Poéticas do Retrato
– o desgaste das figuras – 1
EUNICE RIBEIRO
(Universidade do Minho)
[…]
pode ser esta a medida do nosso oculto
estranhamento, o intervalo entre o rosto
e o outro espelho que não devolve a imagem
a nenhuma figura. […]
(VASCO GRAÇA MOURA, «O desgaste das imagens»
in A furiosa paixão pelo tangível, 1987)
0.
Introdução
No seu pioneiro dicionário de termos especializados de arquitectura, escultura e pintura, com primeira edição de 1676, André Félibien
recorta lexicograficamente o substantivo «retrato» numa perspectiva
de restrição etimológica ainda hoje aceite e aplicada: «Diz-se o retrato
de um homem, ou de uma mulher, mas não se diz o retrato de um
cavalo, de uma casa ou de uma árvore» 2. Compulsando equivalentes
actuais no glossário artístico, encontraremos propostas de definição
1 Lição apresentada no âmbito das Provas de Agregação no grupo disciplinar de
Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa do Instituto de Letras e Ciências
Humanas da Universidade do Minho (texto revisto e ampliado).
2 André Félibien, Des principes de l’Architecture, de la Sculpture, de la Peinture et des
autres arts qui en dépendent. Avec un dictionnaire des termes propres à chacun de ces arts,
apud Édouard Pommier, «Introdução – Retratar» in Concerto das Artes. Organização de
Kelly Basílio et al. Coordenação de Kelly Basílio. Porto, Campo das Letras, 2007, p. 169.
DIACRÍTICA, CIÊNCIAS DA LITERATURA, n.º 22/3 (2008), 265-322
266
DIACRÍTICA
claramente herdeiras da especialização seiscentista do termo, independentemente do seu maior laconismo ou, pelo contrário, da sua atenção
mais vincada a variantes e modos retratísticos:
Dois exemplos:
«Retrato – Representação identificável de uma figura humana» 3;
«Retrato – Obra pictórica, escultórica ou desenho que reproduz os
traços do sujeito representando-o de maneira simbólica (com alusão à
posição e ao nível social) ou fisionómica» 4.
A ideia geral de representação (tomada numa acepção mais reprodutiva do que produtiva), explícita em ambos os exemplos recentes
aqui aduzidos, constituiu desde longa data o pano de fundo conceptual
do gesto retratístico ratificado pela etimologia que o reconduz ao acto
de «traçar», «desenhar», «pintar», «copiar literalmente do natural». Este
entendimento da imagem como simulacro naturalista, sistematicamente declinado nos mitos sobre as origens do retrato legados pela
antiguidade egípcia e grega, ou por alguma poesia epigramática greco-latina, haveria de ser recuperado na Renascença, altura do grande
reflorescimento do retratismo na Holanda (com marcada influência
dos modelos veneto-italianos), ao nível quer da teoria erudita e do
corpus doutrinal humanista, quer do anedotário teórico quotidiano
dos non intendenti, fixando-se para o retrato, sobretudo a partir do
século XVII, a acepção generalizada de «figura cavata dal naturale».
A fazer-se fé nesta definição, excessivamente simples e evidente
para admitir qualquer tipo de debate ou controvérsia, como legitimamente observou Édouard Pommier, não haveria obviamente lugar
para uma teoria do retrato. Todavia, paralemente à convenção terminológica, eventualmente elaborada no sentido de dar do retrato uma
significação desejadamente acessível à maioria dos utilizadores, avoluma-se, em escritos privados, diarísticos, epistolares, um conjunto
significativo de interrogações e faltas de consenso acerca das funções,
dos valores, dos métodos de execução do retrato. Ressalta sobretudo
dessa discussão de bastidores, a hesitação nunca resolvida em entender-se o retrato ao serviço da identificação ou ao serviço da idealização,
como cópia virtuosa ou como produto de criação, como imitação ou
como memória, como forma ou como ideia.
3
Edward Lucie-Smith, Dicionário de termos de arte, Cículo de Leitores, 1990, p. 173.
A Grande História da Arte – Dicionário de termos artísticos e arquitectónicos,
Volume 18, Público, 2006, p. 357.
4
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
267
Pretendemos, nesta lição, colocar o retrato como problema, delineando um trajecto «negativo» ou «repudiativo» 5 na conceptualização
e na realização retratísticas (no sentido de uma resistência à descrição
e à formalização), trajecto todavia já embrionariamente latente desde
as mais antigas referências teóricas a que é possível termos acesso.
Vinculado à questão da representação do tema humano e central no
equacionamento das noções de identidade e de individualidade, o
retrato veio a ocupar um espaço de consensual «nobreza» na história
da arte ocidental, constituindo-se como género transversal e esteticamente expansivo, textualizável em diferentes linguagens e suportes
(da máscara primitiva ao digital e ao intermedial contemporâneo) e,
nesse sentido, um lugar privilegiado de interfacialização no domínio
da teorização estética e interartística. Tradicionalmente pensado sob
o paradigma das semelhanças e das fidelidades, subordinado a um
«código óptico» que organiza e restitui a referência como legibilidade
(i. e., como sentido verbalizável) por acomodação das formas a uma
ordem analógica, o retrato descola-se progressivamente deste modelo
duplicativo e devolutivo, no qual se sustenta a grande narrativa do
reconhecimento, em direcção a gramáticas alternativas de produção/
organização figural ou a hipóteses argumentavelmente contra-retratísticas de resistência à figura, cada vez mais distantes das imagens
unárias e da possibilidade de uma leitura teológica do corpo.
A problematização do «ilustrativo retratístico» colocar-se-á aqui a
dois tempos. Ora no sentido do retrato como «enigma», entendendo-o
como «procura» que toma lugar num limiar de vulnerabilidade entre
o representável e o irrepresentável, o visível e o oculto, o normal e o
monstruoso, a forma e o informe, implicando diferentes tipos/graus
de perturbação das formas de imitação ritualizadas. Mas também,
num segundo tempo, pensando a imagem retratística como fundamentalmente exterior à «pulsão» representativa 6: seja como «excesso»
5 Utilizamos o adjectivo «repudiativo» no mesmo sentido em que o empregou
D. H. Lawrence para se referir à paisagem de Cézanne e à crise de legibilidade da imagem
por ela instalada: «Uma paisagem não é isto nem isto nem isto nem…, etc. – e cada nem
é um pequeno espaço vazio na tela, definido pelos resíduos de uma asserção.» (apud
Manuel de Castro Caldas, A Figura e o Corpo – O regime da figura nos «monstros» de
Picasso, 1925-1932, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, p. 16.)
6 Neste sentido, desencontramo-nos, até certo ponto, da perspectiva fenomenológica de Helena Buescu que, no seu conhecido estudo sobre o descritivo, defende não
haver lugar a uma «estética da anti-representação» a partir do momento em que se
concorda sobre o carácter comunicativo de qualquer manifestação artística e em que
se entende a «representação» como uma hermenêutica, como interpretação ou produ-
268
DIACRÍTICA
de forma, pela via do exercício hiperrealista ou da performatividade
pura que processa a imagem como único corpo retratístico; seja como
«recusa» de forma, traduzida na erosão da figura e numa dimensão
preponderantemente conceptual do retrato 7.
Já em 1925, Ortega y Gassett ia dando mostras de uma mutação
essencial no estatuto do retrato, tradicionalmente entendido como
epítome da imagem legível, quando a propósito do Carlos V de Ticiano
formulava uma alternativa dupla de leitura: ou se «convive» com
Carlos V ou se «contempla» o quadro 8, entendidos retrato e retratado
como «dois objectos completamente diferentes»; quase 50 anos mais
tarde, Lotman coloca uma questão similar, agora nos termos da teoria
semiótica e em torno de retratos de Catarina II, insistindo na diferença
entre a mensagem identitária e a linguagem artística, a única que, à
época, «inquietava apenas as personagens iniciadas nos segredos da
arte» e que inquietaria no presente a generalidade dos observadores
do quadro, ignorantes do rosto vivo da imperatriz 9.
ção de sentido sobre o mundo (ou seja, um «modelo da realidade» consensual e perceptivamente construído), enfim, como «não-imitação»; nesta sequência, «a descrição
é sempre entendida como representação de um mundo de sentido» que, no contexto,
parece supor-se verbalizável (cf. Helena Carvalhão Buescu, Incidências do Olhar – Percepção e Representação, Lisboa, Caminho, 1990, p. 269; ver também 262 ss.). Ora, aquilo
que, a nosso ver, na arte moderna e no «retrato» moderno frequentemente se insinua é
justamente uma suspensão da «narrativa», do verbalizável, do lógico-discursivo, propondo-se alternativamente objectos «intensionais», «germinativos», «páticos», passíveis
apenas de induzirem «no espectador circulações e afectos, e não significações ou, menos
ainda, informações.» (Lyotard, a propoósito de Cézanne, apud Manuel de Castro Caldas,
op. cit., p. 17.)
7 No contexto do vocabulário artístico, entendemos aqui o termo «forma» no
sentido de entidade espacial/topológica autónoma, organizada, delimitada e objectivável
ou objectivada. No mesmo contexto, tomaremos «figura» quer em sentido restrito, referindo-nos à reprodução visual da forma corporal humana, tal como ocorre na nomenclatura designativa do género plástico «pintura de figura»; quer em sentido lato, como
sinónimo de forma objectivada, de Gestalt.
8 Cf. José Ortega e Gassett, A desumanização da arte, São Paulo, Cortez, 1991: «Para
poder deleitar-se com o retrato eqüestre de Carlos V, de Tiziano, é condição ineludível
que não vejamos ali Carlos V em pessoa, autêntico e vivo, mas sim em seu lugar devemos ver apenas um retrato, uma imagem irreal, uma ficção. O retratado e seu retrato
são dois objectos completamente diferentes: ou nos interessamos por um ou por outro.
No primeiro caso, “convivemos” com Carlos V; no segundo, “contemplamos” um objecto
artístico como tal» (pp. 27-28).
9 Cf. Iuri Lotman, A estrutura do texto artístico, Lisboa, Editorial Estampa, 1978:
«Imaginemos dois retratos de Catarina II: o retrato da parada de Levitski e o vulgar
pintado por Borovikovski, representando a imperatriz no parque de Tsarskoie’Sélo. Para
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
269
Mas se considerarmos o retrato unicamente como facto artístico,
isolando-o radicalmente de um código de correspondência histórico-narrativa, o que o distingue de uma qualquer tematização de figura?
Ou mesmo de uma qualquer forma objectivada que acordemos como
«estética»?
A questão central resume-se a saber se o retrato pode subsistir
como tal não só fora do modelo analógico e do regime do reconhecimento, ainda que residual, de um particular humanizável/identitário,
mas ainda, como atrás sugeríamos, fora da «figura». Em que medida o
retrato como género não tende para uma ficção categorial?
1.
