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Poéticas do Retrato – o desgaste das figuras – 1 EUNICE RIBEIRO (Universidade do Minho) […] pode ser esta a medida do nosso oculto estranhamento, o intervalo entre o rosto e o outro espelho que não devolve a imagem a nenhuma figura. […] (VASCO GRAÇA MOURA, «O desgaste das imagens» in A furiosa paixão pelo tangível, 1987) 0. Introdução No seu pioneiro dicionário de termos especializados de arquitectura, escultura e pintura, com primeira edição de 1676, André Félibien recorta lexicograficamente o substantivo «retrato» numa perspectiva de restrição etimológica ainda hoje aceite e aplicada: «Diz-se o retrato de um homem, ou de uma mulher, mas não se diz o retrato de um cavalo, de uma casa ou de uma árvore» 2. Compulsando equivalentes actuais no glossário artístico, encontraremos propostas de definição 1 Lição apresentada no âmbito das Provas de Agregação no grupo disciplinar de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa do Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho (texto revisto e ampliado). 2 André Félibien, Des principes de l’Architecture, de la Sculpture, de la Peinture et des autres arts qui en dépendent. Avec un dictionnaire des termes propres à chacun de ces arts, apud Édouard Pommier, «Introdução – Retratar» in Concerto das Artes. Organização de Kelly Basílio et al. Coordenação de Kelly Basílio. Porto, Campo das Letras, 2007, p. 169. DIACRÍTICA, CIÊNCIAS DA LITERATURA, n.º 22/3 (2008), 265-322 266 DIACRÍTICA claramente herdeiras da especialização seiscentista do termo, independentemente do seu maior laconismo ou, pelo contrário, da sua atenção mais vincada a variantes e modos retratísticos: Dois exemplos: «Retrato – Representação identificável de uma figura humana» 3; «Retrato – Obra pictórica, escultórica ou desenho que reproduz os traços do sujeito representando-o de maneira simbólica (com alusão à posição e ao nível social) ou fisionómica» 4. A ideia geral de representação (tomada numa acepção mais reprodutiva do que produtiva), explícita em ambos os exemplos recentes aqui aduzidos, constituiu desde longa data o pano de fundo conceptual do gesto retratístico ratificado pela etimologia que o reconduz ao acto de «traçar», «desenhar», «pintar», «copiar literalmente do natural». Este entendimento da imagem como simulacro naturalista, sistematicamente declinado nos mitos sobre as origens do retrato legados pela antiguidade egípcia e grega, ou por alguma poesia epigramática greco-latina, haveria de ser recuperado na Renascença, altura do grande reflorescimento do retratismo na Holanda (com marcada influência dos modelos veneto-italianos), ao nível quer da teoria erudita e do corpus doutrinal humanista, quer do anedotário teórico quotidiano dos non intendenti, fixando-se para o retrato, sobretudo a partir do século XVII, a acepção generalizada de «figura cavata dal naturale». A fazer-se fé nesta definição, excessivamente simples e evidente para admitir qualquer tipo de debate ou controvérsia, como legitimamente observou Édouard Pommier, não haveria obviamente lugar para uma teoria do retrato. Todavia, paralemente à convenção terminológica, eventualmente elaborada no sentido de dar do retrato uma significação desejadamente acessível à maioria dos utilizadores, avoluma-se, em escritos privados, diarísticos, epistolares, um conjunto significativo de interrogações e faltas de consenso acerca das funções, dos valores, dos métodos de execução do retrato. Ressalta sobretudo dessa discussão de bastidores, a hesitação nunca resolvida em entender-se o retrato ao serviço da identificação ou ao serviço da idealização, como cópia virtuosa ou como produto de criação, como imitação ou como memória, como forma ou como ideia. 3 Edward Lucie-Smith, Dicionário de termos de arte, Cículo de Leitores, 1990, p. 173. A Grande História da Arte – Dicionário de termos artísticos e arquitectónicos, Volume 18, Público, 2006, p. 357. 4 POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 267 Pretendemos, nesta lição, colocar o retrato como problema, delineando um trajecto «negativo» ou «repudiativo» 5 na conceptualização e na realização retratísticas (no sentido de uma resistência à descrição e à formalização), trajecto todavia já embrionariamente latente desde as mais antigas referências teóricas a que é possível termos acesso. Vinculado à questão da representação do tema humano e central no equacionamento das noções de identidade e de individualidade, o retrato veio a ocupar um espaço de consensual «nobreza» na história da arte ocidental, constituindo-se como género transversal e esteticamente expansivo, textualizável em diferentes linguagens e suportes (da máscara primitiva ao digital e ao intermedial contemporâneo) e, nesse sentido, um lugar privilegiado de interfacialização no domínio da teorização estética e interartística. Tradicionalmente pensado sob o paradigma das semelhanças e das fidelidades, subordinado a um «código óptico» que organiza e restitui a referência como legibilidade (i. e., como sentido verbalizável) por acomodação das formas a uma ordem analógica, o retrato descola-se progressivamente deste modelo duplicativo e devolutivo, no qual se sustenta a grande narrativa do reconhecimento, em direcção a gramáticas alternativas de produção/ organização figural ou a hipóteses argumentavelmente contra-retratísticas de resistência à figura, cada vez mais distantes das imagens unárias e da possibilidade de uma leitura teológica do corpo. A problematização do «ilustrativo retratístico» colocar-se-á aqui a dois tempos. Ora no sentido do retrato como «enigma», entendendo-o como «procura» que toma lugar num limiar de vulnerabilidade entre o representável e o irrepresentável, o visível e o oculto, o normal e o monstruoso, a forma e o informe, implicando diferentes tipos/graus de perturbação das formas de imitação ritualizadas. Mas também, num segundo tempo, pensando a imagem retratística como fundamentalmente exterior à «pulsão» representativa 6: seja como «excesso» 5 Utilizamos o adjectivo «repudiativo» no mesmo sentido em que o empregou D. H. Lawrence para se referir à paisagem de Cézanne e à crise de legibilidade da imagem por ela instalada: «Uma paisagem não é isto nem isto nem isto nem…, etc. – e cada nem é um pequeno espaço vazio na tela, definido pelos resíduos de uma asserção.» (apud Manuel de Castro Caldas, A Figura e o Corpo – O regime da figura nos «monstros» de Picasso, 1925-1932, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, p. 16.) 6 Neste sentido, desencontramo-nos, até certo ponto, da perspectiva fenomenológica de Helena Buescu que, no seu conhecido estudo sobre o descritivo, defende não haver lugar a uma «estética da anti-representação» a partir do momento em que se concorda sobre o carácter comunicativo de qualquer manifestação artística e em que se entende a «representação» como uma hermenêutica, como interpretação ou produ- 268 DIACRÍTICA de forma, pela via do exercício hiperrealista ou da performatividade pura que processa a imagem como único corpo retratístico; seja como «recusa» de forma, traduzida na erosão da figura e numa dimensão preponderantemente conceptual do retrato 7. Já em 1925, Ortega y Gassett ia dando mostras de uma mutação essencial no estatuto do retrato, tradicionalmente entendido como epítome da imagem legível, quando a propósito do Carlos V de Ticiano formulava uma alternativa dupla de leitura: ou se «convive» com Carlos V ou se «contempla» o quadro 8, entendidos retrato e retratado como «dois objectos completamente diferentes»; quase 50 anos mais tarde, Lotman coloca uma questão similar, agora nos termos da teoria semiótica e em torno de retratos de Catarina II, insistindo na diferença entre a mensagem identitária e a linguagem artística, a única que, à época, «inquietava apenas as personagens iniciadas nos segredos da arte» e que inquietaria no presente a generalidade dos observadores do quadro, ignorantes do rosto vivo da imperatriz 9. ção de sentido sobre o mundo (ou seja, um «modelo da realidade» consensual e perceptivamente construído), enfim, como «não-imitação»; nesta sequência, «a descrição é sempre entendida como representação de um mundo de sentido» que, no contexto, parece supor-se verbalizável (cf. Helena Carvalhão Buescu, Incidências do Olhar – Percepção e Representação, Lisboa, Caminho, 1990, p. 269; ver também 262 ss.). Ora, aquilo que, a nosso ver, na arte moderna e no «retrato» moderno frequentemente se insinua é justamente uma suspensão da «narrativa», do verbalizável, do lógico-discursivo, propondo-se alternativamente objectos «intensionais», «germinativos», «páticos», passíveis apenas de induzirem «no espectador circulações e afectos, e não significações ou, menos ainda, informações.» (Lyotard, a propoósito de Cézanne, apud Manuel de Castro Caldas, op. cit., p. 17.) 7 No contexto do vocabulário artístico, entendemos aqui o termo «forma» no sentido de entidade espacial/topológica autónoma, organizada, delimitada e objectivável ou objectivada. No mesmo contexto, tomaremos «figura» quer em sentido restrito, referindo-nos à reprodução visual da forma corporal humana, tal como ocorre na nomenclatura designativa do género plástico «pintura de figura»; quer em sentido lato, como sinónimo de forma objectivada, de Gestalt. 8 Cf. José Ortega e Gassett, A desumanização da arte, São Paulo, Cortez, 1991: «Para poder deleitar-se com o retrato eqüestre de Carlos V, de Tiziano, é condição ineludível que não vejamos ali Carlos V em pessoa, autêntico e vivo, mas sim em seu lugar devemos ver apenas um retrato, uma imagem irreal, uma ficção. O retratado e seu retrato são dois objectos completamente diferentes: ou nos interessamos por um ou por outro. No primeiro caso, “convivemos” com Carlos V; no segundo, “contemplamos” um objecto artístico como tal» (pp. 27-28). 9 Cf. Iuri Lotman, A estrutura do texto artístico, Lisboa, Editorial Estampa, 1978: «Imaginemos dois retratos de Catarina II: o retrato da parada de Levitski e o vulgar pintado por Borovikovski, representando a imperatriz no parque de Tsarskoie’Sélo. Para POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 269 Mas se considerarmos o retrato unicamente como facto artístico, isolando-o radicalmente de um código de correspondência histórico-narrativa, o que o distingue de uma qualquer tematização de figura? Ou mesmo de uma qualquer forma objectivada que acordemos como «estética»? A questão central resume-se a saber se o retrato pode subsistir como tal não só fora do modelo analógico e do regime do reconhecimento, ainda que residual, de um particular humanizável/identitário, mas ainda, como atrás sugeríamos, fora da «figura». Em que medida o retrato como género não tende para uma ficção categorial? 