não é do sistema, mas do intérprete, o fundamento do sistema é o intérprete, o abismo é o intérprete. Não precisamos mudar o sistema, mas o seu mensageiro. Como dizia Pontes de Miranda: “O que é preciso é que os princípios estejam nos espíritos e na vida. Nem basta que haja livros nas bibliotecas, nem que se tracem belos programas. Levados aos espíritos, deles descem à vida (MIRANDA, 1892).

 4 CONCLUSÃO

A partir das premissas estabelecidas de uma sociedade hipercomplexa e da normatividade dos valores e princípios fundamentais, pode-se concluir que o método subsuntivo não responde mais às exigências do sistema jurídico. Destarte, cumpre a doutrina desenvolver uma nova metodologia que consiga lidar com esta nova complexidade, considerando sempre o homem na sua existencialidade, avaliando o contexto social e observando as construções de outras áreas do conhecimento. Em pleno século XXI não é possível extrair respostas apenas pelos textos e conceitos jurídicos pré- moldados, não faz sentido, não é coerente.

Ademais, concluímos que não basta compreendermos o sistema se não mudarmos os seus intérpretes, a eficácia e a efetividade da Constituição dependem de intérpretes conscientes, isto é, daqueles que se deparam com a angústia e passam a compreender seu deveres para com o cidadão e a Constituição.

 

 

REFERÊNCIAS

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