As virtudes da sombra (origens)
Iniciemos por uma brevíssima rememoração mitogenética: a morte
está no princípio do retrato. Evoquemos ainda a narrativa canónica
sobre as origens do retrato, a fixada por Plínio, o Velho, em vários
momentos da sua História Natural (cf. caps. XXXV, XV e CLI), onde
anota a suposta concordância entre diferentes tradições antigas, no
sentido de reconduzirem o primeiro gesto pictórico ao acto de contornar com um traço a sombra humana projectada numa parede
(circumductio umbrae) (fig. 1). A história vem a admitir desenvolvimentos diversos à medida também da sua repercussão epocal e cultural:
retomando Plínio, autores antigos como Cícero, Quintiliano ou
Plutarco, tratadistas do Renascimento (Alberti, da Vinci, Vasari),
teorizadores e poetas de Seiscentos (como Félibien e Charles Perrault,
no conhecido poema La Peinture) vão repetindo, em versão curta ou
ornamentada, sentimental ou trágica o mito fundacional. Interessa-nos
aqui particularmente insistir no argumento motivador do retrato que
comparece com alguma recorrência em várias dessas versões: o desejo
de uma jovem rapariga em conservar a presença do rapaz por quem
se apaixonara e que deveria partir; presença enfaticamente materializada através da máscara que o pai, oleiro, modela em argila a partir do
contorno traçado pela filha na parede.
os cortesãos da época, a semelhança do retrato com os traços da imperatriz que eles
conheciam bem era perfeitamente essencial. O facto dos dois retratos representarem
uma única e mesma personagem constituía para eles a mensagem fundamental; a
diferença no tratamento, a especificidade da linguagem artística inquietava apenas as
personagens iniciadas nos segredos da arte. Nós perdemos para sempre o interesse que
representavam esses retratos aos olhos das pessoas que viam Catarina II; em contrapartida, colocamos em primeiro plano a diferença de tratamento artístico» (p. 52).
270
DIACRÍTICA
1. David Allen, As Origens da Pintura (1775)
O retrato, assim «explicado» por uma exigência afectiva e memorial, faz-se pelo desenho de um perfil que é o recorte «ao vivo» de uma
sombra, de uma ausência, de um vazio corporal, reconstruindo-lhe
uma segunda presença, eventualmente volumetrizada (tornada mais
real) pela tridimensionalidade escultórica da máscara (um rosto
defunto).
Este é o incipit ficcional de uma sucessão cumulativa de equívocos e de paradoxos que pautam também a história real do retrato,
desde logo apontando para uma ambiguidade consubstancial à natureza retratística: uma certa ontologia híbrida entre corporalidade,
espectralidade, textualidade, compondo provavelmente o seu noema.
2.
A presença e os retratos vivos
Reflectindo sobre a mitologia original do retrato, José Gil observa-a marcada pela «dupla representação» 10: para obter a mais perfeita
10 José Gil, «A Arte do Retrato», in «Sem Título» – Escritos sobre Arte e Artistas,
Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2005, p. 18.
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
271
semelhança, o retrato parte, curiosamente, não do modelo, mas da
sua sombra imprecisa. É possível, aliás, que nesta história de simulacros se possa ler, em certo registo metafórico, algum platonismo
teorético recuperado da sua percentagem de ferocidade iconófoba; ou
talvez também a pudéssemos ler «para diante», como uma espécie
de antecipação profético-poética do modelo barthesiano da pintura
como pastiche. Gil concentra-se todavia nas virtudes da sombra: como
propedêutica do desenho e como antecipação e superação da morte.
A sombra como não-figura ou quase evanescência que o contorno
retratístico cerca e delimita (pelas qualidades hápticas do traço),
transforma-se na imagem prolongada do modelo: imagem fixa (fora
do tempo),«viva»; imagem semelhante e individuadora, capaz de adicionar à presença imediatamente visível a certeza invisível dos afectos.
Neste aspecto, aliás, uma das modalidades mais recentes do
retrato recupera parcialmente o modelo e o relato genéticos: a fotografia. É possível, como sugere Pedro Miguel Frade num seu extraordinário ensaio, que a questão dos credos fotográficos (porque se acredita nas fotografias? como se acredita nas fotografias?) se encontre de
algum modo associada a uma «lógica da relíquia» que tem por base
o conhecimento da génese mecânica da imagem. O regime de «proximidade dos longínquos» instalado pela fotografia decorre em grande
parte de um certo grau de consciência de uma relação de efectiva
contiguidade/causalidade envolvida na produção da efígie fotográfica,
pelo facto
[…] de que é a própria luz reflectida pelo fotografado que é retida e
fixada nas imagens […] 11
Num processo idêntico ao que descreve David Hume a propósito
das relíquias dos santos 12, o retrato fotográfico passa a ser alvo de uma
11 Pedro Miguel Frade, Figuras do Espanto – A fotografia antes da sua cultura, Porto,
Asa, 1992, p. 76.
12 Cf. David Hume, Ensaio sobre o Entendimento Humano, Secção V, II Parte:
«Ninguém deve duvidar que a causalidade tem influência idêntica às relações de semelhança e de contigüidade. Os supersticiosos afeitos às relíquias dos santos e de personagens sagradas procuram, por esta razão, símbolos ou imagens que possam avivar
sua devoção e fornecer-lhes concepção mais íntima e mais forte das vidas exemplares
que visam a imitar. Ora, é evidente que uma das melhores relíquias procuradas por
um devoto seria um objeto feito pelo próprio santo; e se se consideram suas roupas e
móveis sob este prisma, é porque estiveram uma vez à disposição do santo que os tocou
272
DIACRÍTICA
santificação que o entende como resíduo material (presente) de um
corpo ausente (passado). Num certo sentido, Roland Barthes também
aqui vem ter. Mesmo se localiza na fotografia o lugar antropológico da
morte na sociedade moderna (a morte «literal», «assimbólica», «fora da
religião»), Barthes não deixa, ainda assim, de conceber religiosamente
a fotografia quando a encara, com espanto (metafísico), como «certificado de presença» de um tempo pretérito tornado real (o «poder de
autentificação» fotográfico sobrepõe-se, na leitura barthesiana ao seu
«poder de representação») – donde a identificação de uma essência
distintiva da fotografia com o Isto-foi, com o Real Passado:
A Fotografia não rememora o passado (não há nada de proustiano
numa foto). O efeito que ela produz em mim não é o de restituir aquilo
que é abolido (pelo tempo, pela distância), mas o de confirmar que
aquilo que vejo existiu realmente. Trata-se, portanto, de um efeito
verdadeiramente escandaloso. A fotografia espanta-me sempre, com um
espanto que perdura e se renova inesgotavelmente. Talvez esse espanto,
essa teimosia, mergulhe na substância religiosa a que estou afeiçoado.
Nada a fazer. A Fotografia tem algo a ver com a ressurreição […] 13.
Esta metafísica da «presença», mesmo se diminuída da legitimação metonímica, da contiguidade real, assumirá também particular centralidade, transposta para os termos de uma poética operativa,
no domínio da pintura retratística de Seiscentos, italiana e flamenga,
muito incrementada pela tópica ecfrástica antiga, de origem retórica,
promotora dos lugares comuns do «retrato vivo» ou do «retrato que
fala»: cite-se o caso emblemático de van Dyck, consensualmente tido
como principal responsável pela invenção das fórmulas canónicas do
retrato moderno; o seu Retrato de Virginio Cesarini, actualmente no
Hermitage; tantos outros retratos do Barroco como o Retrato de Monsignor Giovanni Battista Agucchi de Domenichino; ou o Auto-retrato de
Simon Vouet; ou, no domínio escultórico, o busto do Cardeal Scipione
Borghese de Bernini (figs. 2 a 5) levam a um extraordinário grau de
apuro técnico-formal o novo modelo do retrato de «afetto et azione»
e a voga das «ressemblances parlantes», insistindo na captura visual
de efeitos e gestos transitórios. Carl Dryer, no filme A Paixão de Joana
e, portanto, os influenciou.» (Tradução: Anoar Aiex. Créditos da digitalização: Membros
do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia). Homepage do grupo: http://br.egroups.com/
group/acropolis/)
13 Roland Barthes, A câmara clara – Nota sobre a fotografia (1.ª ed. 1980), Lisboa,
Edições 70, 2006, pp. 92-93; cf. ainda pp. ss.
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
273
d’Arc, de 1928, consegue uma aplicação notável deste modelo ao retrato
cinematográfico, como se seguisse à letra a tratadística seiscentista
das paixões, de conhecida rentabilidade na pintura erótico-religiosa
do Barroco, para a construção do diagrama facial da mártir visio-
2. Anton Van Dyck, Retrato de Virginio Cesarini
(c. 1622-23)
3. Domenichino, Retrato de Monsignor
Giovanni Battista Agucchi (c. 1615-20)
4. Simon Vouet, Auto-retrato (c. 1615)
5. Gian Lorenzo Bernini,
Busto do Cardeal Scipione Borghese (1632)
274
DIACRÍTICA
nária: close-ups dramáticos, verticalização da iconografia teofânica em
sucessivas perspectivas «de baixo para cima», gramática corporal do
assombro e do êxtase místicos nos gestos codificados da boca entreaberta, dos olhos cerrados, das mãos postas (figs. 6 e 7).
6/7. Carl Dryer, A Paixão de Joana d’Arc (1928)
A subordinação do visual ao invisível que a representação barroca
das paixões fomentou a par das «desarmantes» conclusões das novas
ciências ópticas, que apontavam para a natureza mediata e construída
do conhecimento visual, farão derivar o retrato no sentido da recriação
de almas e interiores humanos, inscrevendo-o num regime de espelhamentos psicológicos e afectivos entre o artista e o modelo, Pai e Filho,
de evidente substrato religioso.
O tópico do «divino pintor», fazedor de mundos e de criaturas – no qual
Albrecht Dürer aparentemente se travestira no seu auto-retrato de 1500 (fig. 8)
– comparece neste contexto com clara
evidência: trata-se afinal de substituir
a obra de arte pela própria vida, de ressuscitar na carne viva da tela modelos
ausentes, segundo uma espantosa equação de naturalismo e prestidigitação.
Se falasse deveras, o retrato negar-se-ia
como tal: a ilusão da semelhança, critério do «retrato vivo», balança-se nesse
corredor estreitíssimo (a observação é
de J. Gil) entre a mudez da imagem e a
8. Albrecht Dürer, Auto-retrato
irrupção iminente da palavra.
(1500)
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
275
[…] se falasse, o retrato deixaria de ser uma representação para se transformar numa pessoa viva e, como tal, corruptível e mortal. Perderia
assim o seu poder de sobrevivência. Não é pois da fala que carece; pelo
contrário, de não falar lhe advém a virtude de ser «vivo», quer dizer,
semelhante e fiel ao original 14.
A preocupação de imortalidade não é de ordem estritamente
metafísica, mas também, como aponta o mesmo ensaísta, de ordem
estética: no fundo, trata-se de construir esteticamente uma presença
eterna, a da verdade de um rosto absolutamente coincidente com a
verdade do retrato. Não uma representação ou uma reprodução duradoura, mas uma re-criação (num sentido muito idêntico ao que encontramos na estatuária funerária egípcia e nos retratos de Faium em
particular (figs 9 e 10), interpretados como prolongamentos efectivos
do sujeito defunto e suportes imperecíveis do seu elemento vital. É nisto
sobretudo que «a estética do retrato implica uma metafísica» 15.