1. As virtudes da sombra (origens) Iniciemos por uma brevíssima rememoração mitogenética: a morte está no princípio do retrato. Evoquemos ainda a narrativa canónica sobre as origens do retrato, a fixada por Plínio, o Velho, em vários momentos da sua História Natural (cf. caps. XXXV, XV e CLI), onde anota a suposta concordância entre diferentes tradições antigas, no sentido de reconduzirem o primeiro gesto pictórico ao acto de contornar com um traço a sombra humana projectada numa parede (circumductio umbrae) (fig. 1). A história vem a admitir desenvolvimentos diversos à medida também da sua repercussão epocal e cultural: retomando Plínio, autores antigos como Cícero, Quintiliano ou Plutarco, tratadistas do Renascimento (Alberti, da Vinci, Vasari), teorizadores e poetas de Seiscentos (como Félibien e Charles Perrault, no conhecido poema La Peinture) vão repetindo, em versão curta ou ornamentada, sentimental ou trágica o mito fundacional. Interessa-nos aqui particularmente insistir no argumento motivador do retrato que comparece com alguma recorrência em várias dessas versões: o desejo de uma jovem rapariga em conservar a presença do rapaz por quem se apaixonara e que deveria partir; presença enfaticamente materializada através da máscara que o pai, oleiro, modela em argila a partir do contorno traçado pela filha na parede. os cortesãos da época, a semelhança do retrato com os traços da imperatriz que eles conheciam bem era perfeitamente essencial. O facto dos dois retratos representarem uma única e mesma personagem constituía para eles a mensagem fundamental; a diferença no tratamento, a especificidade da linguagem artística inquietava apenas as personagens iniciadas nos segredos da arte. Nós perdemos para sempre o interesse que representavam esses retratos aos olhos das pessoas que viam Catarina II; em contrapartida, colocamos em primeiro plano a diferença de tratamento artístico» (p. 52). 270 DIACRÍTICA 1. David Allen, As Origens da Pintura (1775) O retrato, assim «explicado» por uma exigência afectiva e memorial, faz-se pelo desenho de um perfil que é o recorte «ao vivo» de uma sombra, de uma ausência, de um vazio corporal, reconstruindo-lhe uma segunda presença, eventualmente volumetrizada (tornada mais real) pela tridimensionalidade escultórica da máscara (um rosto defunto). Este é o incipit ficcional de uma sucessão cumulativa de equívocos e de paradoxos que pautam também a história real do retrato, desde logo apontando para uma ambiguidade consubstancial à natureza retratística: uma certa ontologia híbrida entre corporalidade, espectralidade, textualidade, compondo provavelmente o seu noema. 2. A presença e os retratos vivos Reflectindo sobre a mitologia original do retrato, José Gil observa-a marcada pela «dupla representação» 10: para obter a mais perfeita 10 José Gil, «A Arte do Retrato», in «Sem Título» – Escritos sobre Arte e Artistas, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2005, p. 18. POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 271 semelhança, o retrato parte, curiosamente, não do modelo, mas da sua sombra imprecisa. É possível, aliás, que nesta história de simulacros se possa ler, em certo registo metafórico, algum platonismo teorético recuperado da sua percentagem de ferocidade iconófoba; ou talvez também a pudéssemos ler «para diante», como uma espécie de antecipação profético-poética do modelo barthesiano da pintura como pastiche. Gil concentra-se todavia nas virtudes da sombra: como propedêutica do desenho e como antecipação e superação da morte. A sombra como não-figura ou quase evanescência que o contorno retratístico cerca e delimita (pelas qualidades hápticas do traço), transforma-se na imagem prolongada do modelo: imagem fixa (fora do tempo),«viva»; imagem semelhante e individuadora, capaz de adicionar à presença imediatamente visível a certeza invisível dos afectos. Neste aspecto, aliás, uma das modalidades mais recentes do retrato recupera parcialmente o modelo e o relato genéticos: a fotografia. É possível, como sugere Pedro Miguel Frade num seu extraordinário ensaio, que a questão dos credos fotográficos (porque se acredita nas fotografias? como se acredita nas fotografias?) se encontre de algum modo associada a uma «lógica da relíquia» que tem por base o conhecimento da génese mecânica da imagem. O regime de «proximidade dos longínquos» instalado pela fotografia decorre em grande parte de um certo grau de consciência de uma relação de efectiva contiguidade/causalidade envolvida na produção da efígie fotográfica, pelo facto […] de que é a própria luz reflectida pelo fotografado que é retida e fixada nas imagens […] 11 Num processo idêntico ao que descreve David Hume a propósito das relíquias dos santos 12, o retrato fotográfico passa a ser alvo de uma 11 Pedro Miguel Frade, Figuras do Espanto – A fotografia antes da sua cultura, Porto, Asa, 1992, p. 76. 12 Cf. David Hume, Ensaio sobre o Entendimento Humano, Secção V, II Parte: «Ninguém deve duvidar que a causalidade tem influência idêntica às relações de semelhança e de contigüidade. Os supersticiosos afeitos às relíquias dos santos e de personagens sagradas procuram, por esta razão, símbolos ou imagens que possam avivar sua devoção e fornecer-lhes concepção mais íntima e mais forte das vidas exemplares que visam a imitar. Ora, é evidente que uma das melhores relíquias procuradas por um devoto seria um objeto feito pelo próprio santo; e se se consideram suas roupas e móveis sob este prisma, é porque estiveram uma vez à disposição do santo que os tocou 272 DIACRÍTICA santificação que o entende como resíduo material (presente) de um corpo ausente (passado). Num certo sentido, Roland Barthes também aqui vem ter. Mesmo se localiza na fotografia o lugar antropológico da morte na sociedade moderna (a morte «literal», «assimbólica», «fora da religião»), Barthes não deixa, ainda assim, de conceber religiosamente a fotografia quando a encara, com espanto (metafísico), como «certificado de presença» de um tempo pretérito tornado real (o «poder de autentificação» fotográfico sobrepõe-se, na leitura barthesiana ao seu «poder de representação») – donde a identificação de uma essência distintiva da fotografia com o Isto-foi, com o Real Passado: A Fotografia não rememora o passado (não há nada de proustiano numa foto). O efeito que ela produz em mim não é o de restituir aquilo que é abolido (pelo tempo, pela distância), mas o de confirmar que aquilo que vejo existiu realmente. Trata-se, portanto, de um efeito verdadeiramente escandaloso. A fotografia espanta-me sempre, com um espanto que perdura e se renova inesgotavelmente. Talvez esse espanto, essa teimosia, mergulhe na substância religiosa a que estou afeiçoado. Nada a fazer. A Fotografia tem algo a ver com a ressurreição […] 13. Esta metafísica da «presença», mesmo se diminuída da legitimação metonímica, da contiguidade real, assumirá também particular centralidade, transposta para os termos de uma poética operativa, no domínio da pintura retratística de Seiscentos, italiana e flamenga, muito incrementada pela tópica ecfrástica antiga, de origem retórica, promotora dos lugares comuns do «retrato vivo» ou do «retrato que fala»: cite-se o caso emblemático de van Dyck, consensualmente tido como principal responsável pela invenção das fórmulas canónicas do retrato moderno; o seu Retrato de Virginio Cesarini, actualmente no Hermitage; tantos outros retratos do Barroco como o Retrato de Monsignor Giovanni Battista Agucchi de Domenichino; ou o Auto-retrato de Simon Vouet; ou, no domínio escultórico, o busto do Cardeal Scipione Borghese de Bernini (figs. 2 a 5) levam a um extraordinário grau de apuro técnico-formal o novo modelo do retrato de «afetto et azione» e a voga das «ressemblances parlantes», insistindo na captura visual de efeitos e gestos transitórios. Carl Dryer, no filme A Paixão de Joana e, portanto, os influenciou.» (Tradução: Anoar Aiex. Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia). Homepage do grupo: http://br.egroups.com/ group/acropolis/) 13 Roland Barthes, A câmara clara – Nota sobre a fotografia (1.ª ed. 1980), Lisboa, Edições 70, 2006, pp. 92-93; cf. ainda pp. ss. POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 273 d’Arc, de 1928, consegue uma aplicação notável deste modelo ao retrato cinematográfico, como se seguisse à letra a tratadística seiscentista das paixões, de conhecida rentabilidade na pintura erótico-religiosa do Barroco, para a construção do diagrama facial da mártir visio- 2. Anton Van Dyck, Retrato de Virginio Cesarini (c. 1622-23) 3. Domenichino, Retrato de Monsignor Giovanni Battista Agucchi (c. 1615-20) 4. Simon Vouet, Auto-retrato (c. 1615) 5. Gian Lorenzo Bernini, Busto do Cardeal Scipione Borghese (1632) 274 DIACRÍTICA nária: close-ups dramáticos, verticalização da iconografia teofânica em sucessivas perspectivas «de baixo para cima», gramática corporal do assombro e do êxtase místicos nos gestos codificados da boca entreaberta, dos olhos cerrados, das mãos postas (figs. 6 e 7). 6/7. Carl Dryer, A Paixão de Joana d’Arc (1928) A subordinação do visual ao invisível que a representação barroca das paixões fomentou a par das «desarmantes» conclusões das novas ciências ópticas, que apontavam para a natureza mediata e construída do conhecimento visual, farão derivar o retrato no sentido da recriação de almas e interiores humanos, inscrevendo-o num regime de espelhamentos psicológicos e afectivos entre o artista e o modelo, Pai e Filho, de evidente substrato religioso. O tópico do «divino pintor», fazedor de mundos e de criaturas – no qual Albrecht Dürer aparentemente se travestira no seu auto-retrato de 1500 (fig. 8) – comparece neste contexto com clara evidência: trata-se afinal de substituir a obra de arte pela própria vida, de ressuscitar na carne viva da tela modelos ausentes, segundo uma espantosa equação de naturalismo e prestidigitação. Se falasse deveras, o retrato negar-se-ia como tal: a ilusão da semelhança, critério do «retrato vivo», balança-se nesse corredor estreitíssimo (a observação é de J. Gil) entre a mudez da imagem e a 8. Albrecht Dürer, Auto-retrato irrupção iminente da palavra. (1500) POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 275 […] se falasse, o retrato deixaria de ser uma representação para se transformar numa pessoa viva e, como tal, corruptível e mortal. Perderia assim o seu poder de sobrevivência. Não é pois da fala que carece; pelo contrário, de não falar lhe advém a virtude de ser «vivo», quer dizer, semelhante e fiel ao original 14. A preocupação de imortalidade não é de ordem estritamente metafísica, mas também, como aponta o mesmo ensaísta, de ordem estética: no fundo, trata-se de construir esteticamente uma presença eterna, a da verdade de um rosto absolutamente coincidente com a verdade do retrato. Não uma representação ou uma reprodução duradoura, mas uma re-criação (num sentido muito idêntico ao que encontramos na estatuária funerária egípcia e nos retratos de Faium em particular (figs 9 e 10), interpretados como prolongamentos efectivos do sujeito defunto e suportes imperecíveis do seu elemento vital. É nisto sobretudo que «a estética do retrato implica uma metafísica» 15. 