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A. MÉTRIAUX \-"~ ARfLIGIÃÔ dos TUPINAMBÁS E SUAS RELAÇõES COM A DAS DEMAIS TRIBUS TUPI-GUARANIS Prefacio, Tradução e Notas do ESTEVÃO f.I_NTO P~oF. EDIÇÃO .ILUSTRADA $.érie 5.a B R AS IL I A NA B l~li: 9 te c a P e d a g ó g i c a Vol. 267 B r a s i 1e i r a A RELIGIAO , DOS TUPINAMBAS E~ S U A'S ;R'E L A Ç 0 E S COM A DAS DEMAIS TRIBUS TUPI-GUARANIS Exemplar N~ 0420 1 9"5 o IMPRESSO NOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL Prin~fà ~~ the United Statu ot Br~il *B BIBLIOTECA PEDAGÓGICA BRASILEIRA Série 5.• R A S I L I A N A * Vol. 267 A. MÉTRAUX A RELIGIÃO DOS TUPINAMBÁS E SUAS RELAÇÕES COM A DAS DEMAIS TRIBUS TUPI-GUARANIS Prefacio, Tradução e Notàs do Prof. ESTEVÃO PINTO ' EDIÇÃO ILUSTRADA COMPANHIA EDITORA NACIONAL SÃO PAULO A MARCEL MAUSS Em testemunho de respeito e reconhecimento. PREFACIO DO TRADUTOR A vasta obra de Alfred Métraux, embora mundialmente conhecida, é pouco vulgarizada no Brasil. Por isso mesmo, tomei o encargo de traduzir e anotar dois de seus principais estudos, isto é, aqueles que mais de perto nos interessam, - A religião dos tupinambás e A civilização material das tribus tupi-guaranis. O primeiro trabalho de Métraux veio à luz em 1925. '1 Tratava-se de um ensaio sobre o metodo a ser empregado nas pesquisas de ordem etnografica, ao qual se seguiu, logo depois, uma interessante monografia a propósito de certo elemento cultural indígena sul-americano, o "rife de balancemenf'. Data daí, pois, o interesse do ilustre americahista pela investigação do nosso material etnologico. Realmente, a partir de então surgem os seus estudos sobre o "bâton de rithme" (entre os indios sul-americanos), sobre os tupinambás (civilização material e religião), sobre os guaitacás, sobre os gês (vida social), sobre os camacãs, patachós e cutachós, sobre a arqueologia do curso medio e superior do Amazonas, etc. Ao mesmo tempo, também se dedicou Métraux, com igual eficiencia e 1 Uma relação mais ou menos completa das obras de A. Métraux segue adiante, no fim da presente introdução. Refere-se ao periodo de 1925 a 1948. -9--, autoridade, ao estudo das populações primitivas da Bolivia, destacando-se, nesse particular, o seu exaustivo trabalho a respeito dos chiriguanos e dos uro-chipaias. Isso sem falar nos resultados de sua missão às ilhas da Pascoa e do Hawaí. Todas essas contribuições foram publicadas ora em francês, ora em castelhano, inglês e até mesmo em línguas escandinavas, nas melhores revistas especializadas do mundo (a Revue d'ethnographie et des traditions populaires, de Paris; o Journal de la Société des Americanistes de Paris; o Anthropos, de St. Gabriei-Mõdling; a Revista de! Instituto de Etnología de la Universrdad Nacional de Tucumán; a Encyclopédie Française, ao tempo da direção de Lucien Febvre). Métraux nasceu na Suíça; mas, atualmente, é naturalizado cidadão americano. Foi professor no celebre Museu do Trocadero, organizado pelo professor Paul Rivet. Fundou o Instituto de Antropología de la Universidad Nacional de Tucumán (Argentina) e é membro da Smithsonian Institution de Washington. Cumpre notar que a presente obra foi escrita quan,.. do o autor ainda estava em plena mocidade --- aos 23 anos - reconhecendo ele a necessidade de alguns capítulos adicionais a respeito da estrutura social daqueles índios. Desde então (escreveu-me certa vez Métraux) "mes idées sur bien des ch!oses ont changé du tout au tout". Os tupinambás eram, como se sabe, uma das mais importantes greis ou tribus primitivas do Brasil (secs. XVI e XVII). Aos tupinambás estavam filiados quase todos os povos aborigenes do litoral, - os tamoios do 10- trato costeiro entre a baía Formosa e a angra dos Reis; os tomiminós, ou temiminós, do Espírito-Santo, da margem esquerda do baixo Paraíba e do sul do Macucu; os tupiniquins, localizados no trecho que vai das imediações de Vitória a Camamu, de onde migraram para as cabeceiras do Tieté; os caetés, que viviam entre o São Francisco e Itamaracá; os tabajaras, ou tob!ajaras, que imperavam no territorio encravado entre as lindes septentrionais da extinta capitania de Itamaracá e o rio Paraíba, de onde se transportaram para a serra de lbiapaba e o Maranhão; os petigul1res, ou potiguares, ou ainda pitiguaras, da região do rio Jaguaribe; e os guajajaras do vale do Pindaré. Dizia Varnhagen 1 que, se alguem perguntasse a um indio a que "raça" pertencia, fosse esse índio do Maranhão ou do Pará, da Bahia ou do Rio de Janeiro, a resposta era invariavel - indio tupinambá. Tupinambá era, assim, como um nome geral, que se modificava logo que havia o fracionamento do grupo. Os tamoios, por exemplo, segundo Hans Staden, chamavam-se. a si proprios tupinambás. Tal nome, no dizer de Rodolfo Garcia, significava etimologicamente "a gente atinente ou aderente ao chefe dos pais," os "pais principais", ou melhor, os descendentes dos fundadores da nação, - o que vem colocar o termo no mesmo pé de igualdade do nome latino patricia. Todavia, os tupinambás propriamente ditos eram aqueles localizados na baía da Guanabara, no trecho entre o Camamu e o 1 Que cita o trecho da carta de Ramirez, pub. da Rev. do Inst. Hilt. e Geog. Bra~., XV, p. 27, Rio, 1852: "Estos andan derr0:mados por eda tierra, y po_r otra1 mucha1 . . . sef!orean gran parte de la India y confinan con los que habitan en la síerra". Um estudo de mestre da distribuição espacial dos tupinambás acaba de ser feito por Florestan Fernandes, A Organização Social dos Tupinambás, ps. 25-53, São Paulo, s/d. - 11- rio Real, no baixo Paraguaçu, nas margens do São Francisco (tais como os amoipiras), nas costas do Maranhão (acima da serra de lbiapaba), nas praias do Pará (do Gurupi ao Guajará) e na ilha de Tupinambarana, que atingiram já na epoca da colonização. Embora atualmente extintos, ou mesclados, 1 os tupinambás são os incolas sul-americanos entre nós mais conhecidos e estudados, conforme observa o proprio Métraux. Isso devido não só à extensão do grupo, como à sua localização geografica. O fato de os tupinambás ocuparem grande parte da zona litoranea fez com que esses povos estivessem em estreito contáto com os colonizadores portugueses e com as duas. expedições francesas ao Brasil. Entre esses colonizadores vieram alguns letrados, sobretudo sacerdotes, amantes das cronicas e memorias. algumas delas escritas quase que com o objetivo de tratar dos tupinambás. Julga Métraux que são tais as analogias existentes entre a civilização dos guaranis e a dos tupinambás que é bem possível que os dois grupos tivessem sido, outrora, cultural e linguisticamente homogeneos. Até nas mais diferenciadas greis tupicas vamos encontrar os traços culturais característicos dos tupinambás 1 Presentemente nl!.o existem em etltado de pureza, "mas o seu cruzamento com o branco e com o africano deu em resultado a população vigorosa e inteligente, muito avultada principalmente no Amazonas e províncias vizinhas, onde são designados pelos apelidos de ca.riboca, ta.pa.nhuma, mameluco, cuaipiro, etc. ; os seus dialetos constituíram depois a chamada língua. geral, isto é, o tupi 011 nb11ncengn . . . ligeiramente modificado, e introduzido nas missões dos jesuítas" (A. F . de Moura, "Do homem americano", em Re". do ln$t. Arq. e Geog. Bru., cit., CLIV, Rio, 1928. -12- (a maloca, a rêde, a mandioca amargosa, a tinguijada, a canoa de casca, a ceramica envernizada, o ralador, a tipoia de carregar crianças, õ moquem, o tipiti, o escabelo, as plumas coladas com almecega, o manto e o boné de plumas, o abano de palha entrançada e tantos outros mais)!. Em suma, os tupis da costa, principalmente os tupinambás, representavam, à semelhança dos hebreus, segundo uma frase feliz d~ João Ribeiro, o povo cosmogenico, ao qual estavam reduzidas todas as demais populações primitivas do país. Os tupi-guaranis, dos quais a familia tupinambá formava o maior estoque, constituíam, primitivamente, um só grupo, localizado, segundo a lição da etnografia classica, nas proximidades do istmo de Paraná, região dos caraíbas, de onde, rumando para o sul, foram ter .às margens do medio Paraná-Paraguai; desse novo habitat, depois, empreenderam uma verdadeira remigração, que tomou três principais direções: a) um dos ramos subiu o litoral e atingiu a foz do Amazonas; b) outro ramo estendeu-se para o noroeste; c) um terceiro ramo, enfim, desceu os cursos do Tapajoz, do Madeira e do Ucaiali. A migração litoranea, pelo menos, parece liquida, pois foi presenciada pelos proprios colonizadores; verifica-se, por outro lado, que as massas tupicas do sul (os guaranis) possuíam lingua mais primitiva e contracta, ao contrario do que ocorria com as massas tupicas do septentrião, cuja impureza atestava, na frase 1 F. G. Edelweiss (Tupis e Guaranis, passim, Baía, 1947) mostra, todavia, que não se devem confundir as duas línguas, a tupi e a guarani, ambas distintas como entidades linguisticas. Podemos falar ein língua tupi-guarani, se, com o termo, designamos a língua arcaica. -13- de Capistrano de Abreu,· "o trato diuturno com gentes alofitas e, por conseguinte, antiguidade da migração." Recentes estudos de Métraux acabam, todavia, de modificar esse tradicional quadro da escola etnografica germanica, que tem em C. F. Phil. von Martius, em Carlos von den Steinen e em Paul Ehrenreich os seus mais lidimos expoentes. Tinham os tupis, na epoca pré-colombina, especial situação geografica: à exceção dos omaguas e dos cocamas, seus domínios principais estendiam-se a este e ao sul do Amazonas. Era preciso pesquisar, à custa da etnografia, se tal fora sempre o habitat dos tupis. Desse modo, organizou Métraux, com a ajuda das cartas de Nordenskiõld, varias classificações de elementos culturais e, assim, chegou .à conclusão de que os tupi-guaranis, consequentemente os tupinambás, formavam um grupo, cuja cultura se compunha de elementos com distribuição oriental e septentrional (America do Sul), sendo o seu centro de dispersão a area limitada ao norte pelo Amazonas, ao sul pelo Paraguai, a este pelo Tocantins e a oeste pelo Madeira. A prova da realidade de tal centro dispersivo se tira do exame das aculturações daquela enorme familia cis-istmica (a maloca quadrangular de teto e paredes constituídas de um só elemento, a rede de algodão, a cultura da mandioca, a maneira de fumar o tabaco, o tipo do arco e da flecha, o tacape, a tinguijada, a pesca de barragem, o moquem, etc.). Se os tupis (conclui Métraux) tivessem vindo do AltoAmazonas ou do noroeste da América Meridional, como pretendem Schmidt e Krause, - provavelmente espalhariam o tipo de habitação comum a essas regiões, isto é, a cabana de plano oval ou circular. As mascaras-de-dansa são estranhas aos tupi-guaranis. E não é aceitavel que o tacape, de cabeça nitidamente -14- distinta, seja uma imitação da massa peruana: o tacape tupi é, por sua forma, destinado antes a cortar do· que a abater. Se a teoria de Métraux é exata, está explicado porque o termo pagé, de origem tupica, foi encontrado nas Antilhas (piaché} e até mesmo no Mexico (payni). E, assim, a hipotese de lmbelloni, a saber, de que a casta dos pagés teve uma base mais ampla do que a cultura amazonica, perdeu um pouco de sua consistência, porquanto, sendo a indicada região do Amazonas o habitat primitivo dos tupi-guaranis, nada mais facil do que a dispersão, para o norte, de muitos dos seus traços culturais. Como se vê, embora não se filiando à chamada escola culturalista, Métraux não despreza, em suas pesquisas, pelo processo do paralelismo, os elementos de que lança mão essa escola no estudo das culturas primitivas ou atrasadas. Quero salientar, enfim, que, com a tradução da presente obra de Métraux, saldamos um debito para com esse grande estudioso e amigo das coisas do Brasil. * * * Os .tupi-guaranis mais modernos foram tambem exaustivamente estudados, tais como os cainguás (Ambrosetti, Rengger, Vogt, Dobrizhoffer), os guaranis (Medina, Núfíez Cabeza de Vaca, Ulrich Schmidel), os apapocuvas (Curt Nimuendajú) , os chiriguanos (Domenico de! Campana, Bernardino de Nino, A. Métraux), os omaguas (Laureano de le Cruz), os oiampis (Lucien Adam, Bauve, Dobbadie), os parintintins (Curt Nimuendajú, José Garcia de Freitas), os tembés (E. H. Snethlage), os apiacás (Castelnau, Chandless, Barbosa Rodrigues), etc. 15- O general Candido Rondon organizou uma relação das atuais tribus e grupos de silvícolas, que habitam o Brasil, vulgarizada, em primeira mão, por A. Botelho de Magalhães 1 • As tribus tupi-guaranis foram assim localizadas: AMAZONAS E ACRE Aparandê Rio Maici, afl. do Marmelos (Madeira). Rio Aripuanã, afl. do Madeira. Arara Cauaib (Parintintim) Rio Maici. Alto curso, margem esq. do Maltogapuc deirinha, afl. do Aripuanã. Mauê Rio Andirá, afl. do Amazonas. Rio Aripuanã, afl. do Madeira. Nocadet Odeaul (PaRio Branco, afl. do Marmelos. rintintim) I Paim (Parintintim) Rio Maici. Parintintim Rio Maici. Rama-rama Rio Tarumã, afl. do Machado. MARANHãO Guajajara ltapexim (Urubu) Itapurando (Urubu) Tembé Rios Pindaré e Can\~ ? do rio Cabeceiras sumé. Rio Maracassumé. Tupis " ,, ", , , " " ,, ., Maracas- " " 1 "Indios do Brasil", em America Indígena, VI, n.• 1, ps. 67 ~q., México, 1946. -16- Tupi-uara (Urubu) Urubu Rio Turi. Tupis Rios Ourupi e Turi (Serra Paracambi). MATO GROSSO Apiacá Aruá Aueti ou Auetê Caiuá Cajabi ou Caiabi Ouaraio Baixo curso do rio juruena e rio Teles Pires. Entre as cabeceiras dos rios RoJim de Moura e Ricardo Franco (afls. do Oi-Paraná) e o alto curso do rio São Miguel (afl. do Ouaporé). Rios Curisevu e Tamitatoala, afls. do rio Xingu. Margem direita do rio Paraná, entre os rios Iguatemi e lvinheima, Rios Verde e Teles Pires (afi. do juruena). Campos de Pau Cerne, à margem direita do rio Ouaporé. laulapiti ou Ualapiti Rio Curisevu, afl. do Xingu. lpotê-uate ( Parnauate) Rio Comemoração, afl. do OiParaná e êste rio. Rios Colora do e Mequens (afi. Macurape do Ouaporé). Rio Ricardo Branco (a fi. do Majuberi Oi-Paraná) e êste rio. Mundurucu Rio São Tomé, afl. do Juruen_a. -17- '1 ,, Jl ,, #t ,, " " Parnauate Quepiquiriuate Rio Oi-Paraná e afl. do curso superior. Essa tribu é constituida pelos grupos Ipoeuat, Pauatê, Majubim e Tacuatêp. Tupis Rios Barão de Melgaço (afi. do rio Comemoração) e Pimenta Bueno, formador do rio OiParaná. Rio Anari, afl. do Oi-Paraná. .. Rama-rama Tacuatepê ( Paranaute) Rio Oi-Paraná, da foz do Comemoração .à do rio Rolim de Moura. Tapanhuma Rio Arinos, a"fl. do Juruena. Tapirapé Rio Tapirapé, afl. do Araguaia. Urumi Cabeceiras dos rios Turamã e Machadinha, afls. dos rios Roosevelt e Oi-Paraná, respectivamente. ,, ,," PARA Benaré Rios Oiapoc e Camopi. Bicharerem Cabeceiras do rio Tucano (Tincunti), afl. do Jamachim (Tapajoz) . Rio Iriri, afl. do Xingu. Rio Curuá, afl. do Iriri. Rios Camopi e Oiapoc. Curso médio do Xingu. Rios Tapajoz e Cururu. Rio Jaru, afl. do Amazonas. Chipaia Curuaiá jarupi Juruna Mundurucu Oiampi -18- Tupiguaranis " , Tupis ,. ," " SAO PAULO Guarani Itanhaem. Guarani Araribá. Guaranis , ESPIRITO SANTO Guarani Posto do rió Pancas (habitavam primitivamente o Estado do Rio Grande do Sul). Guaranis * * * Antes de concluir este prefacio, não quero esquecer duas importantes observações. Uma delas é concernente .à grafia dos nomes indígenas, que costumo como aliás se faz na língua castelhana - aportuguesar e simplificar o mais possível. Os americanistas, entretanto, empregam um sistema convencional, nem sempre uniforme, que vem sendo adotado pela maioria _ dos etnologos. São os seguintes os termos,' que mostram maior diferença entre a grafia internaçional 1 e a por mim empregada: araucano Araukan (Aukanian de Brinton) 2 apapocuva ....... . Apapokúva aueti, auetê, auetó .. Auetõs apiacá .......... . Apiaká 1 Cf. Jorge Bertolaso Stella, As linguas indígenas da América, paasim, São Paulo, 1929. 2 Os termos são escritos; geralmente, com a Inicial maiu!icula e no singular. -19- Arawak, ArdWak, Aruak Arekuna Bacairí, Bacaery Kainguá Caribe, Karaub, Karibe, rai"be, Carai"be Kawahib cauaib camacã . . .......... Kamakan Kuruahé, Kuruaye curuaiá Kariyó, Karió, Karijó carijó v Xipáia, Sipáia chipaia Kayapó caiapó Kaingáng, Kaingán caingang v Tsané chané v v Kutacho, Kotosó, Kataso cutachó v choro ti Tsoroti Kayná cainá cainguá Kainguá v chipaia Sipaya guaitacá ........ .. Waitaka aruaque arecuna bacairi cainguá caraiba gê Ka- v .... . ...... . .. . ze guaraiú, guaraio ... . Guarayú, Guarayo guaicuru ........ . Guaycurú, Guaykurú, Owaikuru guaiaqui Guayaki, Guayakí guajajara Guazazára Yuruná, Yurúna Mayna juruna mai na v v -20- mundurucu mauê oiampi .......... . patachó ......... . tanhigaá uro-chipaia ...... . Munduruky Mauhe Oyampi v Patacho, Patasó, Pataxo Tafiygua Uro-Chipaya A outra observação, a que me referi acima, diz respeito ao trecho da Cosmografia Universal de Thevet, publicado, em apendice, por Métraux, que tomei a resolução de não traduzir. Esse excerpto, como se poderá ver, é totafmente comentado e quase que transcrito por esse autor; sua publicação em original não prejudica, pois, o leitor. Por outro lado, deve ser interessante, para os estudiosos do assunto, no presente caso, examinar o texto em toda a sua fidelidade, sem os percalços proprios das traduções. Feitas essas considerações, dou, a seguir, a prometida relação das principais obras e estudos de Métraux (1925-1948): 1925 De la méthode dans les recherches ethnographiques. - Revue d'ethnographie et des traditions populaires. Paris, VI, 1925. Sur un mode américain de rite de balancement. - Congre11 international des Américanistes, Gotergorg, 1925. 19 2 6 Dans le Chaco. 12-1926. La tribune de Lausanne. -21- Lauiianne, 29- 1927 Le bâton de rythme. - Journal de la Société des Américanistes de Paris, XIX, 1927. Les migrations historiques des Tupi-Guarani.- Journal de la Société des Américanistes de Paris, nova série, XIX, 1927. National musests Fjederpl'ydelser fra Tupinambaerne. - GeogrO:fiske tidskrift1 Copenhague, .XXX, 1927. L'ancienne ville impériale du Cuzco. - La tribwne de Lausanne. Lausanne, 17-3-1927. Dans l'ancien empire des Incas. Les ruines de Machu-pichu. La Tribune de Lausanne. Lausanne, 28-2-1927. 1928 Une découvert biologique des Indiens de l'Amérique du Sud: la décoloration artificiellé des plumes sur les oiseaux V'ivants. - Journal de la Société des Américanistes de Paris, nova serie, XX, 1928. Ce qui reste des grandes civilisations de l'Amérique. - Cahiers de la République des lettres, des sciencés et des arts. L'art précolombien,· l' Amériquo avant Criatoph CoZomb. Paris, 1928. Les arts anciens de l'Amérique. Exposition 0 rganisée au Musée Paris, 1928 (em colaboração com des arts décoratifs. George Henry Riviere). À propos de deux manuscrits inédits ayant trait à l'ethnographie et à la .géographie du Brésil qui se trouvent à Paris. J oun~al de la Société des Américanistes de Paris, nova seri e, XX, 1928. La civilisation matérielle des . tribus tupi-guarani. - Paris, Librairie orientaliste Paul Geuthner, 1928. La religion des Tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani. - Bibliotheque de l'école des hautes études, XLV. Paris, Librairie .E rnest Leroux, 1928. 19 2 9 Un ancien document peu connu sur les Guarayú de la Bolivie orientale. - Anthropos. St. Gabriel-Modling, XXIV, 1929. Les Indiens Waitaka ( a propos d'un manuscrit inédit du cosmographe André Thevet). - J ournal de la Société des Américanistes de Paris, nova serie, XXI, 1929. -22- La sécularisation des nnss10ns franciscaines du Chaco bolivien. - Journal de la Socíété des Américanistes de Paris, nova serie, XXI, 1929. L'origine religieuse du jeu du mboto chez les Chiriguano. Journal de la Société des Américanistes de Paris, nova serie, xxi, 1929. Découvert d'objets péruviens sur le moyen Pilcomayo. - Journal de la Société des Américanistes de Paris, nova serie, XXI, 1929. ~e souvenir d'Erland Nordenskiõld dans le Chaco. Journal de la Société de! Américanistes de Paris, nova serie, XXI, 1929. Plan acerca de la creación de un Museo etnográfico, en la província de Tucumán. - Boletim de la Universidad N acionai de Tucu77UÍtn, n.• 85, jan. de 1929, Tucumán. Contribution à l'ethnographie et à l'archéologie de la Province de Mendoza (R. A.). - Revista del Instituto de Etnologia de la Universidad de Tucumán, Tucumán, I, 1929. 1930 La civilisa~on materielle et la vie sociale et religieuse des Indiens Ze du Brésil méridional et oriental. - Revista del Instituto de Etnologia de la Universidad Nacional de Tucumán. Tucumán, I, entrega 2.•, 1980 (em colaboração com Hermann Ploetz). v v Les lndiens Kamakan, Pataso et Kutaso d'apres le joumal de route inédit de l'explorateur français J. B. Douville. Revista del Instituto de Etnologia de la Universidad Nacional de Tucumán. Tucumán, I, entrega 2.•, 1980. Études sur la civilisation des indiens Chiriguano. - Revista del Instituto de Etnologia de la Universidad Nacional de Tucumán. Tucumán, I, entrega 2.•, 1980. Contribution à l'étude de l'archéologie du courll supérieur et moyen de l'Amazone. - Revista del MU!eO de la Plata. Buenos Aires, XXXII, 1980. 19 3 1 Mitos y cuentos de los índios Chiriguano. - Revista del Mu1e11 de la Plata. Buenos Aires, XXXII, 1981. - -23- Observaciones sobre la psicologia de los Indios Chiriguano. Solar. Buenos Aires, I, 19al. Un mundo perdido. La tribu de los Chipayas de Carangas. Sur. Buenos Aires, n.9 a, 19al. Frân en forsvunnen vârld, Chipayaindianema pa Bolivias hogslãtt. - Goteborgs Handels och Sjofarts- Tidning, Goteborg, 101.• ano, n,9 229 B, a-10-19al. Un rinc6n de la América prehistorica en el altiplano boliviano. La Prensa. Buenos Aires, 9-8-19al. Les hommes-dieux chez les Chiriguano et dans l'Amérique du Sud. - Revista del In1tituto de Etnologia de la Uníversidaà Nacional de Tucumán. Tucumán, II, entrega I.•, 19a1-19a2. 19 3 2 A propos de deux objets tupinamba du Musée d'ethnographie du Trocadero. - Bulletin d1/. Musée d'ethnographie du Troca-dero. Paris, n.9 a, jan. de 1932. Chipayaindianema. En folkspillra frân en forgangen andinsk kultur. - Ymer, Stockholm, 19a2. Le traitement magique des maladies chez les Indiens Uro-dpaya de la Province de Carangas (Bolivie). - Séptima reuni6n d~ la 1ociedad argentine · de patologia regional de I norte y filialea, celebrada en Tucumán lo! dia1 5, 6 y 7 de octubre de 1931. Buenos Aires, 1932. Introduction à l'article de Henry Wassén: Le musée ethnographique de Goteborg et l'reuvre d'Erland Nordenskiold. Revi1ta del Instituto de Etnologia de la Universidad Nacional de Tucumán. Tucumán, 11, entrega 2,$, 19a2. 19 3 3 Un chapitre inédit du cosmographe André Thevet sur la géographie et l'ethnographie du Brésil. - Journal de la Société de1 Americani8tes de ParÍIJ, nova serie, XXV, 19aa. Nouvelles de la Mission Métraux. - Journal de la Société de1 Américani8tes de ParÍIJ, nova serie, XXV, 19aa. La obra de las misiones inglesas en el Chaco. - J ournal de la Société des Américanístes do Paril, nova serie, XXV, 19aa. Contribution à l'archéologie bolivienne. - J ournal de la Société dea Amérícaniste1 do Paris, nova. §erie, XXV, 19aa. --.24- 1934 Contributions au Folk-lore Andin. - Journal de la SociéU de1 Américanistes de Paris, nova serie, XXVI, 1934. El estado actual de nuestros conocimientos sobre la extensión primitiva de la influencia Guarani y Arawak en el continente sudamericano. - A ctas y trabajos científicos de I 25.• Congreao internacional de Americanistaa. Buenos Aires, I, 1934. L'organisation sociale et les survivances religieuses des Indiens . v Uro-Cipaya de Carangas (Bolivie). Actaa e trabajo• científicos del fd5.• Congreso internacional de Americanistaa, Buenos Aires, I, 1934. La survivance du vêtement incasique chez les Indies Cipaya de Carangas~ - Bulletin du Musée d'Ethnographie du Trocadero. Paris, n.9 5, 1934-1935. 1935 Contribution à l'ethnographie et à linguistique des Indiens Uro d'Ancoaqui (Bolivie). - Journal de la Société de! Américanistes de Paris, nova serie XXVII, 1935. v La religión secreta y la mitologia de los índios Uro-Cipaya de Carangas (Bolivie). - Revista del Instituto de etnología de la Universidad Nacional de. Tucumán, 'fucumán, III, entrega 1.•, 1935. V'El universo y la naturaleza en las representaciones míticas de dos tribus selvajes de la República Argentina. - Revista del Instituto d!i Etnología de la Universidad Nacional de Tucumán. Tucumán, 111, entrega 1.•, 1935. La mujer en la vida social y religiosa de los índios Chiriguano. Revista del Instituto de Etnología de la Universidad Nacional de Tucumán. Tucumán, 111, entrega 3.•, 1935. Introduction à la connaissance de l'íle de Pâques. A propos d'une exposition du Musée d'ethnograplúe du Trocadero. Paris, 1935. Vpyage autour de l'lle de Pâque.!l. - La revue de Paris, 157-1935. Quelques jeux de ficelle de 1' Amérique du Sud. - Bulletin de la Société des Américani!tes de Belgique. 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Esses aborígenes, cuja lingua e civilização material apresentam uma profunda unidade, estavam divididos em numerosas nações, que se combatiam encarniçadamente. Muito embora cada uma dessas nações <>u tribus usasse seu proprio nome, eram todas, geralmente, cha_madas de tupinambás. Na realidade, porém, tal designação, que semelhantes indígenas se davam a si mesmos, historicamente cabia apenas aos tupis estabelecidos no reconcavo do Rio de janeiro, na região da Bahia e na província do Maranhão. Quis o acaso que fosse precisamente sobre essas três tribus tupinambás que possuíssemos o maior número de documentos. Apesar de sua total extinção, os tupinambás se podem considerar os aborígenes sul-americanos, na Obs. - As alíneas referem-se às notas e comentarias do tradutor, no fim de cada capitulo. -31- atualidade, mais bem conhecidos. De 1499 aos meados do seculo XVII, aqueles silvícolas foram visitados por inumeros viájantes e missionarios de diferentes países, que deixaram de sua vida e dos seus costumes relatos extremamente fieis. Varios desses cronistas mostram notavel poder de observação e cuidadoso interêsse pela verdade, circunstâncias só reconhecidas nas obras dos sabios modernos. Estamos, pois, em condições muito favoraveis em relação ao estudo dos tupinambás. Nossas melhores fontes informativas, no que concerne· .às idéias religiosas dos tupinambás, encontramse, sem nenhuma contradita, nos livros de Thevet, o qual, em 1550 e em 1554, fêz duas viagens ao Brasil (a): Esse "cosmografo", de consideravel erudição, não era, entretanto;- dotado de um espírito critico comparavel ao de varios dos viajantes dele contemporâneos. Mas é justamente essa deficiencia intelectual que torna excelentes as suas informações. A Thevet nada escapa e, como tudo lhe causa espanto, anota as mesmas particularidades, sem perceber as contradições ou absurdos das informações assim obtidas. A obra principal do referido frade, a Cosmografia Universal, é, infelizmente, devido à sua raridade, pouco conhecida. Desse modo, esforcei-me, no curso do presente estudo, em extrair de tal obra tudo o que a .mesma continha de precioso na esperança de que semelhantes informações pudessem aproveitar aos que venham a.consultá-la. Examinando, por indicação de Mauss, os originais ineditos de Thevet, existentes na Biblioteca Nacional de Paris, tive a felicidade de encontrar a copia de um livro manuscrito do referido cronista, qué, até hoje, vem escapando à atenção dos eruditos. Esse -32- olvido, provavelmente, tem tido por causa o fato de o manuscrito parecer, à primeira vista, uma replica dos livros já publicados por Thevet. Isso, até certo ponto, é verdade; mas, o mencionado manuscrito contem numerosos capítulos interessantíssimos e totalmente novos. Em particular, as paginas consagradas à antropofagia ritual dos tupin~mbás podem passar por uma das mais belas descrições, que se possuem de tal costume. Graças ao mencionado descobrimento, pude esclarecer mais de um ponto obscuro referente às idéias dos tupinambás. Ao lado da obra de Thevef, vem a do missionario português Ç~rdim, cujo tratado sob o título Origem dos lndios ao Brasil merece ser classificado de manual dos ritos e costumes dos tupinambás. A quem quiser auscultar profundamente a alma de semelhantes indígenas, a leitura da Viagem de Yves d'Évreux torna-se indispensavel. O missionario Évreux parece ter dominado, a fundo, a lingua de suas ovelhas, por cujas crenças demonstra o mais vivo interesse. Mas, o que empresta ao seu depoimento todo o valor é ter o mesmo, segundo parece, sido reduzido à escrita na propria ocasião dos fatos. Yves d'Évreux propusera-se a converter ao cristianismo, em vez das pessoas co- ' muns, de preferencia os feiticeiros e os chefes. E, assim, conta as conversações mantidas com tão importantes personagens, sendo que suas notas devem ter sido tomadas n() decurso das entrevistas, ou Jogo após às mesmas, porquanto conservam ainda o ritmo e a ordem do pensamento dos selvagens. Isso sem falar nas suas inumeras expressões em lingua indígena. Creio que, em toda a antiga literatura 'Concernente aos índios americanos, existam poucas obras onde se revele tão profundo conhecimento da psicologia do pri- · - 33- mitivo. Companheiro de Yves d'Êvreux, Claude d' AIP.: beville dá, igualmente, importantes informes a respeito daquela tribu. Completam os dados fornecidos por esses três autores numerosos outros mais, que se podem enfileirar na linhagem dos cronistas, de Vaz de Caminha ao holandês Nieuhof. O presente estudo das idéias religiosas dos tupinambás está longe de formar um todo completo. Se é verdade que certas praticas e crenças podem ser reconstituídas com enorme luxo de pormenores, outras há, todavia, que apenas se conhecem imperfeitamente. Tais lacunas são, em parte, preenchidas pelos estudos de Nimuendajú. Esse sabio, que foi realmente adotado por uma tribu guarani, estudou profundamente a mitologia dos apapocuvas e tembés, considerados os derradeiros rebentos da onda migratoria dos tupinambás. São, de fato, surpreendentes as analogias existentes entre os ritos e a mitologia dos apapocuvas e dos tembés e os ritos e a mitologia dos seus remotos ancestrais, de modo a permitir que aqueles expliquem ou completem os antigos textos, embora, em muitos aspectos, não o façam totalmente. Estimaria traçar um quadro exaustivo da religião de todas as tribus tupi-guaranis; se, todavia, cingi-me aos tupinambás, é que tal ambição me pareceu irrealizável. As lacunas são, nesse particular, bem numerosas e, lamentavelmente, irremediaveis. Da religião dos guaranis, mal.!ês, jurunas, oiampis, omaguas, etc., - só se conhecem fragmentos incapazes de servir para uma síntese. Conio semelhantes populações foram destruídas ou assimiladas, suas velhas crenças permanecerão, para todo o sempre, desconhecidas. É, pois, -34- impossível controlar os resultados do estudo feito, em outro domínio, na precedente obra, 1 assim como determinar em que medida a civilização material de uma tribu está em relação com a sua religião; em suma, se os elementos culturais correspondem a outros elementos de ordem religiosa. Procurei, entretanto, cotejar entre si as formas de determinados ritos ou crenças religiosas, encontradas em todas as tribus sobre as quais se possuem quaisquer informes, - paralelismo que constitui o meu criterio unico para dizer se tal ou qual crença ou rito pertence ou não ao estoque comum da religião dos tupi-guaranis. Os mitos, nesse particular, deram satisfatorios resultados. Notei que, em geral, as cprrespondencias são especialmente frequentes entre as tribus guaranis unidas por certos laços historicos, ou que pertencem a uma mesma corrente migratoria. As crenças, qs mitos e certos ritos dos tupinambás, dos guaranis, dos guaraius, dos pausernas, dos chiriguanos e dos tembés . mostram um ar de parentesco, que prova a· unidade cultural dessas tribus em seus antigos tempos. Contrariamente, as tribus do Brasil central, - os chipaias, por exemplo, - que não se contam entre os tupis puros, distinguem-se de seus irmãos orientais não só pela diferença de cultura, como, tambem, por crenças e costumes peculiare~. Essas divergencias não impedem, porém, que os mesmos possuam certas praticas pertencentes ao estoque comum da religião de todas as tribus tupi-guaranis. Os mais característicos desses costumes genericamente tupis são a saudação lacrimosa e, sobretudo, a antropofagia ritual. 1 Métraux (2). -35- A possível ocorrencia do totemismo entre os tupiguaranis é problema que mereceria ser abordado. Apesar do atento exame dos textos, a que me entreguei, devo convir que dele não se encontra nenhum traço. O silencio das fontes sobre tal assunto é, talvez, imputável. às já mencionadas lacunas. Enquanto não se fizer um estudo sociologico ou religioso de determinada tribu tupi-guarani, porventura ainda independente, semelhante questão permanecerá em suspenso. -36- NOTAS A INTRODUÇÃO (ESTEVÃO PINTO) (a) Talvez um erro tipografico, pois a 2.• viagem de Thevet é de 1555-1556. Thevet acompanhou a expedição de Villegagnon, cujos n~vios avistaram as montanhas Croistmouron (terras da Bahia), •por volta das nove horas do dia 31 de outubro de 1555. O regresso se deu a 31 de janeiro de 1556 (ou a 14 de fevereiro, de acordo com Nicolau Barré). Vj. em Thevet, Singularidades da França Antártica, ed. de 1944, Companhia Editora Nacional, São Paulo, minhas notas a ps. 354 sq. Quanto à 1. • viagem de Thevet, só um estudo mais demorado de seus mss. poderá deslindar tal questão. Heulhard (Villegagnon, Roi d'Amérique, p. 91, Paris, 1897), referindo-se ao assunto, nota que aquele frade, ao escrever o ms. a que se refere Métraux - Histoire d'André Thevet, Angoumoisin, cosmographe du R()y, de dewv voyages par luy feiots awv Inde1 Australes et Occidentales, etc. - já estava em idade avançada, motivo pelo qual sua memoria o induzia frequentemente a cair em erros e em contradições. E acrescenta que essa contradição diz respeito até à propria data da sua primeira viagem, embora a que mencione com mais frequencia seja a dê 1550. Há quem pretenda que Villegagnon, antes da sul expedição oficial, empreendeu uma viagem de reconhecimento ao Brasil. Assim o diz o já citado Heulhard (o.c., ps. 93 e 94), fato tambem confirmado por Baltazar da Silva Lisboa (Anais do Rio de Janeiro, I, cap. II, § 3.•, Rio, 1834) . Da mesma opinião é Antonio Duarte Nunes ("Memoria do descobrimento e fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro", em Rev. do Inst. Hist. e Geog. Bras., I, p. 97, Rio, 1839). "A logica, antes de tudo (escreve A. Mo rales de los Rios, "Subsídios para a. lústória da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro'', em Rev. do Inst. Hist. e Geog. Bras., tomo especial, L• parte, 1074, 1915), adnúte facilmente a idéia de uma. expediçllo p: -37- pessoal, de reconhecimento, antes de um capitão aventurar-se por mares que dantes ele não navegou. Alem disso, Léry não é infalível e ele apenas aqui chegou depois do acontecimento de 1555". E conclui: "Se a data dessa viagem é ainda hoje incerta, pode, no entanto, ser estabelecida, com certa aproximação, entre os anos de 1552 e 1554. Efetivamente, em julho de 1552, André Thevet voltava a Dieppe de sua primeira expedição feita em companhia de Guilherme-k-Testu e é certo e positivo que o mesmo franciscano acompanhou Villegagnon na expedição de 1555". Heulhayd é da opinião, todavia, que o ano mais indicado para a I.• viagem de Thevet seja o de 1550. Nessa expedição preliminar, pretendeu o mesmo frade ter convivido com os aborígenes da aldeia de Margariampin, entre os quais presenciou várias cenas de canibalismo; vangloria-se de ter percorrido quarenta leguas, de terra a dentro, nas vizinhanças do rio Parai; e afirma, igualmente, ter descoberto uma ilha, a que deu o seu nome, situada na região dos Margageats, à embocadura do rio Plantin. Em suma, Thevet teria vindo ao Brasil em 1550. Há, porém, uma importante circunstancia, que lança duvida sobre a viagem de 1550. E' que Thevet, em sua obra Les Singularitez de la France Antarctique, não faz nenhuma referenda a essa misteriosa •expedição, - fato realmente estranho e desconcertante. Em estudo recentemente publicac)o (Les Voyages de Découverte et les Premier8 Établissements, Paris, 1948, ps. 1St sq.) Ch.-André Julien afirma ter sido ao almirante Coligny que o piloto-cartografo Le Testu, - chegado "d'une mission au Brésil en compagnie du capucin Thevet", - dedicou, em 1556, seu esplendido atlas de cartas coloridas, onde foi fixado o reconhecimento francês das terras americanas, inclusive a de Santa Cruz; mas acrescenta tambem esse autor ser pouco provavel que Villegagnon tivesse feito sua viagem anterior ao Brasil, isto é, antes da viagem oficialmente conhecida. -38--- Fig. 1. - Indioa tupinambâa fazendo fogo. (segundo Staden) CAPITULO I OS CRIADORES E CIVILIZADORES O papel, atribuido pelos tupinambás aos seus ci- vilizadores, corresponde, aproximadamente, à função que as sociedades mais adiantadas imputam aos deuses. Para esses indios, assim como para a maior parte das tribus sul-americanas, certas personagens, dotadas de poderes superiores ao comum dos feiticeiros, foram os artifices do universo, tal qual se lhes apresenta. Todavia, são tais personagens mais transformadores do que mesmo criadores. Por outras palavras. Ainda quando tenham as mesmas criado o céU, os astros e a terra, sempre é sua obra parcial e incompleta. Só posteriormente, à custa de incidentes diversos, consegue tal obra o seu acabamento. -39- A mitologia tupinambá, pelo· menos sob a forma transmitida por Thevet, 1 parece ter conhecido uma linhagem de herois-civilizadores, unidos entre si por laços de parentesco, por conta dos quais são atribuidos atos que, segundo a tradição de certos povos da mesma raça, cabem exclusivamente a um só dos seus super-homens. Essa multiplicidade de herois-civilizadores não é, segundo nos parece, senão àparente, conforme se poderá demonstrar com a analise exaustiva do texto de Thevet (a). Monan é o primeiro na serie dos herois-civilizadores dos tupinambás. Assimila-o Thevet 2 ao Deus cristão, descrevendo-o como "um astro sem fim e principio, que criou o céu, a terra, os passaras e os animais no mundo existentes". Essa definição trai, por si mesma, a preocupação, por parte do coletor do mito. de encontrar-lhe traços de uma antiga revelação. Mas, é exato que Thevet mostra, implicitamente, a diferença de carater entre o Deus cristão e os herois-civilizadores dos tupinambás quando acrescenta que Monan não criou "o mar, nem aman attouppane, isto é, as chuvas" ( b). O oceano e os rios teriam sido formados posteriormente, após o incendio do mundo e em seguida ao diluvio. A imortalidade, atribuída por Thevet a Monan, 3 provavelmente é um atributo, que lhe outorga aquele frade por sua propria conta, pois tal noção é estranha 1 (2), fols. 919 e 920. 2 Fols. 913-920 v. (No original, 13-920 v., provavelmente erro tipografico. Nota do tradutor). 3 Thevet (2), foi. 913 v., traduz llfonan por "velho e antigo". Talvez exista nessa palavra a raiz de múii.angára, o criador. - -iO- aos índios. Assim, por exemplo, os chipaias não vêem nos demonios, que geraram o universo e mantêm relações com os mencionados indígenas, seres com o poder de escapar, por sua natureza, aos riscos do perecimento, peculiares a todos os individuas. 