9/10. Retratos de Faium (séculos II-III d.C.)
O recorte das identidades
3.
Voltemos atrás. Na lenda narrada por Plínio, a linha do contorno
marca a topografia de uma falácia, provavelmente a mais persistente
no que toca o paradigma epistemológico da representação e da arte
14
15
José Gil, «A Arte do Retrato», p. 21.
Ibid., p. 22.
276
DIACRÍTICA
figurativa em geral: a da suposta transparência da apropriação do real.
O retrato assume de forma emblemática o paradoxo representativo
mais básico: o que põe em jogo referência e autonomia, a relação com
o objecto e o sistema dos sinais estéticos.
Tomemos o caso do perfil: parcialmente «naturalizado» pelo mito,
o perfil canonizou-se como forma de uma intenção identificadora (pen-
11 a 14. J. C. Lavater, Ensaios de Fisiognomonia (1789-92)
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
277
samos em Baxandall 16), cumprindo funções de registo fisionómico.
Nos seus Ensaios de Fisiognomonia (1789-92), J. C. Lavater encontraria justamente no perfil e no uso da silhueta (figs. 11 a 14) a imobilidade necessária à aplicação da sua hermenêutica dos temperamentos,
fundada numa especializada, quanto idealizada, aritmética da semelhança. Analogamente, não é coincidência o facto de a antiga arte
medalhística, cuja influência nos pintores do Renascimento foi decisiva, ter privilegiado desde sempre o retrato de perfil, «compensando»
o déficit de expressão com a garantia documental e a «soberania» do
recorte 17. Os grandes medalhistas da Renascença (como Pisanello,
Matteo de’Pasti ou Leone Leoni) optarão curiosamente por uma estratégia mista, um código duplo de identificação: civil (reservada aos
anversos das medalhas onde aos perfis dos retratados se acrescentava
a inscrição do nome/título); psicológica e moral (destinada aos reversos que incluiam com frequência motivos heráldicos e alegóricos com
directa remissão à personalidade dos modelos), respondendo-se assim
à necessidade humanística de perpetuar a memória de figuras exemplares (figs. 15 a 18).
15/16. Antonio Pisano (Pisanello), Medalha
16 Michael Baxandall, Padrões de Intenção: a Explicação Histórica dos Quadros,
Companhia das Letras, 2006 [1.ª ed. 1985].
17 Sobre o perfil, observa Jean-François Lhote «que não permite a expressão, mas
imprime um toque de eternidade ao personagem». (Cf. «Acerca das origens do retrato
moderno», in A Arte do Retrato – Quotidiano e Circunstância (Catálogo da Exposição:
Outubro de 1999 a Janeiro de 2000), Fundação Calouste Gulbenkian/Museu Calouste
Gulbenkian, 1999, p. 35.)
278
DIACRÍTICA
17/18. Matteo De’ Pasti, Medalha
No XXXVIII capítulo de Nome de Guerra, Almada Negreiros
coloca ficcionalmente o que poderia ser uma ilustração modelar da
reflexão que também Meyer Schapiro 18 dedicará à polaridade simbólica do perfil e do frontal, com a particularidade de a concentrar na
mesma figura, anatomicamente inverosímil, de Judite: «um achado
raríssimo de cor e de forma». O perfil é aqui mais uma vez o desenho de
uma identidade genealógica, rácica, e não a expressão de uma interioridade ou de uma «alma»; Judite, a cabeça de Judite (possível quiasmo
bíblico-simbólico?) é quase uma alegoria teorética que permite opor
duas concepções de retrato: como forma correcta e idealizada (o perfil)
e como «verdade» fisiognomónica monstruosa (o frontal); a segunda
convertível na primeira sob a condição necessária da mutilação, i.e.,
da metamorfose da natureza em cultura:
[…] O perfil, desde o fim da testa, com a boca fechada, até ao busto,
era formidável de inteireza e de carácter meridional, peninsular, português. Bastante viril e, sem por isso, ser masculino. Parecido com os dos
pajens do século XV.
A diferença entre o perfil e a frente era esmagadora. Ela tinha
escarrada num focinho animal a triste vida que levava. A fisionomia era
canalha e grosseira, e o seu perfil, nobre e puro, não cabia ali.
Se a Judite fosse uma estátua, podia ser aproveitada como exemplo de beleza, depois de sofrer algumas mutilações.
18 Meyer Schapiro, «Frente e perfil enquanto formas simbólicas», in BASÍLIO, Kelly
et al. (org.), Concerto das Artes. Coord. Kelly Basílio. Porto, Campo das Letras, 2007, p. 85.
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
279
O acesso ao retrato e as declinações da auctoritas
4.
O acesso à representação retratística gera dois imediatos efeitos
colaterais: inscreve a imagem no domínio público e oferece-a à memória colectiva. À função identificadora, o retrato adiciona o seu poder
de evocação e de exemplo: o retrato, observa Pommier, «não é apenas
a pessoa, mas também […] uma vida a imitar» 19. Simultaneamente
objecto e efeito do retrato, a autoridade produz-se como acréscimo que
reflui, em última instância, sobre o estatuto do próprio género retratístico: ao mesmo tempo que celebra, o retrato investe numa continuidade – não só na dos seus modelos e correlativamente nos valores
culturais, políticos ou morais de que são portadores, mas igualmente
na sua própria continuidade genológica e funcional (pense-se na
remota tradição das colecções e das exibições públicas de retratos
que, ao mesmo tempo que delimitam espaços votivos e cultuais, autoafirmam-se esteticamente como «necessidade» 20). O retrato é sempre
celebração e auto-celebração: o que nos conduziria a pensá-lo como
género potencialmente germinativo.
Historicamente, o desempenho da exemplaridade retratística foi
– sobretudo até ao século XVIII, altura em que novas elites disputam
a cena social – reservada a públicos restritos que preenchiam papéis
simbólicos centrais na estrutura cultural e sócio-política: figuras de
corte, do clero e da aristocracia, de onde provinha grande parte das
encomendas, ocupam o essencial do espaço representativo do retrato
que, ao mesmo tempo que reflecte a ordem social e o arranjo dominante, estipula os «moldes» nos quais se devem enformar as identidades
19
Édouard Pommier, in Concerto das Artes, p. 178.
A tendência para a colecção e para a exibição cumulativa de retratos (comum
durante os séculos XVI e XVII através de inúmeras biografias ilustradas de artistas:
como as de Vasari, Bellori ou a celebrada Iconografia de Van Dyck, de 1645; recorde-se
ainda, já no século XIX, o monumental projecto retratístico da Hall of Fame concebido
por George Frederic Watts e absorvido mais tarde pela National Portrait Gallery de
Londres) admitiria duas leituras complementares: por um lado, o imperativo de fabricar
e de delimitar um espaço, que é sempre, ainda que em sentidos distintos, um espaço
enfático de autoridade (cf. caso típico do «salão nobre»); por outro lado, a de induzir
ao prolongamento da própria série retratística como estratégia de auto-afirmação regulada por um princípio teológico de multiplicação de imagens semelhantes – se quiséssemos regressar por outras vias à metafísica do retrato; uma auto-afirmação tão urgente
quanto se sabe do relativo desprestígio do retrato em termos das hierarquias oficiais
dos géneros pictóricos adoptadas pela Academia de Paris, ainda no século XVII, com o
argumento do seu excesso de naturalismo imitativo.
20
280
DIACRÍTICA
individuais. Com raras excepções (recorde-se a tradição documentarista inglesa do retrato d’Os criados da casa no exemplo de Hogarth
– fig. 19; ou casos mais isolados como A chávena de chocolate – fig. 20,
de Jean Étienne Liotard ou A bela leiteira de Vermeer – fig. 21), que
insistem significativamente na categorização profissional), as classes
populares são reservadas ao anonimato da pintura de género onde a
singularidade do modelo se dilui num ambiente: «humildes presenças» cujo grau de «inexistência» o retrato demonstra na proporção da
sua atipicidade relativamente aos padrões identitários reconhecidos.
É significativo como a mendicidade ou a marginalidade suscitam
mais recorrentemente o retrato de uma condição colectiva do que
o retrato de uma identidade individual: nos Britadores de Pedra de
Courbet (fig. 22), o «povo» é ainda o interdito de uma facies (própria,
singular); muitos dos recentes trabalhos fotográficos de Joan Guerrero 21
sobre os pobres da América Latina (fig. 23), na linha do que fizera já
Tina Modotti, em finais da década de 20, fotografando as populações
do México rural (figs. 24 e 25), são retratos cuja eloquência, ideológica
e ética, se concentra na presentação selectiva e truncada do corpo: as
mãos ou os pés (os lugares corporais da crucificação), em substituição
das figuras faciais, narram-nos a privação: de uma narrativa/de uma
presença individuais.
Apesar da oligarquia retratística preconizada por Francisco de
Holanda no seu tratado de 1549, com aplicação simétrica a modelos
e a pintores («ser pouco» para «ser muito», segundo a fórmula holandina da perfeição) 22, os rostos do poder são, ainda assim, proliferantes.
O que acarreta uma desindividuação paralela, que agora se produz por
excesso, por redundância. Apesar de critérios a favor de uma escrupulosa fidelidade aos modelos acentuando a eficácia da ilusão e o valor
21 Cf. Pedro Casaldáliga e Joan Guerrero, Los ojos de los pobres, Barcelona, Ediciones
Península, 2005.
22 Cf. Francisco de Holanda, Do Tirar Polo Natural, Livros Horizonte, 1984. No primeiro capítulo do seu tratado, «Como poucos podem fazer perfeição», lêem-se, ditas
pela voz de Fernando que o autor assume, declarações como estas: «O primeiro preceito
que eu no tirar ao natural poria, é que o pintor excelente (se lhe quereis chamar pintor)
que pinte muito poucas pessoas, e estas muito singularmente escolhidas, pondo mais
a perfeição e o cuidado no primor da pouca obra, que no número da muita.» E mais
adiante: «Torno a dizer que o grande ofício de imitar ao sumo Deus nas suas obras, e o
mandar à memória um príncipe ou pessoa digna de merecimento (que estes sós são os
que merecem ser ao natural terladados, e mostrados polo mundo), se não deve de fiar
senão de um eminente e singular desenhador» (p. 14).
281
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
19. William Hogarth, Os criados (1750-55)
20. J. E. Liotard, A rapariga do chocolate
(1745)
21. J. Vermeer, A leiteira (1657-58)
282
DIACRÍTICA
22. Gustave Courbet, Os britadores (1847)
23. Joan Guerrero, Fotografia (2005)
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
283
24/25. Tina Modotti, Fotografias (c.1927-28)
do exemplo, os retratos de Estado, os aparatos, os equestres tendem
genericamente a adoptar tipologias representativas estereotipadas,
com repertórios e fórmulas fixas de composição (os cenários, as poses,
o guarda-roupa, as escalas, os formatos), participando na configuração do establishment e sustentando, reversamente, a sua própria
legibilidade 23.