9/10. Retratos de Faium (séculos II-III d.C.) O recorte das identidades 3. Voltemos atrás. Na lenda narrada por Plínio, a linha do contorno marca a topografia de uma falácia, provavelmente a mais persistente no que toca o paradigma epistemológico da representação e da arte 14 15 José Gil, «A Arte do Retrato», p. 21. Ibid., p. 22. 276 DIACRÍTICA figurativa em geral: a da suposta transparência da apropriação do real. O retrato assume de forma emblemática o paradoxo representativo mais básico: o que põe em jogo referência e autonomia, a relação com o objecto e o sistema dos sinais estéticos. Tomemos o caso do perfil: parcialmente «naturalizado» pelo mito, o perfil canonizou-se como forma de uma intenção identificadora (pen- 11 a 14. J. C. Lavater, Ensaios de Fisiognomonia (1789-92) POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 277 samos em Baxandall 16), cumprindo funções de registo fisionómico. Nos seus Ensaios de Fisiognomonia (1789-92), J. C. Lavater encontraria justamente no perfil e no uso da silhueta (figs. 11 a 14) a imobilidade necessária à aplicação da sua hermenêutica dos temperamentos, fundada numa especializada, quanto idealizada, aritmética da semelhança. Analogamente, não é coincidência o facto de a antiga arte medalhística, cuja influência nos pintores do Renascimento foi decisiva, ter privilegiado desde sempre o retrato de perfil, «compensando» o déficit de expressão com a garantia documental e a «soberania» do recorte 17. Os grandes medalhistas da Renascença (como Pisanello, Matteo de’Pasti ou Leone Leoni) optarão curiosamente por uma estratégia mista, um código duplo de identificação: civil (reservada aos anversos das medalhas onde aos perfis dos retratados se acrescentava a inscrição do nome/título); psicológica e moral (destinada aos reversos que incluiam com frequência motivos heráldicos e alegóricos com directa remissão à personalidade dos modelos), respondendo-se assim à necessidade humanística de perpetuar a memória de figuras exemplares (figs. 15 a 18). 15/16. Antonio Pisano (Pisanello), Medalha 16 Michael Baxandall, Padrões de Intenção: a Explicação Histórica dos Quadros, Companhia das Letras, 2006 [1.ª ed. 1985]. 17 Sobre o perfil, observa Jean-François Lhote «que não permite a expressão, mas imprime um toque de eternidade ao personagem». (Cf. «Acerca das origens do retrato moderno», in A Arte do Retrato – Quotidiano e Circunstância (Catálogo da Exposição: Outubro de 1999 a Janeiro de 2000), Fundação Calouste Gulbenkian/Museu Calouste Gulbenkian, 1999, p. 35.) 278 DIACRÍTICA 17/18. Matteo De’ Pasti, Medalha No XXXVIII capítulo de Nome de Guerra, Almada Negreiros coloca ficcionalmente o que poderia ser uma ilustração modelar da reflexão que também Meyer Schapiro 18 dedicará à polaridade simbólica do perfil e do frontal, com a particularidade de a concentrar na mesma figura, anatomicamente inverosímil, de Judite: «um achado raríssimo de cor e de forma». O perfil é aqui mais uma vez o desenho de uma identidade genealógica, rácica, e não a expressão de uma interioridade ou de uma «alma»; Judite, a cabeça de Judite (possível quiasmo bíblico-simbólico?) é quase uma alegoria teorética que permite opor duas concepções de retrato: como forma correcta e idealizada (o perfil) e como «verdade» fisiognomónica monstruosa (o frontal); a segunda convertível na primeira sob a condição necessária da mutilação, i.e., da metamorfose da natureza em cultura: […] O perfil, desde o fim da testa, com a boca fechada, até ao busto, era formidável de inteireza e de carácter meridional, peninsular, português. Bastante viril e, sem por isso, ser masculino. Parecido com os dos pajens do século XV. A diferença entre o perfil e a frente era esmagadora. Ela tinha escarrada num focinho animal a triste vida que levava. A fisionomia era canalha e grosseira, e o seu perfil, nobre e puro, não cabia ali. Se a Judite fosse uma estátua, podia ser aproveitada como exemplo de beleza, depois de sofrer algumas mutilações. 18 Meyer Schapiro, «Frente e perfil enquanto formas simbólicas», in BASÍLIO, Kelly et al. (org.), Concerto das Artes. Coord. Kelly Basílio. Porto, Campo das Letras, 2007, p. 85. POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 279 O acesso ao retrato e as declinações da auctoritas 4. O acesso à representação retratística gera dois imediatos efeitos colaterais: inscreve a imagem no domínio público e oferece-a à memória colectiva. À função identificadora, o retrato adiciona o seu poder de evocação e de exemplo: o retrato, observa Pommier, «não é apenas a pessoa, mas também […] uma vida a imitar» 19. Simultaneamente objecto e efeito do retrato, a autoridade produz-se como acréscimo que reflui, em última instância, sobre o estatuto do próprio género retratístico: ao mesmo tempo que celebra, o retrato investe numa continuidade – não só na dos seus modelos e correlativamente nos valores culturais, políticos ou morais de que são portadores, mas igualmente na sua própria continuidade genológica e funcional (pense-se na remota tradição das colecções e das exibições públicas de retratos que, ao mesmo tempo que delimitam espaços votivos e cultuais, autoafirmam-se esteticamente como «necessidade» 20). O retrato é sempre celebração e auto-celebração: o que nos conduziria a pensá-lo como género potencialmente germinativo. Historicamente, o desempenho da exemplaridade retratística foi – sobretudo até ao século XVIII, altura em que novas elites disputam a cena social – reservada a públicos restritos que preenchiam papéis simbólicos centrais na estrutura cultural e sócio-política: figuras de corte, do clero e da aristocracia, de onde provinha grande parte das encomendas, ocupam o essencial do espaço representativo do retrato que, ao mesmo tempo que reflecte a ordem social e o arranjo dominante, estipula os «moldes» nos quais se devem enformar as identidades 19 Édouard Pommier, in Concerto das Artes, p. 178. A tendência para a colecção e para a exibição cumulativa de retratos (comum durante os séculos XVI e XVII através de inúmeras biografias ilustradas de artistas: como as de Vasari, Bellori ou a celebrada Iconografia de Van Dyck, de 1645; recorde-se ainda, já no século XIX, o monumental projecto retratístico da Hall of Fame concebido por George Frederic Watts e absorvido mais tarde pela National Portrait Gallery de Londres) admitiria duas leituras complementares: por um lado, o imperativo de fabricar e de delimitar um espaço, que é sempre, ainda que em sentidos distintos, um espaço enfático de autoridade (cf. caso típico do «salão nobre»); por outro lado, a de induzir ao prolongamento da própria série retratística como estratégia de auto-afirmação regulada por um princípio teológico de multiplicação de imagens semelhantes – se quiséssemos regressar por outras vias à metafísica do retrato; uma auto-afirmação tão urgente quanto se sabe do relativo desprestígio do retrato em termos das hierarquias oficiais dos géneros pictóricos adoptadas pela Academia de Paris, ainda no século XVII, com o argumento do seu excesso de naturalismo imitativo. 20 280 DIACRÍTICA individuais. Com raras excepções (recorde-se a tradição documentarista inglesa do retrato d’Os criados da casa no exemplo de Hogarth – fig. 19; ou casos mais isolados como A chávena de chocolate – fig. 20, de Jean Étienne Liotard ou A bela leiteira de Vermeer – fig. 21), que insistem significativamente na categorização profissional), as classes populares são reservadas ao anonimato da pintura de género onde a singularidade do modelo se dilui num ambiente: «humildes presenças» cujo grau de «inexistência» o retrato demonstra na proporção da sua atipicidade relativamente aos padrões identitários reconhecidos. É significativo como a mendicidade ou a marginalidade suscitam mais recorrentemente o retrato de uma condição colectiva do que o retrato de uma identidade individual: nos Britadores de Pedra de Courbet (fig. 22), o «povo» é ainda o interdito de uma facies (própria, singular); muitos dos recentes trabalhos fotográficos de Joan Guerrero 21 sobre os pobres da América Latina (fig. 23), na linha do que fizera já Tina Modotti, em finais da década de 20, fotografando as populações do México rural (figs. 24 e 25), são retratos cuja eloquência, ideológica e ética, se concentra na presentação selectiva e truncada do corpo: as mãos ou os pés (os lugares corporais da crucificação), em substituição das figuras faciais, narram-nos a privação: de uma narrativa/de uma presença individuais. Apesar da oligarquia retratística preconizada por Francisco de Holanda no seu tratado de 1549, com aplicação simétrica a modelos e a pintores («ser pouco» para «ser muito», segundo a fórmula holandina da perfeição) 22, os rostos do poder são, ainda assim, proliferantes. O que acarreta uma desindividuação paralela, que agora se produz por excesso, por redundância. Apesar de critérios a favor de uma escrupulosa fidelidade aos modelos acentuando a eficácia da ilusão e o valor 21 Cf. Pedro Casaldáliga e Joan Guerrero, Los ojos de los pobres, Barcelona, Ediciones Península, 2005. 22 Cf. Francisco de Holanda, Do Tirar Polo Natural, Livros Horizonte, 1984. No primeiro capítulo do seu tratado, «Como poucos podem fazer perfeição», lêem-se, ditas pela voz de Fernando que o autor assume, declarações como estas: «O primeiro preceito que eu no tirar ao natural poria, é que o pintor excelente (se lhe quereis chamar pintor) que pinte muito poucas pessoas, e estas muito singularmente escolhidas, pondo mais a perfeição e o cuidado no primor da pouca obra, que no número da muita.» E mais adiante: «Torno a dizer que o grande ofício de imitar ao sumo Deus nas suas obras, e o mandar à memória um príncipe ou pessoa digna de merecimento (que estes sós são os que merecem ser ao natural terladados, e mostrados polo mundo), se não deve de fiar senão de um eminente e singular desenhador» (p. 14). 