1 Se algum dêsses demonios ainda não morreu é por ser o mesmo suficientemente habil para subtrair-se aos laços, que se lhes podem armar. Os tupinambás estavam tão pouco persuadidos da eternidade de Monan que deram morte a Maire-monan por mãos humanas. Ora, conforme não terei dificuldade em provar, Monan e Maire-monan não passam de uma só pessoa, distintas unicamente por seu qualificativo. Monan deve ter sido, realmente, quem criou o htmem, se bem que não o diga em nenhuma parte. Em todo caso, foi o destruidor da primeira leva humana, que ocupava a terra, em virtude de se ter tornado ela passível de culpas, de cuja ·natureza se ignora. Depois, repovoou o mundo, mas modificando pr·ofundamente o seu aspecto, por meio de incendios e inundações. Ao lado de Monan, os tupina'mbás colocam outro, a que qualificam de Maire. Segundo Thevet 2 esse nome significa "transformador", designação perfeitamente conveniente a um deus, que "deu ordem, de acordo com o seu bel prazer, a todas as coisas, afeiçoando-as de varias modos e, em seguida, convertendo-as em diversas figuras e formas de animais, de passaros e de peixes, de conformidade com as regiões; até, mudando o homem em animal para puni-lo, como bem lhe parecia, por sua maldade". 1 Nirnuendajú (3), pag. 1013. 2 (2), foi. 914. -41 Supõe Ehrenreich, com razão, que Maire-monan e Monan representam uma só pessoa, se bem que o primeiro surgisse no mito tupinambá como o descendente de lrin-magé, - o unico homem poupado por Monan do aniquilamento universal. Thevet, aliás, sente certo embaraço em distinguir Monan de Maire-monan; assim, as qualidades atribuídas pelo frade ao primeiro são tambem, mais adiante, conferidas ao segundo, embora haja alglllpa diificuldade em reconhecer a identidade através das confusas indicações fornecidas por aquele autor. Para explicar tal coincidencia, Thevet 1 supõe que Maire-monan era um "familiar" do g~nde Monan, o qual lhe ensinara a arte das transformações. Os tupinambás representam Maire-monan sob o aspecto de um eximi o feiticeiro: vivendo num retiro, em jejum e rodeado de adeptos. E julgavam-no não somente d_otado de poderes ilimitados, mas ainda senhor da ciencia completa dos fenomenos naturais e dos misterios ritual-religiosos. Foi Maire-monan quem instaurou varias praticas sagradas ou magicas, que os tupinambás, à chegada dos europeus, observavam escrupulosamente. Desse modo, pretendiam os indígenas ter aprendido com ele o costume da tonsura, da epilação e do achatamento do nariz dos recém-nascidos. Fora Maire-monan (diziam ·os indios) quem lhes desaconselhara a comer da carne dos animais pesados ou lentos, recomendando, ao contrario, o uso da carne dos animais ligeiros, porque· estes tornam os homens ageis. 2 • A ação civilizadora dêsse heroi ter-se-ia manifestado, sobretudo, pelo fato de haver o mesmo introl (2), foi. 914. 2 Thevet (2), fol 915. 42- duzido a agricultura entre os antepassados dos tupinambás, trazendo-lhes todos os vegetais que serviam de base para a alimentação de seus descendentes. Sobrevindo uma grande penuria entre a humanidade, Maire-monan, tomado de piedade, transformou-se numa criança, na qual bastava bater para provocar, em torno dela, chuvas, que regavam todas as plantas semeadas nos campos dos nossos indios. 1 Maire-monan fez mais: ensinou aos homens a distinguir os vegetais úteis dos nocivos e mostrou-lhes o uso que podiam fazer de suas virtudes m~dicinai's. Os tupinambás sentiam-se ainda devedores a Maire-monan por sua organização social, ou seja, conforme a expressão de Thevet, por sua maneira de "distribuir o governo" 2 • Ta.is foram, pois, os beneficios que Maire-monan espalhou entre os homens. Mas, sua atividade não se limitou só a isso. Passava, como já o disse, por um exímio "transformador", isto é, atribuíram-lhe a maior parte das metamorfoses por meio das quais os silvicolas explicavam as características de certos animais ou coisas, ou, simplesmente, a sua existencia. Thevet, entretanto, não conservou a lembrança de nenhum desses mitos etiologicos, que eram, sem duvida, da mesma ordem dos que aquele frade nos conta a respeito de outros herois-civilizadores e nos quais, geralmente, se encontram as historias de homens transmutados em 1 'l'hevet (2), foi. 921, conservou uma visão um tanto diferente desse episodio mitico. A proposito da mandioca, conta-nos que um grande "Charaiba" ou "profeta", provavelmente Maire-monan, teria ensinado a uma moça a cortar esses tuberculos em pedaços, semeando-os depois (c). 2 (2), foi. 915 ,-, --43- animais. Terei, mais de uma vez, ocasião de falar dessas "transformações", ao tratar dos mitos dos tupis modernos, onde as personagens da especie de Mairemonan são, do mesmo modo, habeis na arte das metamorfoses. A vida de Maire-monan deveria ter sido rica em peripecias de toda sorte. Pelas informações de Thevet, 1 só se conhece o seu desfecho. A gente, cuia colera ele despertara por causa de suas metamorfoses, decidira dar-lhe fim. Foi Maire-monan, então, convidado a uma festa e obrigado a saltar por sobre três fogueiras acesas. Após ter sido bem sucedida na primeira prova, aquela divindade evaporou-se ao saltar ra segunda fogueira e foi, assim, consumida pelas chamas. Sua cabeça, explodindo, produziu o trovão, enquanto as labaredas do fogareu se transformavam em raios. Imediatamente depois, Maire-monan subiu ao céu e virou estreJ·a, juntamente com dois dos seus companheiros. 2 Todos os atos atribuídos à Maire-monan são unicamente os que Thevet declara, de modo formal, terem sido por ele realizados. Na verdade, seria preciso levar .à sua conta a maior parte das lendas e gestas que, no desenrolar do mito, são também atribuídos a três outras personagens. E essas personagens têm todas o ar de que são desdobramentos da mesma pessoa. Pelo menos isso se dá com Sommay, que só incidentemente é citado pelo nome de "grande Pagé e Caraiba", 3 assim mesmo por causa de sua qualidade 1 (2), foi. 914. 2 Thevet (2), foi. 917 v. 3 Id. (2), foi. 914 v. -44- de pai dos dois irmãos Aricoute e Tamendonare, os provocadores do diluvio. Note-se que o diluvio, causado por uma querela entre -aqueles manos, teve como consequencia, segundo se diz mais adiante, a morte de Maire-monan. Há, desse modo, uma relação entre ambos os mitos, que, provavelmente, são identicos. Devo confessar, todavia, que essa verificação seria insuficiente para justificar tal identidade, se, nas cronicas portuguesas, Sommay, ou Sumé, não aparecesse inves-· tido das mesmas características peculiares a Mairemonan. O proprio Thevet tem vaga idéia do erro cometido, ao distinguir os dois, pois estabelece entre ambos liames de parentesco, fazendo do segundo um descendente do primeiro. Existe outro dos grandes caraibas ou "profetas" no qual se pode reconhecer Maire-monan e, por consequencia, Sommay. E' Maire-atá. Tambem este só tem lugar na cosmografia de Thevet 1 por sua situação de pai dos dois gemeos míticos. Depois de os. ter formado, Maire-atá abandonou a mãe e retirou-se a uma taba proxima do Cabo Frio, onde passava por um feiticeiro de muita autoridade, o qual, com o auxilio dos seus demonios familiares, tornou-se habil em predizer o futuro. Logo que seus dois filhos, após inumeras vicissitudes, conseguiram encontrá-lo, o pai impôs-lhes diversas provas, de que falarei mais adiante. Esses elementos do mito, referentes a Maire-atá, torná-lo-iarrt uma personalidade independente, se passagens de outros textos não fizessem dele um sinonimo de Sumé e do heroi-civilizador dos tupinambás. A exemplo ·de outros herois-civilizadores, Thevet r ela1 (2), fols. 919 e 920. -45 ciona Maire-atá à familia de Mona11, sendo aquele de· signado até pelo nome de Maire-monan-atá. 1 Só o terceiro dentre todos os "grandes caraibas, do mito de Thevet, Maire-pochy ou Maire po-chi, se pode dificilmente assimilar ao heroi-civilizador, que aquêle viajante desdobrou à sua vontade. Maire-pochy não passa, aliás, .à &emelhança dos outros, de um parente de Monan, isto é, um seu "familiar". Em outro local, porem, aparece como a personificação do sol. Seu carater solar trai-se por mais de um pormenor dos episodios mitologicos, rtos quais o mesmo toma parte, e, nesse particular, não há nenhum equivoco, pois é o proprio Thevet 2 quem, em uma das vezes, o designa pelo nome corrente de sol na lingua tupi. Se eu aceitasse, sem restrições, a tese de Ehrenreich, que considera todos os herois-civilizadores como incarnações desse astro, poderia ver em Maire-pochy um novo desdobramento de Monan. Ora, não encontro, nos elementos míticos onde figura esse heroi-civilizador, nada que justifica tal hipotese. O mito de Monan é composto de motivos varios, sendo que o principal não pertence, de certo, ao fundo tupi. Ehrenreich já demonstrou a origem andina da historia de Maire-pochy, que, sob o aspecto de um homem horrendo e desfigurado, trabalha a serviço de outro, cuja filha emprenha, fazendo-a comer do peixe por ele pescado. No seu desenvolvimento, conta a legenda com,o a criança reconheceu milagrosamente o pai, que se achava no meio de uma multidão de guerreiros. A iqfluencia peruviana é tão evidente que os tupinambás são, de toda a familia tupica, os unicos entre os quais, de acordo com os modernos conhecimentos, existe esse episodio mi1 Thevet (2), foi. 920. 2 (2). foi. 919. -40- tico. O tema em questão chegou a percorrer a mesma rota costeira dos machados de metal do Peru, que os primeiros descobridores puderam adquirir no litoral brasileiro. Mas, não se deve concluir, daí, que tudo é incasico no mito de Maire-pochy, pois o mesmo contém elementos pertencentes ao complexo das crenças e tradições proprias dos tupi-guaranis.' Assim, diz a lenda que Maire-pochy e sua mulher, expulsos da aldeia, recolheram-se ao mato, onde fizeram enormes roçados dos quais auferiram soberbas colheitas. Em seguida, Maire-pochy convidou seus cunhados, que acorreram pressurosos ao chamado, tanto mais quanto se achavam ameaçados pela penuria. E disso resultou mal para todos, pois os parentes, acompanhados de seus pais,. foram transformados em diversos animais, tendo igual sorte o velho caç,ique e. sua esposa, os quais haviam desdenhado dos predicados sobrenaturais de Maire-pochy. 1 Nordenskiõld 2 obteve de um indio chané certo mito, que oferece algumas qnalogias com o acima resumido. Tatu-tunpa e Aguara-tunpa, que, apesar de sua qualidade de animais, podem passar por personagens semelhantes a-os herois-civilizadores, apresen· taram-se, conjuntamente, em uma aldeia, decididos a desposar a filha do morubixaba. Esta, porem, embora destinada a Tatu-tunpa, foi concedida a Aguaratunpa, que havia desfigurado seu rival. Tatu-tunpa, por isso, viu-se forçado a contentar-se com a mais feia das filhas do chefe. Para revelar sua qualidade, Tatutunpa desbastou, miraculosamente, uma vasta extensão da mata, que, num fechar de olhos, cobriu-se de ma1 Thevet (2), fols. 918-919. (1), ps. 264-269. li -47- ravilhosos frutos e legumes. Os cunhados, após longa relutancia, vieram visitá-lo e Tatu-tunpa vingou-se do juizo desfavoravel feito, a seu respeito, pela sogra, deixando-a, por algum tempo, quase esmagada sob o peso de enorme abobora. A exemplo de Maire-pochy, Tatu-tunpa, após êsse acontecimento, recuperou a primitiva' figura, tornando-se, então, jovem e belo. O terceiro tema do mito de Maire-pochy pertence tambem à cadeia das lendas tupicas. Maire-pochy, cansando-se da espôsa, retoma ao céu. Como seu filho quizesse segui-lo, Maire-pochy transf.ormou-o em rochedo, restituindo-lhe, mais tarde, a forma primitiva. Usava esse filho de um sombreiro que, "embora parecesse feito de penas, era, realmente, formado por línguas de fogo" 1 • Um imprudente pediu-lho emprestado e sofreu tão cf.ueis queimaduras que se lançou numa lagôa, transformando-se, assim, em saracura ( d). O filho de Maire-pochy, em seguida, voltou para a companhia paterna, que, como se viu então, não era outro senão Caroubsouz, o sol (e). ' Os chipaias contaram a Nimuendajú 2 um mito que, em determinadas minucias, aproxima-se do anterior. O sol usava uma coroa de penas de arara, vermelhas e abrasantes. Vindo para o oriente, lá deixou seu sombreiro, dando nascimento, desse modo, ao ocaso. Certo homem matou o sol, jogando-lhe à cabeça frutas de anajá e, assim, surgiu a noite. Os cinco filhos do sol procuraram, cada qual de per si, usar a coroa paterna, tomada pelo assassino, mas nenhum deles pôde suportá-la, por muito tempo, .à cabeça, exceção do mais moço, que, desde entã-o, recomeçou a mesma 1 2 Thevet (2), foi. 919. (3) p. 1010. -48- trajetoria do pai, regularizando, assim, as alternativas das noites e dos dias. O sol é igualmente descrito no mitÔ dos tembés) como um mancebo que usa botoque e tem a cabeça coroada de um diadema de plum.as brilhantes. 1 Uma das personagens da mitologia dos guaraius traz o nome de Zaguaguayu, o que significa "coroa de plumas amarelas". Sua natureza solar denuncia-se pelo fato de se dizer que a mesma vivera no oriente, em certa região iluminada por passaros portadores de luz. 2 Os chiriguanos atribuem igualmente ao sol traços humanos. 3 O mito chipaia não assimila o sol do heroicivilizador e apenas Zaguaguayu está mais estreitamente ligado a essa categoria de personagens. A lista dos herois-civilizadores arriscar-se-ia a tornar-se ainda mais longa se fôsse considerada personagem distinta a entidade, de que trata frei Thevet em seu manuscrito inedito: 4 "E esse processo de fazer o fogo (por fricção), dizem os índios ter-lhes ensinado um caraiba, de nome Bicbotou, isto é, o trovão. (f), o qu·al, por sua vez, transmitiu tal conhecimento a seus pais, por sonho, durante a noite, alguns tempos após o diluvio". E como Thevet 5 atribui o dom do fogo a Maire-monan, ou aos filhos de Somniay, tudo autoriza a supor que Bicbotou não passe de outro sjnonimo de Maire-monan. A aparente multiplicidade, na cosmogonia de Thevet, dos herois-civilizadores origina-se do fato de esse 1 2 3 4 5 -Nimuendajú (2), p. 296. Cardús, ps. 76-77. Nordenskiiild (1), p. 252. Foi. 91. (2), fols. g17 e 915. -49- viajante ter fundido, em um só, diferentes mitos ou diferentes versões do mesmo mito, considerando como figuras distintas o mesmo deus, cujo nome vem seguido de epitetos varios, ou muda em função das ações a ele atribuídas. Os chipaias ainda hoje assim procedem, designando seu herm-ctvilizador, o demonio Kumãr;ári, sob quatro diferentes nomes, ou seja, ora Sekárika, "nosso v criador", ora Semãwár;a, ora, enfim, Marusawa (quando é considerado pai dos gemeos). 1 · Passando, agora, ao exame de outras fontes, verifica-se, em primeiro lugar, que se trata realmente de um só heroi-civilizador, que certos autores chamam Sumé, Çumé ou Maire-Humane, ao passo que outros o designam pelo nome de Maire-atá, ou simplesmente Maire. "Nossos pais (diz Yves d'Évreux, ~ reproduzindo as palavras de um indígena, ensinaram, por tradição transmitida de bôca ém bôca, que apareceu, antigamente, um grande maratá de Tupã, isto é, um enviado de deus, que andou por suas terras, transmitindo-lhes o conhecimento de varias coisas. Foi esse maratá (g), por exemplo, que lhes deu a mandioca, que é a raiz com a qual se faz o pão (pois, até então, só se alimentavam nossos pais çom as raizes silvestres). É verdade que o maratá, ao perceber que os nossos avós não levavam em conta a sua palavra, resolveu afastar-se deles, deixando-lhes, entretanto, o testemunho de sua passagem, isto é, imprimindo na rocha, por meio de sinais escritos, os seus ensinamentos, imagens diversas e a forma de seus pés, assim como o 1 Nimuendajú (3), p. 1015. 2 P. 230. -50- feitio dos pês dos que õ seguiam, gravados na parte inferior do mesmo rochedo. Tambem deixou o maratá vestígios das pegadas dos animais, que conduzia consigo, 1 assim como os buracos deixados por seu bastão, sôbre o qual se apoiava ao marchar. Com o que, depois de assim proceder, atravessou o mar em busca de outros países, e, embora os nossos pais, arrependidos e convictos da sua santidade, o tivessem procurado bastante, nunca mais. tiveram dele noticias. Pelo que, desde então, nenhum maratá de Toupan jámais ret;ornou a visitar-nos". Diz Vasconcelos 2 que, segundo a -tradição corrente entre os tupinambás, haviam estes recebido, outrora, a visita de homens brancos, vestidos e barbudos, que "diziam coisas de um Deus, e da outra vida, um dos quais se. chamava Sumé, que quer dizer Tomé; e que estes não foram admitidos de seus antepassados, e se acolheram para outras partes do mundo; ensinando-lhes contudo primeiro o modo de plantar, e colher o fruto do principal mantimento de que usam, chamado mandioca" (h). Os indios (escreve o padre Nobr_ega) s dizem "que S. Tomé, a quem eles chamam Zomé, passou por aqui, e isto lhes ficou por dito de seus passados e que suas pisadas estão sinaladas junto de um rio; as quais eu fui ver por mais certeza da verdade e vi, com os proprios olhos, quatro pisadas mui sinaladas com seus dedos, as quais algumas vezes cobre o rio quando en1 Os tembés mostram uma pedra, onde pretendem ver traços deixados pelo jaguar, que acompanhava os dois irmãoi miticos em sua migração. Cf. Nimuendajú (2), p. 287. ~ P. LXI. I P. Pt. -51- che; dizem tambem que quando deixou estas pisadas ia fugindo dos indios, que o queriam frechar, e chegando ali se lhe abrira o rio e passara por meio dele · a outra parte sem se molhar, e dali foi para a India. Assim mesmo contam que, quando o queriam frechar os índios, as frechas se tornavam para eles, e os .matos lhe faziam caminho por onde passasse: outros contam isto como por escarneo. Dizem tambem que lhes prometeu que havia de tornar outra vez a vê-los" {i). Tradição semelhante existia entre os tupis da região da Bahia: Santo Tomás (Sumé) tê-los-ia visi-. tado, ensinando-lhes a conhecer as virtudes da mandioca; mas os índios, em lugar de agradecer-lhe, quiseram devorá-lo. O santo, acossado contra o mar, teve, para salvar a vida, de dar um extraordinario salto, indo cair na ilha da Maré e deixando, no local onde tomara o impulso, traços de seus pés. 1 Esse episodio da vida do heroi-civilizador, tal como é relatado pelos dois missionarios acima referidos, constitui uma fiel variante da passagem de Thevet, 2 na qual o mesmo conta a crescente hostilidade dos homens para com Maire-monan e do artifício a que recorreram para eliminá-lo. No texto de Thevet, o heroi, na iminencia da morte, é forçado a dar um salto. O motivo é identico, embora difiram sensivelmente os detalhes. O autor anonimo (j) da Informação do Brasil 3 é induzido a erros devido aos dois nomes correntes do heroi-civilizador: em lugar de ver em Çumé e Malra uma unica e mesma pessoa, aquele autor não só dis1 Vicente do Salvador, p. 43. 2 Thevet (2), foi. 914. 3 P . 441. Léry (t. _li, p. 77) faz igualmente alusão aos dois herois-civilizadores, um bom e outro mau, que teriam dado 11011 tu pil1 o tac~pe. -52- tingue, como os coloca em reciproca opos1çao. Çume era um bom homem, que só praticava o bem; Maíra, ao contrario, comprazia-se a só fazer o mal, sendo inimigo do anterior, isto é, de Çumé. Em virtude dessa rivalidade, os indígenas denominavam de Ma'ira aos inimigos dos portugueses. Tal como os autores precedentes, o jesuíta anonimo assinala os traços de pés humanos, nos quais a tradição via as pegadas de Çumé e de seus companheiros. Knivet, 1 conformando-se com as tradições em curso entre os habitantes do Rio de Janeiro, supõe que uma pedra vascilante, existente nas vizinhanças dessa baía, não passava de um pedaço de pau, que Sumé, por ele identificado com Santo Tomás, teria transformado em rocha. E a esse proposito, refere-se ao milagre daquelas pegadas, acrescentando que os peixes do mar obedeciam à voz do taumaturgo. Staden 2 só fala uma vez de Maire-Humane e isso para contar que os tupinambás se tonsuravam com o objetivo de imitar aquele heroi, "autor de grandes feitos entre os índios". Antes de passar às demais legendas, que, a propósito de Sumé, foram conservadas, convém 'dizer algumas palavras a respeito dos famosos traços de pés humanos, tão constantemente mencionados nos textos. Esses supostos vestígios são," sem nenhuma duvida, fenomenos de erosão, sendo apenas assinalados nas proximidades do mar ou dos cursos de agua. E chamaram- a atenção dos tupinambás, que os consideravam obra do seu grande heroi-civilizador. Thevet ~ 1 P. 227. 2 Part. II, cap. XVI. a (2), f ois. 917-917 "'· conservou-nos, integralmente, a legenda em torno de tais pedras extraordinarias. Perto da baía do. Rio de Janeiro existia "uma comprida pedra, de cerca de cinco pés de largura, na qual se viam alguns sulcos de verga, ou de vereta, assim como traços de pés, atribuídos ao grande caraiba, que tinha transmitido aos índios o conhecimento e uso do fogo (a que cham<;1m Tatá) (k) e a maneira de cultivar certas raízes, - pois antes os selvagens, .à semelhança dos animais, se alimentavam exclusivamente de folhas, ervas e frutas produzidas pelas arvores agrestes. Os silvioolas guardam essa pedra, como um grande e precioso tesouro, contando que, após a morte de Maire-monan (do qual já falei atrás) ·e de dois de seus companheiros (depois transmutados, como aconteceu outrora a outros, em estrelas brilhantes, com os nomes de Jachu-tatá), Caroubsoux, isto é, o sol, ordenou .às demais estrelas que, em recordação de Monan e de seus companheiros estelificados, que conduzissem a santa pedra para a terra, com o fim de levar a humanidade a reverenciá-la, P.m honra e memoria do ilustre caraiba". "E estão os índios firmemente convencidos, não havendo quem lhes tire isso da cabeça, de que a mencionada pedra foi guardada, durante longos tempos, por um animal de nome Morito/yf, do tamanho de outros, que vi no país, chamado Murup (especie de bugia-; de ~lo amarelo, cauda comprida ~ forte, mas difícil de pegar, por causa da ligeireza do animal, o qual chora como uma criança e, à semelhança dos esquilos, vive a saltar de ar~ vore em arvore) (/). O Moritolyf (dizem) vivia dia e noite na pedra em questão, como se estivesse a ela preso pelos encantos de algum Zoroastro, ou outro qualquer antigo nigromante; e, quando alguem se apro~ ximava com o intento de apoderar-se da pedra, o ani~ mal, com o objetivo de atrair os vizinhos em socorro -54-- de coisa tão rara, soltava gritos, que eram ouvidos á grande distancia. . . Esse animal desapareceu logo após o diluvio, provocado ·por certo profeta, que conseguiu salvar-se com seus filhos,. sendo de tão má índole e desagradavel .às estrelas, que a lua, senhora, segundo os selvagens, dos demais corpos celestes e seu principal ·elemento, determinou ao sol e a·os outros astros tirar ao Moritolyf o encargQ de guardar a pedra, dando-o aos homens, a fim de evitar o seu desaparecimento e ruína. E estão os pobres crentes dessa fantasia, que, se lhes roubassem a pedra, ·ou a destruissem, tal fato arrastaria a ruina e aniquilamento de todo o país". Sabe-se a extraordinaria sorte, que tal lenda obteve entre os missionarios e: quantas discussões suscitou. Os tupinambás procuravam, como é natural, explicar, de acordo com as tradições relacionadas com o seu heroi-civi!izador, as diferenças, que os separavam dos europeus. A chegada desses excentricos estrangeiros, com seus maravilhosos objetos, enriqueceram o velho mito de novos elementos: "Os referidos profetas apresentaram á nosso pai, de quem somos descendentes, duas espadas, uma de madeira e outra de ferro, misturando-as. Achando a espada de ferro muito pesada, nosso pai escolheu a de madeira, ao contrário do vosso pai que, tendo visto a escolha do outro, tomou a de ferro, mostrando-se, assim, mais avisado. E daí proveio sermos tão .miseraveis". 1 Curioso é o fato de ter sido, a mesma legenda, formada simultaneamente no seio de diversas tribus sulamericanas, notadamente entre os chiriguanos. Explicam os chiriguanos a superioridade dos povos bran1 Claude d'Abbeville, foi. 69 T. -55~ cos, contando que Aguara-tunpa, após a criação, deu aos antepassados dos indios e dos brancos todas .as armas conhecidas; os indios escolheram o arco e a flecha, por serem menos pesados, deixando aos brancos os fuzis e os sabres, instrumentos que têm dado a estes mais vantagens. 1 Acompanhando, em toda a America, a forma adquirida por esse episodio, poderse-á assistir ao nascimento espontaneo, nas diversas regiões, de um mito identico. 2 Ad instar das antigas populações do México e do Peru, os tupinambás parecem considerar os europeus como filhos de seu heroi-civilizador, ou como o proprio heroi-civilizador, que voltou ao mundo em companhia de seus auxiliares. "Percebendo que sabemos realizar mais coisas do que eles (explica Thevet) 3 e que são os nossos engenhos mais a-dmiráveis, dizem os selvagens que somos os sucessores e os legítimos filhos de Maire-monan, tendo a sua verdadeira raça transbordado para as nossas terras". "De há muitos tempos (explicaram os selvagens a Léry 4 ) , pois já são passadas tantas luas que não mais sabemos o seu número, surgiu em nosso país um Mair, isto é, um francês ou europeu, vestido e barbado como alguns de vós outros". A identificação do heroi-civilizador com o intruso branco salta aos olhos, sendo confirmada, aliás, pelo nome de Maira, que os tupinambás davam aos conquistadores. Os traços europeus, que os povos americanos emprestavam ao seu heroi-civilizador, Viracocha, Sumé e outros, - constituem elementos su1 (1), p. 2 3 4 Nino, p. 233-234; Giannecchini, ps. 203-204; Norden&kfold 260. Entre os tobas, por exemplo: cf. Karsten (3), p. 101. (2), foi. 914. T. 11, p. 77. --56- perpostos, posteriormente, ao mito primitivo, sugeridos pela convicção da volta do ancestral lendario. Não menos enganosa é a opinião, elevada a um ato de fé para os europeus, que consistia em ver em Sumé a figura do apostolo Santo Tomé. A fortuita semelhança, existente entre os nomes de Sumé e Tomé, contribuiu bastante para o exito dessa fantasia. A inopinada identificação só surgiu assás tardiamente. Thevet ·considera Sommay um caraiba puramente indigena; do mesmo modo, Yves d'Évreux e Claude d' Abbeville. Há uma passagem de Claude d' Abbeville, 1 referente ao heroi-civilizador e antepassado da tribu, que se tornaria incompreensivel sem o esclarecimento prestado ao assunto pelos textos modernos. Lê-se naquela passagem uma invocação· ao "avô", pr·onunciada por ocasião de um eclipse. O titulo de avô é precisamente o que os tupis modernos dão ao seu heroi-civilizador, pois o Tamo'i dos guaraius e o Nanderuvuçú dos apapocuvas não passam de termos indigenas designativos do grande ancestral. A palavra que, na invocação, citada em lingua tupi por Claude d' Abbeville, significa "meu avô", Cheramoin, equivale a Tamoi, porquanto ché é o pronome pessoal da primeira pessoa e a transmutação do t em r, na composição, sabe-se ser uma lei fQnetica muito conhecida na lingua tupica. A alegria manifestada pelos tupinambás..à idéia de reunir-se ao seu Tamo'i é da mesma natureza da experimentada pelos guaraius quando pensam em ir viver ao pé de seu deus de igual nome. Esse Tamo'i representa para eles, precisamente, o que era Sumé para os tupinambás. 2 1 Fols. 827v.-328. 2 Cf. p. 168. -57- Existia talvez, no meio dos tupinambás, a crença em uma relação entre o trovão e o respectivo heroicivilizador. Cardim 1 assegura que os índios pretendiam ter recebido de Toupan o pau de cavar e as plantas por eles cultivadas. Bicbotou, que, segundo Thevet, 2 introduzira o fogo entre os homens, não seria outro senão o trovão. Como a minha documentação a respeito se limita a essas duas alusões, não me atrevo a tirar nenhuma conclusão, embora o fato seja bastante interessante para merecer a referenda. Apresso-me a acrescentar que, possivelmente, Cardim teria cometido uma confusão muito explicavel. Herois-civilizadores de outras tribus tupi-guaranis A mitologia dos antigos guaranis do Paraguai é quase desconhecida; mas o pouco que se sabe basta para provar quanto ela é um nada diferente da dos tupinambás, conforme se depreende dos mitos recolhidos entre os apapocuvas, seus descendentes. O heroi-civilizador dos guaranis usava, tambem, o nome de Sumé. Atribuíam-lhe esses índios a introdução da cultura da mandioca, contando que, em virtude de desavenças entre os índios e os seus ancestrais, o mesmo punira-os com o retardamento do tempo necessario para a maturidade daquele tuberculo. ' De acôrdo com a tradição corrente na costa, os habitantes do Paraguai consideravam os fenomenos erosivos, ou outros quaisquer fatos que tivessem deixado marcas nas pedras vizinhas aos cursos de agua, como 1 P. 163. Cf. p. 2t5. 8 Montoya, p. 44. ~ pegadas provenientes da permanencia de Sumé entre os homens. Certas sendas naturais, que se podem seguir em diversas regiões paraguaias, estão ligadas à tradição das peregrinações errantes do pretenso Santo Tomás. 1 Os antepassados dos guaraius-pausernas, ou ita:. tins, pretendiam tambem ter herdado de Pai-Çuma o costume da tonsura, mostrando, a quem os quisesse ver, sinais deixados pelos pés dessa personagem. ~ O fato é perfeitamente natural, pois, na epoca em que os missionarios colhiam tais fragmentos míticos, os referidos indios acabavam de deixar o Paraguai, estabelecendo-se nas encostas andinas. Ver-se-á, mais adiante, que seus descendentes permaneceram fieis às tradições em curso no Paraguai. Particularmente interessante é· o achado, entre alguns raros informes, colhidos nas crônicas referentes à religião dos omaguas, de uma alusão mais ou menos direta a Sumé. "Parece (dizem as Noticias autenticas dei rio Marafwn 3 ) que os índios tiveram algunJ conhecimento do supremo autor da natureza, ao qual davam o nome de Zumi-Topana, embora, segundo sei, j.àmais lhe rendessem eles o menor culto". Não é preciso· nenhum esforço para reconhecer nesse Zum i-Topaná o nome do heroi-civilizador e criador dos tupinambás, assim como o seu demonio tonitroante. E isso é suficiente para levar .à suposição de que a mitologia dos omaguas estava ainda muito relacionada à dos tupi-,guaranis ocidentais e meridionais, grupo no qual a linguistica nos permite igualmente classificar 1 Techo, ps. 155-156. 2 Annure litterre, p. 425. I T. XXX, p. 197. o mesmo grupo. Assim, é perfeitamente justificàvel a hipotese que acabo de formular. Todas as tribus tupi-guaranis modernas, cuja mitologia já se tem estudado, crêem na existencia de um ou de muitos herois-civilizadores, que, frequentemente, salvo engano, se assemelham às divindades vulgarizadas pelos antigos textos. Uma rapida analise de suas tradições bastará para levar o leitor a essa convicção. O heroi-civilizador dos apapocuvas-guaranis 1 é designqdo pelo nome de fiíanderuvuçú, "nosso pai grande", ou pelos de Nhaderamoitubixa ou Nhandejara, palavras, ambas, traduzidas por "nosso grande antepassado", "nosso avô . grande". Apareceu na origem dos tempos, em meio das trevas. Ao seu lado, encontra-se fiíanderú Mbaecuaá, "nosso pai conhecedor de todas as coisas", que o assiste nas suas criações, embora num papel subalterno., fiíanderuvuç.ú começa por formar a mulher, fiíandecy, "nossa mãe", cuja posse ele partilha com Mbaecuaá. Em seguida, cria a terra, que é apoiada em uma cruz voltada para o oriente. Sua casa, situada no centro da terra, está rodeada de terrenos que, mal são plantados, cobrem-se de abundantes colheitas. Após uma querela com sua mulher, que não quis acreditar no crescimento miraculoso das plantas pelo mesmo cultivadas, o heroi-civilizador abandona-a, retirando-se para o céu. Mais tarde chama a si seus dois filhos e vai para berr1: longe, no meio das trévas, isto é, para uma região iluminada apenas pela luz que a referida divindade traz ao peito e na qual permanece a fim de evitar a ruína da terra, por ele criada e que pode destruir a seu bel-prazer. É de1 Nimuendajú (1), ps. 316-819 e Borba (2), ps. 63-69. -(j(')- baixo de sua rede que vive o tigre azul, animal encarregado de participar da exterminação da humanidade. Qqanto ao seu assistente, Mbaecuaá, não se fala mais dêle após os primeiros episodios da criação. O heroi-civilizador dos 'tembés 1 é Maira ou.Mairaatá ("Maira-o-viajante"?), que jã se conhece através dos mitos tupis, anteriormente resumidos. Maira an.. dava na terra .à epoca em que os homens só cultivavam, em seus campos, sementes chamadas de camapu. O primeiro homem, por ele encontrado, tratou-o grosseiramente; para puni-lo, Maira ordenou que a mataria invadisse suas plantações, pelo que o referido homem, irritado, lançou-se em perseguição àquele heroicivilizador e, assim, em virtude dos poderes magicos dêste, encontrou a morte pelas proprias mãos. O mesmo não aconteceu ao segundo homem, encontrado por Maira, pois, tendo tratado com cortezia ao heroi-civilizador, viu todas as suas plantações transformadas em raízes de mandióca. Maira chegou até a revelarlhe o segredo desse tuberculo, que, quando plantado pelo mesmo, crescia num abrir e fechar de olhos. Aconteceu, tüdavia, ter o homem, a quem Maira concedera tal beneficio, posto em duvida a rapidez do crescimento da planta, tendo sido, por isso, condenado a esperar, pelo tempo de um ano, ·a sua primeira colheita. E'rosseguindo em sua vida errante, Maira transformou um tronco de arvore em mulher, com a qual conviveu durante algum tempo, abandonando-a depois que a mesma se tornou gravida. Na continuação desse mito, Maira só aparece para o fim de impor provas a seus filhos, os gemeos míticos. Acreditavam os tem1 Niinuendajú (2), p&. 281-288. -61- bés que Maira gozava uma vida cheia de delicias, nó bemaventurado /kaiwéra, alhures descrito. Não me posso furtar à impressão de que o mito de Maira, na forma recolhida por Nimuendajú, se: acha possivelmente truncado. A principio, de fato, o heroicivilizador é tratado como personagem comum. Os episodios omitidos são, talvez, os da criação. A mitologia dos guaraius 1 é das mais confusas e sente-se alguma dificuldade em identificá-la em meio dos personagens, que aí representam papéis tão mal definidos. Quatro pelo menos, dentre esses personagens, parecem ocupar o lugar dos herois-civilizadores, ou mais precisamente dos herois-criadores: são Mbir (que se transforma em homem e recebe o nome de Mbiracucha 2 ) , Zaguaguayu (com sua coroa amarela), seu irmão Abaangui e, enfim, Candir. Três desses seres sobrenaturais criaram a terra e os homens. Em seguida, intervem a personagem chamada o "Ancião", que tem papel importante nas idéias religiosas dos guaraius. Cardús não é muito claro a tal respeito, pois diz que o "grande pai" não é outro senão Zaguaguayu, embora se contradiga, mais adiante, identificando-o com Abaangui. Isso pouco importa 1 aliás, pois Cardús certamente caiu no mesmo erro de Thevet, multiplicando, a seu bel-prazer, os he.vis-civilizadores. O "grande pai", ou Tamol, conforme o designam os indígenas, criou, para seu uso pessoal, a mandioca, o milho, a banana. e outros frutos mais; é, 1 Cardús, ps. 76-78. 2 Reconheço nesse nome o do hervi-civilizador quichua Viracocha. A influencia andina é, talvez, antiga. Já. bá referenda a Candir nas Annure litterre (p. 427). Representam-no como o demonio dos iuaraius ou itatins. -62 também, considerado o Inventor da chicha, da qual foi ainda o primeiro a usar moderadame11te,· retirando-se para 6 poente, onde estabeleceu uma especie de paraíso terrestre, no qual os mortos vão encontrar-se com aquêle deus e o qual os viVos tambem esperam alcançar. Em sua viagem, Tamoi· transformou sua mulher e o filhinho em uma pedra, que se ergue no meio do rio São Miguel. Entre os chipaias, 1 todas as ações consideradas, nas demais tribus, como proprias do heroicivilizador, são levadas em conta da divindade demoníaca Kumã<pári e de seu filho do mesmo nome. De Kumã<pári, o velho, sabe-se somente ter sido um transformador; as tradições concernentes ao mesmo só falam de metamorfoses. Seu filho, todavia, tem um papel muito mais importante: cria os homens, dá-lhes o fogo e, depois, retira-se para um local situado entre a terra e o céu, onde vive, cercado da família e dos feiticeiros ( medicos-feiticeiros) de sua convivencia. Tinha o aspecto do jaguar, conservando bem acentuadamente seus habitos antropofagos. Os chipaias prestam-lhe culto, consagrando-lhe mulheres, erguendolhe estátuas representativas do heroi e ofertando-lhe carne humana. Comparando os mitos dos chipaias com os dos mundurucus, fica-se surpreendido com a semelhança de muitos dos seus pormenores. Mas, apesar dessas similitudes, a natureza do heroi-civilizador não é a mesma entre essas duas tribus, Caru-sacaaebê (Caruçacahiby) não tem nada de demonio, sendo, antes, a figura de um possante mago, semelhante a Sumé ou a .Maira. Não é, tampouco, o criador dos mundurucus, 1 Nimuendajú (3). P'· 1012-1021'. -~- dos negros e dos brancos, pois a humanidade já existia antes de seu. advento. Os mundurucus dizem dever-lhe a cultura de todas as plantas, assim como o emprego da cuia, onde torram sua farinha alimentícia. As pinturas, que fazem no corpo os guerreiros desse grupo, reproduzem as trazidas por aquele heroi ao tempo de sua estadia entre eles. Os petroglifos, cuja origem escapa a tais indios, são igualmente levados .à sua CQnta. Caru-Sacaaebê merece, a mais de um titulo, o epíteto de transformador, pois suas metamorfoses são numerosas, consistindo, quase todas, na mutação de homens em animais. Tem um filho e há quem lhe dê a paternidade de mais outro, por ele proprio fabricado de um pedaço de pau. Rairu, o primeiro, acompanha-o em todas as suas atividades, mostrando-se mesmo, algumas vezes, mais poderoso que o pai. 1 Os chiriguanos, embora tendo emigrado para o Paraguai em data bastante recente, não possuem uma mitologia assás diferente da das outras tribus tupiguaranis, embora sejam raros os traços comuns entre as suas tradições e a de seus irmãos raciais. A primeira característica divergente dos mitos chiriguanos é a ausência de hewis-civilizadores comparaveis àqueles dos quais se tomou conhecimento precedentemente. Isso não quer dizer, entretanto, que não tenham nenhuma tradição relativa a essa categoria de personagens; mas é que, entre os chiriguanos, tal papel cabe a dois animais, o Aguara-tunpa (deus-raposa) e o Tatu-tunpa (deus-tatu). Na realidade, sua característica de heroi;. civilizador não ressalta aos olhos, mas surge sômente 1 Tocantins, part. 11, ps. 86-SS; Barb.o sa 2õ0-2õl. -64- Rodri~es, ps. .à custa da anâÍise cerrada dos mitos pertinentes. 1 Desse modo, é Aguara-tunpa quem destroi o mundo, a principio incendiando-o e, depois, inundando-o e quem, após a criação, fornece armas aos homens, ensinando-lhes, ainda, a perfurar os labios para neles pôr o botoque. Foi tambem Aguara-tunpa quem furtou ao viscacho as sementes das arvores, cuja reprodução este impedia. E quem modificou a f.orma, outrora difer·ente, de varios insetos. Aguara-tunpa introduziu, enfim, entre a humanidade a goma elastica, roubada, por artifícios, ao condor branco. A rivalidade entre Aguara-tunpa e Tatu-tunpa é objeto de inumeras narrativas. Nessas aventuras, em geral, Aguara-tunpa não tem o relevo, que era de esperar em ra. zão da importancia de seu papel em outras ocasiões. É ludibriado por Tatu-tunpa e mostra-se, geralmente, mau e trapaceiro. A moralidade de Tatu-tunpa é um tanto mais elevada. Já contei, atrás, a historia dos maravilhosos processos agrícolas de Tatu-tunpa, assinalando as suas analogias com a do mito dos tupinambás. A primitiva mitologia dos chiriguanos parece ter sido profundamente alterada pela influencia dos chanés. A ação desses índios é particularmente manifesta no que diz respeito à natureza animal dos heroiscivilizadores, pois tal similitude permaneceu sempre estranha aos tupis. 