A mesma retórica das opulências, a mesma vocação teatral, o
mesmo sentido do espectáculo detectam-se, sem notórias variações, em
qualquer figuração corpórea do político. Pensem-se nos retratos de aparato de pintores régios como Velásquez (retrato de Filipe IV de Espanha
– fig. 26) ou Van Dyck (retrato de Carlos I de Inglaterra – fig. 27); no
retrato monumental de Luís XIV por Hyacinthe Rigaud (fig. 28) ou de
Napoleão por Ingres (curiosamente, o padão iconográfico repetindo-se
no essencial na tela dedicada a Zeus, pelo mesmo pintor – figs. 29 e 30).
A legitimação pela história explica também aqui a frequente
idealização da figura por conformidade a modelos antigos, ainda que
às custas de assintonias e aberrações contextuais. Uma das leituras
recentes e provavelmente mais perversas da prática vulgarizada do
23 Como observa Bruno Marques (Mulheres do Século XVIII – Os Retratos, Lisboa,
Ela por Ela, 2006, p. 13): «[…] é também o medo de uma sociedade ilegível que explica
por que o retrato aparece na maior parte das vezes tão confinado a certos esquemas
e fórmulas.»
284
DIACRÍTICA
26. Diego Velásquez, Filipe IV
de Espanha (c. 1631-32)
29. Ingres, Napoleão I
no Trono Imperial (1806)
27. Anton Van Dyck,
Retrato de Carlos I (1636)
28. Hyacinthe Rigaud,
Retrato de Luís XIV (1701)
30. Ingres, Jupiter e Tétis (1811)
retrato à antiga foi posta em prática pelo eugenismo político do nacional socialismo no intuito de definir e difundir formatos corporais de
suposta «pureza» estética, obedientes ao cânone do «corpo grego» que
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
285
a ideologia germanófila de Nietzsche e o triunfal documentário de
Riefenstahl contribuiram a sacralizar 24 (fig. 31).
Na mesma linha da fixação tipológica, refira-se o gosto pelo retrato
mitológico, muito em voga no rococó francês, assumível como a versão
galante da citação clássica, talhada à medida da mundanidade narcísica de Versalhes: são conhecidos os múltiplos travestimentos retratísticos assinados por Jean-Marc Nattier
(Le Duc de Chaulnes, como Hércules
fig. 32; Madame de Pompadour como
Diana – fig. 33); o próprio Rembrandt
já experimentara este modelo ao retratar como Flora a esposa Saskia (fig. 34),
assim como Rubens o fizera no retrato
da sua jovem esposa Helène Fourment
como Afrodite (fig. 35).
Assinale-se também aqui a sintomática rentabilidade deste processo na
fotografia contemporânea, recontextualizado por poéticas recentes de teatralização e de re-engendramento do
corpo que se desenvolvem em torno da
máscara, da mutação, do híbrido. Na
continuidade das subversões (auto)retratísticas duchampianas centradas
no jogo paródico dos papéis identitá- 31. Leni Riefensthal, Olympia (1936)
rios, Cyndy Sherman (fig. 36) é um dos
nomes carismáticos da cultura visual pósmoderna cuja metalinguagem corporal explora criticamente as fronteiras entre identidade (individual) e estereotipia (cultural, étnica, sexual). O género e o étnico
constituem categorias identicamente centrais na produção retratística
do fotógrafo japonês Yasumasa Morimura (figs. 37 a 39): através de
um recenseamento apropriacionista e irónico da mitologia artística
e cinematográfica aplicada a sucessivos desdobramentos auto-retratísticos, formula-se aparentemente a hipótese de uma identidade
pública, transcultural e desterritorializada, conforme à lógica globalizadora, intermediática e glamourosamente consumível das sociedades
contemporâneas. Torna-se aliás discutível, nesta sequência, entender
24 Cf. Simon Goldhill, «O corpo perfeito», in Amor, Sexo e Tragédia – A contemporaneidade do classicismo, Lisboa, Alêtheia Editores, 2006, pp. 17-37.
286
32. Jean-Marc Nattier, O Duque de Chaulnes
como Hércules (1746)
34. Rembrandt, Saskia como Flora (1634)
DIACRÍTICA
33. Jean-Marc Nattier, Madame de Pompadour
como Diana (1752)
35. Peter Paul Rubens,
A pequena pele (Retrato de
Hélène Fourment) (c.1638)
287
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
36. Cindy Sherman, Terrina Limoges (1990)
37. Yasumasa Morimura,
Retrato (Futago) (1988-1990)
38. Y. Morimura,
Auto-Retrato como Marlene Dietrich (1996)
39. Y. Morimura,
Auto-Retrato como Audrey Hepburn (1996)
288
DIACRÍTICA
a produção fotográfica de Morimura dentro dos parâmetros/funções
tradicionais do retrato 25.
Sensivelmente até à ruptura impressionista da segunda metade
do século XIX, o retrato pensou-se sistematicamente a partir de esquemas tipológicos fixos, conformes a uma mesma lógica de repetição de
formatos representativos: situamo-nos, no geral, face a formas institucionalizadas, obedientes a arquétipos figurativos e a imagens mentais
razoavelmente mineralizadas.
5.
Mirabilia e monstruosidade: a loucura da carne
Um importante reforço desta redundância legível a que até aqui
fizemos referência é endossada às figurações monstruosas que interrogam uma certa ideia de humanidade do homem: uma espécie de
escândalos racionais e teológicos que pioneiramente Geoffroy de
Saint-Hilaire teorizou nos termos científicos de «leis da aberração» e
que a filosofia cristã, através de figuras como a de Santo Agostinho, se
esforçara já por absorver enquanto mirabilia, maravilhas incompreensíveis da Criação.
Importa entender o sentido da negatividade dos monstros: «Os
monstros […] existem não para nos mostrar o que não somos, mas o
que poderíamos ser» 26. É porque se situa no limite (interno) do domínio humano, e não fora dele, que o monstro se torna fundamental
na definição da norma da figura humana. Acrescenta Gil: «não é na
simples oposição que o homem se define em relação aos monstros,
mas num sistema complexo de afinidades com figuras (sobretudo a da
divindade e a do animal) que mantêm distâncias estruturais estáveis
com a situação que ele ocupa» 27. A afinidade figural permite, por outro
lado, a manutenção de um «relato» sobre a monstruosidade e a existência de um vocabulário partilhado; ao aprovarem apenas as imagens
susceptíveis de explicação, os teólogos medievais zelavam pela preservação dessa distância estável entre figuras sem a qual nos expúnhamos
ao «desregramento da cultura»: a ideia de um «avesso do mundo» na
Cidade de Deus agostiniana, que implicaria a de uma outra origem
25 A este propósito, veja-se Shearer West, Portraiture, Oxford University Press, 2004,
pp. 210-212.
26 José Gil, Monstros. Trad. de José Luís Luna. Lisboa, Relógio d’Água Editores,
2006, p. 12.
27 Ibid., p. 14.
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
289
dos homens, é frontalmente recusada. As várias propostas de sistematização da morfologia monstruosa 28 inscrevem-se neste pressuposto
de uma «alteridade fixa» de que é possível falar. O monstro, entendido
como «loucura da carne» é um quase-conceito 29 que nos permite conceber a humanidade como racional.
Frequentemente associado ao espaço da corte – como se se tratasse aqui de definir figurações limítrofes, nos extremos opostos do
representável – o anão, integrado numa colecção de curiosidades
ou prodígios que constituíam o séquito de entretenimento das casas
reais, é um dos alvos recorrentes de atenção retratística. Arrigo peloso,
Pietro matto e Amon nano, de Agostino Carraci (fig. 40), pintado para
o Cardeal Odoardo Farnese, oferece-nos uma acumulação caricatural
de figuras exóticas, justapondo humanidade e animalidade. Entre o
anão e o bufão, figuras simetricamente descentradas, figura o homempeludo Arrigo Gonzalus, um dos filhos da «extraordinária» família
Gonsal(v)us, já antes prolificamente retratada e com lugar na divulgada História dos Monstros (1642) de Aldrovandi 30.
40. Agostino Carraci, Arrigo peloso, Pietro matto e Amon nano (1590-1599)
28
Confrontem-se tipologias do século XVI como a de Lychostenes Prodigiorum ac
ostentorum chronicon, 1557; ou ensaios modernos: Gilbert Lascauult, Le monstre dans
l’art occidental, 1973; Claude Kappler, Monstres, Démons et Merveilles, 1980.
29 Cf. José Gil, Monstros, p. 19.
30 Alberto Manguel traça o itinerário retratístico dos Gonsalvus desde as pinturas
anónimas do castelo de Ambras, perto de Innsbruck, que inspiraram os desenhos de
Joris Hoennagel para Animalia Rationalia et insecta [Ignis],em 1582 - Munique, passando
pelas ilustrações do Bestiário do Imperador Rodolfo II executadas pelo pintor de corte
Dirk de Quade Van Ravestyn, cerca de 1580, até à famosa recolha do cientista bolonhês
Ulyssis Aldrovandi Monstrorum historia, publicada postumamente em 1642. Natural das
290
DIACRÍTICA
Na canónica tela de Velásquez, Las Meninas (fig. 41), a anã, em
plano dianteiro, inverte a perspectiva e descentra a ordem representativa da composição: é excessiva relativamente ao casal real miniaturizado no espelho; contrasta, nas suas proporções anómalas, com as
restantes figuras que a rodeiam. Em certo sentido, aqui já tendencialmente moderno, o anão é mais do que a ilustração negativa da ética
iconográfica da humanidade, mas cumpre, no quadro, uma função
(estético)programática: constitui em si a alegoria da representação
como monstruosidade, aquilo que a descontextualiza e denuncia o seu
jogo de manipulações 31.
41. Diego Velásquez, Las Meninas (1656)
42. Marianna Gartner, Família Leopardo (1994)
A leitura diferencial da auctoritas retratística na contemporaneidade tem assimilado este sentido da denúncia em termos simultaneamente estéticos e político-culturais. Em 1994, a artista canadense
Marianna Gartner apresenta, numa série que explora os temas circenses intitulada Mitos e imagens, um invulgar grande formato da Família
Leopardo (fig. 42). Realizado a partir de uma fotografia de arquivo de
ilhas Canárias, Petrus Gonsalvus padecia de uma doença de pele rara (hypertrichosis
universalis congenita) que provocava o crescimento de pêlos em todo o corpo; apesar de
a sua esposa holandesa ser neste aspecto saudável, todos os seus quatro filhos herdaram
a mesma patologia. Cf. Leer imágenes – una historia privada del arte. Trad. por Carlos
José Restrepo. Madrid, Alianza Editorial, 2003, pp. 113-147.
31 Sobre a leitura do anão na tela velasquenha veja-se José Gil, Monstros, Lisboa,
Relógio D’Água Editores, 2006, p. 62.
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
291
um circo, o retrato mostra frontalmente (ou quase) quatro membros
da família em indumentária convencional e poses estudadamente
solenes, contra um fundo de ouro velho, decalcando os padrões oficiais
do retrato de família burguesa. Não estamos perante qualquer paródia
iconográfica ou qualquer exibição mais ou menos anedótica de exotismos; antes, como sugere a leitura de A. Manguel, de uma devolução:
devolver uma identidade e uma dignidade culturalmente usurpadas,
normalizar a «anormalidade» adjudicando-lhe «os ornamentos com
que a sociedade glorifica a autoridade e recompensa o poder» 32.
