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O Direito muçulmano

Lino de Morais Leme


Catedrático jubilado da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo.

1. Organização política das tribus, árabes

1. As tribus da Arábia estavam divididas em "gentes",


recordando a antiga organização de Boma. A tribu do
Khoreichitas, que povoava a região de Meca, compreendia
várias "gentes", entre as quais a de Ebou-Hachims e a de
Ebou-Sofiani. Meca era o centro religioso e m que era ado-
rada a Kaaba (pedra preta) x.
Os antepassados de Mahomet, o Profeta, (em árabe
Mohammed, o "Louvado"); nascido e m 571 e falecido e m
632, e m conseqüência de u m a febre que apanhou na pere-

1. Segundo a tradição, primitivamente fixada no Céu, onde os


anjos, conduzidos pelo arcanjo Gabriel, iam fazer procissão em torno
dela. A mesquita santa (Masdjid-el-Haron), construida por Seth,
filho de Adão, destruída pelo dilúvio, foi reedificada por Abrahão, no
próprio logar em que esteve prestes a sacrificar, a Jehovah, seu filho
Isaac, e no mesmo local em que se elevava a mesquita de Seth. O ar-
canjo Gabriel trouxe a Abrahão a pedra da Kaaba, que foi colocada no
recinto da nova mesquita.
Como cada u m a das tribus árabes tinha os seus deuses, e sen-
do o templo da Kaaba o grande santuário, achavam-se aí representa-
dos por estátuas ou imagens, u m grande número de divindades. Se-
gundo os historiadores muçulmanos, aí se encontraram 360 imagens,
entre as quais as de Cristo e da Virgem Maria, explicável porque di-
versas tribus árabes se tinham convertido ao Cristianismo.
Essa pedra não é senão u m dos números betiles. que em todos
«os tempos foram adorados como divindades, pelos semitas.
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grinação a Meca, tinham aí dominado desde Qoussa (4.°


avô de Mahomet), que, após u m a luta sangrenta, tomou
posse das chaves do Keabé, n u m tempo e m que o recinto
respeitado — a extensão do terreno que veiu a formar de-
pois a cidade de Meca — era ainda deshabitada. Qoussa
fundou e povoou Meca. Abd-ul-Montaleb, o avô do Pro-
feta, não tinha senão a administração da água do poço de
Zem-Zem e a guarda das chaves do Keabé.
O pai de Mahomet, Abd-Allah, que fazia o comércio de
caravana com a Síria, morreu antes do nascimento do
filho; e a m ã e Amina Mottaleb, pouco tempo depois. A
educação do Profeta foi iniciada pelo avô; após a morte
do mesmo, foi continuada por seu tio Abou-Taleb, que tam-
bém fazia o comércio de caravanas.
Deixando o serviço do tio para tomar a direção dos
negócios de rica viuva de Meca, Khadija. Mahomet com
ela se casou; tinha êle, então 25 anos.

2. A missão de Mahomet

Aos 40 anos, ele teve sua primeira revelação: o anjo


Gabriel lhe apareceu n u m a gruta e m que êle costumava
retirar-se, e, anunciando-lhe sua missão, revelou-lhe os seus
primeiros versículos do 96.° capítulo (surate) do Corão,
e m que estão dispostos não na ordem cronológica, mas na
da extensão.
A missão do Profeta foi aceita imediatamente por sua
mulher, por Ali, filho de Abou-Taleb, que Mahboet reco-
lhera, por Abou-Behr e por Osman. O Profeta lhes deu o
nome de mouslim ("devotado a Deus"); do plural dessa
palavra resultou muçulmano. Islamismo vem de Islam,
palavra árabe que significa "resignação".
E m 621, Medina se converteu espontaneamente ao
Islamismo. E os Ehou-Sofians, aproveitando-se da circuns-
tância, declararam guerra a Mahomet, que, no entanto, pro-
tegido por seu tio, Abou-Taleb, que sucedera a Abdu-él-
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Mutaleb, como chefe da gens, continuou a exercer sua mis-


são na cidade santa da Arábia idolatra. Morrendo o tio,
o Profeta teve de emigrar; a cidade de Iatreb lhe abriu as
portas, e, após a hegira (em árabe hidjret "fuga") se cha-
m o u Medina, a cidade do Profeta (Medinétoul-Nebi).
Conquistada Meca, Mahomet fez destruírem todos os
ídolos. E m breve, dominou toda a Arábia e se decidiu a
empreender a conquista do Egito, da Grécia e da Pérsia.
U m dos sucessores imediatos do Profeta, Omar Faruk, es-
tendeu, e m dez anos, o domínio do islamismo, dos confins
da China ao estreito de Gibraltar. Hoje, o número dos
islamitas é de mais ou menos 300.000.000.