2 Em compensação, certos motivos 1 A respeito dos mitos concernentes a essas duas personagens, cf. Nino, ps. 131-133 e 233-234 e NordenskiOld (1), ps. 270-290. . 2 Convém, •entretanto, notar que Tamanduara, nome de um . dos filhos de Sumé, significa "filho de tamanduá". A forma ;rafiUlndonare, dada por Thevet, não passa de um erro de impressão: o editor confunde constantemente o n e o u, nas palaTrai! estrangeirali. -65- do mito conservaram sua característica tupica, - a episodio do diluvio é uma boa prova. A comparação, feita, linhas atrás, entre as aventuras do heroi-civilizador, tais como são contadas em diferentes tribus tupis, revelam um importante fato, que frequentemente tive ocasião de verificar: os mitos dos tupinambás, dos guaranis e -dos tembés formam entre si uma unidade, correspondendo nitidamente à unidade cultural existente entre essas tribus; contrariamente, os diversos temas de seus .mitos diferem mais ou menos dos temas dos grupos tupicos cuja civHização oferece traços de influencia estrangeira, tal c·omo acontece entre os chiriguanos, os mundurucus e os chipaias. I Ehrenreich 1 vê em todos os herois-civilizadores personagens solares e lunares. Esse carater não ressalta muito evidentemente do mito tupinambá, tal como chegou até o nosso conhecimento. As relações dos herois-civilizadores com o sol ou a lua são muito mais aparentes nos mitos tupis modernos. Nanderuvuçú (dizem os apapocuvas) traz ao centro do peito uma brilhante luz, que lhe permite "descobrir-se" a si mesmo no meio das trevas. Maira, o herui viandante dos tembés, é marcado, no rosto, por uma mulher, com a qual ele manteve relações secretas. Essa desventura é sempre atribuída à lua, nos numerosos mitos americanos explicativos das manchas existentes no referido planeta. Uma das personagens do mito guaraiu tem o nome de Abaangui, "o homem do nariz caido", .aspecto que, segundo Ehrenreich, ~ freque.ntemente dado à lua metamorfoseada. Já vimos, do mesmo modo, 1 Ps. 4-2-48. ·- 66- que Zaguaguayu é talvez, à semelhança de Mairepochy, uma encarnação do sol. Apesar desses fatos, reluto em aceitar a tese de Ehrenreich. As características solares dos diferentes herois-civilizadores são pouco numerosas em relação a outras. Demais, a maior parte dos exemplos recolhidos por Ehrenreich dizem respeito a personagens, que não são necessariamente herois-civilizadores, mas, talvez, encarnações do sol, tal como Maire-pochy. Em alguns dos mitos, o sol é mesmo cuidadosamente diferenciado dos herois-civilizadores. Uma só coisa, entretanto, é certo, a saber: na qualidade de pai dos dois gemeos míticos, o heroi-civilizador está em relação direta com a lua e o sol, pois a identificação desses astros com os gemeos não deixa nenhuma duvida. Em resumo, pode-se admitir como certo que, na religião primitiva comum a todos os membros da família tupica, existia a crença em um ente poderoso criador do universo e pai da humanidade, o qual revelou a cultura da mandioca. Esse "superhomem", após lutar contra aquelt:s a quem cobrira de beneficios, retirou-se para uma especie de paraíso terrestre, estancia dos mortos e de alguns vivos favorecidos. Em sua qualidade de mago, o mencionado heroi-civilizador teria criado outras criaturas secundárias, geradas por suas transformações. Esse heroi-civilizador ainda destruirá talvez o mundo, conforme já o fez anteriormente (m). -67- NOTAS AO CAPITULO I (EsTEvÃo PINTO) (a) Os principais personagens da mitologia tupinambá, transcrita por Thevet em sua Cosmographie Universelle (vj. o "Apêndice", in fine), são os seguintes, segundo os estudos por mim já feitos e agora ampliados e refundidos (cf. Os Indigernu do Nordeste, II, ps. 185 sq., São Paulo, 1938): I. Monan. - Outras formas: Moíían, Monham, Munhã, etc. M01!an é o criador, pois, como observa, aliás, Métraux, esse nome tem a mesma raiz de 1nunhangara. Munhang, realmente, significa obrar, fazer, criar ( cf. E . Stradelli, "Vocabularios da língua geral", em Rev. do Inst. Hist. e Geog. Bras., CLVIII, Rio, 1929; "Dicionario português-brasiliano e brasiliano-português", reimpresso por Plínio Ayrosa, ell) Rev. do Mus. Paul., XVIII, p. 258, São Paulo, 1934). Munhã (observa Thevet) "signifie a!l'tant que víeil et ancient"; mas se sabe que há, entre os povos primitivos, estreita relação entre as idéias de deus e de pai (Ernst Jones, Psicanálise da religião cristã, p. 21, Rio, 1934). O heroi-civilizador dos apapocuvas-guaranis, como já se viu, designava-se pelos nome!! de :Nanderuvuç-ú ou Nhandejara, isto é, respectivamente, nosso pai grande e nosso av6. Tamoio, o avô, é entre os gua· ranis a divindade inventora da mandioca, do milho, das bananas e de outros alimentos. "As raizes ma, pá, e derivados, designam mãe e pai em quase todas as línguas" (Artur Ramos, O negro brasileiro, p. 43, São Paulo, 1934). Entre os maínas, Yiierre quer dizer nosso pai (Rodolph R . Schüller, "Yõerre, o Stamvater dos índios Maynas", em An. da Bib. Nac. -68- do Rio de Janeiro, XXX, p. 171, 1912). Yiierre era o demiurgo desses índios. 2. Irin-Magé = Maire-Monan. - Outro elemento importante do mito de Munhã é a figura de Irin-Magé Mair-Munhll (ou Màire-Monan). Irln-Magé, de posse dos poderes mágicos de Munhã, de quem era familiar substitue o pai no trono celeste. As duas personagens estão de tal modo identificadas que Ehrenreich supunha tratar-se de uma só e mesma pessoa. Magé, como se sabe, é corruptela de pagé (Teodoro Sampaio, O Tupi na geografia nacional, p. 242, São Paulo, 1914) e irin, provavelmente, uma alteração de eri (o velho, antigo). Bacairi chama-se a tribu caraiba do alto Xingu, visitada pelo etnólogo K.v.d. Steinen; tiueri, no ·idioma bacairi, equivale a "seus netos" e nacoeri a "luz-deus" (R. R. Schüller, o.c., p. 172). Erimbaê (eri = an-, tigo, embaê = coisa) quer dizer "antigamente" na língua tupi. E já vimos que "Yiierre" era o pai ou demiurgo dos mafnas. Substituindo o heroi-criador dos tupinambás, Irin-magé toma mesmo o seu nome. Torna-se Mair-munhã. Thevet explica que Maire quer dizer transformador, um dos atributos do ancestral de$tronado. 3. Sommay. - Sumé, filho de Mair-munhã, é também outro símbolo da imago ancestral. O carater paterno torna-se evidente quando se observa a sua conduta de heroi-civilizador; foi Sumé quem forneceu os alimentos e ensinou aos tupis as primeiras noções agrarias. Com o advento dos europeus na America, vemo-lo identificado com os padrões da crença cristã (Santo Tomé, sobretudo). Cf.: Domingos do Loreto Couto "Desagravos do Brasil e Glorias de Pernambuco", em An. da Bib. Nac. do Rio de Janeiro, XXIV, p. 65, Rio, 1904; Diálogos das Grandezas do Brasil, p. 266, notas de Rodolfo Garcia a ps. 291 e 292, Rio, 1930; J. de Anchieta, Cartas, inform(fções, fragmentos históricos e sermões, p. 332l notas de A. de Alcantara Machado a pgs. 347 e 348, Rio, 1933; M. da Nobrega, Cartas do Brasil (1549•1560), ps. 78, 91 e 101 (c/ notas de Alfredo do = -69 - ·· Vale Cabral), Rio, 1931; Cart~ .Avul8~ (dos jesuítas), p. 180, notas de A. do Vale Cabral à p. 132, Rio, 1931; Simão de Vasconcelos, Orunica da Compcmhia de Jesus etc., ps. 37 e 38, 75 sq., Rio, 2.• ed. de 1864; A. R. de Montoya, Conquista espiritual hecha per los religiosos da la Compaiiia de Jesús, etc., p. 44, Bilbao, 1892; A Nova Gazeta Alemã, por J. Ribeiro, bib. de R. R. Schüller, trad. de C. Brandengurger e notas de F. M. Esteves Ribeiro, ps. 14 sq., s/d; Florian Paucke, Hacia allá y para acá, I, p. 103, Tucumán, Buenos Aires, 1942; Vicente de Salvador, Historia do Brasil, p. 103, São Paulo, 1918. Tum-3 ou Sumé, no dizer de Batista Caetano, é o absoluto t,ubé, podendo interpretar-se por "o pai estrangeiro". Sobre o assunto há um estudo de C. Passalaqua, "0 Apostolo S. Tomé na America", em Ret•. do Inst. Hist. de São Paulo, VIII, ps. 138-189. A interpretação dada por Adán Quiroga, La Cruz en América, p. 5, Buenos Aires, 1942, ou seja, de que Sumé é uma corruptela de Tomé, - não deve ser aceita, visto como está provado que aquêle mito é anterior à vinda dos primeiros jesuítas ou padres. Cf. Serafim Leite, Novas cartas jesuíticas, p. 145, São Paulo, 1940. Também duvidosa é a explicação, dada por Métraux, de que os sulcos deixados por Sumé são originados de erosões naturais, parecendo que antes são des simples inscrições lapidares ou rupestres, cavadas na lapide. Em Sumé encontram-se vestígios da palavra pai (Sumé = Tumé = Tub = Tup). Vivia ..::sse mago ou caraiba à maneira dos monges, em lugares ermos, entregue ao jejum e ao ascetismo. :.;; bom lem· brar que Sumé era filho de Mair e Mair significa "solitario", "coisa apartada", "ente separado" (T. Sampaio, o.c., p. 242). 4. Maire-Pochy e seus descendentes. - Mair-puxi é, finalmente, a ultima das personagens mais importantes da mitologia tupinambá. Puxi significa "feio", o que, na mentalidade dos in· dios, tem o sentido de "mau" ( Stradelli, o.c., p. 209). Os discípulos de Freud estariam inclinados a ver na figura de Mair- -70- puxi um fragmento da dupla personalidade, estudada por Otto Rank. Puxi, o mau, representa, portanto, uma das faces da alma duplice; o culto dos gemeos acha-se ligado a esse tema. :É crença entre muitos povos que os partos duplices não ocorrem sem quebra da fidelidade conjugal; recordemo-nos de que o neto de ~ir-puxi, de nome Mair-atá, casa com uma nativa da terra dos tupinambás e, tendo sido violada, concebe novamente, embora já. prenha. Os gemeos passam. pelas mais atribuladas provas, nas quais o filho bastardo sempre sucumbe, só conseguindo retornar à vida graças às faculdades magicas do mano. Os gemeos dos mitos apapocuvas têm pais diferentes. O mesmq ocorre entre os tembés e os chipaias. Os gemeos míticos "dependem apenas de 'Si proprios", sendo que o fim tragico de um acarreta a morte do outro. Anchieta, referindo.-se aos tupis do litoral, escreve: "Também lhes ficou dos antigos noticias de uns dois homens que andavam entre êles, um bom e outro mau; ao bom chamavam Çumé . . . . . O outro chamavam Maíra" (a.c., p. 832). Na ver·são do padre M. da Nobrega, o mito é assim narrado: "Têm noticia igualmente de S. Tomé e de um seu companheiro e mostram certos vestígios em uma rocha . . . . Dele contam que lhes dera os alimentos que ainda hoje usam, que são raízes e ervas e com isso vivem; não obstante dizem mal de seu companheiro, e não sei por que, senão que, como soube, as frechas que contra ele atiravam voltavam sobre 'si e os matavam" ( o.c., p. 91). Segundo Thevet, Sumé teve dois filhos, um de nome Tamendonare e outro de nome Aricoute. O primeiro era um bom chefe da familia, que vivia entregue aos seus labores agrarios; o segundo, entendido em assuntos de guerra, só aspirava dominar os companheiros, inclusive o mano. Como se vê, tem razão Métraux. quando observa que Çumé e Maira são uma unica e mesma pessoa. A dinastia dos herois criadores e civilizadores dos tupinam..bás pode ser delineada no seguinte esquema, que mostra os disfarces e enfraquecimentos do mito: -71- ; - - - - - - - - - 1\:IUNHã ou MONAN (O pai, o antigo= criador, deus, heroi) I Atributo: o fogo. Fez o céu, a terra, etc. Destruição do mundo. (Puxi = feio = mau) Atributo: o peixe. Parece ser o duplo de Munhã. IRIN-1\:IAGÉ; depois MAIR-MUNHà - - - ----+ TUPà Sucede ao pai: roubo dos atributos (Tup = pai; identificado com paternos. Mair-munhã) MAIR-PUX.I li Atributos: nuvens, agua, ~m, Obtém a chuva e com ela restaura a vida na terra. fogo; ascenção. Atributo: a acanitara Instituição da agricultura. Institue a agricultura flamejante. E' o caçula, predileto da mãe Desdobramento do anterior. (no míto apapocuva-guarani). ! MAIR-PUX.I ! L l MAIR-ATA ! SUMÉ (Sumé = Tumé = Tub = Tup?; Deve ser o mesmo Mair-Puxi, o civilizador) maa (Cf. Nobrega e Anchieta). • Atributo: o pé. Instituição da agriOu, talvez o duplo de ·Sumé (é cultura. enc.ontrado pelos filhos entregue Identificado com Tupã (omaguas). a. uma vida de solitarw e de pagé) ! Gemeos míticos Provavelmente "Tamendonare" e "Aricoute". !. "TAMENDONARE" e "ARICOUTE" O bom O mau (Gemeos?) Dupla personalidade. Um estudo recente de Métraux, que consta da bibliografia atrás publicada, vem na revista América Indígena, VI, n.• 1, 1946, Méxieo: "El Dios Suprt!mo, lo!! Criadores e Héroes Culturales en la )\fitologia Sudamericana". Egon Schaden acaba tambem de estudar o assunto, em Ensaio Etno-Sociologico sobre a :Mitologia Hproica de Algumas Tribos Ivdigenas do Brasil, "Sociologia", S. Paulo, 1945. ( b) A relação entre aman e as chuvas já foi observada por F. Denis, Uma festa brasileira, p. 135, Rio, 1944, quando diz que amá, segundo A. Ruiz .de Montoya, significa "nuvens de água". (c) De caray, cariba, o sábio, o santo, o sagrado. Cf. Teodoro Sampaio, o.c., p. 210. Há um interessante estudo de Rodolfo Garcia em Fernão Cardim, Tratados da Terra e Gente do Brasil, ps. 233-235, Rio, 1925. (d) No texto, râle. Trata-se de um frango d'água, prova· velmente a saracura, fam. Rallidre, a Rallus crassirostris Law; ou a Rallus sanguinolentus Sw. Aliás, é o que diz Thevet, na sua Cosmographie: "il fut chang~ en un Ralle, qu'il&.. nomment Sarracou". (e) Em C. d' Abbeville, Historia da Miu5-o do8 Padres Capuchinhos, etc., São Paulo, 1945, a grafia é Koiirassuh (p. 246). Coarací ou Goaraci1 de guará e cy, a "mãe doi! seres viventes" (p. 28). (f) Talvez corruptela de ybytu, o ar, a viração, o vento (Plínio Ayrosa, o.c., p. 317), ou o hálito da terra, o sopro da terra (em "0 caderno da língua ou vocabulario português-tupi de frei João de Arronches", org. por aqude autor, em Rev. do Mus. Paul., XXI, p. 296, São Paulo, 1937). (g) Yves d'Évreux refere-se a llfair-atá, um dos descendente/! de Munhã, neto de Mair-puxi, que, realmente, J1e entregou a -73- uma vida de solita.rio e caraiba. Mair--atá é o deus-viajante, explica Gonçalves Dias. Cf. C. d' Abbeville, o.c., p. 102. (h) O trecho de Simão de Vasconcelos, que vem em seguida, está incompleto. Cf. Cronica da Companhia, cit., etc., c/ int. e not. do conego dr. Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, ps. 37-38 (Liv. Prim. daa Not.). Todas as vezes que o autor transcreve trechos de obras, publicadas primeiramente em português, prefiro dar o trecho citado em sua forma original. (i) ginal. Outro trecho citado incompletamente. Damo-lo em ori- (j) Refere-se Métraux a Anchieta. A obra foi publicada primeiramente na Rev. do lnst. Hist. e Geog. Bras., t. VI, ps. 404-435, Rio, 1844, segundo a copia fornecida por Varnhagen do ms. existente na Biblioteca de Evora, com o titulo JHUS Enformações do Brazil, e de suas Capitanias - 15,98. ( k) Em C. d' Abbeville ( o.c., p. 246), o nome vem escrito Yiisseuhtata, que Rodolfo Garcia traduz por "estrelas em geral". E' ·a jaci-tatá. Tatá significa fogo e jaci vem de ya (fruto) e cy (mãe). Mãe dos frutos. ( l) O murup é talvez o sa'i-miri, ou macaco-esquilo. O mot·itolyf é que não pude identificar. Pode ser o miriqui ou buriqui. Respondendo a uma consulta, que lhe fiz, Plinio Ayrosa diz que o f final corresponde ao b e o u é o y do tupi. Consequentemente, temos myryb = mbyryb = pyryb. (m) Métraux solicitou-me substituir, todas as vezes que fôsse encontrada no texto, a palavra deus-civilizador por heroi-civilizador. Sôbre o assunto, cf. tambem o s~u ultimo estudo, "El Dios Supremo, los Creadores y Héroes Culturales en la Mitología Sudamericana", em América Indígena, VI, Mexico, D. F., 1946. -74- CAPITULO 11 OS GEMEOS MITICOS Na mitologia dos tupinambás aparecem dois irmãos gemeos (a), cujo papel chega a ser quase tão importante quanto o do proprio heroi-civilizador. Sua função é a de rematar a obra desse ultimo e de ocorrer em ajuda da humanidade. Enquanto nos mitos dos apapocuvas e dos tembés só se fala de dois gemeos, a versão tupinambá comporta um episodio àparte, no qual figuram dois irmãos, Tamendonare e Aricoute, que são clara!Tj_ente distintos daqueles. Trata-se aqui de fenomeno identico ao verificado a proposito do heroi-civilizador. Do mesmo modo que este se transformou em varias personagens, bs gemeos foram, de certo modo, desdobrados, seja em virtude de particular evolução sofrida pelo mito entre os tupinambás, seja, simplesmente, em virtude da confusão entre o informante e o coletor do mesmo. E' a ultima hipotese tanto mais plausivel quanto se sabe que Aricoute e Tamendonare são considerados filhos de Sumé, ao passo que os gemeos têm por pai Maira-atá. Ora, como já se viu, Sumé e Maira-atá não passam de uma e unica personagem. A historia de Aricoute e- Tamendonare ( b) constitue a narrativa de numerosas aventuras atribuidas ao -75- filho de Maira-atá. Como não é possível ligá-la à serie de acontecimentos, que marcaram a carreira desses dois últimos, contá-Ia-ei em separado, à maneira de Thevet. 1 Tamendonare e Aricoute eram dois irmãos rivais, divididos por seus diferentes temperamentos. Aricoute, intrepido e belicoso, desprezava seu mano, a quem reputava poltrão; mas este, certa vez, tendo humilhado o irmão, por ter o mesmo trazido como troféu apenas o braço do inimigo, Aricoute, irritado, lançou o despojo contra a choca de Tamendonare, provocando, por êsse ato, a ascenção ao céu, imediata, de toda a aldeia. Logo, Tamendonare bateu com o pé na tPrra, fazendo iorrar a agua, que não tardou a recobrir o globo. Os dois irmãos. acompanhados de suas mulheres, salvaram-se treoados às arvores e reoovoaram, depois, o mundo. Pretendem os tuoinambás descender de Tamendonare e os timininós de Aricoute. em apendice .à presente obra. reproduzo o trecho da Cosmografia Universal, onde Thevet 2 transcreve o mito dos gemeos filhos de Maira-atá, tal como o recolheu da bôca dos tupinambás do Rio de Janeiro. Contentar-me-ei, pois, em fazer aqui uma sucinta análise do mesmo, destacando-lhe os termos componentes, que permitirão mostrar como o assunto foi tratado entre outras tribus tupi-guaranis. Estabelecen'do-se tais comparações, chega-se talvez a reconhecer a forma primitiva do mito à epoca em que os indígenas dessa família linguistica ainda não se tinham ex1 ~ (2), fols. 914v.-9111. (2), fols. 919-920 v. 7ô - pandido por toda a superfície do continente sul·americano. 1 · I. - Os gemeos, cujos destinos estão estreitamente ligados, não nasceram do mesmo pai. Na versão tupinambá, um é filho de Maira-atá ou Maira monan-atá, o grande heroi-civilizador; o outro, de um homem, que não se distingue do comum dos mortais por nenhum traço particular. Sua metamorfose em sarigué é a unica aventura sobrenatural que lhe sucede. Os apapocuvas-guaranis dão, igualmente, dois pais diferentes aos gemeos de seu mito: Nanderi- ' guey, que consideram o mais velho, foi gerado por I fiíanderuvuçú, o criador; o segundo, Tyvyry, por Fíande!iú-Mbaecuaá, seu colaborador e subalterno. Entre os tembés, do mesmo modo, um dos gemeos é considerado fil}lo de Maire-atá e o outro de Mykúra, que não tem mais importancia que o sarigué do mito tupinambá. Reencontramos esse Mykúra, sob o nome de Mukúra, nas legendas dos chipaias, sendo-lhes atribuída a paternidade de Aru{3iatá, ao passo que seu irmão Kunaríma é filho de Kumãrpári. 2 1 A fim de evitar a citação constante dos mesmos autores, prefiro dar, aqui, as refero::ncias de todas as indicações, que se ·encontrarão no curso do presente capítulo: Apapocuvas: Nimuendajú (1), ps. 317-332 e Borba (2), ps. 62-71; Tembés: Id. (2), ps. 282-288; chipaias: Id. (3), ps. 10161026; mundurucus: Tocantins, part. II, ps. 86-88 e Barbosa Rodrigues, ps. 250-252; chiriguanos: Nordensldõld (1), ps. 271274. 2 Na versão de Borba, tem o nome de Derekey e seu irmllo se chama. ])13revuy. 11 Caru-Sacaebê, heroi-civilizador dos mandurucus, só tem um filho, Carataú, a quem sempre acompanha Rayrú, seu camarada. Rayrú toma o lugar do segundo mano nas demais mitologias e é, nas outras lendas transcritas por Barbosa Rodrigues, representado como o unico filho do heroi-civilizador. O mesmo acontece entre os chiriguanos: Tatutunpa só tem um filho, para a geração do qual concorreu seu rival, Aguara-tunpa, se bem que este ultimo não pareça ter conseguido aproximar-se da moça a quem Tatu-tunpa tornou pejada. 11. - A mãe de um dos gemeos, filho de Mairaatá, por este abandonado, sai .à sua procura guiado pela criança, que lhe indica o caminho a seguir. Recusando-se, porém, a colher "legumes", provoca sua colera. O menino, por isso, se cala e a mãe perde-se. Os apapocuvas, tembés, chipaias e chiriguanos são acordes no fato de pôr a mãe dos gemeos a viajar em busca do marido. A criança a falar no ventre materno é um motivo que só se encontra entre os tembés e os apapocuvas. Esses indígenas explicam a colera infantil, contando que o filho pediu à mãe para colher flores: esta, todavia, tendo sido picada por uma vespa, dá uma pancada no ventre a fim de castigar as exigencias daquele. III. - A mulher de Maira-atá, deixando de ser guiada pelo filho, chega à casa -de um homem chamado "Sarigoys" (sarigué), que lhe oferece hospitalidade e, durante a nüite, dorme com ela, tornando-a gravida de outra criança, Esse episodio falta na versão apapocuv~, segundo a qual é voluntariamente que fiíanderuvuçú cede a mulher á seu companheiro fiíanderúMbaecuaá. Os tembés contam essa passagem de acôr- 78-- do com a tradição dos tupinambás, fornecendo mesmo detalhes ausentes na versão antiga. Assim é que plicam ter Mikúra conseguido dormir com a mulher de Maira-atá, a quem hospedava: fazendo um buraco no teto da choça, o que levou a mulher, a fim de evitar ser molhada pela chuva, a pendurar a sua rêde perto da do dono da casa. Nimuendajú recolheu ai-· guns indicias, que provam existir esse elemento mítico, sob forma identica, entre os índios chipaias. ex- IV. -A mulher, prosseguindo o seu caminho, che.,. ga a uma aldeia, cujo chefe tem o nome de !amare (no ms. original provavelmente Jaruare), no qual reconheço a palavra jaguar. Vitima da crueldade dos selvagens, é cortada em pedaços e, depois, devorada. Os filhos são lançados ao lixo, onde os recolhe uma mulher que os cria. Sua origem sobrenatural revela-se pela rapidez de seu crescimento e pela sua habilidade em caçar. Indo, certa vez, à procura das iuaias (literalmente, certos frutos arboreos) (c), os geme os decidem-se a vingar a mãe. Com tal objetivo, arrastam os habitantes da aldeia a uma ilha, onde (informam) abundam os referidos frutos. No mesmo instante em que os matadores da mãe atravessam a agua, os gemeos promovem uma tempestade, que os submerge e os transforma em animais felinos. A versão tupinambá dêsse episodio, que acabo de resumir, sem duvida foi muito encurtada, a julgar pelos elementos componentes dos mitos existentes em outras tribus. Eis, por exemplo, como os apapocuvas narram esse inciçiente da vida dos getneos: abandonando a mulher, fiíanderuvuçú teve o cuidado de fechar, por meio de uma cruz, o caminho do céu, deixando aberta apenas a rota do "tigre eterno". fiían- -79 deriquey, do qual tvandecy se sentia gravida, advertiu, porém, sua mãe do perigo de seguir esse caminho. Mas, embora recebida pela avó dos tigres, que a oculta, é pressentida e devorada. 'É verdade que, procurando os tigres cozinhar os dois gemeos, que haviam encontrado nas entranhas da vitima, a agua esfriou subitamente. Também não tiveram resultado, quando procuraram esmagá-los no pilão. Finalmente, verificando que as brasas se extinguiam ao contato dos gemeos, -os tigres decidiram deixar-lhes a vida, encarregando-se a velha de sua criação. Cresceram, assim, os gemeos em breve tempo e tornaram-se babeis caçadores. Aves, por eles feridas, revelaram-lhes o modo, pelo qual morrera sua mãe. E, então, IVanderiquey, que, na qualidade de filho de Nanderuvuçú, era o mais habil e forte, ajuntou os ossos da mãe, reconstituindo-a, tendo essa obra sido destruída pelo mano caçula na avidez que mostrou ao mamar nela. t . Randeriquey, em seguida, criou diversos frutos, para saciar o mano, entre os quais a guabiroba, que atraiu os tigres para alem do curso da agua. As margens do rio, que os tigres devem atravessar, afastam-se à meum cipó. O jovem irmão de dida que se, desenrola , Randeriquey, Tyvyry, amedrontado por ver o cipó tornar-s~ cada vez maior, fixa-o antes do tempo: os tigres são prêsa dos peixes carnívoros, se bem que uma fêmea, gravida, tenha conseguido salvar-se. Não foi apenas por esse processo que os dois irmãos conseguiram dizimar os tigres. Construindo, com os caniços, uma armadilha, que as feras destruíram repetidas vezes, por escarneo, muitas delas cairam afinal mortas no mundeu, agora mais solido em virtude da queda de um raio. -80- A exceção desse pormenor e do da ressurreição I de Nandecy, a morte da mulher do heroi-civilizador e a vingança dos gemeos são relatadas pelos tembés quase identicamente, 1 di-ferindo apenas pela maneira com que os manos alcançam a ilha, onde criam os ananases com os quais atraem os jaguares. Os gemeos, no mito dos tembés, ligam as duas margens disparando flechas, que se unem umas às outras e formam, assim, uma ponte. Como acontece no mito tupinambá, os tigres são precipitados na agua pela tempestade provocada pelos gemeos. Esse episodio do mito dos dois irmãos conservou-se entre os chiriguanos, se bem que estes tenham perdido a lembrança da existencia dos gemeos. A mulher seduzida por Tatu-tunpa dá à luz a uma criança, qu~se escapa ocultando-se em uma cova. A propria ,mãe é arrebatada pelo tigre de duas cabeças. A criança é, depois, encontrada pelo pai, que a educa, distinguindo~se bem cedo por sua habilidade na caça. Uma ave aconselha-o a que, em lugar de matá-la, vá o caçador em busca de sua mãe. O filho, então, recebe das mãos do avô um tacape e parte nessa missão, acompanhado de Dyóri, o glutão, que substitue aqui o mano do 'mito primitivo. Encontrando-a, depois, embosca-se numa choça de caça, perto do curso da agua e, assim, mata a princípio os gatos selvagens, punindo, em seguida, o jaguar, que se refugia no tiru da lua. Essa 1 Devo assinalar, aqui, algumas insignificantes diferenças entre o mito tembé e o dos ·apapocuvas. Antes de ser devorada pelo tigre, Maira-atá muda a mulher em veado. A avó dos tigres procura retalhar as crianças, em lugar de assá-las nas brasas. Mas os g.:meos transformam-se em papagaios, antell de ~dqulrlr .a sua forma humana. - 81 versão do mito, embora alterada, contém mais de um elemento antigo, como por exemplo, a fuga do tigre para o céu. Os apapocuvas atribuem a esse anim~l um carater sobrenatural, fazendo-o o "tigre-eterno", que se conserva no firmamento. V. - Satisfeito o· desejo de vingança, os gemeos põem-se em busca do pai, que encontram numa aldeia proxima do Cabo Frio, onde o mesmo adquirira vasto renome de mago e de adivinho. Os dois manos entram ousadamente na oca paterna, apesar da interdição de penetrar nela, declarando, de pronto, a sua qualidade de filhos de Maira-atá. O velho rejubila-se com o encontro, mas recusa-se a reconhecer os filhos antes de submetê-los a diversas provas. Um dos persistentes desejos, manifestados pelos dois gêmeos, no mito dos apapocuvas, dos tembés e dos chipaias, consiste no encontro dos mesmos com o pai, o heroi-civilizador. O voto é sempre alcançado, mas o seu exato momento não é igual em todas as tribus. Assim, entre os apapocuvas, só após a realização de uma serie de façanhas terrestres é que os dois gemeos conseguem entrar em comunicação com o pai. O encontro marca o termo de suas aventuras. O mito tembé, ao contrario, aproxima-se muito mais, no caso, do mito analisado anteriormente, pois situa a visita dos gemeos a Maira-atá pouco tempo após o massacre dos jaguares e antes das provas a enfrentar. Os chipaias consideram também os varios trabalhos dqs gemeos como um cumprimento da vontade de Kumãrpári, que eles acabam, afinal, por encontrar. A titulo de curiosidade, deve-se observar que o pai dos gemeos é descrito, no mito tembé~ como um velho ornado de um diadema. -82 VI. - A primeir9 prova, que Maira-atá exige dos filhos, consiste em atirar com o arco. As flechas dos dois gemeos ficam suspensas no ar. Esse motivo falta entre os apapocuvas, os chipaias, os chiriguanos e os mundurucus. Os tembés conhecem-no, mas o contam de modo diferente : não é Maira-atá quem teria exigido tal prova de destreza, ' quem teria desafiado o pai mas é seu filho, Mairayra, a distender o arco. As flechas do filho desaparecem de rochedo a dentro, ao passo que as do pai se partem contra as pedras. Ao mesm'o motivo pertence a cadeia de flechas, por cujo meio conseguem os gemeos ligar a ilha dos ananases à terra-firme. É desse modo que os dois filhos do Tamol dos guaraius chegam a ganh~r o céu, onde são transmutados na lua e no sol. As flechas lançadas contra a abobada celeste acabam por formar uma corda, que facilita sua ascenção. VIl. - A segunda prova consiste em passar, por três vezes, através da pedra Itha-Irápi, cujas dua·s metades se entrechocam rapidamente. O filho de Mairaatá recomenda ao mano tentar, em primeiro lugar, a aventura, tendo em vista o perigo de· acidente. E lembra-lhe, a proposito, a sua origem mais humilde. O ojllóço é esmagado pelas pedras e o irmão recolhe os seus restos, dá-lhe a primitiva forma e esforça-se para que não lhe sobrevenha outro desastre semelhante. O filho de "Sai-igoys", com efeito, daí em diante, se sai das duas outras provas tão bem como o seu irmão. 1 1 Cardús, p. 78. -83- Ehrenreich chama a esse motivo "o tema das simplegadas". Figura no mito dos chipaias de forma idêntica, com a unica diferença de serem os rochedos substituidos por duas arvores. Kuiiaríma ressuscita seu irmão Aru{Jiatá, que ficou completamente esmagado, recolhendo-lhe- o sangue e soprando nele. Depois, arranca as arvores e leva-as, em troféu, a seu pai. Nem os mitos dos apapocuvas nem os dos tembés, guaraius ou chiriguanos fazem alusão às "simplegadas". Todavia, não as ignoram os índios dessas duas últimas tribus, pois crêem que as almas dos m.ortos são obrigadas a passar entre dois rochedos, que se precipitam constantemente um contra o outro (em guaraiu, passo de /tacaru), antes de alcançarem a sua eterna mansão. 1 Os chiriguanos, igualmente, colocam na rota do paraíso um eno'rme par de tesouras, que cortam todos os que passam entre as suas laminas. VIII. - Maira-atá não se mostra 'Satisfeito com as duas provas antecedentes. Exige outra: os dois herois devem ir ao Agnen-pinaiticane (literalmente, "o lugar onde Agnen pesca") e furtar a Agnen os apetrechos por meio dos quais ele pesca o peixe Alain ( d). Esse peixe serve de alimento aos mortos. O filho de "Sarigoys" tenta, em primeiro lugar, a sorte. Dilacerado por AgnBn, torna à vida graças a seu irmão. Recomeçando, juntos, a prova, conseguem finalmente lançar mão da isca do anzol de Agnen. Levam, então, a Maira-atá a prova de sua façanha, o qual os recebe como seus filhos, embora ainda com a idéia de submetê-los a novos trabalhos. Existem, a respeito desse motivo, dois temas modernos. O dos tembés é o seguinte: os dois gemeos 1 Cardú~, p. 88; Nino, ps. 141-142. -84- miticos encontram Azán, que pesca. O filho de Maira transforma-se em surubiú ( especie de peixe) e roubalhe o anzol (e); mas, quando o filho de Mykúra tenta fazer a mesma coisa, Azán apanha-o, mata-o e devora-o. Seu irmão, que se metamorfoseara em formiga, recolhe os despojos do mano (isto é, as espinhas) e, soprando nelas, ressuscita-o. Em seguida, trata de adestrar o irmão de modo a não haver mais perigo de lhe suceder, doravante, semelhante infortunio. A versão chipaia pouco diverge da anterior. As únicas variantes são a troca de nome de Azán pelo de Awá (ou "espírito") e o inseto, no qual o descendente do heroi-civilizador transmuda-se para o fim de apanhar os restos do mano. Em lugar de tomar a forma da formiga, toma a da vespa. Os apapocuvas perderam a lembrança do mito, sem duvida familiar a seus ancestrais. A rivalidade que, em todos esses mitos, se manifesta entre. o hewi-civilizador e seus filhos é mais acentuàda na tradição dos mundurucus. Rayrú vê-se constantemente exposto às perseguições do pai, que só pensa em tirar-lhe a vida; mas consegue livrar-se, com exito, de todos os perigos. ~ Se os textos modernos abundam em minucias a proposito das aventuras dos dois manos, as ·fontes antigas, ao contrário, são bastante laconicas. Encontrase, entretanto, um longínquo rasto do tema em Vasconcelos. 2 Esse compilador dá um resumo da lenda, corrente entre os tupinambás, segundo a qual os seus antepassados seriam oriundos de dois irmãos: estes ter-se-iam desavindo por causa de um papagaio, que 1 Barbosa Rodrigl!<!S, ps. 250-252. 2 Ps. 58-59. -85.- a mulher de um deles recusara ceder .à mulher do outro. Vasconcelos conhecia igualmente Tamandunaré, que descreve como um grande feiticeiro, relacionado com Tupã. Foi graças ao aviso desse "deus", que o feiticeiro escapou ao diluvio. É preciso transportar-se para o pé dos Andes, entre os itatins e os guaraius, para encontrar referendas aos nomes dos gemeos míticos. Contaram êsses índios aos missionarios que houve, outrora, um diluvio, que arrebatara ao céu Pai Tacur e Pai Amandre. 1 Estamos em presença do episodio transcrito por Thevet, nó qual se dá noticias, por ocasião da destruição do mundo, do transporte de lrin-magé ao firmamento e da ascenção da aldeia de Tamendonare e de Aricoute, pouco antes do cataclismo. Ao concluir a narrativa do mito, Thevet declara que, para evitar ser fastidioso, calou varias aventuras passadas pelos dois irmãos, que lhe foram contadas pelos tupinambás. Essa omissão voluntaria do cronista constitui uma lamentavel perda. Perda tanto maior quanto é de julgar que as aventuras narradas pelos mitos modernos são apenas parte das ações e proeza~ praticadas pelos gemeos míticos. E assim são ignoradas, sem duvida, muitas metamorfoses, das quais foram el.es os autores. Os mitos apapocuvas, em que lhes é atribuída a origem de numerosas particularidades da natureza, são disso uma prova. Era desse modo que tais índios explicavam, por qualquev pormenor da vida sobrenatural dos dois personagens, a côr vermelha do pescoço do jacu, a linguagem dos papagaios, a bolsa do sarigué, a criação dos mosquitos, dos animais ve1 Annure litterre, p. 425: "Cataclysmwm agnoscunt, eoqus ®os, Paitacurwm, et Paiamandrem, ut nusquam postea comparuerunt, rapte~ fuisse". -86- nenosos, dos sapos, das diversas especies de peixes, de certas frutas. O mesmo fazem os tembés, considerando igualmente varios peixes como objetos metamorfoseados pelos filhos de Maira-atá. As querelas dos gemeos com Agnen ocupam pouco lugar na mitologia dos tupinambás. Só o furto do anzol revela a existencia dessa rivalidade. Nos mitos apapocuvas, tembés e chipaias, ao contrario, as lutas entre os dois filhos do heroi-civilizador e aqueles gemeos formam o fundo de suas aventuras. Os Aiíãy' dos apapocuvas, os Azán dos tembés, os Awán e demais personagens fabulosos dos chipaias são seres brutais e ferozes, mas de limitada inteligencia, tornando-os constantemente vitimas dos dois manos, que os destroem OIJ lhes pregam peças crueis. As narrativas dos chiriguanos, em que há referencias às armadilhas estendidas por certas pessoas aos Ana-tunpa antropofagos, podem ser consideradas como uma vaga reminiscência das façanhas empreendidas pelos gemeos contra Aiíãy.' 1 I Tudo faz crer que as hostilidades. entre os Aiíãy e os gemeos formam o conjunto das tradições comuns a todos os tupis, segundo se depreende dos numerosos traços similares, que oferecem esses motivos entre. as diversas tribus separadas por enormes distancias e sem nenhum contacto entre si há varios seculos. O mito dos gemeos, na versão de Thevet, está, pois, incompleto. Falta-lhe, notadamente, o final da legenda, isto é, a parte onde é. narrada a maneira pela qual terminaram os trabalhos dos dois irmãos. Tal1 N ordenskiéild ( 1), ps. 286-287. -87- vez se possa preencher a lacuna através do confronto das fontes modernas. Dizem os apapocuvas que Flan' ! deriquey, após ter triunfado dos Aííãy, inventou uma dansa de curar, que o mesmo obriga estes, durante quatro meses, a executar. Nanderuvuçú surge, enfim, conduzindo os gemeos para o além, onde entrega suas insígnias a seu filho, depois do que lhe , confia a missão de velar sôbre a terra. Nanderiquey provocará a destruição desta no dia em que lho ordenarem. Os tembés, ao contrário, confessam ignorar o local para onde os gemeos se retiraram após a realização das ordens paternas. Mas observam que os mesmos se dirigiram para o oriente, dando nascimento aos rios que correm nessa direção. Mais prosaico é, no mito dos chipaias, o remate das aventuras dos gemeos: seu pai dá-lhes a comer carne dos Adji, mortos por eles, oferecendo ainda, a cada qual, uma rede nova. Os dois gemeos aparecem ainda, nos mitos dos tupinambás, dos guaraius e dos chipaias, como os responsáveis pelo diluvio. E podem, igualmente, r~ivin­ dicar, pelo menos entre os tupinambás e os apapocuvas, a qualidade de civilizadores, pois foram os mesmos que ensinaram aos homens o uso do fogo. Voltarei a essa questão em outro capitulo. * i!! * Antes de passar a um ensaio de interpretação do presente mito faz-se preciso assinalar a natureza das relações existentes entre os dois manos. O filho de Maira-atá é sempre considerado como o mais forte e o mais resistent~ e, em relação a si, seu irmão encontra-se, sempre, em estado de evidente inferioridade: -ss- este é incapaz de sair-se com exito da empresa, que tenta.m em comum, sendo a sua sorte habitual ser reduzido a pedaços, ou devorado pelos monstros. O irmão, ao dar conta dessa inhabilidade, faz constante alusão à sua bastardia, causa de tudo. Ehrenreich, 1 fiel a seu método, interpreta o tema dos gemeos como um mito solar e lunar, chamando a nossa atenção para um grande numero de particularidades, que parecem indicar bem a estreita relação ~ntre os dois irmãos e os astros. O melhor argumento, que Ehrenreich avança, em favor de sua tese, é a conclusão do mito guaraiu, narrado por Cardús, onde se diz que os dois filhos do heroi-civilizador foram transformados, respectivamente, no sol e na lua. A diferença de natureza e de origem entre os dois manos, que toma sempre relevo no mito, corresponde bem às relações que os índios estabelecem entre a lua e o sol, dando proeminencia ora a um, ora a outro desses astros. Podem considerar-se ainda prova do carater lunar de um dos gemeos os multiplos acidentes, que lhes ocorrem, dos quais resulta, invariavelmente, ser o mesmo reduzido a pedaços, ou devorado por um monstro, para, em seguida, ressurgir sob sua primitiva forma. É bem possível que nos encontremos em presença de uma interpretação mítica das fases e eclipses lunares. Segundo os chipaias, Aru{3iatá, filho de Mukura, traz na face- duas manchas, deixadas ali pelo monstro que o devorou. Não é difícil reconhecer nesse detalhe as manchas da lua. Nimuendajú está convencido de que ' o f\íanderiquey do mito apapocuva representa o sol e o papel atual, que os indígenas atribuem ao filho do heroi-civilizador, enquadra-se bem na hipotese. 