281 POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 19. William Hogarth, Os criados (1750-55) 20. J. E. Liotard, A rapariga do chocolate (1745) 21. J. Vermeer, A leiteira (1657-58) 282 DIACRÍTICA 22. Gustave Courbet, Os britadores (1847) 23. Joan Guerrero, Fotografia (2005) POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 283 24/25. Tina Modotti, Fotografias (c.1927-28) do exemplo, os retratos de Estado, os aparatos, os equestres tendem genericamente a adoptar tipologias representativas estereotipadas, com repertórios e fórmulas fixas de composição (os cenários, as poses, o guarda-roupa, as escalas, os formatos), participando na configuração do establishment e sustentando, reversamente, a sua própria legibilidade 23. A mesma retórica das opulências, a mesma vocação teatral, o mesmo sentido do espectáculo detectam-se, sem notórias variações, em qualquer figuração corpórea do político. Pensem-se nos retratos de aparato de pintores régios como Velásquez (retrato de Filipe IV de Espanha – fig. 26) ou Van Dyck (retrato de Carlos I de Inglaterra – fig. 27); no retrato monumental de Luís XIV por Hyacinthe Rigaud (fig. 28) ou de Napoleão por Ingres (curiosamente, o padão iconográfico repetindo-se no essencial na tela dedicada a Zeus, pelo mesmo pintor – figs. 29 e 30). A legitimação pela história explica também aqui a frequente idealização da figura por conformidade a modelos antigos, ainda que às custas de assintonias e aberrações contextuais. Uma das leituras recentes e provavelmente mais perversas da prática vulgarizada do 23 Como observa Bruno Marques (Mulheres do Século XVIII – Os Retratos, Lisboa, Ela por Ela, 2006, p. 13): «[…] é também o medo de uma sociedade ilegível que explica por que o retrato aparece na maior parte das vezes tão confinado a certos esquemas e fórmulas.» 284 DIACRÍTICA 26. Diego Velásquez, Filipe IV de Espanha (c. 1631-32) 29. Ingres, Napoleão I no Trono Imperial (1806) 27. Anton Van Dyck, Retrato de Carlos I (1636) 28. Hyacinthe Rigaud, Retrato de Luís XIV (1701) 30. Ingres, Jupiter e Tétis (1811) retrato à antiga foi posta em prática pelo eugenismo político do nacional socialismo no intuito de definir e difundir formatos corporais de suposta «pureza» estética, obedientes ao cânone do «corpo grego» que POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 285 a ideologia germanófila de Nietzsche e o triunfal documentário de Riefenstahl contribuiram a sacralizar 24 (fig. 31). Na mesma linha da fixação tipológica, refira-se o gosto pelo retrato mitológico, muito em voga no rococó francês, assumível como a versão galante da citação clássica, talhada à medida da mundanidade narcísica de Versalhes: são conhecidos os múltiplos travestimentos retratísticos assinados por Jean-Marc Nattier (Le Duc de Chaulnes, como Hércules fig. 32; Madame de Pompadour como Diana – fig. 33); o próprio Rembrandt já experimentara este modelo ao retratar como Flora a esposa Saskia (fig. 34), assim como Rubens o fizera no retrato da sua jovem esposa Helène Fourment como Afrodite (fig. 35). Assinale-se também aqui a sintomática rentabilidade deste processo na fotografia contemporânea, recontextualizado por poéticas recentes de teatralização e de re-engendramento do corpo que se desenvolvem em torno da máscara, da mutação, do híbrido. Na continuidade das subversões (auto)retratísticas duchampianas centradas no jogo paródico dos papéis identitá- 31. Leni Riefensthal, Olympia (1936) rios, Cyndy Sherman (fig. 36) é um dos nomes carismáticos da cultura visual pósmoderna cuja metalinguagem corporal explora criticamente as fronteiras entre identidade (individual) e estereotipia (cultural, étnica, sexual). O género e o étnico constituem categorias identicamente centrais na produção retratística do fotógrafo japonês Yasumasa Morimura (figs. 37 a 39): através de um recenseamento apropriacionista e irónico da mitologia artística e cinematográfica aplicada a sucessivos desdobramentos auto-retratísticos, formula-se aparentemente a hipótese de uma identidade pública, transcultural e desterritorializada, conforme à lógica globalizadora, intermediática e glamourosamente consumível das sociedades contemporâneas. Torna-se aliás discutível, nesta sequência, entender 24 Cf. Simon Goldhill, «O corpo perfeito», in Amor, Sexo e Tragédia – A contemporaneidade do classicismo, Lisboa, Alêtheia Editores, 2006, pp. 17-37. 286 32. Jean-Marc Nattier, O Duque de Chaulnes como Hércules (1746) 34. Rembrandt, Saskia como Flora (1634) DIACRÍTICA 33. Jean-Marc Nattier, Madame de Pompadour como Diana (1752) 35. Peter Paul Rubens, A pequena pele (Retrato de Hélène Fourment) (c.1638) 287 POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 36. Cindy Sherman, Terrina Limoges (1990) 37. Yasumasa Morimura, Retrato (Futago) (1988-1990) 38. Y. Morimura, Auto-Retrato como Marlene Dietrich (1996) 39. Y. Morimura, Auto-Retrato como Audrey Hepburn (1996) 288 DIACRÍTICA a produção fotográfica de Morimura dentro dos parâmetros/funções tradicionais do retrato 25. Sensivelmente até à ruptura impressionista da segunda metade do século XIX, o retrato pensou-se sistematicamente a partir de esquemas tipológicos fixos, conformes a uma mesma lógica de repetição de formatos representativos: situamo-nos, no geral, face a formas institucionalizadas, obedientes a arquétipos figurativos e a imagens mentais razoavelmente mineralizadas. 5. Mirabilia e monstruosidade: a loucura da carne Um importante reforço desta redundância legível a que até aqui fizemos referência é endossada às figurações monstruosas que interrogam uma certa ideia de humanidade do homem: uma espécie de escândalos racionais e teológicos que pioneiramente Geoffroy de Saint-Hilaire teorizou nos termos científicos de «leis da aberração» e que a filosofia cristã, através de figuras como a de Santo Agostinho, se esforçara já por absorver enquanto mirabilia, maravilhas incompreensíveis da Criação. Importa entender o sentido da negatividade dos monstros: «Os monstros […] existem não para nos mostrar o que não somos, mas o que poderíamos ser» 26. É porque se situa no limite (interno) do domínio humano, e não fora dele, que o monstro se torna fundamental na definição da norma da figura humana. Acrescenta Gil: «não é na simples oposição que o homem se define em relação aos monstros, mas num sistema complexo de afinidades com figuras (sobretudo a da divindade e a do animal) que mantêm distâncias estruturais estáveis com a situação que ele ocupa» 27. A afinidade figural permite, por outro lado, a manutenção de um «relato» sobre a monstruosidade e a existência de um vocabulário partilhado; ao aprovarem apenas as imagens susceptíveis de explicação, os teólogos medievais zelavam pela preservação dessa distância estável entre figuras sem a qual nos expúnhamos ao «desregramento da cultura»: a ideia de um «avesso do mundo» na Cidade de Deus agostiniana, que implicaria a de uma outra origem 25 A este propósito, veja-se Shearer West, Portraiture, Oxford University Press, 2004, pp. 210-212. 26 José Gil, Monstros. Trad. de José Luís Luna. Lisboa, Relógio d’Água Editores, 2006, p. 12. 27 Ibid., p. 14. POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 289 dos homens, é frontalmente recusada. As várias propostas de sistematização da morfologia monstruosa 28 inscrevem-se neste pressuposto de uma «alteridade fixa» de que é possível falar. O monstro, entendido como «loucura da carne» é um quase-conceito 29 que nos permite conceber a humanidade como racional. Frequentemente associado ao espaço da corte – como se se tratasse aqui de definir figurações limítrofes, nos extremos opostos do representável – o anão, integrado numa colecção de curiosidades ou prodígios que constituíam o séquito de entretenimento das casas reais, é um dos alvos recorrentes de atenção retratística. Arrigo peloso, Pietro matto e Amon nano, de Agostino Carraci (fig. 40), pintado para o Cardeal Odoardo Farnese, oferece-nos uma acumulação caricatural de figuras exóticas, justapondo humanidade e animalidade. Entre o anão e o bufão, figuras simetricamente descentradas, figura o homempeludo Arrigo Gonzalus, um dos filhos da «extraordinária» família Gonsal(v)us, já antes prolificamente retratada e com lugar na divulgada História dos Monstros (1642) de Aldrovandi 30. 40. Agostino Carraci, Arrigo peloso, Pietro matto e Amon nano (1590-1599) 28 Confrontem-se tipologias do século XVI como a de Lychostenes Prodigiorum ac ostentorum chronicon, 1557; ou ensaios modernos: Gilbert Lascauult, Le monstre dans l’art occidental, 1973; Claude Kappler, Monstres, Démons et Merveilles, 1980. 29 Cf. José Gil, Monstros, p. 19. 30 Alberto Manguel traça o itinerário retratístico dos Gonsalvus desde as pinturas anónimas do castelo de Ambras, perto de Innsbruck, que inspiraram os desenhos de Joris Hoennagel para Animalia Rationalia et insecta [Ignis],em 1582 - Munique, passando pelas ilustrações do Bestiário do Imperador Rodolfo II executadas pelo pintor de corte Dirk de Quade Van Ravestyn, cerca de 1580, até à famosa recolha do cientista bolonhês Ulyssis Aldrovandi Monstrorum historia, publicada postumamente em 1642. Natural das 290 DIACRÍTICA Na canónica tela de Velásquez, Las Meninas (fig. 41), a anã, em plano dianteiro, inverte a perspectiva e descentra a ordem representativa da composição: é excessiva relativamente ao casal real miniaturizado no espelho; contrasta, nas suas proporções anómalas, com as restantes figuras que a rodeiam. Em certo sentido, aqui já tendencialmente moderno, o anão é mais do que a ilustração negativa da ética iconográfica da humanidade, mas cumpre, no quadro, uma função (estético)programática: constitui em si a alegoria da representação como monstruosidade, aquilo que a descontextualiza e denuncia o seu jogo de manipulações 31. 41. Diego Velásquez, Las Meninas (1656) 42. Marianna Gartner, Família Leopardo (1994) A leitura diferencial da auctoritas retratística na contemporaneidade tem assimilado este sentido da denúncia em termos simultaneamente estéticos e político-culturais. Em 1994, a artista canadense Marianna Gartner apresenta, numa série que explora os temas circenses intitulada Mitos e imagens, um invulgar grande formato da Família Leopardo (fig. 42). Realizado a partir de uma fotografia de arquivo de ilhas Canárias, Petrus Gonsalvus padecia de uma doença de pele rara (hypertrichosis universalis congenita) que provocava o crescimento de pêlos em todo o corpo; apesar de a sua esposa holandesa ser neste aspecto saudável, todos os seus quatro filhos herdaram a mesma patologia. Cf. Leer imágenes – una historia privada del arte. Trad. por Carlos José Restrepo. Madrid, Alianza Editorial, 2003, pp. 113-147. 31 Sobre a leitura do anão na tela velasquenha veja-se José Gil, Monstros, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2006, p. 62. POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 291 um circo, o retrato mostra frontalmente (ou quase) quatro membros da família em indumentária convencional e poses estudadamente solenes, contra um fundo de ouro velho, decalcando os padrões oficiais do retrato de família burguesa. Não estamos perante qualquer paródia iconográfica ou qualquer exibição mais ou menos anedótica de exotismos; antes, como sugere a leitura de A. Manguel, de uma devolução: devolver uma identidade e uma dignidade culturalmente usurpadas, normalizar a «anormalidade» adjudicando-lhe «os ornamentos com que a sociedade glorifica a autoridade e recompensa o poder» 32. Um último exemplo, literário: o anão inglês de Cesariny, no poema «shafftsbury avenue». Vi um anão inglês e fiquei perturbado Desceu-me a chávena ao peito como quem sofre Julgava ter olhos para tudo e não os tive para isto Um anão inglês a atravessar uma rua inglesa Com um fato à inglesa muito curto E a mãozinha inglesa a dar a dar Eu que ainda ontem escrevi um poema Sobre os tamanhos fantasmas dos ingleses As pernas de oceano dos ingleses Os braços florestais dos ingleses Dei um salto para o chão e entornei a bebida sobre o Pedinte Que afinal também há nas casas de chá barato «Dwarf! Dwarf!burning bright» «In the forest of the night» Que nome lhe darão na intimidade? Vic? Jimmy? Christian Dwarf Road? Deixá-lo-ão sair para o estrangeiro sem ser de circo? […] «Did He smile His worke to see?» «Did He who made the Lamb make thee?» 32 Ibid., p. 172; acerca da obra de Marianna Gartner, consultem-se pp. 149-185. 