3. A religião muçulmana

A religião cristã tem em vista apenas a moral: "Daí


a César o que é de César e a Deus o que é de Deus", disse
Jesus Cristo. A religião muçulmana, porém, reúne o es-
piritual e o temporal, pois contém u m a legislação completa,
fundada na revelação; é o Corão, dividido e m 132 capítulos
(sureta), subdivididos e m versículos (ayets). Foi ditado
e m vida de Mahomet. Escreveram-nos sobre papiros, ossos
de ombros de carneiros e peles de camelos. N o califado
de Abou-Behr, sucessor imediato do Profeta, foi feita u m a
edição completa desse livro.

4. As fontes de legislação muçulmana

As fontes da legislação muçulmana são: a) o Corão;


b) a conduta do Profeta (Sunna) (ou Jadis = tradição);
c) a opinião unânime dos sucessores imediatos do Profeta,
a qual foi dada e m concilio (Idjimâ), tendo importância
capital a das três primeiras gerações islamitas: a dos com-
panheiros do Profeta (Ashab); a dos adeptos (Tabün) os
que conheceram os companheiros; a dos seguidores (ta-
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basí), que conheceram os adeptos; d) a analogia admitida


pelos jurisconsultos (Kiyassifrghá).
A conduta do Profeta (unnat) era representada por
suas palavras e atos e a aprovação explícita ou tácita que êle"
dava às palavras e atos de outrem. Dela ha seis repositó-
rios autênticos. O califa Ornar Faruk, por exemplo, não
distribuíra, aos guerreiros do Islam, as terra da Síria: con-
firmou-as aos antigos proprietários e sujeitou-as a u m im-
posto superior ao dízimo. Levantando-se murmúrios, o
califa reuniu o concilio e perguntou, aos "companheiros",
se tinham conhecimento da forma pela qual o Profeta tinha
disposto das terras pertencentes aos israelitas de Haiber.
Eles responderam que Mahomet confirmara os antigos pro-
prietários na posse das terras, impondo, porém u m imposto
maior do que o dízimo e proporcional à fertilidade do solo.
E assim foi reconhecido que as disposições tomadas pelo
califa eram perfeitamente legais.
A analogia admitida pelos jurisconsultos consistia e m
aplicar, a u m fato novo ou conhecido, porém não ainda
juridicamente apreciado, a norma referente a u m outro fato
já legalmente qualificado. A aguardente, por exemplo, era
desconhecida no Hedjaz, e não se encontra, nas fontes pri-
meiras, nenhuma disposição, proibindo-lhe o uso. Os ju-
risconsultos do Islam lhe aplicaram as disposições legais
contidas no Corão, sobre o vinho, admitindo analogia, com
o mesmo, dos efeitos tóxicos da nova bebida.

5. A lei muçulmana

A lei é o conjunto de ordens que o legislador dirige


ao homem.
Os deveres que ela impõe compreendem os para com o
Criador e os para com os semelhantes, todos resultantes dos
direitos de Deus sobre os homens.
Os deveres do h o m e m para com Deus são designados
como "imposições piedosas" (teúelufati ibadéyé), e compre-
endem quatro seções: a) a primeira abrange aqueles
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cuja omissão cria, meste mundo, u m dano que afeta apenas


a sociedade — a contribuição da esmola, o dízimo e o dízimo
aumentado (Também o muçulmano deve pagá-lo, quando
adquire terras ao m e s m o sujeitas); b) a segunda, aqueles
cuja omissão acarreta dano para a sociedade e para o
indivíduo — a peregrinação, a guerra santa; c) a terceira,
aqueles que, não cumpridos, não acarretam, neste mundo,
nenhum dano, quer à sociedade quer ao indivíduo — a
purificação, a prece, o jejum; d) a quarta, aqueles que
incumbem a toda a sociedade islamita, mas que basta sejam
cumpridas por alguns — o enterro dos mortos, a prece pelo
repouso de suas almas.