1 Ps. M45. -89- NOT A.S AO CAPITULO 11 (EsTEVÃO PINTO) (a) Sôbre os gemeos míticos, cf. as notas ao cap. I. Para o assunto em geral, vj. Otto Rank, "Der Doppelgiinger", em !mago, III, Yahargang, 1914, de que há uma tradução em português. Idem, Artur Ramos, O negro brasileiro, cit., ps. 271280. A respeito das crenças dos povos primitivos sobre o destino dos gemeos, ler E. 'Vestermarék, L'origine et le développement dea idées morales, I, ps. 403 paasim, Paris, 1928. W. Schmídt (Etnologia Sul-Americana, ps. 197 sq., São Paulo, 1924), faz derivar o mito dos gemeos do culto lunar, fundamental na chamada cultura do arco (ou cultura matrilinear livre). Um deles representa a lua clara; o outro a lua escura. E observa que Ehrenreich esclarece ser a lenda dos gemeos menos elaborada, ou estar ela já diluída, entre os povos superiores da zona andina, em consequencia da religião solar, que absorveu todos os outros cultos. O mito dos gemeos existe entre os tupis, os guaraios, os mundururus, os juracaris, os bacairis, os tamanacus, os giraras, os araucanos e, aparentemente, também entre os carajás. H. v. Bracken ("Os mitos dos gemeos", em Actaa Giba, p. 13, n.9 1, jan. de 1940) observa que o motivo dos gemeos encontra-se representado escassamente nas tradições e contos dos modernos povos civilizados: quanto mais os gemeos são considerados pessoas comuns, tanto menos despertam o interesse popular. -90- , Métraux voltou ao assunto dos gemeos em Twin Heroetr: in South American Mythology, cit., identificando-os com os herois· civilizadores. Artur Ramos (A organização dual entre os índios brasileiros, p. 51, Rio, 1945) tambem repisou o tema, lembrando a conexão entre o mito e a organização social dos indígenas. ( b) A respeito dessas duas personagens, cf. F. Denis, o. c., nota às pgs. 138-140. Diz F . Denis que Tamendonare tem alguma semelhança com o Viracocha dos peruvianos. Simão de Vasconcelos (o.c., p. 35, Liv. Prim. das Not.) escreve Tamanduaré, que Teodoro Sampaio diz significar "o que imita o tamandoá" (o.c., p. 268), ou, ainda "aquele que fundou o povo". Da lenda de Tamandaré, aproveitou-se José de Alencar para o epílogo do casal apaixonado, salvo numa palmeira arrebata da pela correnteza da enchente. A p. 32, Métraux, por um lapso, escreve "Tamendonare, vaillant et belliqueux", etc., querendo referir-se a Aricoute. Fiz a correção. (c) Provavelmente, trata-se da inajá, palmeira (Maximiliana regia, M.), que C. d' Abi;Jeville escreve ynaia, tambem chamada anajá. A anajá tem outra classificação: é a Pindarea concinna, Rodr. ( d) F. Denis, o.c., nota à p. 143, diz que o sentido dessa frase é o lugar onde os mortos queimam, ou fa.zem secar o peixe "alain". (e) Aliás, surubim, surubi ou sorubim, sílurida dos rios brasileiros ( Platystoma tigtinus). -91- CAPITULO III MITOS COSMICOS E MITOS DA CRIAÇÃO A destruição do mundo No mito transmitido por Thevet, 1 há referendas a duas destruições sucessivas do mundo. Na primeira vez, o universo teria sido consumido pelo fogo, que Monan fez descer do céu, "afim de punir os homens por sua ingratidão para consigo". A superfície terrestre, até então inteiramente plana, foi remexida e solapada pela ação do calor. Só um homem se salvou do desastre: lrin-magé. Monan conservara-o no céu, durante todo o tempo em que perdurou o abrasamento da terra. Irin-magé, tendo suplicado a Monan que repusesse a terra em seu estado primitivo, este provocou abundante chuva com o objetivo de extinguir o incendio por ele ateado. As aguas do diluv!o escoaram-se por entre as depressões, que sulcavam a terra, formando-se assim os r.ios e o mar. A salinidade oceanica foi causada pelas cinzas, diluídas nas aguas. ' Monan deu uma mulher a Irin-magé e desse casal se originou a humanidade, que repovoou o globo após o cataclismo. 1 (2), fols. 913v.-914; v. o apendice. -92- A cosmogonia de Thevet traz, ainda, outra versão do diluvio, que é, provavelmente, uma duplicata da primeira. Essa nova destruição do mundo foi causada por Tamendonare, irritado contra seu irmão Aricoute, que )he havia atirado o braço de um inimigo morto. Nesse instante, a aldeia onde ambos se achavam fora arrebatada ao céu e Tamendonare "bateu tão rudemente na terra a ponto de fazer jorrar uma enorme e alta fonte de agua, que em pouco tempo cobriu as colinas e oiteiros e parecia ultrapassar a altitude das nuvens". Fugiram os dois irmãos para as montanhas, afim de escapar à inundação, achando que o melhor refugio era o cume das arvores. Tamendona!ie subiu, em companhia de sua mulher, ao píncaro de uma palmeira de nome pindo e Aricoute, seguido igualmente da sua, trepou-se em um jenipapeiro. Quando Aricoute desejava saber se as aguas haviam baixado, lançava, de tempos em tempos, frutos do jenipapeiro ao pé da arvore. Depois foi a terra repovoada pelos dois manos. Staden, 1 Cardim, 2 Marcgrave 3 e Nieuhof ' aludem a esse mito e falam do diluvio universal, do qual, segundo as tradições dos tupinambás, só teriam escapado um irmão e sua irmã gravida. Ambos subiram ao alto de um jenipapeiro, repovoando em seguida o mundo. Vasconcelos 5 completa as indicações dandonos o nome desse homem privilegiado, que não é outro senão Tamendonare. Advertido por Tupan da iminencia do diluvio, Tamendonare ter-se-ia refugiado, com I Part. II, cap. XIII. 2 P. 160. P. 278. 4 P. 220. 5 Ps. õS-59, a -93- a sua familia, em uma palmeira, cujos frutos o alimentaram até o momento em que pôde descer à terra. A destruição da terra pelo fogo e, depois, pela agua é uma tradição comum a numerosas tribus tupicas (a). As modalidades e causas desses cataclismos são contados algumas vezes diferentemente, de acordo com as respectivas regiões. Os apapocuvas atribuíam I a destruição a Nanderiquey, causa direta da primeira catastrofe que aniquilou a terra. Esse personagem, tendo retirado um dos esteios em que repousava o globo, o mesmo foi consumido pelas chamas e, depois, inundado pelas aguas do mar. O poderoso feiticeiro, I Guyraypoty, teve muita sorte em poder elevar-se até o céu, acompanhado dos seus e de sua casa de dansa. 1 Para os chiriguanos, é Aguara-tunpa quem destroi o mundo. Com tal finalidade, põe fogo aos campos e florestas, fazendo, em seguida, cair sobre a terra chuva torrencial. As unicas pLssoas salvas do diluvio são uma menina e seu irmão, que os índios tinham tido a prudencia de ocultar em uma cabaça. 2 A maneira dos tupinambás, os chiriguanos conheciam duas versões do mito. A segunda lembra a de Jrin-magé. Ao momento em que a terra era submersa pelas aguas do diluvio, um unico homem, Araparigua, foi salvo, graças a Tupan, que o transportou para o céu, só voltando do firmamento depois de ser o mundo repovoado. Em seguida, tendo praticadq toda sorte de abusos e estando ameaçado pelos homcn§, Araparigua tornou a dever a sua salvação a Tupan, que o levou definitivamente para o céu. 3 1 2 3 Nimuendajú ( 1), :ps. 332-336. Nino, ps. 131-132;• Nordenskiiild (1), Nino, ps. 136-137. -94- ~· 251-254. . O diluvio dos tembês foi precedido do seguinte incidente: certo homem, que tinha o dom de transformar-se em abutre, levara para o céu a casa, onde seus parentes se haviam reunido para dansar. As demais pessoas afogaram-se, com exceção de algumas que, retugiadas em uma palmeira, ficaram nela suspensas por muito tempo. Sua tarefa consistia em lançar frutos à terra afim de verificar se as aguas haviam decrescido, até que foram, afinal, transformados em rãs. 1 Esses índios tembés narram, ainda, a historia do diluvio de um modo mais consentaneo às tradições de seus irmãos rac1a1s. Uma criança (dizem) tocou fogo à agua do rio com um archote, que determinado homem lhe havia dado. E assim se abrasou a terra. Uma mulher gravida conseguiu ocultar-se, em companhia de seu menino, nos ramos de uma bananeira, que as chamas pouparam. Quando cessou o incendio, saiu a' mulher de seu esconderijo, encontrando; em seguida, raizes de mandioca. Mas a terra foi logo inundada por chuvas torrenciais, salvando-se a mulher e o menino em uma menino, após o diluvio, desposou a propria canoa. filha. 2 o O mito do diluviq, tal como é contado pelos chipaias, liga-se inteiramente à vida dos gemeos, filhos do demonio Kumã'f'ári. Kufiaríma e Aru{3iatá, tendo quebrado dois vasos, que continham a unica reserva de agua existente nesse tempo fabuloso, provocaram a colera do pai, o qual, em seu furor, inundou toda a terra. Para completar a obra de destruição e punir os filhos, o velho, por outro lado, ateou fogo às colheitas. O mundo transformou-se, então, num só braseiro ardente. 1 Nimuendajú (2), p. 294. 2 ld. (2), ps. 288-289. -95 Kufzaríma extinguiu o incendio, aspergindo as chàmas com uma especie de hissope feito das plumas de diversas aves. 1 Os arés (guaranis mestiçados com os gês) só conservaram do mito dos seus ancestrais o tema do homem refugiado na palmeira, cujos frutos lhe serviram de alimento durante todo o diluvio. 2 Viu-se, finalmente, que os itatins ou guaraius informaram aos missionarios a respeito de um cataclismo, ao curso do qual Pai Tacur e Pai Amandre foram arrebatados para não se sabe onde. 3 Através de todas essas diferentes versões concernentes ao mito do diluvio, entre os tupi-guaranis, verifica-se que só dois elementos aparecem com relativa constancia: o da destruição da terra pelo fogo e pela agua e o da estreita relação existente entre os gemeos e o cataclismo. · A criação da humanidade O mito da criação da humanidade só chegou ao nosso conhecimento através de uma vaga alusão de Thevet, 4 em seu ms. in edito ( b) : "São as nações todas umas diferentes das outras. Existem os chamados tapuités, isto é, homens para comer (c). E dizem os tupiniquins que foram os mesmos feitos com tições de fogo, por um dos maires, para o fim de servirem de presa e passatempo aos primeiros, ou lhes servirem para os seus exerci~ios belicos". 1 Id. (3), ps. 1017-1018. 2 Borba (1), ps. 61-62. 8 Annure littera:, p. 425. ~ Foi. 115 T. -96- Nenhuma tradição relativa a tal assunto foi recolhida de outras· tribus tupis. Os homens surgem, em seus mitos, como contemporaneos dos herois Jendarios (não propriamente os herois-criadores), já os encontrando, em dado momento de suas aventuras, povoando a terra. Só os mundurucus fazem exceção à regra, pois contam que a humanidade fôra extraída do chão através de um buraco, que Rayrú fez na crosta terrestre. Por esse artifício, pôde ele descobrir os seres existentes no sub-solo e içá-los com uma corda de al~odão. 1 A origem do fogo Dois mitos, referentes ao fogo, tiveram curso entre os tupinambás. No primeiro, conta-se que Monan guardoú o fogo no dorso de uma preguiça, de onde o tiraram os dois irmãos, Tamendonare e Aricoute, para o fim de entregá-lo aos hç>mens. O carater etiologico dessa tradição e evidente e não passou despercebida aos olhos qe Thevet, 2• quan,. do este observa que o costado da ai' parece, ao longe, ter sido crestado pelas chamas ( d). Segundo outra versão, o uso do fogo e a maneira de produzi-lo teriam sido revelados à humanidade por um caraiba, MaireMonan, ou Bicbotou, que Thevet identifica com o trovão.3 Os mitos da origem do fogo (e), recolhidos em .outras tribus tupi-guaranis, fazem parte de um ciclo muito diferente. Os apapocuvas atribuem a aquisição 1 Barbosa Rodrigues, p. 2!H. 2 (2), foi. 915. 3 (2), foi. 937 e ms. inedito, fol. 91. -97- , do mesmo à ii:íanderiquey, que, auxiliado pelo sapo, conquistou-o aos abutres. 1 Identica versão desse motivo foi contada a Nordenskiõld, 2 por ocasião de sua estadia entre os guaraius. Os chiriguanos vêem, igualmente, no sapo o aliado, que lhes teria dado o fogo 8 (o episodio dos abutres não existe entre os referidos índios, em relação com o mito do qual me ocupo). Os tembés • e os chipaias 5 consideram aquelas aves os detentores do precioso elemento e a tradição a respeito do modo como foi o fogo roubado coincide com a dos guaraius e a dos apapocuvas. Como se pode ver, através da curta analise comparativa, o antigo tema tupi do rapto do fogo, na mitologia tupinambá, parece ter sido refundida ao todo. Sua originalidade explica-se quer por emprestimo, quer por criação independente e inteiramente local. Mitos astrais A forma das diferentes constelações, assim como o aspecto de certas estrelas, sugeriram aos tupinambás diversas comparações, que eram expressas por determinados apelidos. Mitos explicavam, provavelmente, essas aparentes analogias. Claude d' Abbeville 6 conservou-nos dois. Certa estrela vermelha, que seguia de perto a .lua, tinha o nome de Jaouiire (f), palavra que Claude d' AbNimuendajú (1), ps. 326-327. (2), p. 155. a ld. (1), p. 154; Nino, p. 188. 4 Nimuendajú (2), p. 288. /S Jd. (8), p. 1015. 6 Fols. 217 e 819. I 2 -98- beville traduziu por cão, mas que, em realidade, significa jaguar. Quando a lua se ocultava, diziam os tupinambás que o cão a perseguia com o fim de devorá-Ia. Se o disco lunar tornava-se avermelhado, acreditavam que esse planeta estava muito seriamente ameaçado pelo jaguar. Os antigos guaranis, do mesmo modo, tinham certeza de existir no céu um tigre, ou enorme cão, que, em certas ocasiões, devorava a lua ou o sol, - causa do que chamamos os eclipses. 1 Seus atuais descendentes, os apapocuvas, falam de um jaguar celeste, azulado e semelhante ao cão, que destruirá a humanidade, começando por atacar o sol e a lua. Vive, atualmente, debaixo da rede de Nanderuvuçú 2 • Os chiriguanos transmitiram aos chanés o mito de seus antepassados, os guaranis, explicando, do mesmo modo, os, eclipses como ,tentativas feitas pelo jaguar de duas cabeças no sentido de devorar a lua. E contam que o jaguar-chefe, decapitado pelos avós dos índios, a lua o ressuscitou, guardando e ocultando sua cabeça. Esse monstro, chamado yagua ragu, ataca a lua, sua benfeitora, não obtendo resultado em. sua empresa graças ao alarido, feito pelos homens, para àfugentá-lo. 3 Os guaraius partilham, nesse ponto, as crenças de seus irmãos do sul. ' "Conhecem os tupinambás (diz Claude d' AbbevilIe) uma constelação chamada Yandoutin, isto é, o avestruz branco, formada de algumas estrelas bem grandes 1 Mol\toya, p. 50. 2 Nimuendajú (1), p. 319. 3 Nordenskiold (1), p. 294; Nino, ps. 154-155 e LehmannNitsche, ps. 86-90. .t. Nor4enskiold (1), p. 147. -99- e muito luzentes. E c·omo quer que essa constelação possua varias estrelas em forma de bico de ave, os maranhens~s fingem e afirmam que a mesma quer devorar os referidos astros, a que dão o nome de Ouyra Oupia". O citado cronista de1;creve-nos, ainda, todas as constelações e astros conhecidos dos tupinambás, dando para cada uma delas ou deles o respectivo nome indigena, seguido de sua tradução. Essa lista permite supor a existencia de numerosos mitos, irremediavelmente perdidos. Os chiriguanos chamam ainda a parte da via-latea, proxima ao Cruzeiro-do-Sul, de yandurape, - o caminho dos avestruzes. O Cruzeiro-do-Sul e algumas estrelas vizinhas são designadas pelo nome de yanduinyaka (a cabeça do avestruz) 1 • Para os guaraius, o Cruzeiro-do-Sul é igualm~nte um nhandu. 2 Os tupinambás (diz Thevet, 3 em seu ms. inedito), "dizem que o sol e a lua têm algum poder, mas não sabem dizer qual seja ele". Em outro mito, já referido, o sol aparece dando ordens às estr~las, embora esteja subordinado .à lua, "que tais selvagens consideram o principal dos corpos celestes e o primeiro dos elementos" .4 Já se viu igualmente, que os tupinambás lhe dão um aspecto antropomorfo, ad instar dos chiriguanos e dos chipaias.~ Nimuendaj'ú6 assegura ter encontrado entre os apapocuvas traços de um culto embrionario do sol. Suas 1 Id. (1), p. 295 e Lehmann-Nitsche, 2 Id. (2)~ p. 158. a Foi. as. ~ Thevet (2), foi. 917. ll Cf. ps. 13-14. 6 (I), ps. 830-831. -100- p~. 86-100. provas são bastante convincentes, mas os trechos atrás citados não permitem aplicar semelhantes conclusões aos tupinambás, embora o culto solar pareça já ter existido entre os antigos guaranis. As pleiades possivelmente foram objeto de crenças particulares entre os tupinambás. Pois esses indios estavam convencidos, sobretudo, de que as pleiades favoreciam o crescimento da mandioca. 1 1 Ms. inedito de Thevet, foi. 38: "Crêem tambem que o sete-estrelo é quem faz crescer a mandioca, da qual fabricam a sua farinha". -101- NOTAS AO CAPITULO I li (EsTEvÃo PINTO) (a) De acordo com a mitologia dos tupinambás, revelada por Thevet, Tamendonare, para salvar-se do diluvio, refugia-se em uma palmeira de nome Pindona (Métraux escreve pindo) e seu irmão em uma arvore chamada Genipar. As referendas de Cardim (o.c., p. 160) não esclarecem o assunto. Staden (Viagem do Brasil, ps. 154-155, Rio, 1930) afirma que os sobrev~­ ventes salvaram-se, uns em canoa, outros em arvores altas; Marcgrave (Historia Natural do Brasil, p. 278, São Paulo, 1942), finalmente, nota que as duas unicas pessoas salvas foram um índio e sua irmã prenhe, esclarecimentos repetidos por J. Nieuhof (Memoravel Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil, p .. 314, São Paulo, 1942). Sobre a contribuição de S. Vasconcelos já escreveu Métraux. A palmeira é em Léry pindá (Viagem à Terra do Brasil, p. 172, São Paulo, 1941). Trata-se, na verdade, do pindó, ou pindoba (Attalea compta, Mart.). Pindona, no original de ms. de Thevet, deve ser erro tipografico, por Pindova. O Genipar é o nosso jenipapeiro ( Genipa americana, L.). O autor do Compendio Narrativo do Peregrino da America, Nuno Marques Pereira (li, Rio, 1939, ps. 29-30) fala vagamente no diluvio, de que escaparam alguns indígenas, refugiados "em um monte em cima de uma palmeira". Segundo informa o padre M. da N obrega ( o.c., ps. 91 e 10!), ora todos os índios morreram, exceto uma velha, ora apenas se salvou um casal, que subiu a um pi- -102- nheiro. Já na carta de Inacio de Tolosa (cit. por Serafím Leite, Hiatoria da Companhia de Jesus no Brasil, II, p. 18, Santos, 1938), um principal provocou o diluvio, de que escapou apenas ele, fazendo uma casa ·de folhas bem tapada. Apoiando-se em Gustavo Barroso (Mythes, Contes et Légendes dea Indiens Folklore brésilien, Paris, 1930, ps. 68-74), acrescenta o ._padre Serafim Leite que, no Brasil, há pelo menos cinco formas de tradição do diluvío: a dos tupis, a dos caxinauás, a dos padauiris, a dos bororos e a dos pamaris. Na mitologia dos bororos, salva-se só um homem que, depois, repovoa a terra graças a seu casamento com a veada (A. Colbacchini & C. Albisettí, Os Bororos Orientais, ps. 200-201, São Paulo, 1942) ; o mito dos carajás é mais complexo ( cf. Fritz Krause, In den Wildnissen Brasiliens, p. 346, Leipzig, 1911). Herbert Baldus (Ensaios de Etnologia Brasileira, ps. 206-212, São Paulo, 193'7) estuda os mitos dos tapirapés, dos apapocuvas, dos chipaias, dos mbiás do Paraguai Oriental, dos guaiaquis, dos tembés, etc. Um apanhado geral do assunto encontra-se em Lufs da Camara Cascudo, Informação de Historia e Etnologia, ps. 121-146, Recife, 1944, em que há referendas ao mito entre os macuxis, os itamiras, os tarianas, os apinagés, os caingangs, os pamaris e outros. O cataclismo dos caxinauás vem em J. Capistrano de Abreu, rã-txa hu-ni ku-i, ps. 48!-506, Rio, 1944. J. Imbelloni (La esfinge indiana, ps. 205-207, Buenos Aires, 1926), faz a critica de teoria heliolitica de Elliot Smith, aplicada às legendas diluvianas. • A maneira de produzir o diluvio batendo na terra, provavelmente com o pé, como o fez Tamandaré, é, segundo observa Alexandre H. Krappe (La genese des mythes, ps. 321-322, Paris, 1938), uma das fontes mais comuns na tradição universal. E' preciso observar, ainda, que, antes do diluvio, segundo a mitologia tupinambá, houve um incendio mundial. Essa outra tradição é comum aos carajás, aos tapirapés, aos iuracares, aos -103- taulipangs, aos apapocuvas, aos chiriguanos, aos tembés, aos chi~ paias, aos tobas, aos tumereás e aos ipurinás (H. Baldus, o.c., ps. 216-223). Referentemente aos mitos do diluvio em particular e aos mitos indígenas americanos em geral, cf. Alex Calcott, Treati8e on. the Deluge, Londres, 1768; J. G. Müller, Geschichte der ame~ rikaniichen Ur-religionen, Bâle, 1867; Brett, Legenda anel Mythes of the AboriginaZ Indiana of Guyana, Londres, 1880; C. F. Hartt, Amazonian tortoise myths, Rio, 1875 e "Contribuições para a etnologia do vale do Amazonas", em Arquivos do Museu Nacional, VI, Rio, 1885; Powell, "Sketch of Mythology of the American Indians", em Rep. of Bureau of American Ethnology, n. 1, \Vashington, 1881; J. 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Sobre as lendas da formação da humanidade, na índiaria brasileira, cf. o. interessante estudo de Luis da Camara Cascudo, o.c., ps. 97-117. (c) No texto, Tapouyeste. São os chamado~ Tapouytin de Abbeville, o.c., p. 236, isto é, os barbaros brancos. (d) Thevet escreve ainda de três modos a· palavra tupi designativa da preguiça - haüt, haü e haiithi (Singularidade1, cit., - 105 p. 307), que em Anchieta e em Simões de Vasconcelos é aig, em Gabriel Soares de Sousa ahy, em C. d' Abbeville unaü, em G. Marcgrave unáu e em J . de Léry Hay. Explica Tschudi que aí é voz onomatopaica. Cf. notas de A. de Alcantara Machado (em Anchieta, Cartas, cit.,. p. 137) e de .José Honorio Rodrigues (em Nieuhof, o.c., p. 37). Thevet refefê-se à especie Bradypus tridactylus L. • O colorido dos macacos varia de acordo com os indivíduos. Alguns têm mesmo a cabeça avermelhada, com os membros e a cauda rufos (Eurico Santos, Entre o gambá e o macaco, p. 272, Rio, 1945). (e) O mito da origem do fogo, narrado pelos apapocuvasguaranis, chiriguanos, tembés e chipaifis, merece um comentario maior do que o feito por Métraux. • , :Nanderiquey, tendo-se fingido de morto, os urubus, apesar de advertidos por um deles, preparam um fogo para assar o suposto cadaver. Realmente, quando as aves lançam o heroi apapocuva à fogueira, este debate-se, jogando brasas em todas as , direções. Nessa ocasião o sapo, a mandado de Nanderíquey, devora um tição, que depois é obrigado a vomitar. Os chiriguanos contam que, antes do diluvio, o sapo teve a precaução de refugiar-se em um buraco, levando consigo, na boca, tiçOes, conservados acesos pelo sopro do seu halito. Desse modo, quando a face da terra tornou-se enxuta, o sapo deu aos dois sobreviventes da catastrofe as brasas ardentes. Dizem os t embés que o fogo era, outrora, propriedade de uma especie de gavião. Os índios, que até então assavam carne ao calor do sol, resolveram roubar o fogo. Para tal fim foi morta uma anta e, no momento em que os abutres preparavam-se para assar a carne desse animal, os tembés caíram, de emboscada, sobre a fogueira, embora em vão, pois os urubus puderam escapar a tempo. Só na segunda tentativa, é que os tembés conseguem ~ 106- roubar o fogo, ocultando o seu feiticeiro em um abrigo de caça, perto do tapir morto. O feiticeiro, no momento oportuno, pôde furtar um tição . .Segundo os chipaias, foi o seu heroi-civilizaqpr, Kumafari, quem roubou o fogo ao gavião-de-anta, que voava com um tição preso às suas garras. A principio, ]{umafari fingiu-se morto, mas não teve sorte. Uma segunda tentativa, em que o heroi se transformou em veado, ainda não deu resultado. Mas K1.1RT1a{ari era teimoso: enterrou os braços na terra, os quais se transformaram em dois galhos, com cinco ramos cada um. O gavião veio direitinho repousar o seu tição em um dos galhos e, assim, os tembés obtiveram o fogo. Entre os caribes, ou caraibas, foram recolhidas muitas lendas sobre a origem do fogo. Cf.: Koch-Grünberg, Von Roraima zum Orinoco, Berlim (1916-1917), vol. 11 (refere-se aos taulipangs, entre os quais o fogo era guardado por uma velha, assim como nos arecunas, que roubaram o fogo ao mutug, Prionites momomata; K. von den Steinen, Unter den Naturvolkern ZentralBraailiena, Berlim, 1894 (quanto aos bacairis, cuja astucia foi furtar o fogo à raposa do campo). A respeito da mesma lendo., entre outros indígenas sul-americanos, cf. J. G. Frazer, Mythes sur l'origine du feu, ps. 152166, Paris, 1931. O mutug, a que se l"efere T. Koch-Grünberg, é provavelmente o mutum-poranga (Cra:x alector L .), ou o guira guainumbl de Marcgrave, identificado com a juruva (lliomotus momota L.). Os guajajaras, qu_e habitam as florestas tropicais do Maranhão, são parentes dos tembés do rio Gurupí. Ambos os grupos se consideram tenetenras. A mitologia dos guajajaras (diz Charles Wagley, "Notas sobre a aculturação entre os guajajara", em Boletim do Museu Nacional, n. 2, jun. de 1943, p. - 107- 10, Rio) é ta.mbem muito rica, embora mostre "a influencia ibe· rica e negra" em relação à primitiva cultura. Entre os seus mi· tos, figuram o dos gemeos Maira ura e Mukwura u1·a, o da origem do fogo (roubado aos urubus), etc. 9 (f) Léry (o.c., p. 129) escreve lan-ou-are, que é realmente o jaguar, em quichua yahuar. Trata-se da estrela-da-tarde, a vesper. Cf. C. d'Abbeville, o.c., p. 247. - lOi- CAPITULO IV TIJPÃ, O DEMONIO DO TROVÃO Quando os missionarios quiseram encontrar na lingua dos tupinambás uma expressão correspondente a "Deus", escolheram, à falta de melhor, a palavra de Tupan. Nobrega,I Vasconcelos, 2 Marcgrave 3 e muitos outros autores atribuíam a esse nome o sentido equivalente a "coisa sagrada, misteriosa e excelente", aplicavel especialmente ao trovão e aos relampagos, nos quais os indígenas viam a manifestação de um poder invisível. Claude d'Abbeville ~ afirma, por outro lado, que Tupan não é outro senão o autor do trovão e dos relampagos e Thevet ~ observa mesmo que os índios "fazem menção de um grande senhor, que, em sua lingua, chamam de Tupã, o qual lá de cima faz chover e trove_jar". Em seu ms. inedito, 6 o mencionado autor acres1 Pg. 99: "somente aos trovões chamam Tupane, que é como quem diz coisa divina". 2 Pg. LVIII. a Pg. 279. ~ Fol. 322 y.: "Em sua lingua chamam a Deus Toupoo e, quando troveja, dizem que é Deus quem assim troveja". IS (1), p. 138 e (2), fol. 920 v. 6 Fol. 88. -109- centa: 44 Chamam a Deus Toupan _e não crêem haver outro poder que produza as chuvas, os trovões, o bom tempo, ou mesmo que possa fazer brotar nenhum fruto" . Cardim 1 considera Tupan como um deus particular e acrescenta que é dele que os selvagens pretendem ter recebido o pau de cavar e as plantas pelos mesmos cultivadas. Cardim, aliás, não é o unico a confundir o demonio do trovão com o heroi-civilizador (a). Haja visto a passagem de Thevet, atrás citada, por onde se vê que Bicbotou, de quem se di'z ter ensinado aos homens a fazer o fogo, é considerado a propria personificação ,daquele fenomeno.2 Marcgrave 3 atribue a T'upaberaba, - o relampago - a origem da agricultura e o conhecimento do pau de cavar. Se, nesses três casos, o trovão, ou, o que dá no mesmo, o raio, é confundido com o heroi-civilizador, - isso se deve, sem duvida, ao erro cometido pelos colonos brancos, os quais, convencendo-se de ser Tupan o grande deus dos tupinambás, atribuíram-lhe todas as ações que, na intenção dos seus informadores, deviam ser levadas em conta do Ancestral. 4 Yves d'Évreux, procurando investigar qual a representação que os índios davam a Tupan, propôs-lhe diversas questões a respeito de sua natureza e dos seus atributos. Responderam os selvagens que Tupan provocava as tempestades e enviava o raio, não sendo como o vulgar dos homens, pois do contrario não poderia locomover-se com tanta rapidez, correndo, quando troveja, "de oriente para ocidente, a ponto de estar, 1 Pg. 163. 2 Ms. inedito, foi. 91. a Pg. 278. ~ Pg. 28Ó. - 110- nessa ocasião, ao mesmo tempo em toda a parte, tanto na França como em nossos céus". Para o autor anonimo da Informação do Brasi/, 1 os tupinambás não reconheciam outro deus, senão o trovão. A identificação de Tupan com o trovão, que personifica, não sofreu nenhuma duvida. Resta apenas saber se o lugar por ele ocupado, na mitologia tupinambá, corresponde ao papel, que os missionarios procuraram dar-lhe. A esse respeito possuímos precioso documento: ·o mito tupinambá transmitido por Thevet, no qual Tupan só aparece incidentemente e na qualidade de personagem de segunda ordem. Quando os homens queimaram seu heroi-civilizador (conta Thevet) ,2 "provocaram um milagre, pois a sua cabeça abriu-se com tão grande impetuosidade e tão horroroso estrondo que o estampido atingiu o céu e a Tupan". "E daí (dizem) vieram os . trovões e os relampagos, não tendo o relampago, predecessor do trovão, senão a significação do fogo pelo qual Maire foi consumido". Dois fatos merecem reparo: primeiramente, a as'sociação que a passagem estabelece entre Tupan e o trovão; em segundo lugar, a relação existente entre o fenomeno e um dos incidentes da vida daquele heroicivilizador, ou dos demais herois-civilizadores. o texto desse episodio é obscuro e só explicavel se supusermos ter sido Tupan (e não o trovão, como fenomeno) quem foi criado em seguida a essa metamorfose, que pode ser enfileirada no numero das multiplas transformações sucessivas sofridas pelos ancestrais míticos. O desfecho de um mito guaraiu, que explica a origem do trovão, apresenta notaveis analogias com o final do episodio transcrito por Thevet. Certa velha, que 1 Pg. 432. 2 (2), fol. 914 T. - 111- vivia solitaria, em sua oca, tinha o costume de trucidar a todos aqueles a quem dava hospitalidade. Um homem, porem, conseguindo escapar, deu o alarme, na aldeia, cujos habitantes correram logo a incendiar a morada da ogra; esta, ao pegar fogo, elevou-se para o céu. Quando chove ou relampeja, dizem os guaraius ser a velha, que saiu e pôs-se a correr de lá e para cá. 1 Tupan está longe, pois, de ser uma noção implicando a idéia do sagrado. É uma especie de genio ou demonio, que rlão era objeto de nenhum culto e ao qual não se dirigia nenhuma prece. A respeito desse ultimo ponto concordam todas as nossas fontes. Aos indígenas não passou despercebida a diferença, que separava Tupan do deus falado pelos missionarios e por eles identificado como o heroi-civilizador. "Se alguem lhe fala de Deus (diz Thevef2), como o fiz algumas vezes, éscutam atentos e admirados, indagando se não se trata do profeta, que lhes ensinou a plantar suas grossas raizes de nome Hetich') (b). O silencio, que os antigos cronistas guardam a respeito do atributo e das atividades de Tupan, prova quanto o seu carater não ficou bem definido aos olhos dos proprios_indios. Ainda mais, - que o seu poder era restrito. Essa hipotese, sugerida pelos citados textos, encontra inteira confirmação nos mitos dos guaranis (apapocuvas) modernos. 3 TL!}Jan ocupa, na cosmogonia desses índios, papel analogo ao que lhe é atribuído no mito de Thevet. Só se fala dele de passagem e sem emprestar-se muita 1 NordenskiOld (2), p. 156. (2), foi. 921. a Nimuendajú ( 1), p!. 322-323. 2 - 112 ~ atenção à sua atividade. E' imaginado como um homenzinho, baixo e rechonchudo, de cabelos ondulados. E' o caçula dos filhos do heroi-civilizador Flanderu' , l'UÇÚ, havido de sua mulher !Van.decy. Tupã é muito chegado à mãe, por ordem de quem deixa a sua casa, situada a oeste, para ir morar no este, onde vive a I velha. Cada viagem de Tupã, através do firmamento, provoca tempestades. O som do trovão é produzido pela bacia oca, onde ele se assenta e da qual se serve, à feição de uma canoa, quando tem de transpor a extensão do céu. O longo botoque de resina, que traz ao labio inferior, lança raios a cada um dos seus movimentos. Em seu barco tomam lugar dois servidores, I muitas vezes assimilados aos tapá, aves, segundo os índios, anunciadoras da tempestade. A tormenta só I passa quando Tupã chega diante da casa materna, onde, todavia, seu tembetá continua a provocar relampagos. Esses detalhes concordam muito bem com o que Yves. d'Évreux conta a respeito dos movimentos rapidos de Tupan. E' possível supor, pois, que os tupinambás representavam-no qual um genio habitante do ar; cada um dos seus deslocamentos causava tempestades.1 A personaLidade de Tapan parece ser uma criação peculiar aos tupis da costa do Brasil e do Paraguai. I 1 Segundo Nimuendajú (1), p. 370, a palavra Tupã não passa de uma simples onomatopéia, que reproduz aproximadamente o som do trovão. No ms. inedito de Thevet (fi. 41 v.), a tempestade, ou mais precisamente as nuvens carregadas de agua, são chamadas Aman Attouppan,. Encontramoa, neaa& com• poiiição, o nome deliignativo do trovão. -113- Não se encontra em nenhuma tribu desse grupo linguistico qualquer mito, em que apareça um demonio dirigindo diretamente a produção dos trovões. A unica exceção deve ser feita a favor dos guaraius e dos chiriguanos. Estes ultimos crêem que o fenomeno é obra de um genio, ao qual dão o nome de Chiquéritunpa, representado sob os traços de poderoso feiticeiro, que,- com sua irmã e seus filhos, tanto pode ser um benfeitor quanto um inimigo da humanidade. Quando troveja, afirmam os chiriguanos ser Chiquéritunpa que está em via de marchar.1 Os cairtguás conservam ainda vagas idéias sobre as relações de Tupan com o trovão. Observam que Deus (a quem chamam, .à maneira dos cristãos, de Tupan) manifesta sua colera por meio do trovão, rogando ao mesmo lhes dê caça abundante e não lhes destrua as arvores de mel. 2 Varias hipoteses podem ser adiantadas no sentido de explicar a bizarra associação de idéias, por meio da qual os missionarios chegaram a dar a essa personificação do trovão os atributos do deus cristão. Talvez tivessem eles perguntado aos indígenas qual era a divindade, que acreditavam residir no ceu. Os silvicolas teriam respondido, naturalmente, ser Tupan. A confusão aumentaria quando os padres começaram a falar aos índios do carater celeste de seu Deus e do poder do mesmo sobre os elementos. ~eja como for, a palavra Tupan conheceu uma estranha fortuna e está, hoje em dia, em uso entre todos os indígenas cristianizados, da Argentina às Guianas. 1 Nordenskiold (1), ps. 258, 279-283 e 296. 2 Ambrosetti, p. 739. 114- NOTAS AO CAPITULO IV (ESTEVÃO PINTO) (a) Ao meu ver, não houve nenhuma confusão, por parte de Thevet, ao identificar Tupã com o heroi-civilizador dos tupinambás. Tupã, possivelmente, simboliza o demiurgo, o ancestral, o antepassado mítico, conforme a lição de Batistâ Caetano de Almeida Nogueira (em Cardim, o.c., p. 269). Cf. ainda as notas de Capistrano de Abreu (à p. 43 da Historia Geral de Porto Seguro, I, 3.• ed., s/d.) e Eloy Farifia Núiíez, "Los mitos guaranies" (em Rev. do lnst. Hist. e Geog. Bras., 11, p. 315, Rio, 1925). Tupã, primitivamente, diz Teodoro Sampaio, significava o "pai alto", o "pai que está no alto" (o.c., p. 9 e 276). A semelhança de Tupã com Mair-munhã denuncia-se nos predícados sexuais a que se acha ligado, assunto a que dediquei um capitulo em Os lndigenas do Nordeste, II, ps. 197 sq., São Paulo, 1938. Tupã, na mítica apapocuva, abandona o oeste para' habitar no este, onde se encontra com sua mãe. Nessa viagem provoca tempestades e o botoque de resina, que leva aos labios, lança· raios. Quando sobrevinha alguma tempestade, os tupinambás acreditavam que "cela vienne des ames de leura parenta et amis". Cumpre notar, ainda, que foi Tupã, no dizer do padre Fernão Cardim, quem deu aos tupis ''enxadas e mantimentos" (o.c., p. 163), - circunstancia que põe essa personagem na serie doa 115- herois-civilizadores. Marcgrave atribue a "Tupaberaba" o nMcimento da agricultura. Os omaguas identificam Tupã com ZumJ (Sumé). Os mundurucus acreditam que, após a morte, vão para uma especie de mansão celestial ( cabi), de onde, se precisam tornar à terra, tomam a forma do trovão (A. M. Gonçalves Tocantins, "Estudos sobre a tribu Mundurucus", em Rev. do Inst. Hilt. e Geog. Bras., XL, p. 117, Rio, 1877). (b) Na Cosmographie, Thevet usa tambem a forma Yotic, aliás mais correta. Ocorrem, ainda, as formas jettica, yeti, yetuca e yotica. Cf. Pedro Henríquez Ureiia, Para la historia de lo8 indigenismos, etc., p. 32, Buenos Aires, 1938. A hetich é a batata" doce (lpomoa batata8 Lam.). - 116- CAPITULO V OS GENIOS DA MATA Os seres sobrenaturais, com que se sentiam cercados os tupinambás, pertenciam a duas categorias: uns eram potencias malevolas, personificadas, comparaveis aos nossos genios e demonios; outros compreendiam os espíritos propriamente ditos. Os ultimos contavam maior numero e só se distinguiam dos primeiro~ por seu carater impessoal. E' verdade que os missionarios e viajantes confundiam-nos constantemente, fazendo de Yurupari e de Agnan ora uns diabos, ora um nome coletivo, que designava o mundo dos aventesmas. Thevet,l expondo sucintamente, em seu ms., as idéias religiosas dos tupis habitantes das proximidades do cabo de Santo Agostinho, informa que os mesmos "temiam o diabo, a que davam o nome de Oiroppaly". E acrescenta que "os silvícolas, que vivem no Rio de Janeiro e no Cabo Frio, chamam-no de Agnan". Marcgrave 2 faz, igualmente, sinonimos os nomes de furupari e Anhanga, traduzindo ambos por diabo. Se buscarmos esse nome na vasta literatura concernente 1 Ms. inedito, foi. 38. Pi. 279. 2 - 117- aos tupinambãs, notar-se-á que os autores, que descrevem os tupis septentrionais, empregam sempre a voz Yurupari para designar o espírito, ou os espíritos, chamados pelos cronistas de Aygnan, Agnen, Ingange, Anhangá, etc. Apesar da identidade de natureza existentes entre os dois seres demoniacos, tratarei de ambos separadamente, pois as fontes referentes ao assunto não são as mesmas. Yurupari. - Todos os antigos missionarios acordam em considerar Yurupari uma entidade sobrenatural, correspondente ao diabo na religião catolica. "Acreditam os índios (diz Yves d'Évreux1 ) que os maus espíritos, ou demonios, vivem sob a dependencia de Giro pari. Era ele domestico de Deus, que, por causa de suas maldades, o expulsou e não quis mais saber dele. Esse-diabo odeia a humanidade e não vale nada. É ainda o mesmo quem impede que as chuvas caiam a tempo, maltratando os homens, fazendo-lhes medo e atraiçoando-os em suas guerras aos inimigos". Ressalta claramente dessa passagem que Yurupari era considerado como unico em sua especie; por isso é que tanto me surpreendo quando vejo Claude d' Abbevillé 2 indicar, com não menor clareza, ser Yur.upari um nome coletivo, destinado a designar os demonios em geral: "crêem ainda na existencia de espíritos malignos, aos quais denominamos diabos, mas que chamam de leropary. Os indios temem-no extremamente. Dizem, de ordinario, falando desses espíritos malignos, que /eropary é mau (Ypochu Ieropary) e não presta para nada". I Pg. 282. 2 Foi. 323 v. 118- O ultimo texto é muito mais conforme às legitimas crenças dos tupinambás que o precedente. Primeiramente, corresponde .à opinião corrente dos atuais "caboclos" a respeito de Yurupari; depois, explica os equívocos sobre o assunto e dos quais irei ocupar-me presentemente. Lendo o que escreveram os dois autores acima citados, a proposito de Yurupari, ou dos Yurupari, não se pode fugir à impressão de que ambos os assimilaram constantemente aos espíritos dos mortos, assunto das conversações dos tupinambás. Yves d'Évreux\ por exemplo, conta que Yurupari "habita as aldeias abandonadas, especialmente os lugares onde estão sepultados os corpos de seus parentes". "E já ouvi dizer a uns poucos desses índios (acrescenta) que, indo colher cajus em certos lugarejos ermos, surgiu Oiropary, dando espantosos gritos e espancando rudemente a alguns dos que os acompanhavam". O mencionado religioso, desejando afastar certas. velhas das sepulturas, aonde iam as mesmas todas as tardes, pôs em sua emboscada dois ou três índios, que, saltando inopinadamente dos esconderijos, fizeram acreditar às mulheres que estas se achavam perseguidas por fantasmas. As velhas, de fato, fugiram como loucas, persuadidas de que tinham "jeropari" em seu encalce. 