292 DIACRÍTICA Claro que isto são maneiras Não vivo como o outro, preso pela espinha aos caudais da verdade. De um lado Buckingham Palace do outro o caso do profundamente humano. E seria inglês, este anão? Não seria italiano? (MÁRIO CESARINY, «shafftsbury avenue» in Pena Capital) O anão é aqui o negativo não redutível: descrito nos termos de um contra-tipo simultaneamente imagológico (o anão de mãozinha inglesa a dar a dar versus o inglês de pernas de oceano e braços florestais) e teológico (Dwarf versus Lamb) – figura «impossível» que subverte/ desorganiza toda uma mitologia cultural a que não é imune a própria lucidez poética (veja-se a ironia ambígua das interrogações finais) – o anão torna-se exemplo e exemplum de humanidade, em directo confronto com a autoridade de Buckingham Palace. Em vez de legitimar, por inversão, a paráfrase da «normalidade», a monstruosidade corresponde aqui ao dissemelhante como possibilidade perturbadora no coração da norma. 6. O retrato em movimento: metamorfoses, desfigurações, interditos A irrupção da dissemelhança trazida pelo anão inglês é neste ponto comparável à da cor preta do peixe na breve história sobre o pintor e o aquário com que Herberto Helder prefaciava, em 64, o primeiro número da revista Poesia Experimental: «a insídia do real [abrindo] um abismo na primitiva fidelidade do pintor.» A lei da metamorfose que o texto herbertiano postula como princípio poético-vital («[…] existe apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Essa lei seria a metamorfose.») dita afinal o que poderá ser o novo regime retratístico da contemporaneidade: o retrato como forma «em devir» ou como topologia centrífuga, menos POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 293 absorvida na «representação» de uma «imagem» ilusoriamente una, do que na apreensão do jogo de forças que torna potencialmente cada rosto irreconhecível perante si próprio: «[…] de certo modo», como reflecte José Gil, «o rosto não existe, não é uma coisa, nem sequer uma imagem estática e plena, apenas um lugar, um território onde tudo se inscreve e de onde tudo foge, dentro e fora do espaço objectivo» 33. Percebem-se as «aporias da semelhança». Para o artista, já não se trata de representar formas e relações formais, mas de intersectar e de incorporar em si próprio movimentos e intensidades alheias, de desenhar a curva das pequenas percepções que captam da figura os intervalos diferenciais que lhe dão sentido, ou a projectam para fora do sentido: «o inesperado do retrato», na formulação de Júlio Pomar 34. Ao propor noções de identidade fora das qualificações romântico-burguesas do «autêntico», do «único» e do «original», o retrato contemporâneo tem absorvido progressivamente a ideia de mobilidade. É ela que em grande parte explica o impulso tão recorrente da série, declinando o inacabamento em termos de variação. Num breve texto de 77, retomado na introdução que escreve para um álbum de retratos e auto-retratos de Francis Bacon 35, Milan Kundera referia-se ao tríptico retratístico de Henrietta Moraes (fig. 43), pelo pintor, nos termos de um rapto brutal da figura, como se o artista se quisesse apoderar de qualquer coisa oculta, um hidden diamond, que não é certo que exista. Em Bacon, essa procura adquire uma fundura tridimensional que esgaça e deforma a matéria corporal, sem que, no conjunto das anamorfoses seriais, se perca uma certa noção de «parecença» ou de «fidelidade». «In painting, we always leave in too much that is habit, we never eliminate enough», diria Bacon: o princípio da variação é também um princípio de redução, de eliminação do excesso (etnográfico, estético, técnico) até a um limite mínimo onde é provável que resida o self. Um self agora totalmente corporal (a interioridade, 33 José Gil, p. 31. Cf. Júlio Pomar, Então e a Pintura?. Tradução de Pedro Tamen da versão original em língua francesa. Servida com Notas, Acrescentos & Mais fruta da estação em directo do Lavrador, mesmo. Lisboa, Pub. Dom Quixote, 2002. A propósito da articulação entre evidência e ocultação, memória e esquecimento na construção retratística, Pomar insiste numa certa dimensão não intencional da imagem: «Um retrato que não é inesperado é um retrato que não existe como tal» (p. 98). 35 France Borel, Bacon: Portraits and Self-Portraits. Introduction by Milan Kundera. London, Thames and Hudson, 1996. 34 294 DIACRÍTICA 43. Francis Bacon, Três Estudos para o Retrato de Henrietta Moraes (1963) em Bacon, nunca é metafísica) subentendendo um entendimento do organismo como puro «acidente» que na pintura «acontece» quando «acontece pintura» (cf. figs. 44 e 44a). 44/44a. Francis Bacon, Auto-Retrato (1971) Uma espécie de voyeurismo performativo instala-se nas imagens baconianas: uma espiação que se cumpre num «fazer», numa fábrica de criação ou de forma-ção que se apropria da matéria mais básica e a expõe como «actividade» entre o impulso formal e o que se aparenta com o informalismo mais radical: um happening diria Leiris a propósito do realismo criador (não anedótico) de Bacon 36; o atletismo do 36 Cf. Michel Leiris, Francis Bacon, Face et Profil, Paris, Éditions Albin Michel, 2004, p. 117. POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 295 espasmo, na hermenêutica deleuziana das sensações 37. Os retratos e os auto-retratos de Bacon fazem coincidir o monstruoso animal com o arbitrário orgânico, com o nosso próprio escândalo fisiológico. Neste entendimento para-figurativo da figura que faz explodir a «boa forma», Francis Bacon terá tido precedentes. Sobretudo um precedente: Picasso. No estudo que dedica aos monstros picassianos, produzidos em finais da década de 20 e princípios dos anos 30 38 (fig. 45), Castro Caldas aponta em Picasso uma consciência do corpo enquanto «método», uma consciência destematizadora que inventa estruturas figurais absolutamente novas. Já não se trata, como acontecia com a teratologia monstruosa medieval, de simples jogos combinatórios com morfemas corporais, formal e funcionalmente estáveis (adição/supressão/deslocação de membros ou orgãos), que mantêm o sentido da totalidade e fazem trabalhar a infralíngua 39, mostrando, 45. Pablo Picasso, Figuras à beira-mar (1931) 37 Cf. Gilles Deleuze, Francis Bacon, Logique de la sensation, Paris, Éditions du Seuil, 2002, pp. 21-26. 38 Manuel Castro Caldas, A Figura e o Corpo – O regime da figura nos «monstros» de Picasso, 1925-1932, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987. 39 Cf. José Gil, Monstros, pp. 142 ss. 296 DIACRÍTICA às avessas, os pontos de articulação entre o corpo e o mundo; as construções biomórficas picassianas suspendem a ordem relacional, impugnam o regime infralinguístico que sustenta a leitura corporal do mundo, na medida em que substituem o processo de decomposição da infralíngua em unidades articuláveis por um novo regime não analógico de formação da forma. Um regime que contraria explicitamente a lógica da Gestalt e do «organismo», substituindo-a por um princípio energético, de Gestaltuung, que reconduz a uma relação de forças a origem de todas as formas. Retomemos a ideia do retrato «em movimento»: num certo sentido, os monstros de Picasso serão retratos possíveis que emergem de um espaço de produção de figuras indiferente a qualquer reconhecimento de identidades. Na poesia portuguesa contemporânea, Luís Miguel Nava representa um dos casos mais emblemáticos de expressão poética de uma corporalidade explodida e organicamente visceral, muito próxima do registo plástico baconiano. A pintura de Francis Bacon constitui, aliás, uma referência importante no ensaísmo do poeta (sem passar obrigatoriamente pela «influência» ou pela dependência ecfrástica, como justamente observou Fernando Martinho 40). Os motivos recorrentes do aquoso, do gorduroso, do flácido, simultaneamente baconianos e navianos, implicam a percepção da matéria corporal ao nível do plasma, da lava orgânica, impedindo a fixação de uma imagem estável do corpo que gravita algures, «espacejado», desalojado da sua própria memória numa coreografia deserta de referências (i.e. de hipóteses de identificação). À semelhança das pinceladas brutais de Bacon, espessas manchas curvilíneas que se sobrepõem e se entrechocam atiradas contra fundos irreferencialmente monocromáticos, a poesia de Luís Miguel Nava assume a deformação como confronto de forças, numa declinação própria do mesmo princípio de metamorfose que Helder compreendera como novo (anti)organon de toda a coisa criada ou criável: a massa em via de forma, a reconstrução «meticulosa» das entranhas sob a nova pele transparente do celofane. Perdia-se-lhe o corpo no deserto, que dentro dele aos poucos conquistava um espaço cada vez maior, novos contornos, novas posições, e lhe envolvia os órgãos que, isolados nas areias, adquiriam uma reverberação particular. Ia-se de dia para dia espacejando. As várias partes de 40 Fernando Martinho, «Luís Miguel Nava e Francis Bacon: “a abrupta transparência dos sentidos”», in Relâmpago, 16, 4/2005, pp. 29-38. POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 297 que só por abstracção se chegava à noção de um todo começavam a afastar-se uma das outras, de forma que entre elas não tardou que espumejassem as marés e a própria via-láctea principiasse a abrir caminho. A sua carne exercia aliás uma enigmática atracção sobre as estrelas, que em breve conseguiu assimilar, exibindo-as, aos olhos de quem o não soubesse, como luminosas cicatrizes cujo brilho, transmutado em sangue, lentamente se esvaía. Ele mais não era, nessas ocasiões, do que um morrão, nas cinzas do qual, quase imperceptível, se podia no entanto detectar ainda a palpitação das vísceras, que a mais pequena alteração na direcção do vento era capaz de pôr de novo a funcionar. Resolveu então plastificar-se. Principiou pelas extremidades, pelos dedos das mãos e pelos pés, mas passado pouco tempo eram já os pulmões, os intestinos e o coração o que minuciosamente ele embrulhava em celofane, contra o qual as ondas produziam um ruído aterrador. (LUÍS MIGUEL NAVA, «O corpo espacejado» in O