6. Partes constitutivas da legislação muçulmana

As partes constitutivas da legislação muçulmana (mer-


châuat = cousas da lei) são e m número de cinco: 1) as cren-
ças (itigadat); 2) as práticas religiosas (ibadat); 3) as obri
gações e contratos (melat); 4) as ações puníveis (uquabát),
5) as expiações (keferat).
As crenças são e m número de cinco: 1) e m Deus
(Allahuiman); 2) nos anjos (Meliaikeyeiman); 3) nos livros
santos (Kitaba iman); 4) no Profeta (Ressoulé iman); 5)
no Juízo final (Yeomul-ah-reté iman).
As práticas religiosas são e m número de cinco, dividi-
das e m três categorias: a) os atos de piedade exclusiva-
mente corpóreos: 1) a prece (selint); 2) o jejum (savm);
3) a guerra santa (djehad); b) os atos de piedade exclusi-
vamente pecuniários; 4) a contribuição da esmola (zekate),
à qual se liga o dízimo (ouckre); c) os atos de piedade, de
caráter mixto (corpóreos e pecuniários); 5) a peregrinação
(Hadje).
As obrigações e contratos são e m número de cinco: 1)
os com equivalência (maüavazat); 2) os casamentos (mu-
nakadat); 3) o parentesco (mouhassemat); 4) os depósitos
{amanat); 5) as associações (cherekat).
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As ações puníveis com penas graves são e m número


de cinco; 1) o assassínio com premeditação (gatli gasdi),
punível com a pena de talião (gisses); 2) o roubo qualifi-
cado (Sirgat), punido com perda da m ã o (Gat Yed); 3)
o adultério (Zina), punido segundo as condições dos cul-
pados, pela lapidação (Redjm) ou a bastonada (djeldè);
4) o insulto à honra das mulheres (gagf,) punido com
oitenta bastonadas; 5) a abjuração (irtidad), punido com
a morte (gatl).
As expiações são e m número de cinco: 1) a pelo assas-
sinato (kefareti — gatl); 2) pelo insulto à mulher legítima,
empregando-se expressões que assimilam a esposa a u m a
parenta próxima, tal como a mãe (kefareti — kahar) — é
u m a renúncia às relações legais do h o m e m com a esposa;
3) a pela ruptura irregular do jejum (kefareti iftar); 4)
a pelo juramento islado (kefareti jemin); 5) a pelos erros
cometidos durante a peregrinação (kefareti-khatiati-hadje)

7. Concepções religiosas e éticas

Deus é o juiz do homem. Êle ordena as ações belas.


"As ações feias" são proibidas.
A beleza e a feiúra são o efeito das apreciações e
juizos da razão humana, ou o resultado das apreciações do
Juiz (Deus), expressas pela lei que os profetas revelaram
aos povos? Diversas opiniões foram manifestadas, entre as
quais a de Hassan ei Basri, o chefe da escola ultra-conser-
vadora, para quem a beleza e a feiúra são os efeitos
(assars), da ordem do legislador, isto é, u m a ação é bela
porque Deus a recomendou, feia, porque êle a proibiu.
Nos primeiros tempos, as funções de juiz foram exer-
cidas pelo próprio Profeta e pelos quatro califas que lhe
sucederam. O califa delega seus direitos judicantes a u m
h o m e m sábio, experimentado e de u m a conduta ilibada,
cuja consciência foi formada segundo os preceitos da reli-
gião e da moral.
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O sábio que exerce as funções de pretor (mufti), e que


por suas opiniões doutrinárias (fetava = fórmulas), guia o
juiz no cumprimento de suas funções, deve ter conheci-
mento profundo da língua árabe, que é a língua do direito,
além de outros conhecimentos especificados.