2 Em outra parte, informa Ives d'Évreux estarem os tupinambás convencidos de que "as almas dos maus são levadas por Giro pary". "São elas (diz ainda) que, em companhia daquele demonio, os atormenta, vivendo nas 1 P. 282. 2 .Yves d'Évreux, ps. 127-128. • -119- taperas, nos locais em que são enterrados seus mortos" .1 A despeito da estreita relação, que os textos acima estabelecem entre Yurupari e as almas dos mortos, a definição dos missionarios parece-me exata, sendo os Yurupari umas especies. de demonios da mata, que se tornavam temerosos por seus predicados malfazejos (a). Se as informações fornecidas por Ives d'Évreux fôssem as unicas, que possuíssemos para definir a sua natureza de Yurupari, força seria considerá-lo como a alma dos mortos; varios fatos, todavia, opõem-se a tal interpretação. Em primeiro lugar, as almas dos mortos não têm, em nenhum dialeto tupico, nome algum que, por mais de leve, se aproxime do de Yurupary; em seguida, deve-se ter em vista que os missionarios, tão entendidos na definição de um espírito, não cometeriam a falta de traduzir semelhahte palavra por diabo se não tivessem boas razões para isso. Finalmente, o argumento mais convincente em favor de minha tese é o estudo de Barbosa Rodrigues, 2 onde estão reunidos todos os contos e mitos amazonicos referentes ~ Yurupari. Em verdade, poucas das tribus, cujas legendqs constituem essa coletanea pertencem ao grupo tupi, mas, falando elas a 'língua geral, aplicavam o nome de Yurupari aos seres sobrenaturais, possuidores, em suas crenças, dos atributos -do duende tupico. O Yurupari amazonico é um espírito dos bosques, especie de ogre ou de divindade, de acordo com cada uma das tribus; em nenhum caso, representa algum papel que tenha relação com as almas dos mortos. Os tupinambás, que deviam ver em Yurupari wn monstro malfazejo, foram levados a estabelecer aflni1 Id.., p. ~M. % Ps. 98-H.O. _, 120 -- dades entre ele e certas sortes de aves, cujo canto ou aspecto pudesse inspirar sentimentos de terror. Sabemos de duas, que entretinham relações sexuais com Yurupari, chegando o mesmo, até, a chocar seus ovos. São essas as resenhas que possuímos referentemente a esse "diabo" e .às suas ações. 1 ' Agnan ou Ahangá (foneticamente, Anã ou Aííanga). - As informações ou anedotas, que, a respeito do Agnan, se podem colher a mãos cheias, na antiga literatura, confirmam a identidade de natureza existente entre esse ser sobrenatural e Yurupari. A semelhança deste ultimo, Agnan é comparado ao diabo da religião catolica. A acusação mais frequente, que pesa sobre o mesmo, é assaltar as pessoas vivas; os tupinambás viviam em perpetuo terror de uma agressão por parte dele. "Andando por lá (conta Theveí2), ouvimos, certa noite, espantosos gritos de indios, que nos suplicavam socorro, dizendo em sua lingua: - Vê como Hipouchy Aignen (assim chamando ao espírito maligno) me maltrata e atormenta; defende-me, se queres que eu te sirva e te corte madeira". o Agnan entregava-se a tais vioíencias em publico, mas sob forma invisível. "Muitas vezes (conta Léry 3 ), mesmo quando falavam conosco, sentiam-se atormentados, gritando, de subito e como enraivecidos, que o viam bem elaramente, tanto sob a forma de animal ou de ave, como sob outra qualquer estranha forma". E, mais adiante, o mesmo cronista,' querendo mostrar o terror, que sentiam os tupinambás a seu respeito, ex1 Yves d'Évre~x, p. 282. 2 (2), foi. 921 v. 8 T. II, ·p. 62. 4. T. II, p. 88. - 121- prime-se nos seguintes termos: "Vi-os muitas vezes tomados de infernal furor, pois, quanao se recordam dos males passados, batem com as mãos nas coxas e suam de angustia, queixartdo-se, a mim e a outro companheiro, e assim dizendo: - Ma ir Atou-assap, ace-~ queiey Aygnan Atoupané (isto é, francês, meu amigo e bom aliado, tenho medo do diabo mais do que de qualquer outra coisa)". Para defender-se dos ataques desse "diabo", os tupinambás evitavam sair à noite sem conduzir consigo um archote. 1 Agnan costumava conservar-se perto dos tumulos abertos de pouco, devorando os cadaveres se os alimentos e bebidas não fôssem regularmente depositados na sepultura. 2 Os missionarios, enfim, estabeleciam ainda uma relação mais estreita entre Agnan e as almas dos mortos, fazendo dele o carrasco do.s preguiçosos e covardes, os quais, após o traspasso, eram condenados, em virtude de suas qualidades negativas, a andar em companhia daquele. Não existe uma só ação atribuída a Agnan, de acordo com os textos já citados, que não seja habitual às almas dos defuntos. Inumeros exemplos modernos poderiam ser trazidos em abono .à minha asserção e, sem sair desse dominio, encontram-se autores bem informados que contam fatos identicos a proposito do assunto. Basta ilustrar essa observação com alguns exemplos. 1 Thevet (1), p. 169 e ms. inedito,, foi. 91; Léry, t. li, p. 106, etc. 2 Léry, t. II, p. 120. 122 - O autor anonimo da Informação do Brasil,t falando dos misteriosos ataques sofridos pelos indígenas, atribuía-os ao demonio, mas sem fazer menção de Anhanga. O padre Nobrega,2 do mesmo modo, explica o processo usado pelos índios para preservar-se dos "diabos", que consistia no costume de fazer fogo debaixo da rede. Não há, nem mesmo a frase seguinte de Thevet,3 que não possa ser aplicada aos espíritos dos tupis, tal como nos são descritos alhures: "Algumas vezes,' tambem, esses barbaros me afirmaram que viam o espírito maligno, Aignan, nos regatos e rios, sob as mais diversas figuras". No capitulo consagrado aos espíritos, terei ocasião de tratar dos varios aspectos zoomorfos, ou outros, de que os mesmos se revestiam para aparecer aos vivos. Se tomarmos em consideração uma tribu moderna, os chiriguanos entre outros, verificar-se-á que esses índios temem muito os ataques dos maus espíritos e, quando saem à noite, tomam o cuidado de carregar o fogo afim de contê-los a respeitosa distancia. Os chiriguanos chamam as almas dos mortos, precisamente, de ana e são elas a quem os índios temem.• Em presença de uma tal abundancia de testemunhos concordantes, não pode restar duvida de que, quando os missionários e viajantes nos falam das agressões de Anhanga, de suas aparições, de suas transformações e de suas relações com os mortos, reproduzem informes em conexão apenas às almas vagabundas. E é justamente nesse particular que se enganam, pois· o I P. 440. 2 P. 92. 3 (2), foi. 921 e ms. inedito, foi. 49 v. 4 Nino, ps. 133-136. - 12~- legitimo Agnan dos tupis nada tem com tal categoria de seres sobrenaturais. Basta reportar-se ao mito de Thevet 1 e aos dos tupis modernos para que nos convençamos dessa verdade. Agnan surge, episodicamente, no final da hlstoria dos gemeos, tal como nos descreveu Thevet. Faz o papel de demonio, ou mais exatamente de ogre, com o qual os dois gemeos entram em luta ( b). E' a vitima, embora, a principio, consiga devorar um dos manos. Não há, pois, nenhum traço de personificação das almas dos mortos: Agnan não passa de uma das numerosas personagens da mitologia tupinambá. É, aliás, exatamente sob esse a~pecto que os tupis modernos figuram os seres sobrenaturais, aos quais dão o nome do famoso "diabo" tupinambá. Os Aíiãy são, segundo os apapocuvas, seres tão antigos como a terra. Encontramo-los no começo da criação sem que se dê explicação de sua presença. Embora distintos dos homens, não são, por isso, menos mortais. Se bem que malfazejos, despertam pouca temidez; os gemeos fa.zem deles seu bode expiatorio, sem recear nenhuma represalia por parte do mesmo. 2 Entre os tembés, os Azán' são igualmente pintados sob a figura de gemeos, que fazem constantemente o papel de vitimas dos dois irmãos, embora possam ser perigosos: um deles conseguiu capturar e comer a um dos gemeos, quando este procurava furtar-lhe o anzol. Mesmo sem a analogia dos nomes, não é preciso esforço, dado a identidade dos dois episodios, para chegar .à conclusão de. que Azán' não deve ser outro senão 1 (2), foi. 920. 2 Nimuendajú (1), ps. 321-822. -124- o Agnan tupinambá,I sendo interessante notar que, na versão chipaia do roubo do anzol, é o espírito Awá quem ' toma o lugar de Agnan. A mitologia desses ultimos indios conhece, entretanto, uma categoria de seres, os Adji, que corresponde, a certo respeito, aos Aiíãy dos apapocuvas. 2 Crêem os chiriguanos que, entre as almas dos mortos, algumas existem com poderes especiais, - os chamados Aiía-tunpa. Os Aiía-tunpa perderam S}las características de fantasmas para adquirir a de genios, com poderes mesmos de presidir aos fenomenos naturais, sendo que alguns se tornaram legitimas espíritos dos bosques, com muito pouca diferença dos ogres das nossas fabulas. Entre os Aiía-tunpa chiriguanos e os Aiiãy apapocuvas, não há grande dife.,. . rença. 3 O proprio Léry' traz uma solida base em favor de miril1a hipotese, informando que Aignan tem por sinonimo Kaagerre, palavra que, conforme mostra a etimologia, significa demonio da mata. Passagem do ms. inedito de Thevet 5 menciona, igualmente, essa sinonímia : "Têm muita necessidade de fogo, tanto para assar as suas carnes como para combater esse espírito, que os persegue à noite e embaraça as suas atividades. Alguns · dão-lhe o nome de Raa-onan üU Kaa-gerre. Desse modo, a qualquer parte aonde vão, conduzem sempre os seus aparelhos de fazer fogo, que são dois paus desiguais, um menor de dois pés que o outro". Não basta estabelecer que Agnan é verdadeiramente um "diabo"; resta ainda inquirir as causas da 1 Nimuendajú (2), ps. 285-287. 2 Id. (3), ps. 1019 e 1021. 3 N ordenskiiild ( 1), ps. 25i e 28i. ~ T. li, p. 62. i (2) 1 fol. 1 !11. - 125- confusão em que cairam, a seu respeito, os antigos viajantes e missionarios. A nosso ver, o erro originou-se da homonímia existente entre a palavra afzanga e as palavras ang (designativo de alma) e anguéra (que significa as almàs destacadas do corpo). Relembremos, a esse proposito, que os chiriguanos chamam aos espíritos dos mortos Afzay, palavra que soaria, a ouvidos pouco exercitados, como o termo apapocuva Aiíãy. E' possível que os longínquos antepassados dos tupinambás tenham visto, nos Aiíã, a figura das almas erraticas, conforme parece indicar a raiz desse nome; mas é inegavel que não era tal o conceito de seus descendentes a respeito de semelhantes demonios. Com o problema de Agnan nos encontramos diante de um caso análogo ao de que já me ocupei, ao tratar de Tupan. Um simples espírito da mata foi promovido, pelos primitivos missionarios, à dignidade de diabo. E era natural que os frades se persuadissem da legitimidade de sua interpretação tanto mais quanto, confundindo Aiíã com as almas dos mortos, não ouviam falar senão dos malefícios causados pelas mesmas .à humanidade. Kurupira. - O demonio das matas, que os tupinambás chamavam de Kurupira, conheceu uma extraordinaria fortuna (c), sendo ainda hoje celebre em todos os países onde é falada a ·Ungua geral. Barbosa Rodrigues 1 consagrou-lhe Um estudo muito bem documentado, que permite fazer idéia das crenças relativas, em todas as regiões do vasto territorio brasileiro, a essa personagem. As opiniões a seu respeito frequentemente diferem muito, embora todas acordem em fazê-lo o gnomo da floresta, protetor da caça e, em 1 Ps. 3-26. - 126- g<;ral, bastante mal disposto a respeito dos homens. Dá-se-lhe, de acordo com o local, aspecto diverso; a sua mais conhecida figura, porem, é a de um homenzinho, que anda com os pés para trás. Muitas vezes, essas superstições' têm suas raizes nas crenças religiosas dos tupis litoraneos. A primeira menção sobre Kurupira data do seculo XVI e encontra-se em uma carta do padre Anchieta. 1 Diz o jesuíta serem os Curupira espíritos temerosos, que assaltam os índios na floresta, açoutando, maltratando e até matando os mesmos. E acrescenta que é com o fito de apaziguá-los que os selvagens depositam, em certos sitios (de preferencia nas veredas em rumo ao interior, ou nos montes), flores e outros objetos dessa ordem, em oferenda a tais "demonios". Marcgrave 2 e Nieuhof3 (não se sabe porque razão) qualificam Curupira de espírito das paixões - numen mentium. O missionario Danie),4 em seu estudo sobre as crenças dos índios amazonicos, apoiando-se, provavelmente; em informações de origem tupica, pinta os Coropira como fantasmas de aspecto humano, que tinham a cabeça pelada e, à semelhança dos selvagens, andavam nus. Eram-lhes atribuídos todos os surdos rumores da floresta. Abordavam os viajantes, pedindo-lhes algum serviço. Se eram atendidos, recompensavamnos, realizando-lhes os votos; se, ao contrario, recebiam uma recusa, vingavam-se, dando-lhes pancadas. Os Coropira não viviam apenas na floresta, mas apareciam, tambem, nas praias. 1 2 3 4 (3), t. 1, ps. S)03-304. Ps. 278-279. Ps. 220-221. T. 11, p. 435. - 127- Os tupinambás, interrogados por Acuiia1 a respeito da situação das tribus circunvizinhas, falaram-lhe de Úma nação de anões, que viviam ao sul, assim como de outra tribu de índios, cujos pés eram voltados para trás. Acufia atribuiu o fato a personagens fabulosos, que possuíam traços dos espíritos ou dos monstros florestais. Tais personagens, entretanto, de· pés invertidos, talvez não fôssem outros senão os Kurupira, que, como já se viu, são frequentemente representados dessa maneira. Os chipaias são os unicos indigenas tupi-guaranis, modernos, entre os quais foi adotada a crença em Kurupira. Chamam-no Kururpira, e, em suas narrativas, figuram-no como um monstro antropofago, que, todavia, é facilmente logrado. 2 Os indios modernos (observe-se a proposito), .que, com a lingua geral, adotaram a crença em Kurupira, representam-no como um ogre, ao qual se pode escapar pela astucia. Com Yurupari, Agnan e Kurupira não se esgota a nomenclatura demoníaca, de que tratam os antigos textos. Marcgrave3 cita ainda Macachera, de quell) traça rapidamente os atributos. "Macachera (diz) é o espírito das estradas, que marcha adiante do viajo r (d). Os potiguares consideram-no o mensageiro de toda boa nova, ao contrario dos tupinambás, que vêem nele o inimigo da saude humana". E' inutil dizer que o pa~ pel, conferido por Marcgrave ao~ espíritos, frequente~ mente está imiscuído de reminiscencias classicas, -sendo as suas informações, portanto, de relativo valor. Duas outras categorias- de espíritos são menciona~ das por ·cardim,' os Ouaioupia e os Taguaigba. Mas 1 Ps. 170-171. 2 Nimuendajú (S), p. IOSi. a P. 278. -4. P. 1i2. -121- o autor não diz. quais as suas funções e a sua natureza (e). O padre Anchieta 1 resume, nos seguintes termos, os informes por ele colhidos a respeito das crenças nos espíritos, que os tupis de São Vicente lhe afirmaram temer particularmente: "Há tambem nos rios outros fantasmas, a que chamam lgpupiára, isto é, que moram n'agua (f), que matam do mesmo modo aos indios. Não longe de nós há um rio habitado por cristãos, a que os índios atravessavam outrora em canoas, que fazem de um só tronco ou de cortiça, onde eram muitas vezes afogados por eles, antes que os cristãos para Já fôssem. Há tambem outros, maximé nas praias, que vivem a maior parte do tempo junto do mar e dos rios,. e são chamados baetatá, que quer dizer coisa de fogo, o que é o mesmo como se dissesse o que é todo fogo. Não se vê outra coisa senão um facho cintilante correndo daqui para ali; acomete rapidamente aos índios e mata-os, como os curupiras: o que seja isto, ainda não s~ sabe com certeza. Há tambem outros espectros, do mesmo modo pavorosos, que não sq, assaltam os índios, como lhes causam danos; o que nao admira, quando por estes e outros meios semelhantes, que longo fôra enumerar, quer o demonio tornar-se formidavel a estes brasis, que não conhecem a Deus, e exercer contra eles tão crüel tirania." Aparte os Baetata, que não passam de fogos-fatuos (g), os espíritos referidos na carta acima do padre Anchieta são provavelmente •os dos mortos; mas, na ausencia de ·resenhas complementares, é difícil um pronunciamento categorico. 1 (3), t. I, p. 804. - 129 -- NOTAS AO CAPITULO V (Esnv.io PtN·ro) (a) Informa Yves d'Évreux que jurupari, por causa das suas "maldades", tinha sido expulso por deus, de quem era "serviçal", passando, dai avante, a retardar as chuvas e a Incentivar a guerra ent.re os homens. "Dizem tambem (acrescenta o citado missionario) que jurupari e os seus possuem certos animais, jamais visíveis, que só andam à noite, soltando gritos horríveis", os quais ora servem de homem (incubo), ora de mulher (sucubo) (Viagem ao Norte do Bra1U, etc., ed. de 1874, Maranhão; p. 250). Batista Caetano observa que a palavra jurupari significa "o que vem à, ou sobre a cama", encerrando a idéia de pesadelo. Nll.o é outra, aliás, a origem do francês cauchemar, do inglês nightmare, do holandês nacht-merrie, em que o mesmo radicál mar, mare, merrie tem o sentido de incubo ({oot-11ote de Rodolfo Garcia, em Dialogo•, cit., p. 290-291). Jurupari, segundo a tradição, nasceu de uma rapariga virgem, fecundada por intermedio do sol, que empregou, para isso, o "sumo da cucura do mato". Veio a mandado desse astro para reformar os costumes da terra, afim de poder encontrar nela uma donzela perfeita. Até então, as mulheres governavam e os homens obedeciam, o que era contrario às leis solares. Jurupari 'retirou o poder das mãos dessas amazonas e instituiu as festas da emancipação ou independencia masculina: as mulheres que surpreendessem os segredos confiados aos homens deveriam morrer, como aconteceu à propria mãe de jurupari (Ceuci) (Jorge - 130- Hurley, ltaratla, p. ~9, Beiem, 19:h). As cerimonias peculiare~ a jurupari têm lugar, geralmente, na epoca do aparecimento de certas frutas (assaís, miritis, ingás, etc.) e são precedidas de jejum. Após o jejum, todos os indivíduos puberes da aldeia, de ambos os sexos, pintam-se de urucu e de jeniplpo e, ao som de uma cantiga melancolica, celebram-se os casamentos. Em seguida, a{p.stam-se as mulheres e os rapazes profanos ao culto, começando, então, os toques e as danças. A trombeta s(lgrada, defesa às mulheres, é um tubo constituído pelo liber da paxiuba. Em meio do ritual, irrompem alguns homens, tendo o rosto recoberto por mascaras de pêlo de macaco, andando de gatinhas e batendo com as varas. Terminado o baile, segue-se a cena da flagelaçil.o, da qual podem tomar parte as mulheres e crianças. O jurupari ( di1< Raimundo Lopes) é o "genio da fertilidade"; ensinou aos índios muitos processos uteis e magicos, inclusive a fabricação da farinha, dando às tribus leis severas e "cerimonias coincidentes com a frutificação de plantas como a bacaba e o assaí ("Jurupari", em Revista da Semana, ed. de 24/8/35, Rio; c(. tambem Stradelli, "Vocabulario", cit., ps. 497-4.98). A escola culturalista vê no lllito de jurupari o reflexo da luta contra o matriarcado pela subsequente emancipação do homem, com o advento das associações extra-familiares (classes de idade, fes~as de iniciação). A qualidade de heroi-civilizador, por parte de jurupari, não escapou a Couto de Magalhães (O Selvagem, p. 160, São Paulo, 1935) e Osvaldo Orico ( Vocabulario dM crendices amazo~icM, ·ps. 135-U1, São Paulo, 1937) resenha quase tudo o que há sobre o assunto, depois de exaustivo trabalho de Barbosa Rodrigues ("Po· randuba amazonense", ps. 93-140, Rio, 1890). (b) Anhanga, mito comum aos tupis, tem sido objeto de muitas interpretações. Segundo a maioria dos autores (Simão de Vasconcelos, Fernão Cardim, etc.), anhanga é um espírito mau, temido pelos selvagens ( ãnang = alma do mal) . Luis da Camara Cascudo considera-o um "mito de confusão verbal": o anga, alma - 131- dos mortos, é o espírito errante, o malefício, a diabrura, o pesadelo, "o medo sem forma e sem nome possível"; o anhanga "um nume protetor da especie, superstição indígena, mito local". E nisso, aliás, repete Métraux. A meu ve'"r, o mito de anhanga tem conexão com a alma dos antepassados. Os atuais chiriguanos temem sair à noite, receosos dos maus espíritos; esses índios chamam precisamente de aíia às almas dos mortos. Os tupinambás acreditavam que anhanga devoraria o cadaver, se os silvícolas não colocassem na cova os necessarios alimentos. E~lica Yves d'Évreux que a alma ligada ao corpo é an; fora dele transforma-se em anguere. No mito transmitido por Thevet, enfim, os gemeos vão ter com A.gnen, que vive no lugar onde se cremam os mortos. O fato de os tupinambás, ao tempo da colonização, terem outro conceito a respeito de anl1anga, pouco importa. Sabemos que a transmissão desse mito foi influenciada pela mentalidade europeia. Métraux confessa que, em tempos longínquos, possivelmente os tupinambás viam em anhanga a figura das almas errantes. Charles Wagley registou A.cunga como designação genérica dos espíritos, abran·· gendo, inclusive, a alma do~?. mortos. Cf. Marcgrave, p. CIII. Aliás, an"cúnga. Cf. a nota n do cap. VI. (c) Curupira, segundo a descrição de Stradelli ("Voçabulario", cit., ps. 434-435) é a "mãe-do-mato", o genio tutelar da floresta. Tem a feição de um menino veludo, de cabelos vermelhos, com os pés às avessas e privado de orgãos sexuais: dai dizer a gente do "Pará que ele é mussiço (Couto de Magalhães, a.c., p. 170). A mata acha-se sob a sua proteção. Prenuncia a tormenta, batendo nas raizes das sumaumeiras. Ai de quem, por simples prazer, fere o animal ou perSegue as femeas pejadas! ·o curupira transmuta-se em caça, que o homem persegue inutilmente até desgarrar-se, desorientado, do verdadeiro caminho. Outras vezes a embiara deixa-se apanhar, mas o frecheiro, aterrorizado, verifica que não alvejou nenhum animal, senão seu proprio filho, 0~1 mulher, ou companheiro. Na qualidade de mãe da floresta, 132-. era conhecido dos ·tupinambás do Maranhão, dos porangabas do Ceará, dos potiguares do Rio Grande do Norte e da Paraíba, etc., muitas vezes com o nome de caapora, o morador do mato. Ainda hoje, os "caabas da Amazonia acreditam no poder superior de curupira, que dizem usar machado de casco de jaboti" e "cavalgar, nas suas carreiras vertiginosas, o dorso macio e rechonchudo do tapir". "É curupira quem nos mostra ou esconde a caça; quem nos revela os segredos da floresta, as virtudes medicinais das plantas e nos dá os produtos destas" (J. Hurley, o.c., ps. 79 sq.). Desse modo, conforme observa A. de Alcantara Machado (notas às Cartas, cit., de Anchieta, p. 142), o curupira - ou currupira, como lhe chamam no sul do país - tem por função proteger não só as florestas, como, tambem, a caça, castigando a quem estraga inutilmente as arvores 'IJU mata os animais ap,enas "por gosto". Para Spix e Martius (Viagem pelo Brasil, 111, p. 216, Rio, 1938), o curupira é um demonio menos aterrador que o jurupari; não passa de um espírito pirracento das matas, que procura entreter conversa com os índios, despertando inimizades ou gozando da desventura alheia. O melhor estudo sobre o curupira é ainda o de Barbosa Rodrigues (o.c., ps. 3 sq.). O curupira (diz esse sabio), o numen mentium de Marcgrave, o espírito dos pensamentos de Simão de Vasconcelos, a alma caçoista de Martius é, tambem, no dizer do padre João Daniel, o duende das florestas, que pratica tanto o be~ quanto o mal, sendo a crença mais geral a _de que o mesmo, conforme já se disse, simboliza o genio protetor da caça e das matas. "O curupira, como genio misterioso e cheio de poder, apresenta-se sempre sob varias formas e sob varias disposições de espírito. Assim, ora fantastico, imperioso, exquisito, ora mau, grosseiro, atrevido, muitas vezes delicado e amigo, chegando mesmo a se .apresentar bonachão e compassivo, ou ainda fraco, tolo e facil de se deixar enganar. A pesar de tudo tem a virtude de ser agradecido ao bem que se lhe faz, impondo contudo condições que, quando não cumpridas, são fatais. O estrondo, que se repercute ao longe pelas florestas, das arvores velhas que caem; - f33- o barulho que fazem alguns pica-paus, eanndo o alimento pelos troncos, ruído que ecoa surdamente pelas matas, querem que seja tambem o curupira a causa dele. Dizem os credulos, quando isso ouvem, que é o curupira com seu machado, feito de casco de jaboti (Tapajoz), que anda batendo pelas sapopemas das arvores, para ver se estão seguras e podem resistir às tempestades. No alto Amazonas dizem que bate com o calcanhar e, no baixo, em Obidos, que com o penis, que é de tamanho extraordinario" (Barbosa Rodrigues, o.c., p. 4). A etimologia da palavra curupira é muito controvertida. O numen mentium de Marcgrave, traduz Mons. dr. José Procopio de Magalhães ( ed. do Museu Paulista, de 1942, p. 279) por "divindade dos desígnios". O autor do Vocabulario da Conquista ensina que curupira vemede curub (sarna) e pir (pele). Na giria existe, realmente, o vocabulo curupira- com o sentido de sarnento, leproso (cf. M. Viatti, Dicionario da Gíria Brasileira, p. 112, São Paulo, 1945). ( d) O trecho de Marcgrave é assim traduzido por Mons. dr. José Procopio de Magalhães: "Temem demasiadamente os espíritos maus, os quais chamam ... Macachera, divindade dos caminhos, guiando os viajantes. Os petiguares ornam o portador da boa noticia; pelo contrario os tupiguais e os corios, o feiticeiro inimigo da saude humana" (o.c., ps. 278-219). Desse modo, Marcgrave não se refere aos tupinambás propriamente ditos, mas aos tupiguais, tambem mencionados por Cardim ( o.c., p. 197), que Rodolfo Garcia supõe tratar-se dos mesmos potiguares. Corio/! é erro de revisão, por Caryo11 (como está no original). Aliás, carijó11. De acordo com Plin1o Ayro!a, Machacera !ignifica "coisa que abrasa, que queima". O fogo-fatuo. Cf. Teodoro Sampaio (o.c., p. 241), que o identifica com o bCUJtatá de Anchieta, "coisa de fogo", "o que é todo fogo". (e) Trata-se de um lapso de Métraux. Cardim só fala de Taguaigba (Taguain na coleção Purchcu hi• Pilgrime1), que é, 1e- -134- !fUndo Rodolfo Garcia, o mestno taguaib em tupi e tau.baib em guarani. O vocabulo significa "visão má". • A palavra Ouaioupia vem em Yves d'11:vreux, que Cesar Augusto Marqu~s, o tradutor de ed. de 1874, escreve Uaiupia: "Chamam os bons espíritos' ou anjos Apoiaueué, e os maus ou diabos Uaiupia" (Viagem ao Norte do Brasil, cit., p. 249). Tambem Claude d'Abbeville (ed. cit., p. 252, sob a forma Ouiiioupía) conheceu essa voz tupica, mas com outro sentido, isto é, indicando o lugar, u.ajupiá, onde as almas se encontram com os antepassados. Rodolfo Garcia <liz que talvez a _palavra venha de guiá (nome generico do caranguejo) e upiá (ovos), mas chama n atenção para o termo guarani guayupia, que quêr dizer ",feitiço". Spix & Martius (Viagem pelo Brasil, III, cit., p. 215} incluem, fi\\ serie dos espíritos maus, o de nome uaiuara, que Basilio de Magalhães traduz por "assombração". Note-se, ainda, a semelhança do nome em questão com Ouyra oupia, designação dada pelos tupinambás a duns estrelas da constelação dos Gemeos. Lembra ainda Plinio Ayrosa que uaiupiá uajupiá = guajupíá se encontra no Vocabularío na Língua Bra.8ilica, designando uma especie de diabo. O Vocabulario, que é um ms. do sec. XVII, foi pub. em São Paulo, 1938, coordenado e prefaciado por P. Ayrosa. = Para Florestan Fernandes (o.c., p. 161 1q.), Guajupiá é a jornada final: "Pode-se afirmar que uma boa parte da vida dos 'i.'upinambá estava polarizada na direção de seus parentes ou amigos mortós e que a aspiração do Guajupiá traduzia o ideal básico de cultura". (f) Cardim acompanha a grafia de Anchieta, mas Gandavo escreve hipupiara ( o.c., p. 123), Gabriel' Soares de Sousa upupiara (Noticia do Brasil, li, p. 190, ed. de São Paulo, s/d) e Barleu (Hi8toria dos f eitos recentemente praticados durante oito anos no Bra8il, etc., ed. do ~iniste"rio da Educação, 1940, p. 150) 135 - "yp'l.ipiarre dicte". "Relativamente a ipupiara (escreve Pirajá da Silva, nota em Noticia do Brasil de G. S. de Sousa, cit.,.II, p. 191) é bem possível que o boto - Sotalia brMilieasis, pirá jaguara, - muitas vezes, fôsse tomado como essa enfidade fantastica". Joaquim Ribeiro (A tradição e as lendas, p. 46, Rio, 1929) identificou-a com a iara, ou mãe-d'agua. A iara vive no fundo dos rios. Cativa os moços, sob o aspecto de sedutora mulher e as moças sob a de um mancebo. Ipupiara, segundo a etimologia de Batista Caetano, provem de y (agua) pypiara (dentro, no intimo). Corresponde à Yemanjá dos negro8 iorubas e aos sub-mitos locais do boto, do cabeça-de-cuia e do urocão. Cf. A .. Ramos, Introdução à Antropologia !Jrasileira, I, p. 121, Rio, 1948). . Transcrevo o trecho original ue Anchieta, que, na citação de Métraux, não vem completo. (g) E' essa, de igual modo, a opinião de Teodoro Sampaio, o.c., p. 206. Cf. Spix & Martius, o.c., III, p. 217. Observa Ar• tur Ramos (Introdução, cit., p. 122) que, devido ao radical "mboi", o termo passou a significar tambem "cobra de fogo", ligado às lendas da "cobra grande" da região amazonica: "~ difícil, porem, dizer até que ponto se trata de uma confusão verbal, porque a mesma raiz mboia existe na Africa, como está numa lenda incluída por Blaise Cendrars na sua Anthologie Negr1, e transcrita pelo escritor Osvaldo Orico. Isso mostra como são vacilantes os criterios baseados apenas em analogias verbais, velho metodo de·que tanto abusaram etnologos e folk-loristas". Afirma Couto de Magalhães ( o.c., p. 170) que boitatá "é o genio que protege os campos contra aqueles que os incendeiam''. A tradição figura-o "como uma pequena serpente de fogo, que de ordinario reside na agua". -136- CAPITULO VI OS ESPIRITOS Os tupinambás sentem-se rodeados por uma multidão de espíritos, que perambulam por toda a parte, sobretudo em matas e sítios obscuros, de aspecto particularmente sinistro. Os espíritos dos mortos frequentavam, de preferencia, a circunvizinhança das ·tumbas, sendo a sua atividade muitas vezes ho.stil à especie • humana, pois lhe causavam doenças, impediam a vinda das chuvas e provocavam a der.rota na guerra; demais, apoderando-se das proprias pessoas, batiam-nas e atormentavam-nas de mil maneiras. 1 Tais agressões, que os autores antigos atribuíam erroneamente ao .demonio Anã, distinguiam-se por seu carater brusco e inopinado, ocorrendo em todo lugar e a qualquer hora, embora fôssem particularmente frequentes .à noite. Não resta duvida que esses "diabos" seriam, em sua maior parte, os mortos. Thevef2 di-lo muito claramente: "Os selvagens mantêm outra crença estranha, a saber, quando navegam, no mar ou rio rio, à procura de seus inimigos, acreditam, se surge alguma 1 Soares de Sousa, p. 828; Informação do Brasü, p. 440; Yves d'Évreux, ps. 280-288. 2 (1), p. 182. - 137- tempestade,. . . . que· a mesma tem relação com as almas dos parentes e amigos. A razão disso não sabem, mas, para apaziguar a tormenta, lançam alguma coisa na agua, a titulo de oferenda. E, por· esse meio, esperam acalmar os elementos" (a). De igual modo, os mundurucus atribuem a tempestade à ação das almas dos finados. 1 Os espíritos apareciam aos homens. sob a feição de animais estranhos e bizarros. Ora• sob a forma de passaros negros, ora sob a forma dos morcegos 2 ou de salamandras.3 Os que se manifestavam sob esse ultimo aspecto buscavam apenas as mulheres, para o fim de violá-las. Eram todos bichos fabulosos, que tinham o dom da invisibilidade. Os tupinambás sentiam supersticioso temor por certa especie de ave, que, a julgar pelas descrições, pode ser identificada com o matim tapirera (Cucqlus cf'-yanus L.). Essa ave passava por mensageira dos parentes· já falecidos e seus trinados eram interpretados como ordens do alem-tumulo (b) . Não resta duvida de que o matim tapirera era considerado- uma encarnação dos espíritos dos mortos. Os mundurucus, aliás, dizem-no claramente, acrescentando mesmo que, sob semelhante forma, vinham os referidos passares caçar em terra.~ O matim tapirera gozava e ainda hoje goza de inalteravel reputação entre os chiriguanos. Justificam os guaraius o temor a certas especies de aves, dizendo que eram elas oriunpas "da terra do seu ancestral" '(Tamoi'), ou seja, . da região dos mortos. 5 Os 1 Tocantins, part. II, p. 116. 2 Yves d'Évreux, ps. 293-294. 8 Id., p. 307. 4. Tocantins, part. II, p. 116. i Cardús, p. 75. - 138- tuplnambás não são os unicos indígenas sul-america· nos a considerar determinados animais a encarnação das almas. Koch-Grünberg 1 dá varios exemplos de casos dessa ordem. Alguns espíritos guardavam uma aparencia mais imaterial, distinguindo-se por suas côres cambiantes. 2 Sua presença podia tambem ser revelada por particulares rui dos; assim, quando eram convocados por um feiticeiro, surgiam "silvando e assobiando'? distinguindo-se nitidamente a sua voz pelo timbre agudo semelhante ao da criança.' A noite, as trevas enchiam-se de espiritos, que redobravam de audacia; mas, era suficiente acender a fogueira ao pé da rede para ficar salvo de seus males. Logo que a presença de um desses seres malignos era pressentida, todas as saídas das ocas fechavam-se para impedir-lhe a entrada. 3 A colera dos- espíritos podia ser refreada pélas oferendas, visto como, .às vezes, o diabo "os mata nos matos a pancadas, ou nos rios, e, porque lhes não faça mal, em alguns lugares medonhos e infamados, quando passam por eles, lhe deixam alguma flecha ou penas ou outra coisa como por oferta" .6 Os espíritos pareciam ter uma especial predileção pelas plumas, pois, sõmente quando as penas de perdiz eram jogadas no mar, consentiam as almas dos avós em acalmar as vagas por elas rebeladas. 7 Era provavelmen1 (1), ps. 13-1/S. 2 Yves d'~vreux, p. 294.. 3 Thevet (1), p. 176. 4. Nobrep:a, p. 92. 15 Yves d'~vreux, p. 128. ti Informaçõe/1 do Brasil, p. 432; grave, p. 279. 7 Thevet (1), p. 1911. Cardim, p. 162; Marc- te para manter os espíritos afastados que os tupinambás erigiam, nas proximidades de suas aringas, o poste descrito por Claude d' Abbeville1 nos seguintes termos: "Têm os índios outra superstição: a de fincar à estrada de suas aldeias um madeiro alto, com um pedaço de pau atravessado por cima. Aí penduram quantidade de pequenos escudos feitos de folhas de palmeiras, do tamanho de dois punhos; nesses escudos pintam, de preto e vermelho, um homem nu. Como lhes perguntassemos a razão de tal costume, d isseram-nos que os seus pagés lh'os haviam recomendado para o fim de afastar os maus ares". Uma das numerosas. causas do exito obtido pelo catolicismo, entre os tupinambás, consistia principalmente na promessa, feita pelos missionarios, de conservar os maus espíritos afastado.s de suas aldeias, se, - diziam, - cruzes fôssem nelas erguidas e plantadas. Desde que a noticia da eficacia desse símbolo se expandiu entre os habitantes da ilha do Maranhão, os indígenas apressaram-se a enviar delegações aos capuchinhos franceses com o objetivo de suplicar-lhes mandar erigir, em suas aldeias, cruzes, para o fim de pô-los ao abrigo dos ataques de "Jéropari". Entre tal multidão de espíritos, havia certo numero deles tidos como animados de sentimentos benevolentes em relação à humanidade: eram. os Apoiaueué (c). "Julgam os tupinambás que os bons espíritos lhes atraem, em tempo oportuno, as chuvas, não destruindo as suas plantações, nem jàmais os atormentando ou batendo. E, quando vão ao céu, contam a Deus tudo o que se passa em baixo, dizendo-lhes que os referidos bons espíritos não fazem medo aos índios, 1 Foi. 326; - 140 - quer à noite, quer nos bosques". 1 Resta saber se era natural essa natureza benevola dos espíritos, ou motivada pelos exorcismos dos pagés. Inclino-me pela segunda hipotese. De fato, todos os atos positivos, através dos qpais os Apoiaueué manifestam uma simpatia pela humanidade são justamente os que incumbem ao feiticeiro realizar. Como se verá em outro capitulo, a ação do pay (d) sobre a natureza exercia-se por intermedio dos espíritos familiares, que lhe obedeciam em tudo. No seculo XVI, o animismo dos tupinambás estava a ponto de evoluir para o fetichismo identico ao que os primeiros descobridores deparavam entre os aruaques e caraibas das Antilhas. As ofe'rendas feitas aos espíritos dos mortos já indicam o nascimento de um culto, bastante desenvolvido para que os tupinambás sentissem a necessidade de possuir choças sagradas e representações materiais dos seres superiores, objeto de temor e veneração. Os índios (diz Macgrave 2 ) "não veneram os espíritos por meio de ídolos ou cerimonias; todavia, alguns se esforçam, às vezes, por aplacá-los, fincando· no solo madeiros e colocando junto deles pequenas dadivas". Cardim3 • afirma até que existiam postes plantados em sítios visitados pelos ·espíritos e era ao pé dos mesmos que se depositavam os votos (e). Talvez esses postes não fôssem mais do que as cruzes, referidas por Claude d' Abbeville; não é de todo impossível que os homens· nus, pintados nos escudozinhos, sejam, igualmente, representações de espíritos. Podem-se comparar tais postes com os madeiros rusticaI Yves d'Évreux, p. 280. 2 P. 279. 3 P. 161. - 141- mente talhados pelos tembés, que figuravam o demonio Kumãpári. Todas as personagens da mitologia dos tembés possuem suas estatuas, erigidas nas casas de dansa. 1 Se a significação dos mourões não me parece bem clara, é certo que as cabeças imitativas do rosto humano, que os pagés conduziam consigo, eram configurações materiais dos espíritos: "o feiticeiro . . . . entra em uma casa escura e põe uma cabaça, que traz em figura humana, em parte mais conveniente para seus enganos"2 (/). O pay começa, então, a falar, mudando sua propria voz para a de menino, "com que os engana, de maneira que crêem haver dentro da cabaça alguma coisa santa e divina, que lhes diz aquelas coisas, as quais crêem". Os feiticeiros "costumam pintar uns cabaços com olhos e boca e os têm com muita veneração escondidos em uma casa escura para que aí vão os índios a levar suas ofertas"3 (g). O espírito, que se julgava habitar nos cabaços, podia apossar-se momentaneam~nte do pagé. "Usam alguns de um cabaço a modo de cabeça de homem fingida, com cabelos, orelhas, narizes, olhos, e boca: estriba esta sobre uma frecha, como sobre pescoço, e quando querem dar seus oraculos, fazem fumo dentro deste cabaço com fólhas secas de tabaco queimadas; e do fumo que sai pelos olhos, ouvidos e boca da fingida cabeça, recebem pelos narizes tanto, até que com ele ficam perturbados, e como tomados do vinho" 4 (h). 1 Nimuendajú (3), p. 1027. 2 Nobrega, p. 22. 3 Informação do Brasil, p. 433. ~ Vasconcelos, p. 101. 