Um último exemplo, literário: o anão inglês de Cesariny, no poema
«shafftsbury avenue».
Vi um anão inglês e fiquei perturbado
Desceu-me a chávena ao peito como quem sofre
Julgava ter olhos para tudo e não os tive para isto
Um anão inglês a atravessar uma rua inglesa
Com um fato à inglesa muito curto
E a mãozinha inglesa a dar a dar
Eu que ainda ontem escrevi um poema
Sobre os tamanhos fantasmas dos ingleses
As pernas de oceano dos ingleses
Os braços florestais dos ingleses
Dei um salto para o chão e entornei a bebida sobre o
Pedinte
Que afinal também há nas casas de chá barato
«Dwarf! Dwarf!burning bright»
«In the forest of the night»
Que nome lhe darão na intimidade?
Vic? Jimmy? Christian Dwarf Road?
Deixá-lo-ão sair para o estrangeiro sem ser de circo?
[…]
«Did He smile His worke to see?»
«Did He who made the Lamb make thee?»
32
Ibid., p. 172; acerca da obra de Marianna Gartner, consultem-se pp. 149-185.
292
DIACRÍTICA
Claro que isto são maneiras
Não vivo como o outro, preso pela espinha
aos caudais da verdade.
De um lado Buckingham Palace
do outro o caso do
profundamente humano.
E seria inglês, este anão?
Não seria italiano?
(MÁRIO CESARINY, «shafftsbury avenue» in Pena Capital)
O anão é aqui o negativo não redutível: descrito nos termos de um
contra-tipo simultaneamente imagológico (o anão de mãozinha inglesa
a dar a dar versus o inglês de pernas de oceano e braços florestais)
e teológico (Dwarf versus Lamb) – figura «impossível» que subverte/
desorganiza toda uma mitologia cultural a que não é imune a própria
lucidez poética (veja-se a ironia ambígua das interrogações finais) –
o anão torna-se exemplo e exemplum de humanidade, em directo
confronto com a autoridade de Buckingham Palace. Em vez de legitimar, por inversão, a paráfrase da «normalidade», a monstruosidade
corresponde aqui ao dissemelhante como possibilidade perturbadora
no coração da norma.
6.
O retrato em movimento:
metamorfoses, desfigurações, interditos
A irrupção da dissemelhança trazida pelo anão inglês é neste
ponto comparável à da cor preta do peixe na breve história sobre
o pintor e o aquário com que Herberto Helder prefaciava, em 64, o
primeiro número da revista Poesia Experimental: «a insídia do real
[abrindo] um abismo na primitiva fidelidade do pintor.» A lei da metamorfose que o texto herbertiano postula como princípio poético-vital
(«[…] existe apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas
como o da imaginação. Essa lei seria a metamorfose.») dita afinal o
que poderá ser o novo regime retratístico da contemporaneidade:
o retrato como forma «em devir» ou como topologia centrífuga, menos
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
293
absorvida na «representação» de uma «imagem» ilusoriamente una,
do que na apreensão do jogo de forças que torna potencialmente cada
rosto irreconhecível perante si próprio: «[…] de certo modo», como
reflecte José Gil, «o rosto não existe, não é uma coisa, nem sequer uma
imagem estática e plena, apenas um lugar, um território onde tudo se
inscreve e de onde tudo foge, dentro e fora do espaço objectivo» 33.
Percebem-se as «aporias da semelhança». Para o artista, já não se
trata de representar formas e relações formais, mas de intersectar e de
incorporar em si próprio movimentos e intensidades alheias, de desenhar a curva das pequenas percepções que captam da figura os intervalos diferenciais que lhe dão sentido, ou a projectam para fora do
sentido: «o inesperado do retrato», na formulação de Júlio Pomar 34.
Ao propor noções de identidade fora das qualificações romântico-burguesas do «autêntico», do «único» e do «original», o retrato
contemporâneo tem absorvido progressivamente a ideia de mobilidade. É ela que em grande parte explica o impulso tão recorrente da
série, declinando o inacabamento em termos de variação. Num breve
texto de 77, retomado na introdução que escreve para um álbum de
retratos e auto-retratos de Francis Bacon 35, Milan Kundera referia-se
ao tríptico retratístico de Henrietta Moraes (fig. 43), pelo pintor, nos
termos de um rapto brutal da figura, como se o artista se quisesse
apoderar de qualquer coisa oculta, um hidden diamond, que não é
certo que exista. Em Bacon, essa procura adquire uma fundura tridimensional que esgaça e deforma a matéria corporal, sem que, no
conjunto das anamorfoses seriais, se perca uma certa noção de «parecença» ou de «fidelidade». «In painting, we always leave in too much
that is habit, we never eliminate enough», diria Bacon: o princípio da
variação é também um princípio de redução, de eliminação do excesso
(etnográfico, estético, técnico) até a um limite mínimo onde é provável
que resida o self. Um self agora totalmente corporal (a interioridade,
33
José Gil, p. 31.
Cf. Júlio Pomar, Então e a Pintura?. Tradução de Pedro Tamen da versão original
em língua francesa. Servida com Notas, Acrescentos & Mais fruta da estação em directo
do Lavrador, mesmo. Lisboa, Pub. Dom Quixote, 2002. A propósito da articulação entre
evidência e ocultação, memória e esquecimento na construção retratística, Pomar insiste
numa certa dimensão não intencional da imagem: «Um retrato que não é inesperado é
um retrato que não existe como tal» (p. 98).
35 France Borel, Bacon: Portraits and Self-Portraits. Introduction by Milan Kundera.
London, Thames and Hudson, 1996.
34
294
DIACRÍTICA
43. Francis Bacon, Três Estudos para o Retrato de Henrietta Moraes (1963)
em Bacon, nunca é metafísica) subentendendo um entendimento do
organismo como puro «acidente» que na pintura «acontece» quando
«acontece pintura» (cf. figs. 44 e 44a).
44/44a. Francis Bacon, Auto-Retrato (1971)
Uma espécie de voyeurismo performativo instala-se nas imagens
baconianas: uma espiação que se cumpre num «fazer», numa fábrica
de criação ou de forma-ção que se apropria da matéria mais básica e
a expõe como «actividade» entre o impulso formal e o que se aparenta
com o informalismo mais radical: um happening diria Leiris a propósito do realismo criador (não anedótico) de Bacon 36; o atletismo do
36 Cf. Michel Leiris, Francis Bacon, Face et Profil, Paris, Éditions Albin Michel,
2004, p. 117.
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
295
espasmo, na hermenêutica deleuziana das sensações 37. Os retratos e
os auto-retratos de Bacon fazem coincidir o monstruoso animal com
o arbitrário orgânico, com o nosso próprio escândalo fisiológico.
Neste entendimento para-figurativo da figura que faz explodir
a «boa forma», Francis Bacon terá tido precedentes. Sobretudo um
precedente: Picasso. No estudo que dedica aos monstros picassianos,
produzidos em finais da década de 20 e princípios dos anos 30 38
(fig. 45), Castro Caldas aponta em Picasso uma consciência do corpo
enquanto «método», uma consciência destematizadora que inventa
estruturas figurais absolutamente novas. Já não se trata, como acontecia com a teratologia monstruosa medieval, de simples jogos combinatórios com morfemas corporais, formal e funcionalmente estáveis
(adição/supressão/deslocação de membros ou orgãos), que mantêm
o sentido da totalidade e fazem trabalhar a infralíngua 39, mostrando,
45. Pablo Picasso, Figuras à beira-mar (1931)
37 Cf. Gilles Deleuze, Francis Bacon, Logique de la sensation, Paris, Éditions du
Seuil, 2002, pp. 21-26.
38 Manuel Castro Caldas, A Figura e o Corpo – O regime da figura nos «monstros» de
Picasso, 1925-1932, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987.
39 Cf. José Gil, Monstros, pp. 142 ss.
296
DIACRÍTICA
às avessas, os pontos de articulação entre o corpo e o mundo; as
construções biomórficas picassianas suspendem a ordem relacional,
impugnam o regime infralinguístico que sustenta a leitura corporal do
mundo, na medida em que substituem o processo de decomposição da
infralíngua em unidades articuláveis por um novo regime não analógico de formação da forma. Um regime que contraria explicitamente
a lógica da Gestalt e do «organismo», substituindo-a por um princípio
energético, de Gestaltuung, que reconduz a uma relação de forças a
origem de todas as formas. Retomemos a ideia do retrato «em movimento»: num certo sentido, os monstros de Picasso serão retratos
possíveis que emergem de um espaço de produção de figuras indiferente a qualquer reconhecimento de identidades.
Na poesia portuguesa contemporânea, Luís Miguel Nava representa um dos casos mais emblemáticos de expressão poética de uma
corporalidade explodida e organicamente visceral, muito próxima do
registo plástico baconiano. A pintura de Francis Bacon constitui, aliás,
uma referência importante no ensaísmo do poeta (sem passar obrigatoriamente pela «influência» ou pela dependência ecfrástica, como
justamente observou Fernando Martinho 40). Os motivos recorrentes
do aquoso, do gorduroso, do flácido, simultaneamente baconianos
e navianos, implicam a percepção da matéria corporal ao nível do
plasma, da lava orgânica, impedindo a fixação de uma imagem estável
do corpo que gravita algures, «espacejado», desalojado da sua própria
memória numa coreografia deserta de referências (i.e. de hipóteses de
identificação). À semelhança das pinceladas brutais de Bacon, espessas
manchas curvilíneas que se sobrepõem e se entrechocam atiradas
contra fundos irreferencialmente monocromáticos, a poesia de Luís
Miguel Nava assume a deformação como confronto de forças, numa
declinação própria do mesmo princípio de metamorfose que Helder
compreendera como novo (anti)organon de toda a coisa criada ou
criável: a massa em via de forma, a reconstrução «meticulosa» das
entranhas sob a nova pele transparente do celofane.
Perdia-se-lhe o corpo no deserto, que dentro dele aos poucos conquistava um espaço cada vez maior, novos contornos, novas posições, e lhe
envolvia os órgãos que, isolados nas areias, adquiriam uma reverberação particular. Ia-se de dia para dia espacejando. As várias partes de
40 Fernando Martinho, «Luís Miguel Nava e Francis Bacon: “a abrupta transparência dos sentidos”», in Relâmpago, 16, 4/2005, pp. 29-38.
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
297
que só por abstracção se chegava à noção de um todo começavam a
afastar-se uma das outras, de forma que entre elas não tardou que espumejassem as marés e a própria via-láctea principiasse a abrir caminho.
A sua carne exercia aliás uma enigmática atracção sobre as estrelas,
que em breve conseguiu assimilar, exibindo-as, aos olhos de quem o
não soubesse, como luminosas cicatrizes cujo brilho, transmutado em
sangue, lentamente se esvaía. Ele mais não era, nessas ocasiões, do
que um morrão, nas cinzas do qual, quase imperceptível, se podia no
entanto detectar ainda a palpitação das vísceras, que a mais pequena
alteração na direcção do vento era capaz de pôr de novo a funcionar.