8. Divisão do mundo muçulmano

O mundo muçulmano está dividido entre os Sunnitas


e os Chutas ou Imamitas: os primeiros reconhecem os cali-
fas, na ordem de sua sucessão histórica, enquanto que os
segundos somente admitem, como califas legítimos, o genro
e primo do Profeta, Ali, quarto califa, e seus descendentes.
A Sunna se divide e m quatro escolas ou ritos, assim
chamadas do nome de seus fundadores ou imann (beira
do templo, chefe ou guia) — 1.°) hanefita ou janefita,
por Abou Hanifa (702-772), que domina no antigo império
otomano, na Ásia Central, no Pakistão, e entre os muçul-
manos da índia; 2.°) malekita, por Malek (722-795), na
África do Norte francesa, 3.°) chafeita, por Mhafei (772-826),
na Insulíndia; e 4.°) hambalita, por Hambal (786-863), na
Arábia central e oriental e no Alfganistão.
Entre as seitas que os sunitas consideram heréticas,
estão os chutas ou xiitas, sectários de Ali, no Irã e nos
estabelecimentos franceses da índia; os náhabitas, na Ará-
bia saudita, que não admitem como fontes do direito apenas'
o Corão e a Sunnah, e os abaditas, ou harigitas, estreita-
mente ligados aos vahabitas, na costa da África Oriental,
no Zanzibar e e m parte da África do Norte francesa (MzaK
e Djerba).

9. Aplicação do direito muçulmano

Aos muçulmanos exclusivamente, nos países em que


dominem, se aplica o direito muçulmano; aos não muçul-
manos, o direito positivo, devendo eles pagar u m im-
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posto de capitação, e m sinal de submissão, ou dependência,,


não podendo ter propriedade, mas apenas posse, embora
hereditária e transmissível, e ocupando u m a posição diver-
sa no direito criminal, quanto à pena e ao testemunho.
Perde-se a qualidade de muçulmano pela apostasia, mas
readquire-se pela volta aos cultos muçulmanos. U m prazo
de três dias é concedido ao apóstata, para retratar-se. Fin-
do esse prazo, sem retratação, êle é morto, e seus bens passam
para o Tesouro Público, exceto se for escravo, e m cujo
caso pertencem a seu senhor.
O direito muçulmano admite a poligamia: o h o m e m
pode ter quatro mulheres legítimas, com certos direitos e
honras, além das concubinas, se êle não se comprometeu
a ficar monógamo, bígamo ou trígamo. Os homens são
constrangidos ao casamento por meio da prisão e da chibata,
quando impúberes. Sendo púberes e sãos de corpo e de es-
pírito, é mister o consentimento. A consumação do casa-
mento dos impúberes é diferida para a puberdade. É
proibido o casamento entre u m muçulmano e u m não m u -
çulmano, cessando a proibição, para as mulheres muçul-
manas, após a morte do marido, ou o divórcio. Os impe-
dimentos matrimoniais são: a) na linha reta, seja a
parentesco legítimo ou ilegítimo; b) entre os criados pela
m e s m a ama e esta, assim como entre seus ascendentes e
descendentes; c) entre sogra e genro, sogro e nora, madrasta
e genro, padrasto e nora, os quais prevalecem mesmo após
a morte ou o divórcio; d) na linha colateral, até o 3.a
grau; e) o fato de u m h o m e m ter quatro esposas, e o de
a mulher ter sido pejada por outro, que não o futuro ma-
rido.
Se o marido tem mais de u m a mulher, cada u m a tem
direito a u m a habitação separada.
O único regime de bens admitido é o da separação.
O casamento é nulo, se existe algum dos impedimentos
apontados. E é anulável se não foi livremente consentido,
se contraído com pessoa de condição inferior, se devia ser
autorizado, e não foi, se foram feitas estipulações contrá-
rias ao fim do casamento, etc.
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O casamento se dissolve pela morte, apostasia, repúdio-