142 """'" As cabaças podiam ser mais aperfeiçoadas. Vve~ d'evreux 1 afirma ter visto uma provida de maxilar movei. Como se verá, ao tratar dos mitos agrícolas, esses engenhosos dispositivos visavam a permitir que o boneco triturasse as sementes das plantas, nas quais pretendiam os silvícolas incutir a "força de multiplica-· ção" do "espírito encerrado nesse bonifrate". O espírito morador de tais cabaças era consultado antes de qualquer combate. Escreve o padre Anchieta2 em uma das suas cartas, referindo-se aos índios: "Um dia antes da b;ltalha, fizeram uma pequena cabana, segundo seu costume, onde puseram uma cabaça cheia ao modo de rosto humano, ataviada com plumas; os feiticeiros que fazem isso chamam pagés, para sacrificarIJle e perguntar-lhe do sucesso da guerra" (i). Dessas cabaças às verdadeiras estatuas, não faltava senão um passo. O trecho de Yves d'Évreux,3 reproduzido mais adia.nte, por inteiro, ensina-nos que os tupinambás já o tinham transposto, pois possuíam idolos encarnando provavelmente as almas ·dos ancestrais, comparaveis aos zemes das Antilhas (j): "Falaramme, tambem, de certos barbeiros daquelas regiões, que possuíam choupanazinhas nas matas, nas quais iam consultar os espíritos. Realmente, é frequente, na ilha e suas vizinhanças, edificarem tais barbeiros ou feiticeiros pequenas ocas de palhas nos lugares mais ermos dos bosques, onde põem idolozinhos de cera ou de madeira, de forma humana, uns menores, outros maiores (mas não de mais um covádo). Ao mencionado lug~r •..em determinadOS· dias, vão os feiticeiros, sozinhos, levando consigo fogo, agua, carne ou peixe, fari1 P. 117. 2 P. 317. '3 P. 802. - 143- nha, milho, legumes, penas coloridas e flores. Desses alimentos preparam uma especie de sacrifício, em honra aos idolos, queimando-lhes resinas cheirosas e adornando-os com penas e flores. Lá permanecem os feiticeiros, insulados, por longo tempo; acredita-se que, nessa ocasião, vivem em comunicação com os espiritos". O maracá servia de receptaculo ao espirito. Esse instrumento musical era formado por uma cabaça, na qual se introduziam sementes ou pedras. Fazia o papel dos chocalhos. Conservavam-no na mão, ou fixavam no chão, com o auxilio de uma flecha, que o atravessava de lado a lado e cuja extremidade tinha sido enfeitada com tufos de plumas de arara. A veneração, pela qual era tida o maracá, assim como o se4. carater eminentemente sagrado, repousava na crença de que o seu ruído reproduzia a voz dos espíritos. Provam-nos os textos seguintes: "cada qual tinha na mão o seu maracá, isto é, umas especies de guizos feitos de certo fruto maior do que um ovo de avestruz .... ; e os indios faziam-no soar a todo o momento para que (diziam) o espirito viesse depois a falar com eles'? "Tem esse fruto (refere-se ao maracá) muita honra e reputação entre os selvagens, que o consideram mesmo como o seu Toupan. E os tais profetas, quando aparecem, fazem-no falar lã de dentro, surpreendendo .o segredo dos inimigos ou, como afirmam, recebendo noticias das almas dos mortos queridos". 2 O maracá não era•uma coisa sagrada por si mesmo (k). Os espiritos não se manifestavam por. seu intermedio senão quando o instrumento era antecipa1 Léry, t. II, p. 70. 2 Thevet (1), p. 224. 144- dàmente impregnado por essa força, que só os feiticeiros lhe podiam dar. "Cada homem tem o seu proprio maracá. Ora, há entre os índios alguns indivíduos, chamados Paigy e que são considerados como portadores de boas novas. Esses indivíduos percorrem, anualmente, o país, em visita a ·todas as cabanas, asseverando que estão em contacto com um espírito, vindo de regiões estranhas e longínquas, o qual lhe deu o poder de fazer falar, à sua vontade, os maracás e insuflarlhes virtudes capazes de satisfazer a qualquer desejo dos índios. Cada qual quer, então, que o poder magiêo seja conferido a seu chocalho. E, para tal fim, organiza-se uma grande festa com bebedeiras, canticos e adivinhações, juntamente a varias outras cerimonias curiosas. Em seguida, os feiticeiros marcam o dia em que uma cabana deverá ser evacuada e interdita a mulheres ou crianças. Ordenam, depois, que todos pintem o seu maracá de vermelho e enfeitem-no de penas, apresentando os instrumentos, assim preparados, aos feiticeiros, se quiserem que ·os mesmos adquiram o poder de falar. Isso feito, os pagés dirigem-se para a cabana, acomodam-se em suas extremidades, com os proprios maracás fincados no chão, apresentando-lhes os assistentes os seus, juntamente com ofertas de flechas, penas e penduricalhos para as orelhas (afim de que não seja ninguem esquecido). Quando todos os maracás estão reunidos, o feiticeiro toma cada instrumento de per si e defuma-os com uma erva chamada Bithin petun (l), aproximando-os da boca, agitando-os e dizendo-lhes: - Nee rora (m), agora fala e procura ouvir-me. Estás aí dentro? - Finalmente, os feiticeiros se põem a murmurar em voz baixa, pronunciando algumas palavras que não se percebem de onde saem. Assim, o populacho fica convencido de que foi o maracá quem falou, quando, na realidade, foram os feiticeirm; - 145- que o fizeram. Os pagés procedem, desse modo, com todos os maracás, uns após outros, ficando cada qual convencido de que o seu chocalho tem muito poder. Então, os feiticeiros exortam os índios a guerrear e a capturar os inimigos, porque os espíritos encerrados nos maracás têm gana de comer carne de prisioneiros. E, com isso, se despedem. Em suma, mal os Paygi transformam em ídolos a todos os maracás, toma cada qual o seu, chamando-lhe de seu querido filho e levantando-lhe um abrigozinho proprio. Nesse local os donos levam-lhe alimentos, indagando das necessidades dos maracás, - justamente como o fazemos com o nosso verdadeiro Deus. Os maracás são as suas divindades".1 Léry2 faz alusão .à mesma cerimonia: "Os caraibas vão, especialmente, de aldeia em aldeia, eJ com as mais belas plumagens possíveis, adornam esses grandes chocalhos, chamados maracás (adquiridos de cada família, três, quatro ou mais que encontrem). E, assim enfeitados, fincam-nos no chãa, na ponta da flecha, ao longo ou no meio das ocas, ordenando, em seguida, que lhes seja dado comida e bebida. De maneira que os embusteiros fazem crer aos pobres tolos que essas especies de frutos 0!-1 cabaças, de tal modo vasadas, paramentadas e ungidas, comem e bebem realmente à noite. E, como cada chefe-de-família acredita nisso, nenhum deles esquece de pôr ao pé dos seus maracás não só farinha, carne e peixe, mas tambem a bebida l!e nome cauim. Em geral, deixam os maracás plantados em terra, de quinze dias a três semanas, sempre servidos dos mesmos alimentos, após o que lhes atri1 Staden, part. 11, cap. XXIII. 2 T. 11, ps. 73-74. - 146- buem santidade, trazendo-os sempre na mão e qizendo que, ao fazê-los soar, os espíritos lhes vêm falar". Cada familia tinha, pois, o seu maracá, que nem sempre, como é provavel, era conservado em uma cabana especial, pois Thevet 1 o inclue entre os moveis caseiros. As mulheres é que, verossimilmente, estavam interditas, senão de tocar, pelo menos de usar semelhantes instrumentos. Eram os maracás o accessorio indispensavel de toda festa religiosa e, em particular, das dansas nas quais marcavam o ritmo. Antes de partirem para a -guerra, os tupinambás dansavam com os seus chocalhos, rogando-lhes auxiliá-los na captura do.s inimigos. Os guerreiros levavam-nos consigo, na campanha, dansando e manejando os maracás, todas as vezes que pretendiam auscultar o futuro, ou, mais exatamente, a disposição das forças místicas envolventes. O bom exito de qualquer expedição era atribuído aos maracás. Os índios davamlhes graças, entoando canticos ou executando dansas em honra deles. Conta Staden 2 que, quando éaiu em poder dos tupinambás, estes o conduziram até uma choça, onde estavam os maracás e, mostrando-lh'os, confessaram terse realizado uma das suas profecias. A profecia anunciara a prisão de um europeu. O maracá é instrumento muito espalhado em toda a America, onde se reveste, sobretudo, do carater de um objeto sagrado. · Entre os apapocuvas-guaranis presta o mencionado instrumento tão importante serviço quan~ to entre os tupinambás. "A santidade e a força mis1 (1), p. 224. 2 Part. II, cap. XXVI; part. I, caps. XXI e XXIV. -147- tica do maracá (observa Nimuendajú 1) residem no seu som". Assim, não é aconselhavel falar-lhe desnecessariamente. Esses indígenas irritam-se bastante quando algum estrangeiro faz soar o maracá por mero divertimento. As sementes postas no cabaço não são escolhidas ao acaso: são sementes de uma planta chamada ymaú, tidas como sagradas (n). Os feiticeiros sabem tirar do instrumento em questão sons incrivelmente variados. O medico-feiticeiro chipaia evoca o espírito dos mortos com o auxilio do som do seu maracá.z Foi, talvez, do culto dos maracás que surgiu, entre os tupinambás, a pratica da representação dos espíritos por meio de cabaças. Esse chocalho tomava, às vezes, o aspecto de rosto humano. Staden3 diz, com efeito, que os selvagens abriam, em uma das suas faces, uma incisão à feição de. boca, como se pode perceber na gravura do tal instrumento por ele deixada. O maracá, de simples receptaculo dos espíritos, acabou por se tornar a configuração material dos mesmos. 1 (1), p. 431. 2 Nimuendajú (3), p. 1009. 8 Part. li, cap. XXIII. - 148 NOTAS AO CAPITULO VI (ESTEVÃO PINTO) • (a) Em outra parte da mesma obra, Thevet refere-se a essa pratica magico-religiosa dos tupinambás. Dessa vez menciona o objeto, que os selvagens atiravam na agua - penas de perdiz. De um rito semelhante fala Anchieta (o.c., p. 128): "Por isso, costumam os índios deixar em certo caminho, que por asperas brenhas vai ter ao interior das terras, no cume da mais alta montanha, quando por aí passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras coisas semelhantes, como uma 'especie de oblação". Cf. ainda a p. 331, trecho, aliás, que Métràux cita mais adiante. ( b) A ave agoureira parece ser alguma das do genero Tapera. A Tapera nrevia nrevia L., p. e., tem ·vasta sinonímia: peitica (Nordeste), mati-taperê, matinta-pereira (Amazonia), piririguá, etc. Sobre o assunto, cf. Osvaldo .Orico, o.c., ps. 168-169. (c) Não consegui explicação para essa palavra. (d) A respeito do termo pay, vj. as nota~ ao cap. VII. (e) Há um engano na pagina da obra de Cardim, citada por Métraux. A pagina é a 162. (f) tuguês. O trecho de Noprega vai citado segundo o original por- (g) Idem idem o do autor da Informação, que é, como sabe, Anchieta. -149- ~e (h) Idem idem o de Vasconcelos. (i) O trecho de Anchieta, citado por Métraux, é o da carta pub. nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de .,Janeiro, 'f. III, 1878. (j) A respeito dos primeiros indícios de idolatria entre os tupi-guaranis, leia-se a interessante nota de F. Denis, à ps. 410412 da obra de Yves d'Évreux (ed. de 1874). "Estes (diz Anchieta, o.c., ps. 331-332, referindo-se aos pagés) tambein costumam pintar uns cabaços com olhos e boca e os têm com muita veneração escondidos em uma casa escura para que ai vão os índios a levar suas ofertas". Em uma carta datada de 1551, Pero C_orreia assim se expressa, quase que repetindo os demais jesuítas: "Estes fa?:em umas cabaças à maneira de cabeças, com cabelos, olhos, narizes e boca com muitas penas de côres que lhes apegam com cera compostas à maneira de lavores" (Cartas Avulsas, cit., p. 97). Mas, os sinais de idolatrias deviam ser, a principio, de origem europeia e depois africana. (k) pagé. . O maracá era, realmente, a representação mística do Esse instrumento magico-religioso, especie de chocalho feito de cabaça, assemelhava-se a um melãozinho oco, mas cheio de milho miudo, de grãos negros ou de pedras. O pau, que o atravessava, servia de cabo e, - no dizer de F. C. Hoehne, Botanica e Agricultura no Brasil (Seculo XVI), p. 125, São Paulo, 1937, - essa vareta era feita com a brejauba (Astrocaryum Ayri, Mart.). Thevet (Sing., ed. cit., ps. 321-322) explica que o fruto, que servia de chocalho, era a cohyno (Léry escreve Ghoyne), conhecida no Brasil pelos nomes de cueira, cabaceira ou cuiteseira (Grescentia cuyete L.). ( l) Bithin potun. A frase não passa de uma repetição, pois petun, bet·un, bittin, pytyma, petigma, petume, petim, pitima são formas diversas da mesma palavra, - -150- o tabaco, na lingua tupi. Pitar, pitada, pito parece que se or1gmaram desse nome (Artur Neiva, Estudos da Língua Nacional, ps. 194 sq., São Paulo, 1940). Interessante a nota de Vale Cabral à p. 112 das Cartas de Nobrega (ed. cit.). Na ed. da obrà de Hans Staden, revista e anotada por Teo· doro Sampaio (Rio, 1930), aparece apenas a palavra Bittin. (m) Nee Kora é corno está na ed. de Hans Staden, acima citada (p. 154). Entre parenteses vem a fllrma mais correta nheen coíre. Cuire (agora) e nheen (fala), cf. Stradelli, "Voe.", cit. (n) Mt':traux passa um pouco acima desse assunto, quando trata das drmais tribus tupi-guaranis. Ultimamente, Charles Wagley, - em ensaio publicado no Boletim do Museu Nacional (Nova Serie - Antropologia), n. 3, set. de 1943 - "Xamanismo Tapirapé", - estudou dernoradámente as crenças dos tapirapés, indígenas do grupo tupi-guarani. Entre os tapirapés, os espíritos são de dois grupos: 011 T ancrúnga iúnwera ("almas descorporificadas dos mortos") e os seres malignos de muitas classes e naturezas. Esses espíritos habitam as aldeias abandonadas, "onde revivem suas vidas terrenas". Frequentemente, porem, vagueiam à noite e, sobretudo, nas estações chuvosas, quando então procuram aproximar-se das aldeias, em busca de aquecimento. Em razão disso, as pessoas têm medo de sair, à noite, do recinto d a aldeia. D e quando em quando, os espíritos aparecem aos vivos, assustando-os e, algumas vezes, atirando-Thes "uma substancia semellia nte a ~oeira". Por ocasião dos funerais, os espíritos reunem-se em volta do tumulo para arrebatar a alma do recem-falecido, sendo, nessa ocasião, muito perigoso para os vivos. "Quando um tapirapé niorre, os homens levam consigo facões e espelhos, como proteção contra os espíritos, dura nte a vigília. Se os espíritos se vêem refletidos em espelhos, assustam-se e vão-se embora". - 151- Os principai!l encontros dos tapirapés com os espíritos nrificam-se por ocasião dos sonhos. Os sonhadores visitam-nos, algumas vezes, em sua aldeia, aprendendo com eles canções, etc. Ao fim de certo período, os proprios espíritos morrem, transformando-se, então, em animais (sapos, pombos, rãs, veados, pacaa) .• T Os ancrnnga malignos vivem geralmente nas florestas. E' uma sorte que morem assim tão distantes pois são muito perigosos. Varios deles têm sido destruidos pelos pagés, de modo que alguns desses demonios são agora xerimbabos (animais de estimação) dos tapirapés. - 152- CAPITULO VII O FEITICEIRO Entre os tupinambãs, não era por meio de praticas iniciat·orias ou de treinamento que alguem se tornava feiticeiro; mas por inspiração. Em cada tribu . havia um numero mais ou menos consideravel de indivíduos dotados de poder magico · e capazes de servir-se dessa faculdade. Todos os chefes e pessoas çle idade avançada estavam ao corrente de certos ritos, que tinham a f<lrça de exercer açãÓ sobre outrem, ou sobre o curso das coisas. 1 Mas, se o segredo de tal arte era do conhecimento geral, poucos, entretanto, conseguiam atingir real perfeição. Para tornar-se um feiticeiro de reputação, cumpria dar provas de seu talento. Semelhantes provas consistiam quer em usar determinados passes magicos, quer em ter exito no tratamento de doenças, quer ainda em fazer profecias de exata comprovação. 2 "A revelação do feiticeiro (diz Yves d'Évreux3 ) dependia de algum acidente ou caso fortuito: como, por exemplo, se, anunciando as chuvas, estas caíam imediatamente depois. Se, ainda, 1 Claude d'Abbeville, foi. 326 v. 2 Yves d'~vreux, ps. 8 ld., id. 285~287. - 153- tendo soprado algum doente, o mesmo, porventura, recuperava a saude, - isso constituía um meio de ser logo respeitado e tido como feiticeiro de muita experiencia". O sire de Rasilly possuía, entre os seus suditos, um prestidigitador habilíssimo, que se divertia em embasbacar os índios com a sua destreza. Os tupinambás, imediatamente, deram-lhe o nome de Pagé Ouaiíssou, isto é, o grande feiticeiro. 1 Staden 2 teve igual sorte: por ter, em diferentes ocasiões, à custa de suas preces, apaziguado o mar ou parado as chuvas, acabou por gozar da reputação de feiticeiro-mor. Essa reputação cresceu quando, tendo dito, a um dos chefes indígenas, que a lua o encarava raivosamente, este e todos ·os membros da família caíram doentes. Em cada aldeia, havia alguns feiticeiros titulados, que faziam o oficio de curandeiros e presidiam .às dansas e às cerimonias religiosas comuns. 3 Eram chamados pagis ou pagés e podiam ser considerados os sacerdotes da tribu. Uns tantos dentre eles, toda~ via, adquiriam certa reputação, que os colocava acima da confraria e lhes dava uma situação superior, recebendo o nome de Pagé-ouiíssou, ou de Cardibe, palavra. que os antigos autores traduziam por "santidade ou homem sagrado". Eram com os mesmos que os espíritos, de preferencia, se comunicavam; seu poderio atingia uma força extremamente terrível. Quando alguem estava na iminencia de adquirir força magica acima da dos demais feiticeiros, sua atitude e aspecto mudavam inteiramente. 4 "Quanto mais os feiticeiros conseguiam aumentar a fama de seus suces1 Claude d'Abbeville, foi. 327. 2 Part. I, caps. XXX, XXXVII, XLVII e LXXX. 3 Yves d'Évreux, p. 287. 4 Cardim, p. 162; Informação do Braail, p. 433. -154- so~ (observa Yves d' Évreux 1 ), tanto mais os mesmos afetavam uma gravidade exterior. Pouco falavam , preferindo a solidão e evitando tanto quanto possível as companhias, pelo que acresciam em honra e respeito. E eram os mais chegados aos principais, que lhes fa~ lavam reverentemente, como é do costume nesse país. Ninguem os incomodava. Finalmente, para alimentar tal renome, os referidos feiticeiros erigiam suas choÇas ,àparte, afastadas das dos outros índios". Thevet 2 expressa-se igualmente, quando fala desses feiticeiros: "Tornam-se vagabundos, errando, cá e Já, pelos matos e outros lugares, não retornando, juntamente com os seus companheiros, senão raras vezes e em determinadas horas. E assim fazem crer que se entretêm com os espíritos". Os pay (a) tornavam-se, geralmente, feiticeiros ambulantes, empreendendo longas excursões através das regiões ocupadas pelas tribus de sua raça. O terror e receio infundidos podiam ir até a divinização, por pouco que sua fama fosse bem merecida. Manifestações exteriores de toda especie traduziam õs sentimentos de respeito e submissão, .que suscitavam : "a qualquer parte onde iam eram sempre bem recebidos; acolhiam-nos honrosamente, com canticos, dansas, cauinagens e tantas outras co rtesias imaginaveis" .3 Yves d'Évreux4 e Thevets tive~am ocasião de assistir a <:enas semelhantes. Era tão grande a alegria provocada pela vinda de um feiticeiro de nomeada (relata 1 P . 287. 2 (1), p. 173. 3 Claude d'Abbeville, foi. 326 v.. 4 P. 289. õ (1), p. 174. - 155- o padre Nobrega1 ) , que os índios chegavam a limpar o caminho por onde o mesmo iria passar. Tais manifestações eram, aliás, interessadas. Procurava-se ganhar-lhe a amizade por meio de louvaminha&. "Vereis (diz TheveF) o povareu ir buscá-lo no caminho, prosternando-se e rogando: - Não nos deixeis cair doentes. - E, assim, outras coisas mais". A inimizade dos feiticeiros podia tornar-se um terrível flagelo para a tribu, pois "os índios atribuíam todas as suas desditas às predicas ou pressagias do mesmo" .3 O terror espalhado pelos feiticeiros constituía um meio de aquisição de riquezas, pois podiam eles pedir impunemente o que desejassem. Todas as suas aspirações eram imediatamente executadas.~ Iapy Ouassou, o principal chefe da ilha do Maranhão, tendo caído gravemente doente, 5 atribuía seu mal ao sortilegio de um feiticeiro, com o qual tivera algum mal-entendido e, para desarmar sua colera, enviara-lhe custoso presente. Staden 6 não teve, igualmente, nenhum trabalho em persuadir às suas pretensas vitimas a nada empreender contra ele. Muitas vezes os feiticeiros não se contentavam com simples dons: atreviam-se até a exigir a filha ou a irmã de um membro da tribu 7 e este, por pouco que pareça razoavel, evitava recusar o pedido. Desse modo, os feiticeiros conseguiam, a exemplo dos chefes, numerosas mulheres. Um deles 1 2 3 de que 4 5 6 7 P. 92. (1), p. 174. Claude d' Abbeville, foi. 327. A respeito das honrarias, eram objeto os feiticeiros, cf. Staden, part. I, cap. XXXV. Nobrega, p. 93. Yves d'Évreux, ps ..290-291. Part. 1, cap. XXXV. Soares de Sousa, p. 323. - 156 (diz-se) possuía trinta, cifra jàmais atingida pelo mais rico morubixaba. 1 A autoridade usufruída pelos feiticeiros era incontestavel. "Os pagés nada dizem QU pedem que não seja logo executado por toda essa gente, até mesmo pelas pessoas mais velhas" .2 Todos os cronistas são unanimes nesse particular. Mas, apesar de tal poder, os feiticeiros raramente exerciam a chefia politica, embora haja alguns exemplos de grandes pay à testa da tribu. O barbeiw-mor de Tapuitapera adquirira, em seus territorios e nos dos seus vizinhos, a fama e autoridade de um verdadeiro magico, com o poder de enviar a quem· bem quisesse a doença e a morte. 3 Ou, ao contrario, curava e restituía a saude dos que lhe agradassem. Por esse motivo, alcançQu as funções de cacique, manejando, a seu bel prazer, todos os habitantes da região". Cada uma das duas frações da nação tobajara tinha à sua frente um medico-feiticeiro.4 Cumpre notar, todavia, que todos os sinais de respeito e favores, auferidos por esses bruxos, não os preservavam da morte se, porventura, sua fama decaísse em virtude de falsas predições, ou de curativos mal sucedidos.5 A condição de pay não constituía apanagio exclusivo dos homens. Yves d'Évreux6 refere-se a uma velha mulher, que adquirira enorme reputação em tQda a ilha do Maranhão e à qual se recorria em casos desesperados: "Quando todos os feiticeiros já não Yves d'Êvreux, p. 325. Claude d'Abbeville, fol. 325 v. Yves d'Évreux, p. 290. Id., p. 294. 5 Thevet (1), p. 174. 6 P. SOl. 1 2 3 4 - 157- sabiam o que fazer, então era ela convidada e trazida com segurança, porem .às ocultas". No seu coloquio em língua brasilica, Léryt explica a palavra "Mosseu y gerre'' da seg'uinte maneira ( b): "guarda dos remedios, ou a quem pertencem os remedios; e usam os indios dessa expressão propriamente quando querem chamar feiticeira a uma mulher, ou quando está ela possuída de certo espírito mau, pois mosseu é remedio e gerre é pertença". As principais funções do feiticeiro são enumeradas por Claude d' Abbeville nos termos adiante indicados: "Põem-se, antes de tudo, a predizer a fertilidade ou estiagem dos anos; prometem chuvas abundantes e toda sorte .de bens; fazem, finalmente, crer ao povo que, soprando a parte doente do corpo de qualquer pessoa, esta logo se cura". A atividade do feiticeiro· ultrapassava ainda o quadro estabelecido por Claude d' Abbeville. Deviam eles predizer os resultados de qualquer empresa coletiva ou individual, agir sobre os fenomenos naturais e enviar a doença ou a morte. Os grandes feiticeiros eram capazes de realizar encargos mais difíceis: podiam ressuscitar os mortos, 2 fazer nascer as plantas ou receber alimentos de maneira miraculosa.3 De modo geral, os indígenas certamente atribuiam aos seus feiticeiros todos os acontecimentos desagradaveis, importantes ou não, supervenientes: assim, por exemplo, quando não apanhavam alguma caça nos seus mundéus, os índios julgavam-se vitimas da hostilidade ~e algum feiticeiro. 4 I 2 T. 11, p. 129. Cardim, p. 162. 3 Claude d' Abbeville, fols. 69-70. 4 Anchieta (3), t. li, p. 110. - 158- Não havia nenhuma duvida de que os feiticeiros fôssem capazes de transformar-se, à vontade, em toda espccie de allimal~ pelo menos, acreditavam-no os guaranis, como, aliás, ainda hoje o fazem os seus descendentes. A forma preferida pelos bruxos malvados era a do tigre.' Os chiriguanos crêem tão firmemente na possibilidade, sem limites, do poder de transformação dos feiticeiros que, quando algum tigre ou serpente, animais inofensivos por si proprios, os atacam, julgam aqueles índios ocultar-se algum feiticeiro sob a forma dos mesmos animais.z b poder de feitiçaria provinha das relações com os espíritos. Conta Yves d'Évreux 3 que um pay, convertido ao cristianismo, confessou-lhe que, "quando exercia a pagelança, era visitado por numerosos espíritos galhofeiros." Voavam à sua frente, ao encontrar-se ele na mata, tomando varias cores. Mas não lhe faziam nenhum mal e, por isso, procurava familiarizar-se com os mesmos. Muitas vezes, os proprios espíritos tornavam-se famulos do feiticeiro, que os encarregava de trabalhar em seus roçados. Em mais de um desses serviços domesticos, os espíritos avisavam ao seu senhor a proposito dos acontecimentos futuros, dando-lhes toda sorte de conselhos. 4 Um feiticeiro do Maranhão pretendia "ter a seu serviço um mui bom espírito, amigo de Deus, nada malvado, o qual procurava, pelo contrario, fazer o bem: alimenta-se comigo (dizia), dorme e anda na minha frente, voando, muitas vezes, diante de mim; e, 1 Techo, p. 311. 2 Corrado, p. 50. 3 P. 247. 4 YveJ! d'Évreux, p. 246. - 159 quando chega a epoca de cuidar das plantações, limito-me a marcar, com um pau, a extensão do meu roçado, encontrando, na manhã seguinte, tudo feito" . 1 Outro feiticeiro, da mesma região, "criava em sua casa um morcego, a que os índios chamavam endura (c), o qual lhe falava, em voz humana e na lingua dos tupinambás. E falava tão alto que se podia ouvi-lo a seis passos de distancia, embora confusamente e com o timbre infantil. Respondia-lhe o selvagem, ficando só em casa, pois, quando percebia querer falar-lhe o morcego, despedia a todos . . . . Perguntaram-lhe os franceses como viera a criar e a sustentar esse animal, respondendo o feiticeiro que, certo dia, o seu espírito, quando ele estava só, dissera-lhe iria falar-lhe, doravante, sob a forma desse horrendo passaro. Por isso, preparara um alojamento em sua oca, onde o morcego vinha dormir e repousar, e, quando desejava falar-lhe, escutava-o e respondia-lhe. Esse espírito, quando necessitava comunicar-lhe alguma novidade, chamava-o pelo nome, falando com ele em casa ou no bosque. E mandou o feiticeiro fazer-lhe um ninho, onde o espirito se -recolhia e conversava, sempre sob a forma de morcego. Dizendo isso, mostrou num dos cantos da choça, onde estava o ninho construido d~ folhas de palmeira: Ali (acrescentou) vem o animal falar-me; discorremos juntos, comendo ele o que eu lhe dou". 2 O acontecimento seguinte, adiante narrado pelo mesmo autor,3 põe em plena evidencia o fato de que o poder dos pay dependia, frequentes vezes, do auxilio prestado pelos espíritos: certo feiticeiro esforçava-se, por todas as formas de cerimonias, no sentido 1 I d., p. 138. 2 I d., ps. 294-2{)6. i Id., p. IaB. -160- de provocar as chuvas, mas, como 11 a chuva não aparecesse, apesar de o referido feiticeiro não cessar, dia e noite, de mandar dansar os selvagens, - aos gritos o mais alto possível, afim de despertar o seu espírito, como, outrora, faziam os sacrificadores de Baal, achou o mesmo prudente fazer crer aos índios que estava vendo, realmente, o seu espírito, carregado de chuvas, do outro lado do mar, embora não pudesse aproximar-se, por causa da cruz plantada no centro do pateo da aldeia". Outros exemplos poderiam ser citados, que démonstrariam quanto a maior parte das ações dos feiticeiros dependiam do espírito sobre o qual exercia o mesmo a sua autoridade. "Dizem (os índios, assegura o autor de Informação do Brasil1 ) que têm um espírito dentro de si, com o qqal podem matar, e com isto metem medo" (d). As relações com os espíritos familiares eram isentas de qualquer complicação; mas, havia determinadas categorias de espíritos que só se podiam consultar submetendo-se, o paciente, a diversas prescrições e realizando ele certos ritos. · Os espíritos, cujo acesso era tão difícil, são chamados por Thevet2 de Houioulsira e são, provavelmente, as almas dos mortos (e). Sabe-se, de fato, que os feiticeiros viviam relacionados com os tais espíritos, indo visitá-los JlO alem-tumulo. "Quando se trata de saber alguma coisa nova, de importancia (diz Thevet )3, usatn os indígenas de certas cerimonias e inovações diabolicas, a saber: levantàm, primeiramente, uma choça nova, jàmais habitada, armando dentro dela uma rede branca e limpa; em seguida, transportam para a referida oca grande quantidade de vi1 P. 432. 2 (1), p. 181. a (1), ps. 175-177. Cf. (2), foi. 922 v; ms. inedito, fol. 118. -161- veres, inclusive o cauim (que é a sua bebida ordinaria, mas fabricada por uma donzela de dez ou doze anos) e a farinha de raizes (que os índios usam em lugar do pão); finalmente, depois de tudo assim preparado, o povo, reunido, conduz esse gentil profeta à cabana, onde o mesmo permanece sõzinho, depois que uma das moças lhe der agua para lavar-se. E' preciso notar, entretanto, que, antes do misterio, p pagé deve absterse de relações sexuais com a sua mulher. Isso por espaço de nove dias. Em seguida, quando fica só na cabana e quando todo o povo já se tem afastado do local, estende-se o feiticeiro na rede e começa a invocar o espírito maligno. A invocação dura toda uma hora, havendo ainda outras cerimonias do costume, mas que não podem ser percebidas; de tal modo que, no final do rito, o espírito acaba por chegar, silvando e assobiando (como dizem). Afirmam mesmo alguns índios que esse espírito aparece, em certas ocasiões, na presença de toda a gente. Ninguem o vê, mas se percebe qualquer coisa semelhante a ,um ruido ou uivo. Ao que todos exclamam a uma só voz: - Rogamos-te dizer a verdade ao nosso profeta, que te aguarda lá dentro. As perguntas, com as respectivas respostas, dizem respeito aos seus inimigos, a saber, o que pensam eles, quem terá a vitoria, se alguem será aprisionado e devorado pelos contrarias, otf ferido por algum animal feroz, etc. . . . . Chama-se o espírito hoaioulsira. Isso ·e outros fatos me afirmaram alguns cristãos, que há longos tempos vivem entre os silvícolas. E, principalmente, que os selvagens americanos não se lançam a nenhuma empresa sem ouvir aos seus profetas. Ao terminar o misterio, sai o pagé da palhoça e, sendo logo cercado pelo povo, discorre sobre tudo o que pôde entender". Os medicas feiticeiros possuíam, igualmente, o poder de visitar a região dos mortos, onde entretinham - 162- conversação com os mesmos. Restituíam-lhes, os espíritos, a visita, quando assim o desejavam. As maravilhosas curas operadas pelos feiticeiros eram devidas à ação de algum espírito, que consentia, nessa ocasião, em tornar-se visível. Os doentes, entre os chipaias e apapocuvas, são submetidos, nos dias atuais, aos mesmos tratamentos em uso, no seculo XVI, na costa do Brasil. Assim como seus confrades tupinambás, os feiticeiros apapocuvas e chipaias sopram energicamente o paciente. 1 Nimuendajú, que inquiriu minuciosamente a razão de semelhantes praticas, explica-a como um processo destinado a impregnar o doente de força magica. É assim, tambem, que se pode interpretar a intervenção dos espíritos nas curas operadas pelos tupinambás. Tal força, concebida, talvez, como substancia especial, podia não somente dar a saude ao doente, mas ainda contribuir para o crescimento, o vigor e a coragem de todo ser por ela saturado. Qualquer pay possuidor de grande força mística podia, se o quisesse, fazer participar da referida virtude a outras pessoas. Quando um medico feiticeiro, de elevado renome, tinha realizado certas cerimonias de ordem religiosa ou magica, não se esquecia de convencer os silvicolas de que eles tambem haviam recebido parte de sua "força espiritual". O modo como o medico-feiticeiro chegava a tal resultado tem sido discutido por inumeros autores, dos quais é o primeiro Léry: 2 "Observei que, de quando em quando, tomavam um caniço de quatro a cinco pés de comprimento, em cuja extremidade havia um pouco .de petun, seco e aceso. Rodando o caniço 1 Nimuendajú, (1), p. 352 e (3), p. 1005. 2 T. II, p. 71. - 163- para todos os lados e soprando a fumaça sobre os sélvagens, diziam: - Para que vençais os vossos inimigos, recebei o espirito de força. - E os astuciosos caraibas repetiam a cena por varias vezes". Para Yves d'Évreux,' a "força espiritual", de que Léry fala, é representada pelo proprio espírito, ou demonio, prova da confusão constante estabelecida entre essas duas noções: "Tomou o feiticeiro um grosso caniço oco, que encheu de erva petun, e, acendendo numa das éxtremidades, soprou a fumaça sobr~ os selvagens, dizendo: - Recebei a força de meu espirito, para que sejais sempre fortes e destemidos diante de vossos inimigos" (Est. 11, fig. A). Podia qualquer pessoa tornar-se pay, impregnando-se da força magica contida no sopro de um feiticeiro reputado. "Fazem muitos discípulos comunicando esse seu espírito a outros com os defumar e soprar, e às vezes é isto de maneira que o que recebe tal espírito treme e sua grandissimamente"2 {f). Virtudes especiais eram sem duvida conferidas à fumaça do tabaco, sem o que não se poderia explicar o papel das fumigações usadas nessas transfusões de "mand'. Os tupinambás atribuíam ao tabaco diversas propriedades, entre outras a de esclarecer a inteligencia e conservar, aos que o empregam, "saudaveis e alegres" .3 Os chipaias atribuem, ao fumo, soprado pelo 1 P. 137. cf. id. (Est. II, fig. A), p. 307: "Esses barbeiros de maneira particular comunicam seu espírito aos outros: por meio da erva petun, introduzida em um caniço, cujos fumos os feiticeiros expelem sobre os assistentes, pela boca e através do caniço, excitando-os a receber o seu espírito e a sua virtude". 2 Informação do Brasil, p. 432. 3 Yves d'Évreux, ps. 110-111; Thevet (1), p. 11!8. - 164- medico-feiticeiro sobre o paciente, o dom de reforçar o poder magico de seu halito.• Fig. 2 - Indios tupinambás fumam, reunidoS; em conselho (segundo Sta,den). Os antigos guaranis acreditavam, .à semelhança dos tupinambás, na força potencial contida no corp6 dos fei-ticeiros, os quais estavam tão convencidos disso que 1 Nimuendajú (3), p. IOOIS. - 165 julgavam poder dar morte ao inimigo cuspindo-lhe no rosto.' Entre as funções do feiticeiro tupinambá, figura ainda a de ouvir as mulheres em confissão, parecendo dar muita importancia à estrita observancia desse costume, de finalidade desconhecida. "0 pagé-mor da província de Comã ia visitar, quando lhe aprazia, as aldeias sob o seu domínio, recomendando que todos fõssem confessar-se a ele, especialmente as mulheres moças, casadas ou solteiras. E quando encontrava alguma que recusava a dizer-lhe tudo, ameaçava-a com o seu espírito, isto é, que havia de atormentá-la, pois tinha bastante finura para saber ocultar-se em qualquer coisa. Dava às mulheres, depois, uma especie de absolvição, embora nem sempre guardasse os seus segredos; apesar disso, sempre exerceu o seu oficio de confessor, pelo menos até o tempo da nossa chegada. Imaginai, agora, quem lhes ensinaria essa maneira de confissão auricular, por meio da qual ameaçava de castigo os seus semelhantes (no caso de ocultarem alguma coisa de seu espírito), ou absolvia-os (se revelassem tudo ao referido espírito)" .2 Segundo o padre Nobrega,3 essas confissões não eram somente feitas ao feiticeiro, mas estavam em estreita relação com os deveres dos indígenas no que concerne .àquel4 personagem. Logo que era anunciada a vinda dos pay afamados, "antes que chegassem ao lugar, andam as mulheres de duas em duas pelqs casas, dizendo publicamente as faltas que fizeram a seus maridos umas às outras, e pedindo perdão delas" (g). Como se vê, a confissão era assunto pe1 Montoya, p. 49. 2 Yves d'Évreux, p. 309. 3 P. 92. - 166 -- culiar às mulheres 'e dizia respeito, talvez, às violações das prescrições referentes à vida sexual. Há outra cerimonia, presidida pelos feiticeiros, cujo sentido não parece claro: "É costume.,dos pagésaçus celebrarem, em certas epocas do ano, lustraçõés publicas, isto é, purificações supersticiosas, por aspersão de agua sobre os selvagens. Se bem que tudo dependa da sua imaginação, pois fazem tais abluções ao seu mero capricho, todavia, a cerimonia consiste ordinariamente em encher grandes potes de barro, proferindo secretamente algumas palavras à sua superficie e soprando dentro deles· fumo de perun. Depois, untando-se com um pouco de pó. que guardam em casa, os índios põem-se a dansar. Finalmente, o feiticeiro, tomando um ramo de folhas, que mergulha nos potes, asperge, com o mesmo, a companhia. Isso feito, toma cada qual dessa agua em cuias, ou escudelos de pau, com ela banhando a si e a seus. filhos:" 1 (h). Não é de estranhar que essas lustrações tivessem sido ordenadas pelo feiticeiro, afim d·e pôr os seus fieis ao abrigo do ataque das doenças. Diz Claude d'Abbevillez que, quando falecia alguem, aconselhava o feiticeiro lavarem-se todos os habitantes da aldeia. Os accessorios, de que se servia o feiticeiro na pratica de sua arte, consistiam simplesmente em uma cabaça pintada ou esculpida, em forma de cabeça humana. Conforme já tive ocasião de dizer, esse objeto representava provavelmente um espírito. Tinha o mesmo o encargo de revelar e anunciar ao feiticeiro os segredos do futuro. Era aspirando o fumo, saído através dos orifícios feitos na mencionada figura, que o feiI Yves d'Évreux, p. 306. 2 Foi. 325 v. - 167- ticeiro caía em estado de transe. E tudo faz supor que os maracás deviam ser tão indispensav'eis quanto aquelas cabaças1 (i). A mis,~ en scene requerida pelos atos do feiticeiro parece ter sido muito simples, pois a cabana solitaria, na qual oficiava, não exigia nenhum arranjo especial. Certos pay contentavam-se com a abertura feita em uma arvore, pela qual escutavam as respostas dos espiritos. 2 Outros "faziam buracos em choças apartadas e, nelas, os feiticeiros, deitados de ventre no chão, fechavam os olhos e metiam a cabeça nos referidos buracÇ)s, fazendo perguntas ao demonio e recebendo a resposta através de uma voz vinda do fundo" .3 Alguns feiticeiros não hesitavam em empregar certos dispositivos engenhosos, destinados a íludir os clientes. Um deles adquirira muita reputação, conseguindo, de maneira miraculosa, qué irrompesse agua, proveniente de uma cana de bambu cuidadosamente dissimulada na oca.~ Esses pequenos embustes entretanto, não devem fazer pensar que os feiticeiros não tinham fé na eficacia das suas praticas. Numerosas anedotas poderiam ser extraídas das cronicas antigas, que provam inteiramente a credulidade dos feiticeiros. O feiticeiro não se distinguia dos demais índios por nenhum sinal exterior; sua qualidade denuncia-se apenas pelos proprios atos. Mas é possível que o mesmo exigisse determinado cerimonial por parte das pessoas em sua volta. O feiticeir-o português, que conduziu .os potiguares na infeliz aventura, da qual tratarei 1 Vasconcelos, p. 101. .2 Claude d' Abbeville, foi. 826. 8 Yves d'Évreux, p. 800. -t. I d., p. :106. -168- mais adiante, se fazia carregar sobre duas espadas cruzadas. Quando os oficiais franceses reconheceram a visita do grande feiticeiro Pacamont, não se surpreenderam pouco, vendo-o chegar escanchado no pescoço de sua mulher. A mulher estava pintada de preto. 