céu sob as entranhas) A figura pelo reverso, o corpo escandido: a estas formulações de Luís Miguel Nava e de Francis Bacon poderíamos opor as «puras superfícies» de Andy Warhol. Os retratos de Warhol, quase em diametral contraponto de método artístico relativamente à volumetria visceral do regime retratístico de Bacon, continuam a corresponder não obstante a espaços de desmontagem de identidades. Warhol produz uma espécie de histeria visual ao replicar sucessivamente o mesmo rosto em faixas decorativas ou séries de serigrafias individuais, variando os campos cromáticos e ameaçando-os com estrias e manchas escuras (figs. 46 e 47). Partindo de imagens já «gastas» (socialmente apropriadas) de ídolos culturais, tratando-as com cores saturadas e excessivas, Warhol sujeita-as a uma sobre-exposição por repetido desdobramento: o hiper-ícone, reproduzido a partir de uma imagem foto- 46. Andy Warhol, Marilyn (1964) 47. Andy Warhol, Díptico Marilyn (1962) 298 DIACRÍTICA gráfica/verídica, transforma-se num motivo bizarramente decorativo, esvaziado de emoções e de peso factual/documental, qualquer coisa como um real «espalmado» e apenas animado pela aura negativa das imagens mediáticas; ou um sintagma rítmico cujo sentido (tautológico) fosse meramente formal 41. A derivação do retrato em pura informação formal parece de resto consumar-se em algum hiperrealismo americano. Na vertente minimalista de Chuck Close, o excesso repetitivo warholiano casa-se com o excesso de zelo analítico (figs. 48 e 48a): os retratos pintados de Close, executados ainda sem a intervenção digital, são todavia interpretáveis como exercícios formais de discretização ou «pixelização» da figura, objectivada copulativamente como soma de unidades mínimas de informação cromática e plástica. O real é aqui apenas operacional, como lhe chama Baudrillard 42: a verdade do simulacro extingue em definitivo o encanto metafísico das «diferenças» entre o retrato e o rosto. 48/48a. Chuck Close, Auto-Retrato (2000) Voltemos ainda à fotografia para tomarmos dois casos recentes de reinterpretação da imagem fotográfica à margem da sua suposta clave naturalista: o do americano Joel-Peter Witkin e o do português Georges Pacheco. Ao contrário de Warhol, que parte do ícone, de um visível hipertrófico, Witkin e Pacheco trabalham com um visível periférico, censurado, institucionalmente não elegível para o retrato. 41 José Gil, «Warhol – As metamorfoses da aura», in Sem Título, pp. 137-141. Cf. Jean Baudrillard, «A precessão dos simulacros», in Simulacros e Simulação, Relógio d’Água, 1991, p. 8. 42 POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 299 Os tableaux fotográficos de Witkin, a preto e branco e fortemente alicerçados na citação plástica erudita e nas técnicas compositivas da pintura, colocam em cena corporalidades «desviantes» (hermafroditas, corpos deficientes, mutilados, acidentados, cadáveres) em contextos representativa e eticamente inesperados e chocantes (figs. 49 a 52). Operando deslocações conceptuais e categoriais que não chegam a fixar-se nem a viabilizar um modelo desambiguizado de leitura, as fotografias de Witkin demostram ser imagens que significam, longe da transparência assimbólica a que ainda se tende a reduzir a figura fotográfica. Sobre os seus retratos de cabeças reais de cadáveres é difícil decidirmos se estamos perante «retratos vivos» (a partir de 49. Joel-Peter Witkin, The Kiss (1982) 51. Joel-Peter Witkin, Story from a Book (1999) 50. Joel-Peter Witkin, Harvest (1984) 52. Joel-Peter Witkin, Face of a Woman (2000) 300 DIACRÍTICA corpos defuntos esteticamente reciclados) ou perante «retratos mortos» (retratos da morte), se perante presenças ou perante ausências; é difícil resolver se se trata deveras de retratos, ou de naturezas-mortas, de versões contemporâneas do memento mori ou da vanitas renascentista, ou de um novo tipo de ready-made; é difícil ter a certeza se o humano constitui o motivo da imagem ou apenas um meio ao seu serviço. The Kiss, uma composição de 82 construída a partir de um único crâneo separado longitudinalmente (pela autópsia) em duas metades, é uma elegia à univocidade orgânica? É uma paródia mimética, sado-satânica? É uma alegoria, um emblema? Um auto-retrato? As colagens e as montagens a que J. P. Witkin sujeita o corpo humano já têm sido lidas como um avatar da banalização da morte a que as imagens mediáticas nos habituaram. Mas também seria plausível entendê-las como um resgate. De qualquer modo, agridem-nos: menos pela sua notabilidade, do que pela sua pensabilidade (parafraseamos, obviamente, a terminologia barthesiana). Algo semelhante acontece na série fotográfica de Georges Pacheco O olhar dos cegos: um conjunto de vinte auto-retratos de cegos, a preto e branco e exibidos em grande escala, em que Pacheco confronta um outro interdito retratístico (figs. 53 a 72). Os cegos integram um arquivo visual reprimido em parte porque recuperam, das velhas axiologias fisiognomónicas, a parcela do vício e do bestial (os rostos negativos da virtude e do divino); em parte porque instituem um problema fenomenológico: os cegos não refractam nem reflectem, não servem de espelho; a visão e o seu regime de reflexividade («olhar é ser olhado») são obstruídos, a clássica teoria sobre a permeabilidade recíproca entre observador e observado, retratista e retratado parece ter aqui uma aplicabilidade nula. A cegueira seria basicamente o «fora» da representação. Dir-se-ia à primeira vista que estes auto-retratos de cegos não poderiam ser, nesta base, senão imagens cegas, nos antípodas daquele olhar triplicado do Homem corajoso com bandeira de Sandro Chia (fig. 73), um olhar-manifesto, de apropriação totalitária e transvanguardista do mundo. Os cegos «nunca vieram à luz», diz um texto de Pedro Proença, […] ficaram definitivamente trancados nessa doce penumbra uterina, têm a mãe espalhada no estranho sorriso não dirigido que espelha uma face que não olha nas faces. Custa-nos olhar esses rostos sem resposta, sem sedução, sem brilho. POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 301 302 DIACRÍTICA 53/72. Georges Pacheco, O Olhar dos Cegos (série fotográfica, 2007) 73. Sandro Chia, Homem corajoso com bandeira (1980) POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 303 […] quando olhamos para um cego ou é o olho ausente que nenhuma pálpebra encerra, ou o olho sem olhar, uma esfera orgânica, húmida, com veias, que inutilmente rola; ou o olho de vidro, prótese para fingir que há um olho que olha mas afinal não olha 43. … um olho que olha mas afinal não olha: diríamos que Georges Pacheco propõe um novo formato para o auto-retrato que exclui e integra simultaneamente a visão. O «não-olhar» do cego que aqui dispara a câmara no momento que decide eleger como o seu «instante decisivo» (a expressão é de Pacheco 44) torna-se coincidente com a «visão concentrada», um confronto com uma ideia de representação e de auto-representação; talvez aquele olhar retido pelo interior, pura atenção sem percepção, diria Barthes; um olhar louco, no fundo, a metáfora da própria Fotografia. Por outro lado, estes olhares de cegos são olhares políticos, declarações, nem por isso muito distantes do que vemos na tela de Chia. Transgride-se a norma reguladora da troca pública de olhares, no sentido inverso ao do voyeurismo: não ver, mas querer ser visto (repare-se na pose frontal de muitos auto-retratos, na proscrição dos óculos escuros, na inclusão da fotografia de família, no nivelamento entre padrões faciais comuns e incomuns dado pela série) é uma resposta política ao espectadorismo retraído pelos cegos, uma reclamação de re-centramento social, ético e estético que toma por estandarte a própria invisualidade. 7. Espelhos e espelhamentos (auto)retratísticos A utilização do espelho, a metáfora convencional da pintura percebida como devolução e/ou revelação do eu-próprio, entre o ícone absoluto e o símbolo epifânico, assume nos (auto)retratos contemporâneos pragmáticas dissonantes, e particularmente eloquentes no sentido de um distanciamento da função de restituição da imagem entendida como crédito de visibilidade. Incluído como «pintura» dentro do espaço do quadro (na esteira do experimentum crucis a que alude Eco), o espelho deixa de ser simples prótese perceptiva, prolongando o 43 Pedro Proença, «Cegos (uma série deles)», in A Arte ao Microscópio, Lisboa, Fenda Edições, 2000, pp. 45-46. 44 Cf. Georges Pacheco, entrevista com Sérgio Gomes, 31 de Março de 2007. [http://artephotographica.blogspot.com/2007/03/conversa-com.html] 304 DIACRÍTICA alcance do orgão visual, para transformar-se na sua própria caricatura. Quer se trate de espelhos deformantes ou de espelhos planos, o espelho pintado é agora sinal de um «exercício contrafactual» com funções directa ou mediatamente alucinatórias 45. 74. M. C. Escher, Mão com esfera reflectora (1935) No espelho convexo de Escher (fig. 74) que produz o retrato intrusivamente como simultopia 46, permitindo a visão (impossível) de mundos simultâneos (por recurso à técnica da reflexão esférica já utilizada por van Eyck, por exemplo, no celebrado Retrato do casamento dos Arnolfini (figs. 75 e 75a), ou por Parmigianino no não menos celebrado Auto-retrato num espelho convexo (fig. 76)); no espelho magritteano que interdita o retrato como reprodução de visageité (fig. 77); no auto-retrato de Lichenstein em 78 (fig. 78) – o retrato segue 45 Veja-se Umberto Eco, «Sobre os espelhos», in Sobre os espelhos e outros ensaios, Lisboa, Difel, 1989, pp, 11-44. 