(talak), pelo divórcio por mútuo consentimento, e por de-
cisão judicial.
A mulher não se pode divorciar senão com autoriza-
ção de seu marido, ou do juiz, ou ainda com u m resgate
aceito pelo marido.
O pai pode reconhecer o filho. Basta o reconhecimen-
to para se estabelecer a filiação, se ratificado pelo filho,
sendo êle capaz. 0 reconhecimento pode ser tácito, resul-
tando da conduta do pai para com o filho. A mulher pode
reconhecer u m filho, sem pai nem m ã e conhecidos.
O menor púbere pode dispor de sua pessoa, mas so-
mente aos 25 anos pode gerir seus bens, salvo sendo reco-
nhecido apto. A puberdade é presumida aos 15 anos, para
ambos os sexos, no rito hanefita; aos 18 anos, no malekita;
aos 15 anos para os homens e aos 9 anos para as mulheres,
no rito chiita.
O direito de sucessões é muito complicado, compreen-
dendo três categorias de herdeiros, cada u m a subdividida
e m ordens ou classes. O varão tem u m quinhão igual ao
de duas mulheres. Não ha o direito de representação. Não
se admite a sucessão contratual. Pode a pessoa dispor de
seus bens, por atos inter vivos, mesmo e m benefício de quem
pertença a religião diferente, salvo se por doação com o
fim de fraudar a proibição de legar a u m estrangeiro mais
do que a terça parte dos bens da herança. A vocação he-
reditária e estabelecida e m favor dos parentes, do cônjuge
sobrevivente, do senhor e m relação ao liberto, e, na ausência
de herdeiros, ao Tesouro Público (Beit ai hal). O direito de
u m herdeiro eventual pode ser reduzido ou suprimido pela
existência de outro herdeiro, mas não podem ser excluídos
completamente os pais, os filhos e o cônjuge. O testador
não pode modificar a ordem da sucessão, nem testar e m
favor de algum herdeiro que tiver no momento de sua mor-
te; e o legado, e m havendo herdeiros, não pode exceder a
terça parte da herança.
O direito das obrigações, amplamente desenvolvido
pelos jurisconsultos, não está no Corão. Recomenda-se que
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os contratos sejam por escrito e com testemunhas, eqüiva-


lendo o testemunho de duas mulheres ao de u m varão. O
casamento, o wafh (corresponde a u m a fundação), o tes-
tamento, figuram entre os contratos. É proibido o emprés-
timo a juros. É vedada qualquer cláusula que vise fraudar
a interdição da usura, do jogo, da especulação ou mesmo
própria a encorajar litígios, desvendar a fraude, a se obri-
gar levianamente, a assumir-se obrigação estranha ao con-
trato ou sem causa, ou que permita o não cumprimento da
obrigação. São ilícitas as estipulações que impõem u m a obri-
gação sem interesse para u m dos contratantes, como a de
não revender o animal, a de emancipar o escravo adqui-
rido ou executar u m a obrigação e m proveito de terceiro,
bem assim as que conferem vantagem, sem equivalente, as
que são estranhas à natureza do contrato no qual figuram
(Por ex., compra de fazenda, sob a condição de que o ven-
dedor fará u m manto, pois combina o contrato de locação
de serviços com o de venda; mas a venda da fechadura
pode ser subordinada à sua colocação pelo vendedor, por
isso que se trata de cláusula conforme à natureza do con-
trato) .
O Corão e o Sunnah reconhecem a plena propriedade
das terras mortas (aadia), que o trabalho faz voltarem à
vida: "Se alguém restituir à vida u m a terra, diz Mahomet,
ela lhe pertence"1.
H a os bens W a k o u f 2 — móveis ou imóveis, atribuíd*ós
gratuitamente, durante u m período determinado ou perpè-
tuamente, por u m ou mais muçulmanos maiores, a u m ou
mais muçulmanos maiores, a u m ou mais muçulmanos, ou
a família muçulmana e a seus descendentes, ou a u m a tribu
muçulmana, ou a u m a fundação pia do culto muçulmano,
ou a u m a obra qualquer de interesse geral para o culto
muçulmano. Esses bens são inalienáveis e os beneficiários

1. Terras mortas são as rurais, que não pertencem a particula-


res, nem ao conjunto dos súditos do soberano. Essas terras perten-
cem a Deus.
2. Singular, wakf. N a África do Norte são chamados habbous.
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mão tem senão o gôso, salvo cláusula contrária. Entre os


direitos reais figuram a superfície e o direito de retenção.
O penhor se aplica também aos imóveis (não têm a hipo-
teca, nem o privilégio do vendedor, que substituem pela
cláusula de retrovenda (não admitida no direito chiita).
A lei islamita não é exclusiva e m suas aplicações; ela
aceita todas as verdades. Assim, o direito natural e as leis
romanas, nada tendo de contráiro ao Corão, são aceitas.
Sendo os países muçulmanos muito diferentes quanto à
sua civilização e situação econômica, devem apresentar
variações costumeiras e jurisprudênciais, o que foi verifi-
cado por Morand e Melliot, nas coleções desses direitos,
que descobriram.