1 Em todas as tribus do grupo t1;1pi-guarani, o feiticeiro gozava (e ainda hoje goza) de extraordinaria autoridade e consideração. O papel, que o mesmo desempenhou na historia post-columbiana dessa família, convence, por si só, dessa verdade, independentemente dos inumeros testemunhos deixados pelos viajantes. E independentemente das tradições Iegendarias dos tupiguaranis, que tratam quase por exclusivo dos milagres realizados pelos medicos-feiticeiros nos tempos antigos. Os guaranis tinham levado tão longe a veneração por seus feiticeiros que até lhes pr~stavam culto aos restos mortais. Possuíam, em lugares afastados, cabanas especiais, onde guardavam as ossadas dos feiticeiros poderosos. Os mortos repousavam em suntuosas redes, recobertas de tecidos de penas; multidões vinham consultá-los, "adorando-os" e trazendo-lhes ofertas. Em certas ocasiões, esses mortos ilustres "ressuscitavam e viviam em carne e osso". Suas profecias e ordens eram consideradas infaliv"eis, exercendo sobre as colheitas influencia benevola. "Havia nesse templo muitas oferendas de frutas indígenas, que pendiam do tecto e dos postes em lindos balaios. O sacerdote comia parte dos presentes e repartia o restante pelos lavradores, que os consideravam uma benção para os seus cam- pos"-.2 I Yve3 d'Évreux, p. 826. 2 Montoya, caps. XXVIII-XXIX; Jarque, t. II, ps. 71-711 - 169- NOTAS AO CAPITULO VII (EsTEvÃo PINro) (a) Pagi, pay, payni, paié, paé, piaccé, píaché, pautché são variações da mesma palavra - pagé. "Os feiticeiros a que se refere o autor eram nas tribus tupis os pagés, vocabulo que se explica etimologicamente por pa-yé, aquele que diz o fim, o profeta. Era o medico, o cu:candeiro, o magister artium, o barbier dos autores franceses" (notas de Rodolfo Garcia à pag. 293 dos Dialogos das Grandezas do Brasil). José Verissimo e A. Gonçalves Dias usaram piache, corruptela de epiaga, gerundio-supino de epjac, o "vidente". E' possivel que a instituição do pagé tenha uma base mais ampla do que a da cultura chamada amazonica, como o demonstrou o nome piaché, peculiar às AnJilhas, e o nome payni, que é o feiticeiro mexicano. "De qué origen racial fuera este hombre de medicina y dónde se elaboraran sus conocimientos y sistemas, no e$tá definitivamente averiguado, pero de seguro no nació en el ambiente Tupi, dentro del cual fué nombrado Pay o Caraibe", ·- diz J. Imbelloni (cf. Ramón Pardal, Medicina aborigen americana, ps. 17-18, Buenos Aires, sjd.). Gabriel Soares de Sousa, que viveu no Brasil pelos fins do seculo XVI, ao descrever a figura do "feiticeiro" dos tupinambás, interpreta bem o pensamento promedio dos escritores daquela centuria. "Entre esse gentio tupinambá (diz Gabriel Soares de Sousa) há grandes feiticeiros, que têm este nome entt:e eles, por lhe meterem em cabeça mil mentiras; os quais feiticeiros vivem em - 170 casa apartada cada um por si, a qual é muito escura e tem por muito ·pequena, pela qual não ousa ninguem de entrar em sua casa, nem lhe tocar em coisa dela; os quais, pela maior parte, não· sabem nada e para se fazerem estimar e temer tomam este oficio, por entenderem com quanta facilidade se mete em cabeça a esta gente qualquer cois·a. . . . A e~tes feitiCeiros chamam os tupinambás pagés". F A noção do pagé como feiticeiro, ignorante e mentiroso, em· bora astuto, que fazia misterio em torno de sua vida, somente com o objetivo de receber honrarias, ou fazer-se temer dos .demais, - é, de certo modo, incompleta e falsa, sendo já tempo de submeter-se esta estranha figura a um exame mais acurado da critica moderna. O pagé ou pay (mago, sacerdote, curandeiro, xamã, etc.) constitue, naturalmente, uma remota instituição social e surgiu, na frase de Roquette Pinto, com o "velho", isto é, com a classe dos indivíduos experimentados nos. segredos e vicissitudes da vida (Seixos Rolados, p. 155, Rio, 1937). Mas é p_reciso notar que, embora, por isso mesmo, comum a todos os grupos primitivos da America, em nenhum deles adquiriu essa entidade uma expressão tão original quanto entre os tupi-guaranis e, consequentemente, entre os tupinambás. 9 pagé tupinambá, segundo já observou Métraux, nascia como que predestinado. Não se improvisava. "Só os fortes de coração (diz Stradelli, referindo-se aos tupis em geral), os que sabem superar as provas de iniciação, os que têm folego necessario podem aspirar a ser pagés. Com menos de cinco folegos não há pagé que possa enfrentar impunemente as cobras venenosas. Os pagés, que têm de sete folegos para cima, lêem claro no futuro, curam à distancia, podem mudar-se à vontade no animal que lhes convem, tornar-se invisive.is e se transportar de um lugar para outro com o simples esforço do proprio querer" ("Voe.", cit., p. 585). Em suma, pagé não era qualquer um. E' verdade que, algumas vezes, o feiticeiro ignora o seu proprio - 171- poder magico, que não raro se revela insolitamente. E, talvez, por isso mesmo, a magia n!ío constituía privilegio dos homens, havendo até, entre os tupinambás, velhas mulheres com o apanagio dos pagés (curar molestias, adivinhar o futuro, etc.). O já mencionado Hans Staden chegou a presenciar uma cena do ritual, por meio da qual os tupinambás i!westiam as mulheres na dignidade de pagés. Ainda pelo mesmo motivo de o poder magico manifestar-se, em alguns casos, extraordinariamente, é que se explica, talvez, a frase de Évreux, a saber, de que muitos indios procuravam aprender esse "oficio", atraídos pelas suas honrarias e vantagens. Agora, passar o pagé, de mero curandeiro, para a categoria ' de caraiba, de 8antidade, de pagé-açu (o Pagé Ouaãssou ou Pagéouiissou dos cronistas),- aí a coisa se tornava mais difieil. Léry quis fazer crer que o pagé não passava de uma criatura de genero diverso do do caraiba. Foi um erro desse calvinista. Todo caraiba era pagé, embora nem tocío pagé fôsse caraiba. Marcgrave compreendeu bem essa diferença. Os caraibas (explica Léry) eram falsos profetas, que andavam de. aldeia em aldeia, como os tiradores de ladainhas, infundindo a crença de que se comunicavam com os espíritos, ou de que podiam, com as suaf! artes, dotar os índios do poder de derrotar os seus inimigos ou, ainda, de que tinham a força de fazer crescer as plantas. Do ano em ano, os tupinamb.ás recebiam solenemente os caraibas. O referido Léry presenciou a uma dessas xangozadas, nas quais as mulheres e crianças se recolhiam às ocas, enquanto os silvícolas faziam roda, cantando em tom monotono, em torno dos caraíbas, recobertos de ricos mantos e adornados de sobreiros. Ao dansar, os caraibas ora tangiam o maracá, ora avançavam e sopravam fumaça por meio de um canudo cheio de tabaco. A cerimonia era, alem disso, regada a cauim, a bebida magica por excelencia dos tupi-guaranis. Convem observar, demais, que aEf mulheres, embora segregadas da bacanal, repetiam, até desmaiar, o estribilho do canto ao mesmo tempo que, como posse!!sas, urravam, espumavam e agitavam os seios. -172- Os earaibas eratn aS mei!ínas 8antidades dos cronistas por1:1lguet!es. Por onde passayam, graves, pouco comunicativ03, seguiam-nos todos. Nada lhes faltava e dispunham de quantas mulheres quisessem. Acolhiam-nos, como já se viu, com dansas, cantos e vinhos. E até limpavam-lhes o caminho por onde tinham de passar. Assim o diz o padre Manuel da Nobrega: "De certos em certos anos· vêm uns feiticeiros. de mui longes terras, fingindo trazer santidade e ao mesmo tempo de sua vinda lhes mandam limpar os caminhos e vão recebê-los com dansas e festas" (o.c., p. 99). Outro jesuíta, o padre José de Anchieta, quase que repete o seu companheiro de apostolado no ,Brasil: "Cada um destes feiticeiros (a que chamam santidade) busca uma invenção com que lhes pareça que ganhará mais, porque todo este é seu intento, e assim um vem dizendo que o mantimento há de crescer por si, sem fazerem plantados, e juntamente com as caças do mato se lhes hão de vir a meter em casa. Outros dizem que as velhas se hão de tornar moças e para is,so fazem lavatorios de algumas ervas; outros dizem que os que os não receberam se hão de tornar em passaros e outras invenç,ões semelhantes" ( o.c., p. 331). Tambem os jesuítas Antonio Pires e Leonardo do Vale fazem referencias a essas "santidades" (CáftM Avultai, cit., ps. 122 e 382; Serafim Leite, Hist., cit., II, ps. 21, cit.). Acabando a santidade de falar, os índios começavam a tremer, principalmente as mulheres, as quais, deitando-se por terra e escumando pela boca, parecem, no dizer de N obrega, como que "demoniadas". Esses eram os grandes pagés, os pagés santos, os pagés com poderes fora dos comuns à sua classe. Os 'tupinambás, realmente, se julgavam, algumas vezes, perseguidos e -atormentados pelos demonios, ou espíritos malignos. Léry procurou reproduzir uma dessas cenas diabolicas. As funções dos pagés, eram, como é evidente, muito complexas. Naturalmente, que uma das atribuições precípuas dessas personagens misteriosas tinha de ser curar os doentes, Sobretudo se havia necessidade de extrair o quid maligno. O sopro, a - 173- sucção, a fumigação, as sangrias e outros ritos ou praticas constituíam um dos apanagios dó pagé. Dõ mesmo- modo, a aplicação das drogas e plantas medicinais costumeiras. Enumerando as habilidades dq pagé como cirurgião,Jd~ti-~\. referindo-se aos índios do Brasil em geral, escreve: "0 pagé para isto (isto é, para as escarificações) se ·utiliza da ponta aguçada do bico de gavião ou do tucano ~do ferrão da arraia. A sangria é feita com este ferrão ou com o dente afiado do coati; varias tribus situadas a leste do Brasil, por exemplo os coroados, os puris e os botocudos, a praticam atirando sobre a veia, por meio de pequeno arco, uma flechazinha, cuja ponta é um fragmento de cristal da rocha. Em geral, escolhem uma veia da panturri!ha, raramente do cotovelo ou da fronte" (Natureza, Doenças, Medicina o Remedios dos Indios Brasileiros, ps. 281-282, São Paulo, 1939). Nas dores. de dente (acrescenta aquele etnologo alemão), o pagé emprega a punção da gengiva e, na imobilização dos membros fracturados, usa-se uma bainha, em forma de goteira, feita com as palmas do açaí (Euterpe edulia Mart., ou E. oleracea. Mart.). Em suma, quer pelo émprego dos processos experimentais, quer pelo emprego dos cprocessos magico-religiosos, o pagé não deixa de exercer .,as funções de medico-feiticeiro (o Za·!fberarzt dos alemães, o medicine-man dos americanos, o magicien ou barbier dos franceses). Comunicar-se aos espíritos, ou ao diabo, eis outra das funções ou predicados do pagé, assunto esse suficientemente tratado por Métraux, observando-se que, frequentemente, a comunicação é feita por intermedio do maracá. Naturalmente que o poder de comunicar-se aos espíritos elevavà o pagé tupinambá à categoria de xamã. O xamã, na exata definição de Herbert Kõnig, caracteriza-se pela faculdade de falar aos espíritos, sobretudo nos momentos de seus transportes ou extases ("0 xamã e o medico-feiticeiro", em Actas Giba,, n. 12, Rio, 1939). Ou, como explica Robert H. Lowie, o xamã é uma - 174- especie de medium, que tem o · dom de relacionar-se com o sobr~­ natural e servir-lhe de interprete (Manuel d'Anthropologie cutturelle, p. 837, Paris, 1936). ~ extase do pagé, entre as tribus tupi-guaranis, é um facto confirmado por algumas testemunhas, empregando att!, esse feiticeiro, "como coadjuvante da pratica medica, para entrar em transe, o uso de ilusogenícos ou estupefacientes designados genericamente pelo nome de Kurupá" (R. Pardal, o.c., p. 9·l). Essa planta é identificada com o nosso paricá (Piptadenia peregrina Benth., ou Piptade-nia ma.crocarpa Benth.). Naturalmente, se o pagé tinha o poder de comunicar-se aos espíritos, tambem não lhe faltavam forças para transformar-se em certos animais. Uma das formas prediletas do pagé era a da onça ou jaguar, pelo menos entre os chiriguanos e os guaraius. Outro dos predicados do pagé era fazer prosperar os meios de subsistencia da comunidade. Os depoimentos de Nobrega e Anchieta dão bem uma idéia dessas funções. Aí o pagé, já feito uma santidade ou caraiba, prenunciava a abundancia da caça e da colheita. Trabalho, não era mais preciso. Léry tambem afirma que os caraibas persuadiam os tupinambás de que podiam fazer crescer as raízes (isto é, o aipi, a mandioca, etc.) e demais frutos comestiveis. "Estes curandeiros (salienta Abbeville) .... são muito estimados pelos barbaros.... Dão-lhes o notne de pagé, curandeiro ou feiticeiro. Predizem a fertilidade e a l!ecura da terra e prometem muita chuva e todos os bens". Ainda mais: tambem cabia ao pagé a direção de certas cerimonias religiosas, como aquela presenciada e descrita pelo calvinista Jean de Léry. Yves d'Évreux, cita~ ·por Métraux, refere-se a um desses rituais magicos a que chama de "lustrações publicas". Tais rituais consistiam em purificações com aspersão de agua, extraída de um pote adrede preparado (o pagé murmurava, junto à agua, palavras misteriosas, defumando-a em ~e- - 175- guida). Após aspergir-se a agua lustra) aobre os drcunatantes, seguia-se a ablução. O poder de lançar a morte era outro dos apanagios do pagé. Marcgrave assim o atesta, referindo-se aos potiguaras. Thevet tambem afirma que os tupinambás, quando desejavam morte a alguem, procuravam, para tal fim, os seus pagés. Não devemos esquecer, entretanto, que o pagé era tambem uma especie de conselheiro e legislador, embora exercesse, menos frequentemente do que os demais, essas funções políticas. Sendo o pagé uma entidade, segundo já se disse, emanada da classe dos indivíduos experimentados, nada mais natural do que a sua elevação, em alguns casos, ao cargo de morubixaba. Eram os anciãos que exerciam, entre os tupinambás, a hegemonia política. Aliás, o morubixaba era uma autoridade não raras vezes. apenas nominal, - o que vinha facilitar a fusão de ambos os cargo~. Em suma, o pagé tupinambá era uma personagem complexa, aliando, algumas vezes, as suas funções de curandeiro e de medicintt-man (medicine-man no sentido que lhe dá Gusinde) ao de chefe político. Mas há um aspecto do estudo do pagé tupinambá que precisa ser ventilado. Os grandes pagés, ou caraibas, adquiriam, não raras '!ezes, entre aqueles povos primitivos do Brasil, a atitude de "homens-deuses". A psicanalise já observou que a crença de ser deus é um complexo comum a todas as camadas culturais e caracteriza-se: a) pelo desejo de retraimento e inacessibilidade (ou seja, a vontade de tornar-se misterioso); b) pela fé na propria ol)ipotencia ou oniciencia e consequente repulsa· em face de qualquer ideia n"o~a; c) pelo poder de predição; d). pela convicção de ser imortal; e) pela visão de um mundo melhorado ou ideal. A essas fantasias neuroticas, podem ser acrescentadas ainda outras, como, por exemplo, a crença de que o homem-deus se comunica aos "espíritos", ou às entidades sobrenaturais, a 17()- quem procura imitar, ou com quem tenha empenho em identificar-se. Todas as características estudadas pela psicologia profunda, no complexo do homem-deus, encontra-se, tambem, perfeitamente esboçadas na figura do pagé. O deliejo de segregar-s.e (ser inacessível ou inviiivel) era um costume peculiar aos carâibas tupinambái. Só apareciam de certo!! em certos anos, como já notara Nobrega, ou "de ano em ano", segundo diz o padre Antonio Pires. Moravam em casas apartadas, ou em grutas sombrias, cuja exígua entrada ninguem ousava transpor (G. S. de Sousa, Vicente do Salvador, Fernandes Gama, Yves d'Évreux). Quando se hospedavam nas aldeias, metiam-se ~m ,choças escuras; se pretendiam falar aos espíritos, buscavam o concavo das arvore,, os recantos das taperas solitarias, os bosques ou lugares ermos. Sua onipotencia evidenciava-se na faculdade de "lançar a morte" a quem quer que lhe caísse no desagrado: o mísero, assim atingido pelo anatema, metia-se na rede e fmava-se de pasmo. Quem tudo podia,' era, naturalmente, oniciente. Tal a causa da hostilidade com que os pagés recebiam qualquer inovação. Essa hostilidade traduzia-se numa guerra aberta aos jesuítas. O poder de profetizar ( anunciar abundancia ou secas, prometer chuvas) nllo passava de um aspecto da oniciencia. O pagé que cafa em descredito, qu não satisfazia as aspirações da tribu, era, por assim dizer, executado. Thevet e- Cardim não escondem essa circunstancia, Mas essa execuçllo representava uma especie de punição, pois, em geral, a imortalidade estava incluída entre os predicados dos grandes pagés. A imortalidade erá condição que se adquiria à custa de solidão e de abstinencia: foi mesmo ~sse objetivo a causa de varias migrações tupicas em demanda da "terra sem mal". Realmente, a visão de um mundo ideal consistia na ultima e na maii importante das caracteristicai do homem-deus. E foi cotp. " objeth'o de alcançar iemelhante paraillo, que os tllpi-lfU&rallia (tu• - 177- pinambás, apapocuvas, tanhiguás, etc.) empreenderam numerosas migrações, exaustivamente estudadas por Métraux, as quais cons• titulam verdadeiras histerias coletivas ou psicoses gregarias. E' incontestavel que os pagés ou caraibas tupinambás provocavam essas histerias coletivas, a crer no depoimento dos jesuítas: "Pelo sertão anda agora um (depõe,o padre Anchieta, refe~ rindo-se aos pagés), ao qual todos seguem e veneram como um santo. Dão-lhe quanto têm .... ; aonde quer que 'Vai o seguem todos, e andam de cá para lá, deixando suas proprias casas". E, assim, muitos outros autores. Era esse um dos mais estranhos aspectos da vida, já de s.i tão complexa, do pagé, ou medico-feiticeiro dos tupinambás, que eu desejava. salientar bem no presente comentaria. Em suma, os pagés, isto é, os grandes pagés ou caraibas podiam identificar-se com os proprios deuses ou ancestrais míticos, assunto esse que já foi objeto de precioso estudo de Métraux ("Les hommes-dieux chez Jes ChiriguanO' et dans l'Amérique du Sud", em Rev. del Inst. de Etn. de la Univ. Nac. de Tuc., II, ps. 61-92, Tucumán, 1931. A monografia de Martin Gusinde, a quem me referi acima, é "0 médico-feiticeiro entre os índios da America do Sul", em ..tlctas Giba, ps. 375-380, n. 12, 1939. Em relação ao assunto, cf. ainda "0 bari, o medico-feiticeiro dos boróTO!"• de. Maciel de Sousa, rev. cít., ps. 348-349, n. 12, 1941. Notas sobre· os feiticeiros, entre os guaicuros, a.bipones, chiriguanos, etc., encontram-se em Pedro Lozano, Descripción corografica del Gran Chaco Gualamba, Tucumán, 1941. Idem, em Florián Paucke, Hacia allá y para acá (referentemente a.os macobis), 11, ps. 248 sq., clt. Há tambem, como já se viu, um estudo de, Métraux, recente, sobre o assunto: Le shamanisme chez les Indiens du Grau Chaco, cit. -178- Estudo exaustivo do xamanismo, entre os tapirapés, .fez Charles Wagley, "Xamanismo Tapirape", cit. Seglmdo Wagley, oa principais encontros entre os feiticeiros e os espíritos ou demonios são realizados por intermedio dos sonhos. O sonho é a fonte do poder xamanico. Os pagés menos poderosos sonham ao nível da terra; os mais fort~s viajavam pelo ceu. Acreditam os tupirapés que a doença é serrq1re obra de feiticeiros e, por isso, muitos dos seus pagés são mortos por vingança. O tabaco é planta sagrada e necessaria em todas as atividades do xamanismo; contudo, o mais frequente metodo de curar é extrair o objeto 'ma~ ligno por sucção. Tambem o pagé tapirapé emprega a borificação da agua, a que se adiciona mel, aspergindo o dQente com a boca. Cabe aos pagés proteger a população conlra os espíritos, controlar a gestação das mulheres, purificar os alimentos, etc. A segurança dos homens, quando estão na caça ou na pesca, depende dos pagés. Deles tambem depende a abundancia alimentar. Florestan Fernandes, o. c., ps. 73 sq. e 283 sq., estuda tam' bem exaustivamente a figura do pagé, despertando a atenção para um dos .seus privilégios, """" o transito livre, isto é, ·b direito de. locomover"se livremente e até penetrar em territorio inimigo. Florestan Fernandes, refutando a teoria de Edgon Schaden (Ensaio Etno-Bociologico Sobre a Mitologia Heroica de Alguma/! Tribus Indígenas do Brasit'', cit.), ou seja, a de que o poder político dos pagés baseava-se em suas forças sobrenaturais, defende o ponto de vista di: que, nos casos dos chefes tribais com funções tambem de pagés, deve-se admitir que a qualificação antecedia ao exercício das atividades magico-religiosas. E acrescenta: "Alem do material já exposto, alguns exemplos e algumas considerações sobre o principio gerontocratico ela organização social servirão para comprovar a existencia dessa teoria. Doutro lado, é obvio que o chefe que conseguia sucesso nas atividades curativas recebia um incremento equivalente em seus dotes cari~­ maticos". - 179- ( b) Aliâs, mosã. Jrfoaã, poati, poháng, etc., silo variantes graficas de mõ-áng, animar, tornar siio, remediar (diz Plinio Ayrosa, em Léry, o.c., p. 273). Iguara é melhor forma de gerre. (c) Aliás, andirá (Stradelli, "Voe.", cit., p. 265). ( d) O trecho de Anchieta vai citado .de at:ordo com o original portuguê§. (e) H ouioulsira. Cf. a terminação irá ou andirá (morcego), guirá (passaro). Yves d'Évreux (a.c., p. 250) fala de certos passaros agourentos, que vivem com o "diabo" - os uirá jeropari, passaros do diabo. (f) Outro trecho de Anchieta, citado conforme o original português. Métraux ordenou a tradução. (g) O trecho do padre Nobrega é citado de conformidade com o original português. (h) Parece tratar-se, aqui, de um sincretismo religioso. Os tupinambás tinham adotado o costume de aspergir os fieis com agua benta. Não duvido, tambem, de que a praHca das confissões teria sido resultante desse sacramento, tão usado e praticado pelos j es uitas. ~ (i) As cabaças, de que fala Métraux, eram os proprios maracás, despojados de seu cabo e pintados ou munidos de olhos t- bocas. A gravura, deixada por Hans ~taden, induz a essa conclusão. - 180- CAPITULO VIII O TRATAMENTO DAS DOENÇAS Como todas as molestias eram causadas por sortilegio, cabia aos feiticeiros o seu tratamento. Os mesmos conduziam-se exatamente como os medicos-feiticeiros, em geral, das regiões equatoriais da America do Sul, começando por soprar energicamente o doente, fumigá-lo em seguida e, enfim, "sugar a parte molesta para extrair-lhe o mal". Yves d'Évreux1 descreve muito vivamente os seus metodos: "vê-lo-eis sugar pela boca, tanto quanto lhes é possível, o mal do paciente, mal esse que, segundo dizem, fazem passar para ·a sua boca e garganta; isso, inchando muito as bochechas e repelindo, de um só jato, com estampido igual ao de um tiro de pistola, o vento aí contido. Em seguida, escarram com muita força, dizendo ser isso o mal extraído e assim se esforçando por fazê-lo crer no doente". De ordinario, os feiticeiros mostravam alguns objetos - lascas de osso ou de madeira - que diziam terem sido introduzidos no corpo do paciente por algum inimigo, Após o doente ser "soprado" e sugado, pintavam-no 1 P. 308. Cf. Claude d'Abbeville, foi. 325, Thevet (1), p. 234; Léry, T. II, p. 116; Informação do Brasil, p. 441; Nobrega, p. 93i Soares de Souêa, p. 328; Thevet (2), foi. 935; etc. - 181- de jenipapo. Se o mesmo gritava, ou estertorava, era a sua alma (diziam os tupinambás) que estava a gemer.1 As mulheres (afirma-o Thevet2) "agem diferentemente, isto é, introduzem um fio de algodão, do com- Fig. 3 - Tratamento de um doente. 01 feiticeiroa sopram-no e uma mulher suga-o por 7116ÍO de certo fio pre~o ao braço do paciente (aegu'fido Thevet) . 1 Thevet (2),. fol. 935. Do mesmo modo, quando embriagados pelo alcool, afirmavam os índios que era a sua alma quem estava a alegrar-se. Cf. Thevet (2), p. 924. 2 Ms. inedito de Thevet, fol. 85: "Se acontece alguem ferir incidentemente a seu amigo, ou companheiro, terá ele de sugar a chaga, como satisfação da injuria, até que ªe faça a cura". Cf. iguahnente Tbevet (1), p. 235. - 182 primento de dois pés, na boca do paciente, pelo qual, depois, chupam, esperando assim extrajr o mal do doente". Para afastar as molestias, recorriam os indios, tambem, às escarificações, praticadas por intermedio de dentes de cutia ou de piranha. Qualquer que fôsse o tratamento, o doente deveria permanecer em quarentena e privado dos alimentos. Ninguem podia dirigirlhe a palavra. 1 Se alguem feria a outrem, estava o mesmo obrigado a sugar-lhe a chaga, até que sobreviesse a cura. Em ambos os casos, culpado e vitima deviam, então, observar alguns tabus alimentares 2 (a). ·1 (2), foi. 935. 2 Thevet (2), foi. 935; 183- NOTAS AO CAPITULO VIII (o) A terapeutlca dos tupi-guaranis consistia em processos complexos, em que os elementos ma~ico-religiosos nem sempre se distinguiam dos conhecimentos experimentais de ordem, por assim dizer, científica. ·Entre as praticas medicinais, em que o misticismo contribuía com a sua maior do~e, podemos salientar as seguintes: a sucção, o ~opro, a fumigação, o jejum ou· ab1tinencia, as incisõe1 ou 1angri':" e a pintura. Sobre a sucção falam os autores cit. por Métraux. Algumas vezes, procurava o curandeiro extrair do corpo do doente peda· cinhos de pau, espinhos, ossos, etc. Assim, o afirma Gabriel Soa· res de Sousa, referindo-se particularmente aos tupinambás. A doença passava a ser, desse modo, alguma coisa suscetível de conversão e que se podia encerrar em receptaculqs especiais (as caixinhas magica10 dos chipaias e curuaias). Ramón Pardal, que escreveu uma bela pagina sobre a extração do quid misterioso, salienta que essa é a forma mais comum e de mais primitivo carater da medicina magica. O sopro era outro processo empregado pelos tupi-guaranis na cura das doenças. Muitas vezes o sopro antecedia à sugação. Assim o atesta Abbeville, observando Évreux que era até ess~ um dos meios de Uiilll. ~a. revel4r-se feiticeiro. "0 sopro (afirma 184 \ E. Stradelli) entra em todas as cerimonias e actos do pagé. Se o curandeiro &opra a parte lesada, expele o mal. E' soprando tambem na mão fechada, cujos dedos abre depois, lentamente, que espalha a infelicidade e a morte". Até os fenomenos meteorologicos estavam sujeitos à magia do sopro. No mito macuxi da origem do mundo, "Tupã pegou em uma mão cheia de terra, amassou-a bem; depois fez uma figu~a de gente, soprou-lhe o nariz, deixou no chão". E, daí avante, a figura de gente começou a engatinhar. Na cerimonia da iniciação dos mancebos uananas, ó sopro constitue parte integrante do ritual. Quando nasce um bororozinho, o pai sopra fortemente nos olhos da criança. Embora os macuxis, os uananas e os bororos não pertençam ao grupo tupi-guarani, os exemplos, todavia, mostram como tais praticas místicas se acham bem espalhadas entre os ameríndios do Brasil. A fumigação, como se viu, fazia parte tambem do ritual da medicina tupi-_guarani. Curavam os tupinambás as feridas graves (diz G. S. de Sousa) "fazendo em cima do fogo um leito de varas, largas uma das outras, sobre às quais com a quentura se era mesmo estendido no moquem, com a ferida "de boca abaixo em .cima desse fogo". Os Jeiticeirofi (nota Anchieta) "e outros que não chegam a tanto, costumam esfregar, chupar e defumar lhes saía todo o sangue que tem dentro e a umidade". O doente os doentes nas partes que têm lesas e dizem que com isto os saram". A proposito da cura ígnea, há tambem o depoimento de Couto de Magalhães. Ao adoecer, os tupinambás evitavam os alimentos. O tabu alimentar, a que se refere Thevet, era outro meio de curar as molestias, - jejum prolongado, não sendo mesmo permitido que ninguem dirigisse a palavra ao doente. Léry acrescenta que este ficava mesmo um mês inteiro sem comer. Tambem as sangrias constituíam um processo curativo. "Curam estes índios (escreve G. S. de Sousa) algumas postemas e bexigas com sumo de ervas ... e quando se sentam carregados da cabeça., sarj11m nas fontes, e .aos meninos sarjam nas pernas, - 185- quando têm febre mas em seco; o que fazem os velhos com um dente de cutia muito agudo". A mesma observação em Léry. Eram as escarificações, de acordo com Pardal, uma pratica geral nos domínios das tribus tupi-guaranis. Piso observou-a entre os potiguaras, e, do mesmo modo, Rochefort. Depois que o doente sofria a fumigação, as sucções, etc., purificava-se-lhe a parte .,molesta com tintura de jenipapo. Isso afirma-o Soares de S'ousa, dizendo: "São os tupinambás mui sujeitos à doença das boubas" e "não fazem outro remedio senão fazer-lhas secar, quando lhes saem para fora, o que fazem com as tingirem com jenipapo". Bertoni, que estudou varios process~s da medicina primitiva dos tupi-guaranis, salienta o uso do urucu (Bixa Orellana L.), de emprego não vulgar como variado (urucu contra os mosquitos, urucu para suavizar os ardores do sol, urucu destinado a tornar o corpo agil). Muitos silvícolas, de fato, acreditavam que o rubicundo corante os preservava das picadas dos insectos (Manizer e Desgenettes) e A. Osorio de Almeida mostrou que esse fruto protege a pele contra os raios quimicos do sol. Karl von den Steinen, finalmente, informa que, ainda em seu tempo, isto é, pelos meados do seculo XlX, os jurunas untavam-se com certo oleo, para proteger-se contra os carapanãs ( Culex fatigans Wied.). Se a cura, porem, após todos esses processos, parecia impossível, os tupi-guaranis abandonavam o doente, o qual, na concepção do selvagem, vinha a ser considerado impuro. Ninguem mais se preocupava com o mísero;. era um condenado. Daí, talvez, o habito peculiar aos omagua·s, observado por Figueiroa, a saber, de encerrar o doente em uni recinto, no interior da cabana. Alem desses processos, quase todos impregnados de elementoà magico-religiosos, os tupi-guaranis possuíam tambem conhecimentos científicos auferidos no trato diuturno com a flora tropical. O franciscano André Thevet informa, por exemplo, que a fruta mais empregada pelos tupinambás, em seus males, era o ananás (nana no original). Trata-se do A nanas sativ·us Schultz; F . C. Hoehne, observando a gravurll divulgada por Thevet, chegou à - 186- l:onclusão de que os ananases do decimo sexto seculo não só eram produtos já aperfeiçoados pela cultura como, possivelmente, muito melhores do que os atuais. Na cura do bicho-do-pé (Tom, no texto), empregava-se oleo do hiboucouhu, que é a mesma ucuuba (Myristica .1ebifera Sw. ou Myristica offícinalis Mart.). Thevet descreve ainda, minuciosamente, a bouba (Pians), cujo tratamento t•ra feito com a decocção da casa do Hiouourahé (si c), identificada com o buranhem ( Pradosia lactescens Radlk.) 1 assim como os meios, usados pelos tupinambás, na cura da oftalmia (empregava-se o suco de uma planta, que Hoehne identifica com o piná-piná ou cansação). O cansação-de-leite, ou urtiga-demamão (J atropha ur.ens Muell.) é, realmente, usado pelos indígenas no tratamento da cataracta. The_vet, finalmente, faz referenda ao Pena-absou, que os silvícolas aplicavam nos ferimentos produzidos pelas flechadas. O Pena-absou é a nossa conhecida andiroba (Garapa guianensis Aubl.). Léry' tambem faz menção dos três celebres frutos da medicina tupinambá: a ucuuba (que ele chama Couroc), o buranhem e o ananás. E;, nos "Tratados" de Pero de Magalhães Gandavo e de Gabriel Soares de Sousa, assim como na "Narrativa" de Fer-o não Cardim, - todos do seculo XVI, - as informações sobre a ter_a peutica tupi-guarani não são menos preciosas. Em Gandavo, por exemplo, o mais pobre deles, há uma referencia ao oleo da copaiba ( Copaifera offícinalis L.), que tirava todas as dores provenientes da frialdade, por mais graves que fôssem; outra ao balsamo da "caborahiba"; e, finalmente, mais uma referencia a certa arvore chamada pelos índios de "Obirá paramaçari", isto é, "pau para enfermidades." Três gotas dessa ultima planta, que é identificada com a alamanda-de-jacobiqa (Alamanda Blanchetti D.C.), davam para purgar uma pessoa •"por baixo e por cima". A caboraiba de Gandavo é identificada ora com o Myrocarpus fastigiatus Aliem., ora com o balsamo-detolu ·(Myroxilon toluifera). Gabriel Soares de Sousa é um dos autores mais ricos em noticias sobre as doenças e remedios dos tupis. Se o jenipapo, por - 187 - exemplo, não dava resultado na cura da bouba, empregavam 'OS tupinambás a folha da caroba (Jacaranda caroba Vell.). E informa: em alguns "tempos e lugares, mais que outros, são estes índios doentes de terçãs e quartils . . . às quais febres não fazem nenhuma cura senilo comendo mingaus, que são caldos de farinha de carimã". O ananás, nota ainda o mesmo autor, sendo verde, torna-se excelente para a cura das chagas e até para a cura do cancer. Não menos excelentes são a copaiba, a ubiracica (Protium icicariba D.C.) e tantas outras. Da copaiba fala tambem o jesuíta Fernão Cardim e, do mesmo modo, de numerosas outras plantas utilizadas pela medicina tupi, entre as quais o caapiá (Urena lobata L.), o tararacu (Oacia occidentali.t L.), a erva santa (Nicotina tabacum Linn.), o carnará (Lantana camara Linn.), o guaraquim (Solanum nigrum Linn.), etc. Quanto à copaiba, lembro que o padre Acuiia, como observa Pardal, menciona o seu uso, juntamente com o da andirobeira, no tratamento das ulceras e feridas. Tambem Martius, referindo-se principalmente aos tupis em geral, fala das compressas de ervas frescas, empregadas contra as ulceras malignas, principalmente os emplastros ou cata plasmas feitos com uma espccie de euforbiacea (o Julocroton Phagedenicus), ou com a Pistía ocidentalis. A raiz do Piper nodoswm servia para a dôr de dente e o sumo da imbauba para as inflamações erisipelatosas. Uma verdadeira lista de rem.edios indígenas encontra-se no estudo de Métraux referente aos chiriguanos. Os mundurucus, gue pertencem ao grupo cultural-linguistico dos tupi-guaranis, diz Manuel Aires de Casal que conheciam a virtude de varios vegetais, com cujo uso curavam •ífacilmente algumas molestias perigosas". Em suma, os tupi-guaranis reconheciam admiravelmente as especies uteis da nossa flora. Com razilo, já o dizia Loreto Couto que "cada um era medico de si proprio e medico de sua fa~ilia". Para a bibliografia do assunto, cf. meu recente estudo, pub. em Actas Giba, ps. 44 sq., ns. 8-4, 1944. - li8- CAPITULO IX RITOS CONCERNENTES AO NASCIMENTO, A PUBERDADE E AO CASAMENTO I. Nascimento. - Quando a mulher tupinambá sentia as primeiras dores de parto, "sentavà-se em uma taboa que, embora presa aos barrotes do tecto, ficava apoiada no chão".:~. Todas as demais mulheres da tribu eram advertidas do acontecimento e ocorriam a assisti-la, sem, todavia, participar dos trabalhos. Se o par~ to era laborioso, o marido procurava comprimir o ventre da mulher afim de apressar o nascimento: 2 "Depois, quando nasce a criança (à qual dão o nome de Congnomi-meri), o pai (a quem chamam Cherouy), se é vivo, levanta-o do chão (á). Sendo macho a criança, cabe ao pai cortar o umbigo com os dentes; se é femea, cumpre .à mãe fazer esse serviço, ou, estando muito fraca, a sua mais proxima parenta. Nesse ultimo caso, tem o tio materno a incumbencia de levantar a menina, reservando-a, se o pai está ausente ou já faleceu, para sua futura esposa". Em muitos casos, o cordão. umbelical era cortado simplesmente entre duas pedras (b). Cardim 3 designa 1 Thevet (2), foi. 915 T. 2 Yves d'Évreux, p. i9. a P. 110. - 189- pelo nome de compadre o .homem que, no lugar e na vez do pai, levanta, em certas ocasiões, o recem-nascido; esse compadre deve ser, sem duvida, o tio materno, de quem fala Thevet. •· O bebê, log-o após o nascimento, era banhado no rio, depois do que seu pai, ou o chamado "compadre", achatava-lhe o nariz com o polegar; em seguida, untavam-no de oleo e pintavam-no de urucu e de jenipapo.! "Isso feitg (informa Thevetz) os índios põem a criança na redezinha, pendurada entre dois esteios de madeira, fazendo-lhe, então, um Itamongavé (c), isto é, uma oferenda cerimoniosa de bom pressagio, que consiste em unhas de onça ou garras de certa ave do tamanho da aguia - os nossos selvagens dão-lhe o nome de Ourahouassoub e os canibais o de OuMouram (d). Incluem os selvagens, tambem, na oferenda, as penas da cauda e das asas dessa ave, assim como um arcozinho e algumas flechas, sendo tudo isso preso à mencionada rede- chamada Amy (e) -para o fim de torná-la virtuosa, brava e sempre disposta a guerrear o inimigo (esse povo j àmais se reconcilia com os adversarios). Acreditam que, com tal cerimonia, a criança, quando crescida, tornar-se-á mais dextra nas armas, por isso que a onça é um dos mais possantes· animais da região. O Ourahouassoub é, tambel}l, a mais temível das aves, pois vence e devora as demais. Em se tratando, porem, de crianças do sexo feminino, os indios colocam em seu colo dentes de um animal chamado Capiigouare (f), - palavra que significa comedor de ervas, - com o objetivo, conforme pensam, de tornar seus dentes mais fortes e mais apropriados aos 1 Léry, t. II, p. 88; Thevet (1), ps. 213-214; Claude d'Abbeville, foi. 266 v. 2 (2), foi. 915 v. - 190- alimentos. Durante três dias, o Cheroup (g), ou pai, permanece ao pé da mulher, abstendo-se do usõae qualquer carne, peixe ou sal, exceto a farinha de nome Ouic (h), feita de agua pura; tambem não fazem nenhum trabalho, isto tudo até que o umbigo caia, receoso que ele, a mãe e a criança tenham as colicas chamadas Tekéaip (i). Nesse tempo, diariamente, pela manhã, ao meio-dia e .à noite, põe os pés no ventre da esposa, praticando varios ritos prcssagiosos, como, por exemplo, fabricar pequenas arapucas e fazer cair nelas a tipoia de carregar a criança, como ao rato em uma ratoeira. E, isso feito, o Eai tom.a...Q. arco (Orapa) (j) infantil e as flechas, penduradas na rede, atira contra a mencionada tipoia, pescando-a, em seguida, com o anzol como se fôra um peixe, - tudo, segundo dizem, com o sentido de que, no futuro, possa a criança tambem caçar bichos ou aves e pescar peixe. Assim como outras cerimonias supersticiosas menos importantes (se o ~~não está presente, o irmão da m l_e.r, ou seu ma1s proximo parente, substitue aque e . Quando o umbigo seca e cai, o pai parte-o em pedacinhos, pregando-o em todos os pilaresêia- oca para que o filho seja, futuramente, um bom chefe de família e possa sustentar a sua casa. Durante esse tempo, a parida levanta-se e pressiona o ventre contra os esteios mais fortes da choça, com o objetivo de evitar-lhe a flacidez e as rugas; e, ao fim de um mês, já vai aos seus costumeiros trabalhos no roçado. A abstinencia, acima referida, foi instituída por um grande caraiba e por isso, têm esse costume como bem legitimo, estando certos de que, quando alguem o esquece, seus filhos se tornam fracos e medrosos; os proprios pais ficam tambem doentes, atacados, no ventre, por uma molestia incuravel, que os torna inaptos para as principais atividades, como seja, ir à guerra (uma de suas principais ocupa- 191- ções), caçar a veação e pescar toda especie de peixe, tornando-se, enfim, negligentes, se não realizam, de acordo com a sua fantasia e opinião, a dita cerimonia. No decorrer de todo esse tempo, as mulheres observam uma abstinencia maior e mais prolon~ada do que os homens". O proprio Thevet 1 completa as indicações acima em seu manuscrito inedito. Diz-nos ele, entre outras coisas, que, logo após o nascimento da criança, os índios "põem-lhe jarreteiras abaixo dos joelhos, afim de, segundo dizem, evitar que a mesma fique cambaia". Tal costume foi observado por Soares de Sousa,2 se. gundo o qual os tupinambás apertam as pernas das ca· chopas, abaixo dos joelhos e acima dos tornozelos, para provocar o crescimento anormal da batata das pernas. Essas jarreteiras, que talvez fôssem tambem usadas pelos meninos, embora menos apertadas, deviam tornar a perna mais forte. 3 O costume em apreço estava em vigor entre os guaraius, não faz ainda muito tempo. Os guaraius amarravam fios de algodão em torno dos punhos, dos cotovelos, das barrigas da perna e dos artelhos dos recem-nascidos, devendo sua mãe, igualmente, envolver-se em um cordão.' E' de supor que os referidos índios herdassem semelhante pratica de seus antepassados do Paraguai, pois o costume foi assinalado entre eles pouco após sua emigração daquele país. "Se foi menina que nasceu (dizem as Annute litterte 5 a proposito dos itatins), -a mãe liga-lhe cerimoniosamente as 1 (3), foi. 52. 