46 O termo é utilizado por Bruno Ernst em estudo que dedica à obra de Escher (cf. O espelho mágico de M. C. Escher, Taschen, 2007, p. 77). POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 75/75a. Jan Van Eyck, Retrato do casamento dos Arnolfini (1434) 76. Parmigianino, Auto-Retrato num espelho convexo (1523-24) 78. Roy Lichenstein, Auto-Retrato (1978) É 77. René Magritte, A Reprodução Interdita – Retrato de Edward James (1937) 305 306 DIACRÍTICA um trajecto anamórfico que culmina numa deserção: o que a cena do quadro emoldura não é uma narrativa identitária mas um ensaio de codificação da imagem que não chega a atingir o nível discursivo da significação estabilizada. O espelho (e o quadro que o contém) deixa de ser o «interruptor» do retrato (parafrasendo José Paulo Pereira 47), mas apenas o espaço «não barrado» de um processo de produção de um «retrato» que não passará necessariamente pela figura (enquanto objectivação formal). A imagem retratística, como estrutura abissal pressupondo um sistema de espelhamentos potencialmente interminável, aparece frequentemente concretizada pelo processo do retrato ou do auto-retrato duplo ou triplo, de forte repercussão na história moderna do retrato que em parte recupera uma tradição remota de jogos de espelhos e teatros catóptricos. Enquadrada num suporte único, a imagem é objecto de clivagens sucessivas segundo uma lógica justapositiva, de encaixe ou de abyme que coloca como charada a questão dos «originais», pondo em evidência o logro analógico da produção da «presença». A promessa identitária do retrato contrasta ironicamente com a ficcionalização complexa da imagem que encena ciclicamente o descentramento e a alienação do sujeito relativamente a si próprio. Apontem-se: Magritte, em Auto-retrato Duplo (fig. 79); o conhecido auto-retrato de Norman Rockwell (fig. 80) em que se inspira a capa metaparódica de um recente livro de Mark Evanier celebrando a revista americana Mad (fig. 81); Erik Boulatov num auto-retrato de 68 (fig. 82); o retrato duplo de Eisenhower na extraordinária fotografia de Manny Warman, Presidential Likeness (fig. 83). O «efeito de espelho» é, em todos estes exemplos, o do trou deleuziano: lugar de deriva e de ilocalização do retrato, de resistência 48 à figura e à política da representação enquanto autoridade e posse perceptivas. Projectadas temporalmente, as séries auto-retratísticas (quando não representem puros exercícios de experimentação técnica à volta de um motivo, como já se ponderou a propósito de Rembrandt por exemplo, mas suponham intenções mais ou menos conscientes de auto-análise ou inquérito psicológico) revelam-se com frequência dispositivos afins de atopia retratística. Refigurar a própria imagem 47 José Paulo Pereira, «A demanda da arte e a deflação da imagem», in Envolvimento e Clímax – Do entre das artes. http://sexta-feira.dyndns.org/interartes/ 48 Cf. No sentido que lhe dá Jacques Derrida em Résistances: de la psychanalyse. 307 POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 79. René Magritte, Auto-Retrato Duplo (1936) 80. Norman Rockwell, Auto-Retrato Triplo (1960) 82. Erik Boulatov, Auto-Retrato (1968) 81. Capa do livro Mad Art: a visual celebration of the art of Mad magazine and the idiots who create it, de Mark Evanier (2002) 83. Manny Warman, Presidential Likeness, Low Library (1964) 308 DIACRÍTICA no tempo – tal como encontramos modernamente em Van Gogh, em Picasso, na finlandesa Helene Schejerfbeck (que se auto-retratou ao longo de 60 anos – figs. 84 a 86) – nem sempre corresponde a uma «fixação» de parecenças e/ou de «essências» ainda na linha daquele increase of being a que se referiu Gadamer 49, a uma afirmação redundante da persona construída pela consistência e pela inalterabilidade da perspectiva e do estilo do retratista; em muitos casos, trata-se essencialmente de um documentário de mutações e de estranhamentos corporais e/ou identitários de categorização problemática. Uma recorrente ferocidade figurativa que lida com estigmas públicos e privados face ao corpo (sobretudo o corpo velho) e com um sentido de identidade já não redutível ao factual ou ao tangível, faz-nos regressar ao rosto desfigurado, ao rosto-buraco (atente-se nos buracos negros dos olhos, da boca), à máscara primitiva, à animalidade. Animalidade e primitivismo que constituem, como é sabido, outra linha forte de leitura do moderno e que poderá incluir uma glosa a toda uma cosmética metropolitana e mediática, sinalizando criticamente uma versão globalizadora e consumível da questão identitária. 84 a 86. Helene Schjerfbeck, Auto-Retratos (de 1884-5 a 1944) I SHOP, THEREFORE I AM, na citação «errada» de Barbara Kruger (fig. 87) em pretendido efeito de logotipia, denuncia essa devoração do «eu» (que consome e se auto-consome) num retrato coincidente com uma cena parcialmente verbal, onde a lógica derivativa do ter no ser se replica na comutação do rosto pela mão. Adentramo-nos 49 Veja-se o ensaio de Ernst Van Alphen, «The portrait’s dispersal: concepts of representation and subjectivity in contemporary portrait», in Joanna Woodwall (ed.), Portraiture-Facing the subject, pp. 239-256. POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 309 nos domínios do que se tem chamado retrato conceptual que opta com frequência pela total erosão da figura, apenas recuperável mediatamente por inferência. 87. Barbara Krueger (Sem Título) (1987) Van Gogh já o tinha ensaiado, pondo em prática um princípio de contiguidade que o retrato contemporâneo virá com frequência a adoptar. Muitas das suas naturezas-mortas são «impuras» ou puros índices: como os repetidos pares de botas ou as as repetidas cadeiras vazias que pinta (figs. 88 e 89), objectos quotidianos puramente funcionais transmutados em retratos concentrados – recordamos a meditação seniana 50 – que expulsam a figuração do humano (numa linha talvez ainda devedora à da ética calvinista holandesa), mas mantêm, no abandono exposto, uma espectralidade que nos observa ou nos atinge através do que, derrideanamente, chamaríamos um «efeito de viseira» 51. Assim também nos mais recentes (auto)retratos de Ben 52 (figs. 90 e 91): textos escritos que referem sem referência concreta, figura50 Jorge de Sena, «A cadeira amarela, de Van Gogh», in Metamorfoses, 1963: «Não é, não foi, nem mais será cadeira: / Apenas o retrato concentrado e claro / de ter lá estado e ter lá sido quem / a conheceu […]». 51 Cf. Jacques Derrida, «Restitutions – de la vérité en pointure», in La verité en peinture, Paris Flammarion, 1978, pp. 291-436; veja-se ainda Nathalie Roelens, «Les chaussures de Van Gogh, suite», in Nathalie Roelens (sous la direction de), Jacques Derrida et l’esthétique. Préface d’Eric Clémens. Paris, L’Harmattan, 2000, pp. 87-102. 52 Ben (Benjamin Vautier) pertenceu, com Joseph Beyus, Jonh Cage ou Yoko Ono, ao grupo Fluxus que, durante as décadas de 60 e 70, praticou uma arte «fora do museu», fundamentalmente voltada para o quotidiano e para o gesto colectivo e performativo. 310 DIACRÍTICA 88. Van Gogh, Cadeira de Vincent com o seu Cachimbo (1888) 89. Van Gogh, Um par de sapatos (1886) 90/91. Benjamin Vautier (Ben), Look at me / Mirame (1982) tiva ou enunciativa: o «eu» que lemos é insubstancial, um desenhador frouxo, nos termos da semiótica (i.e. que não garante uma correspondência directa e exclusiva sinal/objecto), inerente à natureza do pronome como signo vazio o que defrauda liminarmente o próprio apelo visual e retratístico: olharemos para o quadro ou para onde fora dele? Enfrentamos agora um nível de invisibilidade não-recuperável: já não se trata apenas de interverter o lugar retratístico como ideia iconográfica inovadora ou como topologia identitária alternativa disposta pelo retratista, a exemplo desse surpreendente retrato foto- 311 POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS gráfico da actriz Marie Laurent por Nadar (fig. 92). Revogadas as suas funções de receptáculo da identidade, as formas faciais ou corporais resumem-se agora a armadilhas miméticas 53 como claramente o coloca a metapintura foto-realista de Gerard Richter (fig. 93) não homologável, como objecto intencional, à anterior imagem de Nadar. O que se compreende na sequência de um progressivo questionamento e esvaziamento da noção de referência, de uma menorização da categoria de sujeito legitimados sucessivamente pelas leituras estruturalistas, pós-estruturalistas e desconstrucionistas 54, com propostas teóricas como a de Paul de Man 55 que entende o autobiográfico como resultado tropológico (ou prosopopeia); ou como a crítica foucauldiana da subjectividade que dissolve a carnalidade do «autor» numa «função de discurso» pensada dentro dos limites de uma teoria da linguagem como «única ontologia possível» 56. 94. Félix Nadar, Marie Laurent, de costas (c. 1856) 95. Gerhard Richter, hter, Betty (1988) 53 Recuperamos a expressão do ensaio de Vasco Graça Moura sobre José Rodrigues e as armadilhas miméticas. 54 Cf. Clara Rocha, Máscaras de Narciso –Estudos sobre a literatura autobiográfica em Portugal, Coimbra, Almedina, 1992, pp. 45 ss. 55 Cf. Paul de Man, «Autobiography as De-Facement», in The Rhetoric of Romanticism, Nova Iorque, Columbia University Press, 1984, 67-81. 56 Cf. Michel Foucault, O que é um autor?, 6.ª ed., Lisboa, Vega, 2006. 312 8. DIACRÍTICA O retrato literário (ainda): alografias e atopias retratísticas Terminaremos, nesta sequência, com a literatura. «Contar a história do eu», segundo um dos estudos mais recentes de Paula Morão sobre a questão retratística 57, pertence ao foro da alografia, quer pensemos nos registos biográficos, quer nos autobiográficos (em relação aos quais o termo é ali especificamente utilizado). Independentemente do método seleccionado para a «composição da figura», que determinará diferenças essenciais entre subgéneros da escrita intimista, haverá sempre que contar com o processo de cisão observador/observado que faz de qualquer escrita do eu, uma escrita do outro. Donde essa inversão fundamental da clássica projecção identitária do retratista sobre o retratado que a ensaísta vem a afirmar: «quem escreve vidas não escreve nunca vidas verdadeiras; o auto-retrato é um alo-retrato – é, em suma, um retrato» 58. Por aqui se veio a impor um certo padrão estrutural de escrita auto-retratística que tende preferencialmente para a expressão poética (conforme concluiu Clara Rocha 59), ou para a suspensão do relato (conforme conclui Paula Morão 60) distendível até a um hipotético limite de «silêncio citável» (numa acepção herbertiana) – um padrão que se entendeu de teor mais analógico do que cronológico, mais justapositivo do que sequencial: aludimos, naturalmente, às conhecidas reflexões de Beaujour 61 de finais dos anos 70, apontando já no sentido de uma diferença fundamental entre auto-retrato e autobiografia. Nas variantes auto-retratísticas da autografia e da autopsicografia que a literatura portuguesa mais recente tem produzido, a ideia de poeta-construtor (fingidor) do seu próprio espaço retratístico comparece com nitidez, quer ao nível da tematização poética (pensamos no paradigmático exemplo pessoano), quer do ponto de vista da arquitectura sintáctica e técnico-compositiva. Em Pena Capital, de Cesariny, o poeta autografa-se seguindo um esquema aditivo de inventário mais ou menos incongruente («Sou um homem, um poeta, uma máquina…, 57 Paula Morão, «Retrato e auto-retrato – Fronteiras e limites», in Concerto das Artes, pp. 187-198. 58 Idem, p. 193. 59 Clara Rocha, op. cit., p. 42. 60 Paula Morão, art. cit., p. 196. 