Resolveu então plastificar-se. Principiou pelas extremidades, pelos dedos
das mãos e pelos pés, mas passado pouco tempo eram já os pulmões, os
intestinos e o coração o que minuciosamente ele embrulhava em celofane, contra o qual as ondas produziam um ruído aterrador.
(LUÍS MIGUEL NAVA, «O corpo espacejado» in O céu sob as entranhas)
A figura pelo reverso, o corpo escandido: a estas formulações de
Luís Miguel Nava e de Francis Bacon poderíamos opor as «puras superfícies» de Andy Warhol. Os retratos de Warhol, quase em diametral
contraponto de método artístico relativamente à volumetria visceral
do regime retratístico de Bacon, continuam a corresponder não
obstante a espaços de desmontagem de identidades. Warhol produz
uma espécie de histeria visual ao replicar sucessivamente o mesmo
rosto em faixas decorativas ou séries de serigrafias individuais,
variando os campos cromáticos e ameaçando-os com estrias e manchas
escuras (figs. 46 e 47). Partindo de imagens já «gastas» (socialmente
apropriadas) de ídolos culturais, tratando-as com cores saturadas e
excessivas, Warhol sujeita-as a uma sobre-exposição por repetido desdobramento: o hiper-ícone, reproduzido a partir de uma imagem foto-
46. Andy Warhol, Marilyn (1964)
47. Andy Warhol, Díptico Marilyn (1962)
298
DIACRÍTICA
gráfica/verídica, transforma-se num motivo bizarramente decorativo,
esvaziado de emoções e de peso factual/documental, qualquer coisa
como um real «espalmado» e apenas animado pela aura negativa das
imagens mediáticas; ou um sintagma rítmico cujo sentido (tautológico) fosse meramente formal 41.
A derivação do retrato em pura informação formal parece de
resto consumar-se em algum hiperrealismo americano. Na vertente
minimalista de Chuck Close, o excesso repetitivo warholiano casa-se
com o excesso de zelo analítico (figs. 48 e 48a): os retratos pintados de
Close, executados ainda sem a intervenção digital, são todavia interpretáveis como exercícios formais de discretização ou «pixelização» da
figura, objectivada copulativamente como soma de unidades mínimas
de informação cromática e plástica. O real é aqui apenas operacional,
como lhe chama Baudrillard 42: a verdade do simulacro extingue em
definitivo o encanto metafísico das «diferenças» entre o retrato e o rosto.
48/48a. Chuck Close, Auto-Retrato (2000)
Voltemos ainda à fotografia para tomarmos dois casos recentes
de reinterpretação da imagem fotográfica à margem da sua suposta
clave naturalista: o do americano Joel-Peter Witkin e o do português
Georges Pacheco. Ao contrário de Warhol, que parte do ícone, de um
visível hipertrófico, Witkin e Pacheco trabalham com um visível periférico, censurado, institucionalmente não elegível para o retrato.
41
José Gil, «Warhol – As metamorfoses da aura», in Sem Título, pp. 137-141.
Cf. Jean Baudrillard, «A precessão dos simulacros», in Simulacros e Simulação,
Relógio d’Água, 1991, p. 8.
42
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
299
Os tableaux fotográficos de Witkin, a preto e branco e fortemente
alicerçados na citação plástica erudita e nas técnicas compositivas da
pintura, colocam em cena corporalidades «desviantes» (hermafroditas,
corpos deficientes, mutilados, acidentados, cadáveres) em contextos
representativa e eticamente inesperados e chocantes (figs. 49 a 52).
Operando deslocações conceptuais e categoriais que não chegam a
fixar-se nem a viabilizar um modelo desambiguizado de leitura, as
fotografias de Witkin demostram ser imagens que significam, longe
da transparência assimbólica a que ainda se tende a reduzir a figura
fotográfica. Sobre os seus retratos de cabeças reais de cadáveres é
difícil decidirmos se estamos perante «retratos vivos» (a partir de
49. Joel-Peter Witkin, The Kiss (1982)
51. Joel-Peter Witkin, Story from a Book (1999)
50. Joel-Peter Witkin, Harvest (1984)
52. Joel-Peter Witkin, Face of a Woman (2000)
300
DIACRÍTICA
corpos defuntos esteticamente reciclados) ou perante «retratos mortos»
(retratos da morte), se perante presenças ou perante ausências; é difícil resolver se se trata deveras de retratos, ou de naturezas-mortas, de
versões contemporâneas do memento mori ou da vanitas renascentista,
ou de um novo tipo de ready-made; é difícil ter a certeza se o humano
constitui o motivo da imagem ou apenas um meio ao seu serviço.
The Kiss, uma composição de 82 construída a partir de um único
crâneo separado longitudinalmente (pela autópsia) em duas metades,
é uma elegia à univocidade orgânica? É uma paródia mimética, sado-satânica? É uma alegoria, um emblema? Um auto-retrato?
As colagens e as montagens a que J. P. Witkin sujeita o corpo
humano já têm sido lidas como um avatar da banalização da morte a
que as imagens mediáticas nos habituaram. Mas também seria plausível entendê-las como um resgate. De qualquer modo, agridem-nos:
menos pela sua notabilidade, do que pela sua pensabilidade (parafraseamos, obviamente, a terminologia barthesiana).
Algo semelhante acontece na série fotográfica de Georges
Pacheco O olhar dos cegos: um conjunto de vinte auto-retratos de
cegos, a preto e branco e exibidos em grande escala, em que Pacheco
confronta um outro interdito retratístico (figs. 53 a 72). Os cegos integram um arquivo visual reprimido em parte porque recuperam, das
velhas axiologias fisiognomónicas, a parcela do vício e do bestial (os
rostos negativos da virtude e do divino); em parte porque instituem um
problema fenomenológico: os cegos não refractam nem reflectem, não
servem de espelho; a visão e o seu regime de reflexividade («olhar é
ser olhado») são obstruídos, a clássica teoria sobre a permeabilidade
recíproca entre observador e observado, retratista e retratado parece
ter aqui uma aplicabilidade nula. A cegueira seria basicamente o
«fora» da representação.
Dir-se-ia à primeira vista que estes auto-retratos de cegos não
poderiam ser, nesta base, senão imagens cegas, nos antípodas daquele
olhar triplicado do Homem corajoso com bandeira de Sandro Chia
(fig. 73), um olhar-manifesto, de apropriação totalitária e transvanguardista do mundo. Os cegos «nunca vieram à luz», diz um texto de
Pedro Proença,
[…] ficaram definitivamente trancados nessa doce penumbra
uterina, têm a mãe espalhada no estranho sorriso não dirigido que
espelha uma face que não olha nas faces. Custa-nos olhar esses rostos
sem resposta, sem sedução, sem brilho.
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
301
302
DIACRÍTICA
53/72. Georges Pacheco,
O Olhar dos Cegos
(série fotográfica, 2007)
73. Sandro Chia, Homem
corajoso com bandeira (1980)
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
303
[…] quando olhamos para um cego ou é o olho ausente que
nenhuma pálpebra encerra, ou o olho sem olhar, uma esfera orgânica,
húmida, com veias, que inutilmente rola; ou o olho de vidro, prótese
para fingir que há um olho que olha mas afinal não olha 43.
… um olho que olha mas afinal não olha: diríamos que Georges Pacheco
propõe um novo formato para o auto-retrato que exclui e integra
simultaneamente a visão. O «não-olhar» do cego que aqui dispara a
câmara no momento que decide eleger como o seu «instante decisivo»
(a expressão é de Pacheco 44) torna-se coincidente com a «visão concentrada», um confronto com uma ideia de representação e de auto-representação; talvez aquele olhar retido pelo interior, pura atenção
sem percepção, diria Barthes; um olhar louco, no fundo, a metáfora da
própria Fotografia.
Por outro lado, estes olhares de cegos são olhares políticos, declarações, nem por isso muito distantes do que vemos na tela de Chia.
Transgride-se a norma reguladora da troca pública de olhares, no sentido inverso ao do voyeurismo: não ver, mas querer ser visto (repare-se
na pose frontal de muitos auto-retratos, na proscrição dos óculos
escuros, na inclusão da fotografia de família, no nivelamento entre
padrões faciais comuns e incomuns dado pela série) é uma resposta
política ao espectadorismo retraído pelos cegos, uma reclamação
de re-centramento social, ético e estético que toma por estandarte a
própria invisualidade.
7.
Espelhos e espelhamentos (auto)retratísticos
A utilização do espelho, a metáfora convencional da pintura percebida como devolução e/ou revelação do eu-próprio, entre o ícone absoluto e o símbolo epifânico, assume nos (auto)retratos contemporâneos
pragmáticas dissonantes, e particularmente eloquentes no sentido
de um distanciamento da função de restituição da imagem entendida como crédito de visibilidade. Incluído como «pintura» dentro
do espaço do quadro (na esteira do experimentum crucis a que alude
Eco), o espelho deixa de ser simples prótese perceptiva, prolongando o
43 Pedro Proença, «Cegos (uma série deles)», in A Arte ao Microscópio, Lisboa,
Fenda Edições, 2000, pp. 45-46.
44 Cf. Georges Pacheco, entrevista com Sérgio Gomes, 31 de Março de 2007.
[http://artephotographica.blogspot.com/2007/03/conversa-com.html]
304
DIACRÍTICA
alcance do orgão visual, para transformar-se na sua própria caricatura.
Quer se trate de espelhos deformantes ou de espelhos planos, o espelho pintado é agora sinal de um «exercício contrafactual» com funções
directa ou mediatamente alucinatórias 45.
74. M. C. Escher, Mão com esfera reflectora (1935)
No espelho convexo de Escher (fig. 74) que produz o retrato
intrusivamente como simultopia 46, permitindo a visão (impossível)
de mundos simultâneos (por recurso à técnica da reflexão esférica já
utilizada por van Eyck, por exemplo, no celebrado Retrato do casamento dos Arnolfini (figs. 75 e 75a), ou por Parmigianino no não
menos celebrado Auto-retrato num espelho convexo (fig. 76)); no espelho magritteano que interdita o retrato como reprodução de visageité
(fig. 77); no auto-retrato de Lichenstein em 78 (fig. 78) – o retrato segue
45 Veja-se Umberto Eco, «Sobre os espelhos», in Sobre os espelhos e outros ensaios,
Lisboa, Difel, 1989, pp, 11-44.
46 O termo é utilizado por Bruno Ernst em estudo que dedica à obra de Escher
(cf. O espelho mágico de M. C. Escher, Taschen, 2007, p. 77).