10. O método para o estudo do direito

Imami-Azam (Numan) foi o primeiro criador do mé-


todo para o estudo do direito muçulmano. Ele distingue
as ciências da revelação das nascidas da razão, represen-
tando estas os conhecimentos que por ela se adquirem,
independentemente àa revelação.
As ciências da revelação compreendem: a) Ciência da
linguagem, ou instrumentária, e b) as Ciências da legisla-
ção.
As ciências da legislação1 compreendem: 1) Ciência
das fontes: a) Ciência do Corão (Ciência da leitura do
Corão e Ciência dos comentários do Corão); b) Ciência da
conduta do Profeta; II) Ciências deduzidas das fontes: a)
Ciência das crenças e das convicções religiosas-Ciência da
unidade de Deus e Ciência dos atributos de Deus; b) Ci-
ências das legislações (fiqh): aa) teoria do direito; bb)
aplicações do direito.

1. Legislação, diz Imame-Azam, é o conhecimento pelo homem, de


seus direitos e deveres. Manifet é o conhecimento aprofundado, exato,
« que se obtém — segundo a escola dos jurisconsultos hanefitas —
çpelo estudo da ciência do direito.

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As aplicações do direito se referem às ações humanas:


a) tendo u m caráter religioso ou social (prece, jejum, con-
tribuição da esmola, guerra santa, direito de paz e de guer-
ra, peregrinação; b) tendo u m caráter privado: aa) rela-
tivas aos vivos (casamento, obrigações e contratos (direito
civil e comercial), penas (direito penal); bb) relativas aos
mortos (direito das sucessões); c) tendo u m caráter mixto
(o dízimo).
Imami-Azam introduziu, no ensino do direito, a filoso-
fia e a moral. A primeira (metafísica) ensina a conhecer
as relações entre o h o m e m e Deus e as entre o h o m e m e os
outros seres. A moral faz conhecer as relações regulares
e corretas que devem existir quer entre os que vivem e m
sociedade, quer entre o indivíduo e a sociedade: ela forma
a consciência do h o m e m e a do juiz e a fortifica, de forma
que u m a e outra se tornem capazes de distinguir a beleza
(legalidade) da feiúra (ilegalidade).

11. Importância do estudo do direito

O profeta, em vida, deu a mais alta importância ao


estudo do direito, estabelecendo disposições e m favor dos
que a êle se dedicam, dispensando-os de participar da
guerra santa (djehad) e procurando prestigiá-los no seio cta
sociedade, como se vê pelos dois hadis: "Deus, quando
quer favorecer u m dos seus escravos, o faz apreender o
direito" — (Palavra por palavra — "faz dele u m juriscon-
sulto (feqih); " U m jurisconsulto é mais forte contra
Satanás, do que mil ignorantes, e m ato de prece".

12. Fechada a porta da interpretação

No século X, naturalmente para evitar a formação de


novos ritos, foi fechada a porta da interpretação., Desde
então o direito muçulmano vem sendo ensinado de acordo
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com as obras escritas no século XIV. C o m o diz Seignette.2


"O islamismo voltou as costas ao futuro e a face ao passa-
do".
Espíritos cultos têm encarecido a necessidade de se per-
mitirem novos desenvolvimentos ao direito, com as cautelas
aconselháveis, lembrando que a interpretação já admitira
que, através da letra da lei, se procurasse o seu espírito,
bem assim reconhecendo princípios, como o da necessidade
e o do bem público.

13. Código nos países muçulmanos

Em alguns países muçulmanos, já se organizaram Có-


digos Civis gerais ou parciais: na Turquia e na Pérsia,
Código geral; na Albânia foi adotado, em 1927, o projeto
franco-italiano do Código único das Obrigações; no Líbano,
u m Código de Obrigações e Contratos, estabelecido em 1932,
por M. Josserand; e u m Código de Propriedade Imobiliária
(aplicável também à Síria), e m 1939, e u m Código de Co-
mércio, e m 1946; e m Marrocos, quanto ao Direito das Obri-
gações; no Egito, e m 1948, u m Código Civil novo, adotado
igualmente pela Síria.
O que interessa, porém, não é conhecer os Códigos, com
roupagens ocidentais, mas o direito muçulmano, que tem
caracteres originais como se viu, e que requer estudo, para
se poder comparar a orientação diversa seguida quanto ao
Direito, no mundo muçulmano.

1. N a introdução de sua tradução de Lidi Khalil.

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