61 Cf. Michel Beaujour, Miroirs d’encre – Rhétorique de l’autoportrait, Paris, Éditions du Seuil, 1980. POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 313 um copo, uma pedra, um avião, … uma carruagem de propulsão por hálito,…»), alinhando ingredientes de «uma história de sentido ainda oculto», num crescendo de brutalidade rítmica, até se atingir como centro/motor da hélice auto-figuradora a imagem d’o homem-expedição: causa e efeito de um retrato encontrado perdido, de um retrato desbordante e excentrado que não cabe todo dentro do poema. Sou um homem um poeta uma máquina de passar vidro colorido um copo uma pedra uma pedra configurada um avião que sobe levando-te nos seus braços que atravessam agora o último glaciar da terra […] […] Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra uma carruagem de propulsão por hálito os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde passei uma só vez tudo isso vive em mim para uma história de sentido ainda oculto […] E para dizer-te tudo dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou em franca ascensão para ti O Magnífico na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os Sustos e que o homem-expediçaõ de que não há notícias nos jornais nem lágrimas à porta das famílias sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre lagos de incêndio e o teu retrato grande! (MÁRIO CESARINY, «Autografia I» in Pena Capital) Acrescentemos um derradeiro objecto de reflexão: «A gravata ensanguentada», uma pequena ficção de João Miguel Fernandes Jorge. O trabalho de construção textual é aqui invulgar. O movimento narrativo toma como ponto de partida dois quadros distanciados por «trezentos anos exactos» de tempo cronológico: Leitora de sinais (c. 1630-34), de Georges La Tour (fig. 94) e Jeune Homme (retrato do pintor Paulo Pereira) (1932-34), de Mário Eloy (fig. 95). Com apenas o 314 DIACRÍTICA pedaço recortado do rosto da rapariga de La Tour (fig. 94a) e com o retrato do jovem de Eloy, cuja identidade o narrador rasura igualando ambas as figuras no mesmo anonimato, procede-se à montagem de um díptico virtual em que a imagem do rapaz é colocada sob o olhar transhistórico e transcultural da rapariga. Recorte e montagem – aos quais vem juntar-se a invenção do (outro) observador externo que é 94/94a. Georges La Tour, Leitora de Sinais (c. 1630-34) 95. Mário Eloy, Jeune Homme (Retrato do pintor Paulo Pereira) (1932-34) POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 315 o narrador: a inexistente gravata ensanguentada, que o jovem, na tela de Eloy, não tem de facto ao pescoço, transforma-se numa existência ausente, ausência ficcionalizada nos termos de um roubo perpetrado pelos «acerados olhos» da rapariga, ela que, 300 anos antes, na pintura original de La Tour, já fora cúmplice num primeiro furto. A écfrase produz-se, no texto, como embraiador narrativo que inflecte (em vez de reflectir) as figuras no sentido da invenção biográfica: o olhar da rapariga é aqui a quase-alegoria do rapto ecfrástico que rouba as imagens aos seus limites, subtraindo-as ao estrangulamento pela mortal gravata retratística. O retrato entende-se aqui como resultado de um olhar entre-imagens que dessubjectiviza a figura tornada pura forma preenchida por um «quase-ser», ou então o (não)lugar atópico, não identitário, de «uma reflexão sobre a ideia de limite», nas palavras exactas desta ficção. Neste sentido, as duas figuras do texto de Fernandes Jorge parecem muito próximas daquelas personagens conceptuais de Costa Pinheiro no seu mais recente ciclo plástico e retratístico Elas e Eles (1999-2005): «sujeitos um para o outro», num «mútuo processo construtivo de subjectividades», como escreve Bernardo Pinto de Almeida 62, as personagens organizam-se aqui relacionalmente e apenas nos limites internos da narrativa partilhada que instituem como cena plástica (figs. 96 a 99). 9. Conclusão Ao pôr em prática hipóteses de deslocação e de regressão relativamente aos programas de politização do corpo da arte ocidental cristianizada, ao desistir da semiótica das parecenças, ao desmontar criticamente a maquinaria social e cultural da visagéité 63 entendida como processo de produção e consumo do legível identitário ou como arquivística das formas interpretáveis, o retrato contemporâneo coloca-se cada vez mais nos termos da «possibilidade» do corpo, e menos no da sua «realidade»: o que desembocaria em qualquer coisa como um «retrato» não facializável/não objectivável ou exponen62 Cf. http://www.fsgaleria.net4b.pt/sitept/exposicao/costa_pinheiro.html Cf. Gilles Deleuze, Félix Guattari, «Année zéro – Visagéité», sagéité», in Capitalisme et Schizophrénie – Mille Plateaux, Paris, Les Éditions de Minuit, 1980, pp. 205-234. 63 316 DIACRÍTICA 96 a 99. Costa Pinheiro, Elas e Eles (série plástica, 1999-2005) cialmente facializável, o qual, se se supõe ainda de «homem» ou de «mulher», não exclui necessariamente, para regressarmos a Félibien, o «cavalo» e a «casa», o animal e a coisa – o inumano; ou o pós/trans-humano, se pensássemos no corpo protésico ou no corpo digital da cenografia retratística mais actual. Encontrar a inumanidade do humano, desfazer a face enquanto codificação autoritária de subjectividades para inventar as linhas de fuga criadoras das têtes chercheuses, na acepção deleuziana – será este o devir do retrato? Se muita teoria crítica modernista rejeitou genericamente o retrato em nome de uma sua putativa fragilidade de qualidades formais puras, encontram-se simultaneamente exemplos (modernistas, vanguardistas e contemporâneos) de uma reconceptualização do género que admite as modalidades do retrato abstrato, conceptual, ou não-representativo assente em estratégias evocativas mais do que descritivas 64. 64 Cf. o capítulo «Portraiture and Modernism», e particularmente o subcapítulo «Abstract and non-representational portraits», do excelente estudo de Shearer West Portraiture, Oxford University Press, 2004. 317 POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS Porém, também parece ser certa a escassez de retratos (ou assim entendidos), inteiramente isentos de marcas referenciais 65. Alguma sinalética relacional, ainda que mantida a um nível de resíduo ou de pura inferência (comprimida num título, numa assinatura: citem-se os poster portraits do americano Charles Demuth – fig. 100; ou os assemblages auto-retratísticos de Arman – fig. 101), tem assegurado ao retrato contemporâneo um certo percentual de referencialidade reconhecível. 100. Charles Demuth, I saw the Figure 5 in Gold: Portrait of William Carlos Williams (1929) 101. Arman, Auto-robot-portrait d’Arman (1992) O que, se por um lado confirmaria o retrato como avatar do «representativo» – com a respectiva carga teológico-humanista que lhe assiste –, insinua, por outro lado, a sua proximidade a uma soleira de irrepresentabilidade no limite da qual apenas o artístico se afirmaria como «acontecimento» ou como «desastre na representação» 66: «profissão de cegos», como Picasso diria da pintura. A propósito dos retratos de Bacon 67, Michel Leiris falava, neste sentido, num jogo tensional entre o que diz ser uma essencial aderên65 Sustenta a propósito Shearer West: «Is is notable that although many modernist portraits are non-representational in that they do not convey a likeness, very few of them are purely ‘non-objective’, that is, constructions of pure line and colour without any representational qualities» (id., p. 200). 66 Cf. Manuel Castro Caldas, p. 61. 67 Sobre a sua própria pintura Bacon ter-se-ia assim manifestado: «J’aimerai que mes tableaux donnent l’impression qu’un humain est passé entre eux, comme un escargot, 318 DIACRÍTICA cia ao motivo e a ilustração directa: «figurer sans illustrer», quadratura do círculo retratística, de que depende, para Leiris, o «ser de carne» da pintura baconiana 68. Falta perguntar se o retrato suportará a «frivolidade» da imagem que não esconde nada, a de um real sem origem na realidade, a radical desindividuação ou descorporalização do lugar retratístico. Se suportará a revogação da teologia e da teleologia da «verdade» para transformar-se em pura ficção ou em pura estratégia de real, ou neo-real. Nas instalações retratísticas de Ralph Helmick e Stuart Schechter (figs. 102 e 102a), produzidas a partir da reprodução em série de 102/102a. Ralph Helmick e Stuart Schechter, Instalação pequenas efígies de cidadãos americanos anónimos suspensas por cabos (aqui, o resíduo de referencialidade sobrante), expõe-se a física do retrato como cartografia aberta onde a face (uma face-síntese ou laissant la trace de l’humaine présence et la mémoire du passé comme l’escargot laisse un sillon de bave.» Francis Bacon apud Christophe Domino, Bacon – Monstre de peinture, Gallimard-Centre Georges Pompidou, 1996, verso da capa. O humanizável do retrato é aqui da ordem do rasto, do vestígio que a matéria da pintura deixa inscrever nos seus intervalos, num «entre» das formas assimilável a um espaço-crisálida de germinação larvar. 68 Cf. Michel Leiris, Francis Bacon, face et profil, Paris, Éditions Albin Michel, 2004, pp. 17 e 53. POÉTICAS DO RETRATO – O DESGASTE DAS FIGURAS 319 uma face-média-das-faces) é um fora-de-campo que se produz espectralmente nos interruptos da matéria. Retrato ainda ou apenas lugar meta-retratístico de absoluta desencenação do rosto? Em Ben Vautier, assistimos à transição de um regime icónico do retrato para um regime puramente indicial, entre o trágico e o paródico. No JE de Vautier (fig. 103), o que percebemos como vestígio caligráfico oscila ambiguamente entre uma intenção de forma auto-retratística e um mero efeito (retórico) de retrato, a «dobra gramatical» foucauldiana, sinal da privação dissimulada ou da desmaterialização radical do próprio sujeito retratístico. 103. Benjamin Vautier (Ben), Je A ideia de um retrato «anónimo», de um retrato da ausência, sem referente singularizável, parece conduzir-nos a uma espécie de Zona Zero – tomando de empréstimo uma formulação de Pinto de Almeida 69 – onde é a própria categoria do retrato que se expõe, negativamente, como género morto. Ou então, tal como recentemente se sugeriu, pode tratar-se apenas de uma arena onde, emancipado da sua história e dos regimes de significação disponíveis, o retrato se converte n’«a forma de novas concepções de subjectividade e de novas noções de representação» 70. 69 Cf. Bernardo Pinto de Almeida, «Zona Zero: subjectividades e economias pós-modernas», in Transição – Ciclopes, Mutantes, Apocalípticos. A nova paisagem artística no final do século XX. Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p. 101. 70 Ernst Van Alphen, «The portrait’s dispersal: concepts of representation and subjectivity in contemporary portraiture», p. 254. 320 DIACRÍTICA Bibliografia A Arte do Retrato – Quotidiano e Circunstância (Catálogo da Exposição: Outubro de 1999 a Janeiro de 2000), Fundação Calouste Gulbenkian/Museu Calouste Gulbenkian, 1999. A Grande História da Arte – vol. 15 (Século XX: das Vanguardas à Arte Global), Público, 2006; vol. 18 (Dicionário de termos artísticos e arquitectónicos), Público, 2006. ALMEIDA, Bernardo Pinto de, Transição – Ciclopes, Mutantes, Apocalípticos. A nova paisagem artística no final do século XX. Lisboa, Assírio & Alvim, 2002. ARNAUD, Pierre (Textes réunis par), Le Portrait, Paris, Presses de L’Université de Paris-Sorbonne, 1999. BACON, Portraits and Self-Portraits. Introduction by Milan Kundera. London, Thames and Hudson, 1996. 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