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
75/75a. Jan Van Eyck, Retrato do casamento dos Arnolfini (1434)
76. Parmigianino, Auto-Retrato
num espelho convexo (1523-24)
78. Roy Lichenstein, Auto-Retrato (1978)
É 77. René Magritte, A Reprodução Interdita
– Retrato de Edward James (1937)
305
306
DIACRÍTICA
um trajecto anamórfico que culmina numa deserção: o que a cena
do quadro emoldura não é uma narrativa identitária mas um ensaio de
codificação da imagem que não chega a atingir o nível discursivo da
significação estabilizada. O espelho (e o quadro que o contém) deixa
de ser o «interruptor» do retrato (parafrasendo José Paulo Pereira 47),
mas apenas o espaço «não barrado» de um processo de produção de
um «retrato» que não passará necessariamente pela figura (enquanto
objectivação formal).
A imagem retratística, como estrutura abissal pressupondo um
sistema de espelhamentos potencialmente interminável, aparece frequentemente concretizada pelo processo do retrato ou do auto-retrato
duplo ou triplo, de forte repercussão na história moderna do retrato
que em parte recupera uma tradição remota de jogos de espelhos e teatros catóptricos. Enquadrada num suporte único, a imagem é objecto
de clivagens sucessivas segundo uma lógica justapositiva, de encaixe
ou de abyme que coloca como charada a questão dos «originais»,
pondo em evidência o logro analógico da produção da «presença».
A promessa identitária do retrato contrasta ironicamente com a ficcionalização complexa da imagem que encena ciclicamente o descentramento e a alienação do sujeito relativamente a si próprio. Apontem-se:
Magritte, em Auto-retrato Duplo (fig. 79); o conhecido auto-retrato
de Norman Rockwell (fig. 80) em que se inspira a capa metaparódica
de um recente livro de Mark Evanier celebrando a revista americana
Mad (fig. 81); Erik Boulatov num auto-retrato de 68 (fig. 82); o retrato
duplo de Eisenhower na extraordinária fotografia de Manny Warman,
Presidential Likeness (fig. 83). O «efeito de espelho» é, em todos estes
exemplos, o do trou deleuziano: lugar de deriva e de ilocalização do
retrato, de resistência 48 à figura e à política da representação enquanto
autoridade e posse perceptivas.
Projectadas temporalmente, as séries auto-retratísticas (quando
não representem puros exercícios de experimentação técnica à volta
de um motivo, como já se ponderou a propósito de Rembrandt por
exemplo, mas suponham intenções mais ou menos conscientes de
auto-análise ou inquérito psicológico) revelam-se com frequência
dispositivos afins de atopia retratística. Refigurar a própria imagem
47 José Paulo Pereira, «A demanda da arte e a deflação da imagem», in Envolvimento e Clímax – Do entre das artes. http://sexta-feira.dyndns.org/interartes/
48 Cf. No sentido que lhe dá Jacques Derrida em Résistances: de la psychanalyse.
307
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
79. René Magritte, Auto-Retrato Duplo (1936)
80. Norman Rockwell,
Auto-Retrato Triplo (1960)
82. Erik Boulatov, Auto-Retrato (1968)
81. Capa do livro Mad Art: a visual
celebration of the art of Mad magazine
and the idiots who create it,
de Mark Evanier (2002)
83. Manny Warman, Presidential Likeness, Low Library (1964)
308
DIACRÍTICA
no tempo – tal como encontramos modernamente em Van Gogh, em
Picasso, na finlandesa Helene Schejerfbeck (que se auto-retratou ao
longo de 60 anos – figs. 84 a 86) – nem sempre corresponde a uma
«fixação» de parecenças e/ou de «essências» ainda na linha daquele
increase of being a que se referiu Gadamer 49, a uma afirmação redundante da persona construída pela consistência e pela inalterabilidade
da perspectiva e do estilo do retratista; em muitos casos, trata-se essencialmente de um documentário de mutações e de estranhamentos
corporais e/ou identitários de categorização problemática. Uma recorrente ferocidade figurativa que lida com estigmas públicos e privados
face ao corpo (sobretudo o corpo velho) e com um sentido de identidade já não redutível ao factual ou ao tangível, faz-nos regressar ao
rosto desfigurado, ao rosto-buraco (atente-se nos buracos negros dos
olhos, da boca), à máscara primitiva, à animalidade. Animalidade
e primitivismo que constituem, como é sabido, outra linha forte de
leitura do moderno e que poderá incluir uma glosa a toda uma cosmética metropolitana e mediática, sinalizando criticamente uma versão
globalizadora e consumível da questão identitária.
84 a 86. Helene Schjerfbeck, Auto-Retratos (de 1884-5 a 1944)
I SHOP, THEREFORE I AM, na citação «errada» de Barbara
Kruger (fig. 87) em pretendido efeito de logotipia, denuncia essa devoração do «eu» (que consome e se auto-consome) num retrato coincidente com uma cena parcialmente verbal, onde a lógica derivativa do
ter no ser se replica na comutação do rosto pela mão. Adentramo-nos
49 Veja-se o ensaio de Ernst Van Alphen, «The portrait’s dispersal: concepts of
representation and subjectivity in contemporary portrait», in Joanna Woodwall (ed.),
Portraiture-Facing the subject, pp. 239-256.
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
309
nos domínios do que se tem chamado retrato conceptual que opta com
frequência pela total erosão da figura, apenas recuperável mediatamente por inferência.
87. Barbara Krueger (Sem Título) (1987)
Van Gogh já o tinha ensaiado, pondo em prática um princípio
de contiguidade que o retrato contemporâneo virá com frequência a
adoptar. Muitas das suas naturezas-mortas são «impuras» ou puros
índices: como os repetidos pares de botas ou as as repetidas cadeiras
vazias que pinta (figs. 88 e 89), objectos quotidianos puramente funcionais transmutados em retratos concentrados – recordamos a meditação
seniana 50 – que expulsam a figuração do humano (numa linha talvez
ainda devedora à da ética calvinista holandesa), mas mantêm, no abandono exposto, uma espectralidade que nos observa ou nos atinge através do que, derrideanamente, chamaríamos um «efeito de viseira» 51.
Assim também nos mais recentes (auto)retratos de Ben 52 (figs.
90 e 91): textos escritos que referem sem referência concreta, figura50
Jorge de Sena, «A cadeira amarela, de Van Gogh», in Metamorfoses, 1963: «Não é,
não foi, nem mais será cadeira: / Apenas o retrato concentrado e claro / de ter lá estado e ter
lá sido quem / a conheceu […]».
51 Cf. Jacques Derrida, «Restitutions – de la vérité en pointure», in La verité en peinture, Paris Flammarion, 1978, pp. 291-436; veja-se ainda Nathalie Roelens, «Les chaussures de Van Gogh, suite», in Nathalie Roelens (sous la direction de), Jacques Derrida
et l’esthétique. Préface d’Eric Clémens. Paris, L’Harmattan, 2000, pp. 87-102.
52 Ben (Benjamin Vautier) pertenceu, com Joseph Beyus, Jonh Cage ou Yoko Ono,
ao grupo Fluxus que, durante as décadas de 60 e 70, praticou uma arte «fora do museu»,
fundamentalmente voltada para o quotidiano e para o gesto colectivo e performativo.
310
DIACRÍTICA
88. Van Gogh, Cadeira de Vincent
com o seu Cachimbo (1888)
89. Van Gogh, Um par de sapatos (1886)
90/91. Benjamin Vautier (Ben), Look at me / Mirame (1982)
tiva ou enunciativa: o «eu» que lemos é insubstancial, um desenhador
frouxo, nos termos da semiótica (i.e. que não garante uma correspondência directa e exclusiva sinal/objecto), inerente à natureza do pronome como signo vazio o que defrauda liminarmente o próprio apelo
visual e retratístico: olharemos para o quadro ou para onde fora dele?
Enfrentamos agora um nível de invisibilidade não-recuperável:
já não se trata apenas de interverter o lugar retratístico como ideia
iconográfica inovadora ou como topologia identitária alternativa
disposta pelo retratista, a exemplo desse surpreendente retrato foto-
311
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
gráfico da actriz Marie Laurent por Nadar (fig. 92). Revogadas as suas
funções de receptáculo da identidade, as formas faciais ou corporais
resumem-se agora a armadilhas miméticas 53 como claramente o coloca
a metapintura foto-realista de Gerard Richter (fig. 93) não homologável, como objecto intencional, à anterior imagem de Nadar. O que
se compreende na sequência de um progressivo questionamento e
esvaziamento da noção de referência, de uma menorização da categoria de sujeito legitimados sucessivamente pelas leituras estruturalistas,
pós-estruturalistas e desconstrucionistas 54, com propostas teóricas
como a de Paul de Man 55 que entende o autobiográfico como resultado tropológico (ou prosopopeia); ou como a crítica foucauldiana da
subjectividade que dissolve a carnalidade do «autor» numa «função
de discurso» pensada dentro dos limites de uma teoria da linguagem
como «única ontologia possível» 56.
94. Félix Nadar, Marie Laurent, de costas (c. 1856)
95. Gerhard Richter,
hter, Betty (1988)
53 Recuperamos a expressão do ensaio de Vasco Graça Moura sobre José Rodrigues
e as armadilhas miméticas.
54 Cf. Clara Rocha, Máscaras de Narciso –Estudos sobre a literatura autobiográfica
em Portugal, Coimbra, Almedina, 1992, pp. 45 ss.
55 Cf. Paul de Man, «Autobiography as De-Facement», in The Rhetoric of Romanticism, Nova Iorque, Columbia University Press, 1984, 67-81.
56 Cf. Michel Foucault, O que é um autor?, 6.ª ed., Lisboa, Vega, 2006.
312
8.
DIACRÍTICA
O retrato literário (ainda): alografias e atopias retratísticas
Terminaremos, nesta sequência, com a literatura.
«Contar a história do eu», segundo um dos estudos mais recentes
de Paula Morão sobre a questão retratística 57, pertence ao foro da
alografia, quer pensemos nos registos biográficos, quer nos autobiográficos (em relação aos quais o termo é ali especificamente utilizado).
Independentemente do método seleccionado para a «composição da
figura», que determinará diferenças essenciais entre subgéneros da
escrita intimista, haverá sempre que contar com o processo de cisão
observador/observado que faz de qualquer escrita do eu, uma escrita
do outro. Donde essa inversão fundamental da clássica projecção identitária do retratista sobre o retratado que a ensaísta vem a afirmar:
«quem escreve vidas não escreve nunca vidas verdadeiras; o auto-retrato é um alo-retrato – é, em suma, um retrato» 58.
Por aqui se veio a impor um certo padrão estrutural de escrita
auto-retratística que tende preferencialmente para a expressão poética (conforme concluiu Clara Rocha 59), ou para a suspensão do relato
(conforme conclui Paula Morão 60) distendível até a um hipotético
limite de «silêncio citável» (numa acepção herbertiana) – um padrão
que se entendeu de teor mais analógico do que cronológico, mais justapositivo do que sequencial: aludimos, naturalmente, às conhecidas
reflexões de Beaujour 61 de finais dos anos 70, apontando já no sentido
de uma diferença fundamental entre auto-retrato e autobiografia.
Nas variantes auto-retratísticas da autografia e da autopsicografia
que a literatura portuguesa mais recente tem produzido, a ideia de
poeta-construtor (fingidor) do seu próprio espaço retratístico comparece com nitidez, quer ao nível da tematização poética (pensamos no
paradigmático exemplo pessoano), quer do ponto de vista da arquitectura sintáctica e técnico-compositiva. Em Pena Capital, de Cesariny,
o poeta autografa-se seguindo um esquema aditivo de inventário mais
ou menos incongruente («Sou um homem, um poeta, uma máquina…,
57 Paula Morão, «Retrato e auto-retrato – Fronteiras e limites», in Concerto das
Artes, pp. 187-198.
58 Idem, p. 193.
59 Clara Rocha, op. cit., p. 42.
60 Paula Morão, art. cit., p. 196.
61 Cf. Michel Beaujour, Miroirs d’encre – Rhétorique de l’autoportrait, Paris, Éditions
du Seuil, 1980.
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
313
um copo, uma pedra, um avião, … uma carruagem de propulsão por
hálito,…»), alinhando ingredientes de «uma história de sentido ainda
oculto», num crescendo de brutalidade rítmica, até se atingir como
centro/motor da hélice auto-figuradora a imagem d’o homem-expedição: causa e efeito de um retrato encontrado perdido, de um retrato
desbordante e excentrado que não cabe todo dentro do poema.
Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra
[…]
[…]
Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra
uma carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas
por onde passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
[…]
E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência
solar estou em franca ascensão para ti O Magnífico
na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os Sustos
e que o homem-expediçaõ de que não há notícias nos
jornais nem lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado
perdido entre lagos de incêndio e o teu retrato
grande!
(MÁRIO CESARINY, «Autografia I» in Pena Capital)
Acrescentemos um derradeiro objecto de reflexão: «A gravata
ensanguentada», uma pequena ficção de João Miguel Fernandes Jorge.
O trabalho de construção textual é aqui invulgar. O movimento
narrativo toma como ponto de partida dois quadros distanciados
por «trezentos anos exactos» de tempo cronológico: Leitora de sinais
(c. 1630-34), de Georges La Tour (fig. 94) e Jeune Homme (retrato do
pintor Paulo Pereira) (1932-34), de Mário Eloy (fig. 95). Com apenas o
314
DIACRÍTICA
pedaço recortado do rosto da rapariga de La Tour (fig. 94a) e com o
retrato do jovem de Eloy, cuja identidade o narrador rasura igualando
ambas as figuras no mesmo anonimato, procede-se à montagem de
um díptico virtual em que a imagem do rapaz é colocada sob o olhar
transhistórico e transcultural da rapariga. Recorte e montagem – aos
quais vem juntar-se a invenção do (outro) observador externo que é
94/94a. Georges La Tour, Leitora de Sinais (c. 1630-34)
95. Mário Eloy, Jeune Homme (Retrato do pintor Paulo Pereira) (1932-34)
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
315
o narrador: a inexistente gravata ensanguentada, que o jovem, na tela
de Eloy, não tem de facto ao pescoço, transforma-se numa existência
ausente, ausência ficcionalizada nos termos de um roubo perpetrado
pelos «acerados olhos» da rapariga, ela que, 300 anos antes, na pintura
original de La Tour, já fora cúmplice num primeiro furto.
A écfrase produz-se, no texto, como embraiador narrativo que
inflecte (em vez de reflectir) as figuras no sentido da invenção biográfica: o olhar da rapariga é aqui a quase-alegoria do rapto ecfrástico que
rouba as imagens aos seus limites, subtraindo-as ao estrangulamento
pela mortal gravata retratística. O retrato entende-se aqui como resultado de um olhar entre-imagens que dessubjectiviza a figura tornada
pura forma preenchida por um «quase-ser», ou então o (não)lugar
atópico, não identitário, de «uma reflexão sobre a ideia de limite», nas
palavras exactas desta ficção.
Neste sentido, as duas figuras do texto de Fernandes Jorge parecem
muito próximas daquelas personagens conceptuais de Costa Pinheiro
no seu mais recente ciclo plástico e retratístico Elas e Eles (1999-2005):
«sujeitos um para o outro», num «mútuo processo construtivo de
subjectividades», como escreve Bernardo Pinto de Almeida 62, as personagens organizam-se aqui relacionalmente e apenas nos limites internos da narrativa partilhada que instituem como cena plástica (figs.
96 a 99).
9.
Conclusão
Ao pôr em prática hipóteses de deslocação e de regressão relativamente aos programas de politização do corpo da arte ocidental
cristianizada, ao desistir da semiótica das parecenças, ao desmontar
criticamente a maquinaria social e cultural da visagéité 63 entendida
como processo de produção e consumo do legível identitário ou como
arquivística das formas interpretáveis, o retrato contemporâneo
coloca-se cada vez mais nos termos da «possibilidade» do corpo, e
menos no da sua «realidade»: o que desembocaria em qualquer coisa
como um «retrato» não facializável/não objectivável ou exponen62
Cf. http://www.fsgaleria.net4b.pt/sitept/exposicao/costa_pinheiro.html
Cf. Gilles Deleuze, Félix Guattari, «Année zéro – Visagéité»,
sagéité», in Capitalisme et
Schizophrénie – Mille Plateaux, Paris, Les Éditions de Minuit, 1980, pp. 205-234.
63
316
DIACRÍTICA
96 a 99. Costa Pinheiro, Elas e Eles (série plástica, 1999-2005)
cialmente facializável, o qual, se se supõe ainda de «homem» ou de
«mulher», não exclui necessariamente, para regressarmos a Félibien,
o «cavalo» e a «casa», o animal e a coisa – o inumano; ou o pós/trans-humano, se pensássemos no corpo protésico ou no corpo digital da
cenografia retratística mais actual. Encontrar a inumanidade do
humano, desfazer a face enquanto codificação autoritária de subjectividades para inventar as linhas de fuga criadoras das têtes chercheuses,
na acepção deleuziana – será este o devir do retrato? Se muita teoria
crítica modernista rejeitou genericamente o retrato em nome de uma
sua putativa fragilidade de qualidades formais puras, encontram-se
simultaneamente exemplos (modernistas, vanguardistas e contemporâneos) de uma reconceptualização do género que admite as modalidades do retrato abstrato, conceptual, ou não-representativo assente em
estratégias evocativas mais do que descritivas 64.
64 Cf. o capítulo «Portraiture and Modernism», e particularmente o subcapítulo
«Abstract and non-representational portraits», do excelente estudo de Shearer West
Portraiture, Oxford University Press, 2004.
317
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
Porém, também parece ser certa a escassez de retratos (ou assim
entendidos), inteiramente isentos de marcas referenciais 65. Alguma
sinalética relacional, ainda que mantida a um nível de resíduo ou de
pura inferência (comprimida num título, numa assinatura: citem-se os
poster portraits do americano Charles Demuth – fig. 100; ou os assemblages auto-retratísticos de Arman – fig. 101), tem assegurado ao retrato
contemporâneo um certo percentual de referencialidade reconhecível.
100. Charles Demuth, I saw the Figure 5 in
Gold: Portrait of William Carlos Williams
(1929)
101. Arman, Auto-robot-portrait d’Arman
(1992)
O que, se por um lado confirmaria o retrato como avatar do «representativo» – com a respectiva carga teológico-humanista que lhe assiste –,
insinua, por outro lado, a sua proximidade a uma soleira de irrepresentabilidade no limite da qual apenas o artístico se afirmaria como
«acontecimento» ou como «desastre na representação» 66: «profissão
de cegos», como Picasso diria da pintura.
A propósito dos retratos de Bacon 67, Michel Leiris falava, neste
sentido, num jogo tensional entre o que diz ser uma essencial aderên65 Sustenta a propósito Shearer West: «Is is notable that although many modernist
portraits are non-representational in that they do not convey a likeness, very few of them
are purely ‘non-objective’, that is, constructions of pure line and colour without any
representational qualities» (id., p. 200).
66 Cf. Manuel Castro Caldas, p. 61.
67 Sobre a sua própria pintura Bacon ter-se-ia assim manifestado: «J’aimerai que
mes tableaux donnent l’impression qu’un humain est passé entre eux, comme un escargot,
318
DIACRÍTICA
cia ao motivo e a ilustração directa: «figurer sans illustrer», quadratura
do círculo retratística, de que depende, para Leiris, o «ser de carne» da
pintura baconiana 68.
Falta perguntar se o retrato suportará a «frivolidade» da imagem
que não esconde nada, a de um real sem origem na realidade, a radical
desindividuação ou descorporalização do lugar retratístico. Se suportará a revogação da teologia e da teleologia da «verdade» para transformar-se em pura ficção ou em pura estratégia de real, ou neo-real.
Nas instalações retratísticas de Ralph Helmick e Stuart Schechter
(figs. 102 e 102a), produzidas a partir da reprodução em série de
102/102a. Ralph Helmick e Stuart Schechter, Instalação
pequenas efígies de cidadãos americanos anónimos suspensas por
cabos (aqui, o resíduo de referencialidade sobrante), expõe-se a física
do retrato como cartografia aberta onde a face (uma face-síntese ou
laissant la trace de l’humaine présence et la mémoire du passé comme l’escargot laisse
un sillon de bave.» Francis Bacon apud Christophe Domino, Bacon – Monstre de peinture,
Gallimard-Centre Georges Pompidou, 1996, verso da capa. O humanizável do retrato é
aqui da ordem do rasto, do vestígio que a matéria da pintura deixa inscrever nos seus intervalos, num «entre» das formas assimilável a um espaço-crisálida de germinação larvar.
68 Cf. Michel Leiris, Francis Bacon, face et profil, Paris, Éditions Albin Michel, 2004,
pp. 17 e 53.
POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS
319
uma face-média-das-faces) é um fora-de-campo que se produz espectralmente nos interruptos da matéria. Retrato ainda ou apenas lugar
meta-retratístico de absoluta desencenação do rosto?
Em Ben Vautier, assistimos à transição de um regime icónico do
retrato para um regime puramente indicial, entre o trágico e o paródico. No JE de Vautier (fig. 103), o que percebemos como vestígio
caligráfico oscila ambiguamente entre uma intenção de forma auto-retratística e um mero efeito (retórico) de retrato, a «dobra gramatical» foucauldiana, sinal da privação dissimulada ou da desmaterialização radical do próprio sujeito retratístico.
103. Benjamin Vautier (Ben), Je
A ideia de um retrato «anónimo», de um retrato da ausência,
sem referente singularizável, parece conduzir-nos a uma espécie de
Zona Zero – tomando de empréstimo uma formulação de Pinto de
Almeida 69 – onde é a própria categoria do retrato que se expõe, negativamente, como género morto. Ou então, tal como recentemente se
sugeriu, pode tratar-se apenas de uma arena onde, emancipado da sua
história e dos regimes de significação disponíveis, o retrato se converte
n’«a forma de novas concepções de subjectividade e de novas noções
de representação» 70.
69 Cf. Bernardo Pinto de Almeida, «Zona Zero: subjectividades e economias pós-modernas», in Transição – Ciclopes, Mutantes, Apocalípticos. A nova paisagem artística no
final do século XX. Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p. 101.
70 Ernst Van Alphen, «The portrait’s dispersal: concepts of representation and
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