2 P. 313. S Marcgrave, p. 263; Nieuhof, p. 217. 4. Cardúii, p. 74, i P. 4,2i. -192- pernas com um fio''. A interpretação, que os antigos autores dão ao costume em questão, é confirmada po·r muitas testemunhas contemporaneas. A boa fé de Thevet foi corroborada pelas informações, que outros viajantes nos fornecem a proposito das crenças e praticas estudadas no presente capitulo. Alguns pormenores suplementares, fornecidos pelos mesmos, merecem registo. 1 O .Q&não se contentava em pôr no punho da rede infantil o arco e as flechas; colocava ainda, a seus pés, um molho de palha, que simbolizava a tribu inimiga. 2 Pondo esses emblemas junto ao recem-nascido, dirigialhe as seguintes palavras: - "Meu filho, quando fores da minha idade, sê dextro nas armas, forte, valente e aguerrido, pois só assim te vingarás dos teus inimigos".3 No trecho atrás citado, Tllevet se refere ao nascimento de um menino. No manuscrito inedito, escrito posteriormente, acrescenta que, em se tratando de menina, os índios suspendiam à sua rede "jarreteirazinhas e uma cabaça".• Não conheço, no que diz respeito .às tribus tupis, exemplo analogo de magia imitativa, a não ser a passagem das Annu~ litter~,S que menciona os ritos observados pelos itatins por ocasião do nascimento de uma criança: "Logo que a mulher pare, se 9 recemnascido é do sexo masculino, o avô, - caso ainda es1 Léry, t. li, p. 88; Thevet (1), ps. 213-214.; Claude d'Abbeville, foi. 266 v. 2 Cardim, p. 170. 3 Léry, t. II, p. 88. 4. Ms. inedito de Thevet, foi. 52 v. 5 P . 425. Os cainás, todavia, procedem do me!!mo modo. Cf. Borba (2), ps. 57-58. -193- teja vivo, - ou qualquer outro parente, dá-lhe nome e oferece-lhe um arco e algumas flechas". A fim de compreender o sentido atribuído à pratica de pendurar pedaços de cordão umbelical aos pilares da cabana, é preciso recordar que os troncos das arvores, sustentaculos do tecto da f!laloca tupinambá, marcavam, igualmente, os limites do lance concedido a cada familia. Um homem bastante rico para possuir numerosas mulheres dispunha de varios desses compartimentos.• Thevet esqueceu de anotar que o marido não se contentava apenas em guardar rigoroso jejum, mas se estirava ainda na rede para observar a dieta. E cobrindo-se cuidadosamente, pois a mínima corrente de ar, que o incomodasse, poderia ser nefasta à criança, parentes e amigos vinham visitá-lo e trazerlhe presentes. 2 As mulheres da tribu acorriam igualmente à cabeceira, para •"consolá-lo da pena e dor por ele sentida ao ter a criança" .3 O choco paterno durava o tempo necessario à cicatrização do umbigo do recem-nascido. Logo que caía o cordão, o pai podia levantar-se, mas com a condição de guardar as maiores precauções, pois, se cometesse a imprudencia de ir .às plantações, a criança morreria, ou sentiria violentas dores no ventre. Os tupinambás interpretavam a covada com uma manifestação simbolica do papel paterno no ato da geração (k) .., A Soares de Sousa, 4 que indagara da origem desse costume, responderam os indígenas caber ao homem guardar tal regime, pois 1 2 3 4 Staden, part li, cap. XIX. Soares de Sousa, ps. 313-314. Yves d'Évreux, p. 89; Gandavo, p. 55; Vasconcelos, p. 82. P. 312. Para uma interpretação da covada entre os mun- durucus, cf. Martius, p. 892. 194- o filho lhe saira dos rins, limitando-se o papel da mulher a g_uardá-lo, durante algum tempo, no ventre. A covada conta entre as praticas mais difundidas na America do Sul. Todas as tribus tupi-guaranis observam-na, embora a insuficiencia de nossas fontes não permita ter a prova de varias delas. Quando os guaranis se tornavam pais, abstinham-se de ir à caça, ou fabricar flechas, tacapes e quaisquer outros instrumentos manuais. Afrouxando os seus arcos e evitando mesmo armar os mundeus, estendiam-se na rede até que secasse o cordão umbelical da criança.• O rigor desse costume atenuou-se entre os caingás 2 e os chiriguanos.3 Em ambas as tribus, o pai contentavase em jejuar, embora outrora, entre os c.hiriguanos, 4 guardassem 'O leito, como ainda hoje fazem os apapocuvas.s Nesse particular, os guaraius são os mais conservadores: ao nascer a criança, o pai escarifica a pele com um dente de cutia, pinta de vermelho os pés, as mãos e todas as articulações, jejuando, estendido na rede, durante três dias. 6 As Annu<e litter<e7 limitam-se a mencionar a existencia da covada entre os seus antepassados. Os antigos cronistas da costa do Brasil negligenciaram as informações a respeito das precauções de ordem magica, que deveria tomar a mãe da criança antes do parto. Talvez consistissem as precauções, a ~xemplo do que sucedia entre os antigos guaranis, 1 2 3 4 5 6 7 Montoya, p. 51; Techo, p. 135. Ambrosetti, p. 690. Chomé, p. 384. Corrado, p. 51. Nimuendajú (1), p. 303. Cardús, p. 74; NordenskHild (2), p. 167. P . 425. - 195- - em evitar o uso da carne dos animais, cujos predicados físicos pudessem ter influencia nefasta no desenvolvimento ou aspecto exterior do pequeno ser em expectativa:1 Não sabemos, tampouco, se os tupinambás - como os omaguas e os cocamas - matavam os gemeos, considerados por essas duas. familias um sinal de infelicidade.2 Os chiriguanos3 t.iravam a vida às crianças mal conformadas e semelhante costume existia, certamente, entre os tupis do trato costeiro porquanto os antigos viajantes, em geral, mostraram-se surpresos com a ausencia, entre os índios, de deformação de nascença. Quandq, todas as praticas concernentes ao nascimento tinham sido realizadas, os tupinambás organizavam uma bebedeira, da qual participava a tribu inteira.' Staden~ conta, a proposito, como se processava a escolha do nome da criança: "A mulher de um dos selvagens, que era meu companheiro de trabalho, dera .à luz. Alguns dias após, o marido reuniu, na cabana, os vizinhos e perguntou-lhe que nome espantoso e terrível cumpria dar ao recem-nascido. Varios foram propostos, que não agradaram, pois pretendia ele dar-lhe o nome de um dos seus quatro antepassados; se assim o fizesse (afirmava) seu filho cresceria depressa, tornando-se dextro ná captura dos inimigos. E enumerou os quatro nomes em questão: o primeiro Krimen, o segundo Hermittan, o terceiro Koem. O nome do 1 2 3 4 f echo, p. 135. Chantre y Herrera, ps. 74.-75. Nino, ps. 214.-215. Cardim, p. 170. lS Parte 11, cap. XVIII. - 196 quarto não me recordo. Quando o selvagem mencionou o nome de Koem, pensei tratar-se de Cham; mas, Choam significa aurora ( !) . . . . A criança tomou um desses quatro nomes". Esse trecho é particularmente interessante se for comparado à determinada passagem de Claude ·d' Abbeville/ que faz alusão à crença dos tupinambás na reincarnação das almas dos avós. O feiticeiro, que arrastou, em 1609, os potiguares .à conquista do "paraizo terrestte", pretendia ser um desses ancestrais ressuscitados. Os apapocuvas, que conservaram em toda a sua pureza a religião dos antigos guaranis, estão persuadidos de que, em certas ocasiões, o espirito de algum dos seus parentes mortos se introduz no corpo de uma das mulheres pertencentes à família afim de retornar ao mundo dos vivos. Assim, um dos primeiros deveres do medico-feiticeiro é identificar o ancestral, que se decidiu a recomeçar a nova existencia. Os recem-nascidos, cuja identidade secreta ou oculta se pode determinar, tomam o nome. de Tujá 2 • E é bem verossímil que essa concepção pertença ao fundo comum das crenças religiosas dos tupi-guaranis, pois é assinalada entre os cocamas do Ucaiali. O padre Gas"' par, que evangelizou es~es indios, era acompanhado de um interprete, no qual os mesmos reconheceram um dos seus caciques, recentemente morto; o cacique teria ressuscitado em outras terras. Tal convicção era tão irraizada na mente dos selvagens que estes se obstinaram em re~taurar o interprete na sua antiga autoridade, querendo, ainda, que o mesmo voltasse a tomar conta dos filhos deixados pelo defunto. 3 I Fo,. 828 v. 2 Nimuendajú (1), P!!· 314-816. a Figueiroa, p. 102. - 197- A escolha do nome não era coisa tão facil. Entre os apapocuvas, esse cuidado estava confiado aos feiticeiros.! Com os tupinambás, parece que um verdadeiro conselho se formava para o fim de encontrar um nome capaz de melhor exprimir a personalidade psicologica e mística do seu portador, assim como identificar qual dos seus parentes, já falecidos, teria ressuscitado entre eles. Tudo faz crer que, tanto entre os tupinambás quanto entre os apapocuvas, o nome fazia parte da personalidade de quem trazia. Ou, por outra, o individuo não "acudia" por esse ou aquele nome, mas "era" tanto quanto tal ou qual nome. A prova da estreita associação ~ntre o nome e a pessoa é fornecida pela mudança de denominação a que recorriam os indígenas quando pretendiam escapar à colera de algum espírito. Sabemos de 'consideravel quantidade de nomes proprios tupinambás. São nomes geralmente tomados ao reino animal, vegetal ou mineral, ou tirados dos alimentos ou objetos manufaturados.z Eis alguns exemplos: Milho Pardo, Pau Brasil, Rabo de Arara, Corvo Enfunado, Coxa de Anta, Fluxo de Sangue, Pedra Morta, Braço de Peixe, Homem que não sabe andar, CLrvo de Cornos, Tipoia de carregar criança, Çialinheiro Grande,3 ·etc. Os guaranis davam à criança o nome, que lhe sugerisse a sua característica física ou moral; assim se a mesma era escura, chamavam-lhe de "corvo" e se era dada ao choro "rã".4 I Nimuendajú (I), ps. 303-305. 2 Soares de Sousa, p. 3I4; Léry, t. 11, p. 88. 3 Claude rl'Abbeville, 'cap. XXXIII. 4 Techo, p. 135. -198- As mulheres tupinambás recorriam a certo numero de praticas mais ou menos magicas, visando à facilitar seu encargo de mãe. Se os filhos choravam muito, punham-lhes na cabeça algodão, penas de passaros ou madeira. Para fazê-los crescer, deitavam-nos na palma das mãos fricionando-os fortemente. 1 Todas as manhãs, algum chefe da tribu percorria a aldeia armado de um dente de peixe, com o qual arranhava as pernas das crianças. Essa operação, parece, tinha o objetivo de fazê-los obedientes. Se, porem, as crianças, durante o resto do dia, se tornavam insuportaveis, seus pais ameaçavam-nas com o homem munido da lanceta, - segundo parece uma especie de papão dos tupinambás. A significação real desse costume é desconhecida.z Pratica analoga existia, outrora, entre os itatins ou guaraius3 e conservou-se até hoje entre os chiriguanos. 4 Tem por objetivo (dizem os chiriguanos) tornar as crianças ativas e corajosas. 11. Puberdade dos rapazes. - A transição da infancia para a puberdade, entre os rapazes, não era assinalada por nenhuma cerimonia particular. O momento em que, pela primeira vez, o menino começava a usar o tembetá, signo por excelencia da virilidade, precedia em muito à epoca real, entre os indígenas, da idade pubere. 5 "Quando seus filhos atingem a idade I Cardim, p. 170. 2 Staden, part 11, cap. XX. 3 Annure litterre, p. 438. 4 Giannecchini, Etog. Diente de conejo. /S Staden, parte 11, cap. XVI; Thevet (1), p. 163; Soares de Sousa, p. 314. - 199 -- de quatro, cinco ou seis anos (diz Claude d' Abbeville 1) os índios convidam todos os parentes e amigos do menino, a quem se pretende perfurar o labio, inclusive os habitantes da aldeia e das circunvizinhanças, preparando um festim regado de vinho (a que dão o nome de cauim). E, após cauinarem e dansarem, segundo o seu costume, dois ou três dias, mandam vir o menino e dizem-lhe que lhe vão furar o beiço para que ele se torne um guerreiro valente e afamado. A criança, assim encorajada, apresenta espontaneamente o labio, satisfeita e decidida; pega-o então o índio incumbido da operação e atravessa-o com um chifrezinho, ou qualquer outro osso ponteagudo, fazendo-lhe um grande" furo. Se o menino grita ou chora - o que raramente sucede - dizem-lhe os índios que o mesmo não prestará para nada e será sempre um medroso ou covarde; se, ao contrario, segundo ocorre comumente, a criança se mostra forte e corajosa, tiram do fato um bom augurio, afirmando que será, mais tarde, grande, bravo e valente guerreiro". Mais adiante, acrescenta Claude d' Abbeville que, por ocasião dessa solenidade, os convidados usavam os seus mais belos ornamentos de plumas.2 A perfuração do labib inferior era feita geralmente por meio de um chifre de veado. TheveP explica a razão da escolha: "Os cervos possuem cornos muito pequeninos, em relação aos dos nossos animais de igual especie. Têm-nos os selvagens em alta conta, pois são empregados nas crianças, após a perfuração de seus labios e orelhas: realmente, os indígenas introduzem o chifrezinho no orifício, para o fim de tor1 Foi. 268. Foi. 273. (2), foi. 936. 2 3 -200- ná-lo mais dilatado, acreditando que esse osso é antivenenoso e impede o aparecimento de qualquer mal". Os botoques dos adultos distinguiam-se dos das crianças pela sua contextura material. Enquanto os meninos só usavam roletes comuns de madeira, conchas e, quando muito, ossinhos, as pessoas mais velhas introduzem no labio inferior pedras raras de diferen.tes tipos e de delicado lavor.1 Virtudes magicas eram, sem duvida, conferidas a esse ornamento, porquanto os índios o tinham em muita estima e não se desfaziam dele de boa vontade. 2 Alguns substituíam o tembetá de pedra por dentes de pecari ou de jaguar, que lhes permitiam adquirir as qualidades desses animais.3 O mancebo· abandonava o tembetá de pau ao atingir a idade matrimonial. 4 Era nessa ocasião, igualmente, que ele começava a fazer uso do estojo peniano de folhas de palmeira, ou a ligar o prepucio com um fio. Afirmam alguns autores, todavia, que a bainha de cobrir os orgãos genitais .só era empregada pelos velhos.~ Os chiriguanos perfuravam os labios entre os sete e os oito anos. Antes de submetê-los a essa operação, exortavam-nos a suportar corajosamente a dôr afim de que os pacientes se tornassem guerreiros destemidos, fossem amados das mulheres e pudessem ser reconhecidos como pertencentes .à tribu patricia. O orifício do tembetá é, hoje em dia, feito com uma agulha • 1 Léry, t. I, ps. 121S e· 137; Thevet (1), ps. 163-164.; Claude d' Abbeville, foi. 268 v. 2 Yves d':Jlívreux, p. 46. 8 Id., p. 25. 4 I d., p. 81; Soares de Sousa, p. 312. IS Claude d'Abbeville, foi. 266 v.; 'l'hevet (1), p. 148; Léry, ,t. I, p. 12~. -201- de ferro, mas o nome dado a esse objeto conserva a lembrança do chifre de cervo de que se serviam os antepassados. Os chiriguanos, com efeito, chamam-no gusaupirasa (chifre de cervo) e, quando atingem a dignidade viril, jejuam e permanecem em casa por espaço de um mês. A partir desse momento, cessam de empregar a particula afirmativa ú, ú, substituindo-a pela silaba ta, que tem igual valor. 1 Os jovens mauês2 e ararandeuaras,3 logo que alcançam a puberdade, devem sofrer com destemor as espantosas mordeduras da formiga tocandera. III. A priméira menstruação~ - As praticas às quais se devem submeter as moças, com o aparecimento do primeiro fluxo menstrual, foram descritas muito pormenorizadamente por Thevet: 4 "A primeira purgação se chama, na lingua indígena, Quioundu-ar (m), que se pode traduzir por começo ou acontecimento. Quando esse fluxo está para vir causa ' às raparigas muito medo e muito mais quando ele aparece. Os· in·dios, alem de cortar-lhes, com um osso de peixe, o cabelo, o mais aparado possível (alguns queimam o cabelo, se não encontram algum instrumento bem afiado), pondo as moças em pé, numa pedra achatada, pedra essa que serve de gral ou mó e na qual os sei..:. vagens lavram os seus colares de côres brancas ou pretas e pulem as pedras verdes trazidas pelos homens nos labios, - fazem-lhes intisões na pele por meio de um dente de animal, das espaduas .às nadegas, de modo a formar uma cruz, em sentido obliquo, ao longo dá I Nino, ps. 2 Daniel, t. 3 Lange, p. 4 (2), fols. 227-232. III, p. 169. 247. 946 v. e 947. -202 costa, com cortes, uns maiores, outros menores, de acordo com a robustez ou rcsistenci<t das pacientes. Com isso, corre-lhes o sangue por todas as partes, e, se não fôra o pejo ou temor, soltariam as moças gritos horríveis, em lugar de ranger os dentes, apertar os punhos ou torcer as mãos, - o que demonstra o grau de seus sofrimentos (aliás de esperar em virtude de ser po,uco afiado o instrumento da operação). Em seguida, os índios esfregam as raparigas com .cinza feita de certa abobora silvestre, tão corrosiva quanto o salitre ou a polvora, de modo que as marcas não se apagam jàmais, ligando-se-lhes, então, os braços e o corpo com fios de algodão e envolvendo-lhes o colo com dentes de um animal chamado Capugouare (n), isto é, animal que come ou vive de ervas; esse colar tem por fim tornar forte a dentadura das moças, afim de que elas possam mascar bem a bebida chamada cauim; as incisões vi~ sam a dar-lhes ventres sadios e filhos bem conformados. Finalmente, ~ão as moças recolhidas a um velho leito, pendurado, conforme o costume do país, por suas duas extremidades, de onde só saem após três dias. E ali permanecem as mesmas, sem comer e beber, tão enroladas que ninguem as pode ver. Decorridos os três dias, as pacientes voltam para cima da pedra de amolar, onde sofreram o seu martírio, evitando tocar em terra; e, se necessitam ir a algum lugar reservado, levam-nas fora as mães, tias ou avós, trazendo consigo um tição aceso e um pouco de algodão dentro de certa manga de barr6, receosas, segundo dizem, de que algum malefício (Maé, como chamam) (o) lhes entre pelas partes secretas, ou por outra qualquer parte, de corpo a dentro .... Retornando ao leito (tratemos novamente das nossas raparigas), dão-lhes os índios farinha e algumas raizes cozidas, sem sal ou qualquer especie de carne ou bebida, exceção da agua, ali fi- -203 ~ cando elas até ·que chegue o segundo fluxo, ou seja, por um mês mais ou menos. E passado o segundo fluxo (ao qual dão o nome de Poporoipok, isto é, o rui do do refluxo) (p) voltam-se-lhes a fazer as mesmas incisões, mas dessa vez no peito e no ventre. Assim são as indias tratadas, sendo no mês seguinte menos rigorosa a abstinencia. Todavia, não vão elas ainda ao campo, conforme o seu habito, nem entretêm conversação com as outras, permanecendo ainda no leito, apenas ocupadas em limpar e fiar o algod~o. E só no terceiro mês recomeçam os seus trabalhos de lavoura, após se tingirem com certa tinta negra extraída da fruta da arvore chamada jenipap (q).. . . No pe~ riodo das menstruações, que dura de três a quatro dias, as moças guardam a mesma abstinencia em relação à bebida e .à comida, asseando-se com um bastão branco e liso, de cerca de três pés de comprido .. E, do mesmo modo, as mulheres casadas, quando estão menstruadas, não se deitam com os seus maridos, dizendo-lhes Aikoaip (r), isto é, não estou bem e peço, por isso, que não te aproximes de mim". Nesse particular, as informações de Thevet são confirmadas por nossas outras fontes. A causa da dolorosa opet:ação sofrida pelas donzelas deve ter sido o desejo de pô-las ao abrigo do perigo, que as ameaçava nesse momento critico de seu desenvolvimento. Precaução identica era tomada por qualquer homem, que houvesse morto outrem, ou mes~ mo que tivesse perdido apenas algum parente. Para homens e mulheres, a tatuagem consistia em um ornamento de honroso significado. As moças eram constrangidas a romper os fios, com os quais envolviam a cintura e o ante-braço, no dia em que perdiam a virgindade. Até na hipotese de -204- querer guardar o segredo das suas relações sexuais. tinham as mesmas a obrigação de romper esses liames, sob pena de serem assaltadas pelos maus espiritos.1 A tribu festejava com bebedeiras o primeiro fluxo menstrual de qualquer uma de suas moças/ as quais não podiam casar enquanto os cabelos não crescessem o bastante para cobrir-lhes os ombros. EHtre os antigos guaranis, as raparigas, quando _chegavam as suas primeiras regra,s, estendiam-~e na rede, onde permaneciam, enfaixadas tão cuidadosamente que só a boca ficava descoberta. Nesse estado, jejuavam rigorosamente durante três dias. O cabelo er~ cortado bem raso e não consumiam carne até que o mesmo crescesse a ponto de cobrir-lhes as orelhas. Alem disso, deviam evitar a presença dos homens e de certos animais (tais como os papagaios, sob pena de se tornarem tagarelas). Em seguida, as moças eram confiadas a uma mulher robusta, que lhes impunha diversos trabalhos, como, por exemplo, varrer as ocas e moer o milho. Se, por acaso, as raparigas tinham necessidade de buscar agua, deviam fazê-lo a passo acelerado e sem voltar do caminho. O futuro das jovens dependia dos acontecimentos passados nesse periodo de prova. 3 Os chiriguanos, quando as filhas se tornavam puberes, deitavam-nas, um mês, em redes suspensas perto do tecto da cabana; ao segundo mês, porem, as redes descia_m a meia altura e no terceiro, enfim, as mulheres idosas, armadas de bastões, davam-lhes gol1 Soares de Sousa, p . 312. 2 Thevet (2), foi. 932. 3 Techo, p. 1315. .- 205- pes em todos os sentidos com o fim (diziam) de matar a cobra que as havia picado.• Ainda hoje, as praticas subsequentes à menstruação são realizadas por aqueles indios com bastante rigor. A moça repousa, durante quatro dias, na rede, suspensa perto do tecto da casa, não pronunciando palavra e jejuando severamente. Depois, dão-lhe banho e raspam-lhe a cabeça, encerrando-a em um recinto onde permanece até que os cabelos cresçam a ponto de cobtír as espaduas. Durante esse tempo, a paciente ocupa-se a fiar e a tecer, em silencio e em jejum, pelo menos no começo das provas; só à noite sai e ainda assim acompanhada. Além disso deve andar com precaução para evitar os maus espíritos O'-l os embustes dos feiticeiros malignos. Após a segunda menstrua'ção, os chiriguanos consideram-na realmente nubiJ.2 As Annure /itterrel assinalam o fato de que as mulheres guaraius dão talhos na face, nos braços e nas pernas, com o objetivo de enfeitar-se, passando nas incisões tinta de jenipapo. Essa üperação praticava-se ainda entre esses índios, há alguns decenios, nas moças que sentiam os primeiros sintomas da puberdade. Demais, mantinham-nas em um canto da oca, por espaço de um mês, dando-lhes de comer apenas certos pratos:1 Os mauês submetiam as moças puberes a praticas, que oferecem muitas analogias com as observadas entre os antigos tupinambás; salvo quanto ao cesto, que substituía, entre os mauês, a rede dos tupinambás.s 1 Chomé, p. 333. 2 Nino, ps. 222-227. a P. 437. 4 Ca rdús, p. 74. . 5 Daniel, t. 111, p. 168. 206- Os costumes observados pelos omaguas, nessas circunstancias, corrcspondem totalmente aos que acabo de resumir. Apenas se nota uma diferença: as moças omaguas não são tatuadas e recebem, na ocasião das provas, o nome, que deverão usar desse momento em diante. As cerimonias, destinadas a torná-las mais laboriosas e a pô-las ao abrigo de qualquer mal, eram celebradas com certa solenidade, - o que se explica em face do grau avançado de civilização atingido pelos mencionados aborígenes.' As cerimonias matrimoniais IV. Casamento. eram extremamente simples. A tribu por inteira participava de uma grande festa, que consistia em beber, no fim da qual entregavam ao casal uma rede nova em folha. O noivo tinha autorização, pela primeira vez, para provar o cauim, que lhe era oferecido por uma pessoa de idade. Essa pessoa de idade, enquanto o jovem bebia, sustentava-lhe a cabeça, com receio de que algumas gotas pudessem cair em terra. Um tal acidente. era, com efeito, pressagio de que o recemcasado não se comportaria, na guerra, com bastante valor2 (s). 1 Maroni, t. XXX, ps. 194-195. 2 Cardim, ps. 163-164. -207 NOTAS AO CAPITULO IX (ESTEVÃO PINTO) (a) Congnomi-meri. Aliás, cumm~ ou curumim (menino) e miri (pequeno). Cherouy me parece uma corruptela de che (meu) e tamuia (avô), ou seja, o mesmo chéramoin de Y. d' Évreux ( o.c., p. 85). Aliás, encontramos che-ruwy (tio paterno em teneteara e em caiuá). Cf. J. Philipson, O parentesco tupiguarani, p. 17, São Paulo, 1946. Kunumi, diz Florestan Fernandes (o.c., p. 226), significa mocidade, enquanto Kugnatim é rapariga. Abrangia a idade entre os 8-15 para os honíens e os 7-15 para as mulheres. Terminava com a puberdade. Sobre Cherouy, cf. o.c., quadro entre as ps. 168-169. ( b) A respeito das superstições de diversos povos no tocante ao côto umbelical, cf. Ploss, Das Kinà im Bramch unà Sitte àer Volker, 1911. (c) Thevet dá outras variantes (ltaoungue, Itaougane), acrescentando que . o seu sentido é honra ou reverencia. Talvez de aitanongába, oferecer, ofertar. Cf. O caderno àa língua, cit., p. 234. (à) Óuahotul8souh vem, talvez, de uyrá ou guyrá (passaro), iub ou juba (~mareio) e açu (grande). Ou melhor, guiraju-agu, passaro amarelo grande. Provavelmente o gavião de penacho ou gavião real (nome comum a duas aves da familia dos falconideos, o Thrasaetus harpyia L. e o Morphnus guyanensis Daud.). O Outa-ouram pode ser o urutaurana, que é tambem identificado com o gavião de penacho (Oliverio M. de Oliveira Pinto, Catalogo dM Aves ào Brasil, I, p. 80, Rio, 1939). (e) Amy. Aliás, ini (rede), ou 'nin. -208- (/) O Oapiigouare é o mesmo Oapyyuaro de C. d' AbbeDe capyi (capim) e guara (o que come). (g) Choroup. De cho (meu) e tup, tupa (pai, chefe). Em J. de Léry (o.c., p. ·264) encontramos cho rub (segundo o texto restabelecido por Plinio Ayrosa), com a significação de filOU pai. (h) Ouic é o mesmo que ui (farinha d'ngua). (i) Tokéaip. No Voe. na Ling. Bras., cit., encontramos i'igué~aíba, camaras não de §angue, mas perigosas. Tiguo é ventre e aib, mau, ruim. (j) O Orapa é o arco. Uira pára no "Dicionario Português-Brasiliano", cit., ordenado por Plínio Ayrosa. Guirapá é como vem no Bocabulario de la Lengua Guarani por Antonio Ruiz do llfontoya, pub. por Julio Platzmann, p. 182, 11, Leipzig, 1876. Orapá escreve Léry, que Plínio Ayrosa diz ser uma adulteração de ybyrá-apara, pau arcado, madeira encurvada (Viagem à Terra do Bra.'lil, cit., p. 169). O problema do parto e dos primeiros cuidados com o recémnascido, entre os antigos índios do Brasil, foi desenvolvido por mim em Actas Ciba, XIII, n. 8, 1946.. (k) Sobre o choco ou covada, cf. ainda fr. Vicente do Salvador, o.c., p". 51; D. de Loreto Couto, o.c., p. 62; Dialogoa, cit., p. 267; C. Tcschauer, Paranduba, cit. p. 198. A covada entre os 15uianenses é estudada por E. im Thurn, Among the Indiana of Guiana, p. 217, Londres, 1883. L. da Camara Cascudo (Informação, cit., ps. 171 sq.)· consi~ dera a covada uma exibição dos direitos exclusivos da paternidade; Raglan (Le tabou et l'inceste, ps. 207-208, Paris, 1935) acredita que esse costume está ligado à comunicação da essencia vital: é. o preço que o pai paga pela imortalidade. Cumpre notar, entretanto, que a covada foi .observada entre povos onde a criança é um membro da classe maternal (cf. Westennarck, o.c., 11, p. 199, Paris, 1929). Conclue H. Baldus (Ensaio3, cit., p. 125) que, segundo os resultados mais modernos das pesquisas, · o fim da covada é defender a criança dos males que, nos pri· ville. -209- meiros tempos da vida, é imaginada em conexão direta com o pai. O costume em apreço tem uma vasta distribuição e é característico da civilização indígena do Brasil, segundo uma frase de R. R. Schüller ("A covada", em Revista Americana, I, n. 12, p. 368, Rio, 1910). (l) Aliás coema (Stradelli, "Voe.", cit., p. 420), que significa manhã. (m) Quioundu-ar. Ou melhor 1'iemôndiá (o•primeiro fluxo menstrual), segundo o Boc. de la Leng. Gua. por A. R. de l>fontoya, cit., II, p. 173. Métraux desenvolveu, posteriormente, o tema dos ritos de puberdade entre as moças índias sul-americanas. Cf. lUtos de transito de los índios americanos, cit., 19·15. (n) Çapugouare. O mesmo que capiigouare (veja letra e). Provavelmente erro tipografico. (o) Maé, por mbáé ou mbaiá. "Na efervescencia da luta entre o Paraguai e o Brasil, os paraguaios chamavam - Mbaiá - aos brasileiros, isto é, coisa ruim, coisa que de homem, de gente, só tem a figura; de Mbá, coisa, uiua, ruim, e á ( abá) homem, gente" (Afonso A. de Freitas, Vocabulario nheengatu, p. 117, São Paulo, 1936). • (p) Pororoipok. Seg. o Voe. na Ling. Bras., cit., a primeira menstruação era fiemondyra e a segunda jepareroipoka. Diz Plinio Ayrosa que a tradução de Thevet sugere pororok, rebentar, desatar-se. (q) Jenipap. O mesmo que jenipapo ou jenipapeiro. (r) Aikoaip. Diz P. Airosa que é, sem duvida, o verbo ikoaib, que se conjuga aikoaib, estou menstruada, etc. (s) A respeito das cerimonias do casamento entre os tupinambás, cf. Estevão Pinto, Os Indígenas do Nordeste, II, cit., ps. 251-252. Ainda sobre o assunto, é indispensavel a leitura da obra citada de Florestan Fernandes, - a exegese mais perfeita e completa que já se fez, até hoje, da organização social dos tupinambás. -210- CAPITULO X CERIMONIAS FUNERARIAS E CRENÇAS NO ALEM-TUMULO Todo individuo, cuja molestia era considerada incuravel, ficava entregue à sua sorte. Ninguem mais lhe prestava atenção, "pois, desde o momento em que a morte era inevitavel, já não havia necessidade de alimentá-lo ou cuidar dele". Quando, porem, o doente entrava em agonia, seus parentes precipitavam-se so~ bre ele com tal ardor que, muitas vezes, acabavam por sufocá-lo. 1 Os que não podiam aproximar-se do moribundo, atiravam-se ao chão com toda a força. 2 Ao mesmo tempo prorrompiam de todas as partes "urros, gritos e lamentos mesclados com uma musica tão variada em sons fortes, agudos, baixos e infantis que era impossível o coração não enternecer-se". 1 Soares de Sousa, p. 841. 2 Cardim, p. 177. Os guaranis e os itatins manifestavam seu desespero pela morte de algum parente precipitando-se sobre o solo de um lugar elevado. Cf. Techo, p. 124 e Annure litterre, p. 429: "Varai non adeo superstitiosi: nec tamen fv.nerwm negligentes. Ut quis mortuus est, qui sunt ecc eodem genere, ad parientem solumve allidunt caput, corpus etiam ecc alto prrecipitqs agunt, quasi querente1 mortem, per 1peciem mre1fifi1 mira diebv.• {11til cr'~Wem"!"· -2ft- Segundo Yves d'Évreux, 1 os ultimos instantes do doente não dariam lugar a cenas tão violentas: "Quando os indios estão nas vascas da morte os parentes (e em geral tambem os seus companheiros) cercam-lhe o leito, os mais velhos em primeiro lugar, de acordo com a idade; ninguem diz palavra, somente todos olham atentamente o doente, derramando lagrimas continuas." O pranto ritual era entoado apenas pelas mulheres, particularmente pelas mais velhas; os homens jamais versavam lagrimas em casos de luto. 2 Outrora, porem, os velhos faziam exceção: se algum deles morria, choravam-nos os outros à maneira das mulheres. 3 Todos os vizinhos e parentes eram convidados a tomar parte nas manifestações de dôr. "E nisto (diz Cardim 4 ) (a) têm tambem seus pontos de honra, e aos que não choram lançam pragas, dizendo que não hão de ser chorados>~. Falecendo algum chefe, o luto tor"" na-se geral em toda a aldeia. "Depois que o corpo é assim chorado (conta Yves d'Évreux 5 ), o principal da maloca ou da aldeia, ou o seu maior amigo, fazia comovente discurso, batendo muitas vezes no peito e nas coxas e contando as façanhas e proezas do morto. Há. alguem - dizia no 1im do sermão - que tenha queixa dele? Não procedeu o morto, em sua vida, como fazem os fortes e os valentes?". Entre os tupinambás do Rio de Janeiro, o elogio do morto era feito pelas mulheres, que interrompiam os lamentos com dialogos, cujo teor é _dado por Léry.t> 1 2 3 4 P. 125. Soares de Sousa, p. 324. Yves d'Évreux, p. 84. P. 177. 5 P. 126. 6 T. 11, p. 118. -212- "Morreu (berravam algumas, arrastando a voz) quem era tão valente e tantos prisioneiros nos deu a comer! - Era (replicavam outras, no mesmo tom) um bom caçador e excelente pescador! - Que bravo matador de portugueses e marac~jás (exclamavam as restantes)! Como nos vingava! - Assim, excitando-se mutuamente, os braços nas espaduas umas das outras, não cessam as ladainhas dos louvores, enquanto o càdaver estiver presente. E contam minuciosamente tudo que em vida o defunto praticou". Nenhuma descrição das cerimonias funebres dos índios tupinambás iguala, em precisão e em colorido, à que Thevet nos deixou em sua Cosmografia Unlversal;1 convem transcrevê-la na integra, mesmo quando ela repete os trechos precedentes: "Quando, entre esses selvagens~ falece algum chefe-de-familia, quer na · guerra, quer de velhice ou por acidente, suas mulheres cortam o cabelo bem rente, depois de arrancar-lhe parte com horríveis choros e piedosos lamentos, que prosseguem, não por dois ou três dias, mas por espaço de metade do ano. Todavia, o luto pesado dura apenas os quatro ou cinco dias após o traspasse. É horrível oúvi-los gritar, por ocasião desses lamentos, - harmonia tão agradavel quanto o barulho feito por gatos e cães se pegando uns com os outros. Vereis então, deitados uns em suas redes, outr'os acocorados; abraçarem-se reciprocamente, fazendo mil gestos de tristeza, enquanto as mulheres exclamam - Chérémimotarouére ymen (esse ymen é pronunciado em cerca de quatro ou cinco tons), depois do que suspiram assim- Eh hé héhé hé heh, em seguida- Éh hé, heh, · héh, heh (tambem em dois tons e meio, aproximada1 (2), foi. 926. -213- mente, sendo que, pela quarta vez, o hé é cantado em um tom e meio). E tais prantos e lamentos, se fôssem traduzidos em nossa lingua, significaria - ó, aquele a quem tanto amei! Os filhos e os demais parentes exclamam, do mesmo modo - ó, morreu nosso pai e amigo! Era homem de bem, tão valente na guerra! Ele, que dizimou tantos inimigos! Que era tão possante e forte! Que cuidava tão bem dos campos e apanhava tanta caça e tanto peixe para o nosso sustento! Foi-se; não o veremos mais, a não ser depois que morrermos, quando, então, iremos para a sua companhia, para a região da qual nos falam os nossos pagés! Enfim, empregam os selvagens inumeros desses choros, tão longos que não é possível descrevê-los toáos, -repetindo-os mil vezes, sem parar, por espaço de cinco dias. E só então põem o defunto em süa cova, como o procurei mostrar no desenho junto, apanhado em flagrante". Em geral, os tupinambás manifestavam uma pressa extrema de enterrar o defunto. Logo que supunham o individuo morto, corriam a preparar os funerais. Acontecia-lhes até amortalhar pessoas, que ainda não tinham soltado o ultimo suspiro. 1 O fosso devia ser aberto pelo mais proximo parente do morto. Se o marido perdia a mulher, cabia-lhe esse dever, assim como transportar o corpo ao local onde o mesmo tinha de ser amortalhado. Quando os índios vioham buscar o cadaver para o sepultamento, acompanhavam-no parentes, em pranto e com os cabelos esparsos, só cessando a choradeira quando a cova era recoberta de terra. 2 1 Soares de SoUM, p. Ml. Id., p. MO. 2 ._ 2'14- O processo do amortalhamento é descrito por Thevetl com a sua precisão habitual: "Quando morre o marido, ou a esposa, ou outro qualquer parente, pais, mães, tios ou irmãos, - os selvagens curvam-no, dentro da propria rede onde falece, dando-lhe a forma de uni bloco ou saco, à semelhança da criança no ventre materno; depois, assim envolvido, ligado e cingido com cordas de algodão, metem-no em um grande vaso de barro, cobrindo-o com a gamela onde o defunto costumava lavar-se (receando, segundo dizem, que o morto ressuscite, se não está bem amarrado, 2 temor, aliás, muito grande, pois crêem que isso já aconteceu a seus avós, motivo pelo qual convieram em tomar tal precaução). Isso feito, deitam o cadaver em determinada cova, redonda como um poço, pouco mais ou menos da altura de um homem, pondo-lhe junto fogo e farinha, pois temem a aproximação dos espíritos malignos. Julgam, tambem, que, se a alma tiver fome, não lhe deve faltar comida. Em seguida, cobrem tudo com a terra tirada do fosso. Em se tratando de um chefe-de-família, enterram-no em casa, no proprio local onde costumava dormir; se é uma criança, o morto é sepultado fora e atrás da oca. Alguns o são nas plantações e outros nos sítios de sua preferencia. E isso é bastante para dar idéia do atraso e simplicidade dessa gente" (Est. 11, fig. B). A descrição acima precisa ser completada, porquanto apresenta algumas lacunas como se poderá julgar do seguinte trecho de Soares de Sousa: 3 "Primei1 (2), foi. 925 v. 2 Cf. Cardim, p. 177. Yvcs d'Évreux (p. 128) observa que os ligamentos não devem ser muito apertados, do contrario o morto se sentiria preso dentro da tumba. a P. a4o. - 215 ramente -o untam com mel todo, e por cima do mel o empenam com penas de passaros de cores, e põem-lhe uma carapuça de penas na cabeça, e todos os mais enfeites que eles costumam trazer nas suas festas; e têmlhe feito na mesma casa e lanço onde ele vivia, uma cova muito funda e grande, com sua estacada por de redor, para que tenha a terra que não caia sobre o defunto, e armam-lhe sua rede debaixo de maneira que não toque o morto no chão; em a qual rede o metem assim enfeitado, ,c põem-lhe junto da rede seu arco e flechas, e a sua espada, e o maracá com que costumava tanger, e fazem-lhe fogo ao longo da rede para se aquentar, e põem-lhe de comer em algum alguidar, e agua em um cabaço, como galinha; e como esta matalotagem está feita, e lhe põem tambem sua cangoeira de fumo na mão, lançam-lhe muita soma de madeira igual no andar dà rede de maneira que não toque no corpo, e sobre esta madeira muita soma de terra, com rama debaixo primeiro, para que não caia terra sobre o defunto; sobre a qual sepultura vive a mulher como dantes" (b). Comparando os dois trechos, vê-se que a precaução dominante era evitar a pressão direta da terra sobre o morto. Atingia-se esse desideratum nos dois casos, com menos esforço quando, em lugar da construção da camara funeraria, punha-se o corpo na urna coberta de um vaso ou cabaça. Ambos os processos de sepultamento eram usados pelos tupinambás. 1 Antigamente parece ter sido regra entre indígenas abrir a tumba na propria oca onde habitara o defunto. No I Cf. Métraux (1), ps. 271-272. Segundo Soares de Sousa (p. 430), só as crianças eram inumadas em urnas; os adultos enterravam-se no proprio solo. - 216 seculo XVI, porem, tal costume parece ter sido observado apenas em relação aos velhos e .às pessoas de consideração. I A gente comum, ao que parecé, era enterrada fora das habitações. Todavia, os índios não esqueciam de erigir no tumulo uma choça ém miniatura.2 A presença de um tecto por sobre a sepultura era, provavelmente, julgada indispensavel, pois, quando os tupinambás abandonavam alguma aldeia, destruíam as habitações, mas tinham o cuidado de depositar folhas da palmeira pindó (c) no local onde repousavam seus antepassados, não só com o fim de reconhecê-lo posteriormente, como, também, segundo parece, para evitar que o solo da sepultura ficasse a descoberto.3 Junto ao morto enterravam-se suas armas e utensílios, assim como todos os objetos que lhe pertenceram em vida. Entretanto, os ·Objetos por ele ofertados a outrem, durante a sua existencia, deviam ser restituídos. "Se alguem possue qualquer coisa pertencente ao defunto, deve guardá-Ia cuidadosamente e restitui-la à vista de todos, para que a coisa em questão seja enterrada com o morto; de outro modo, acreditarão os selvagens que a alma, após separar-se do .corpo, virá molestá-lo pelo fato de a pessoa conservar o alheio". Em compensação, todos os objetos recebidos, pelo morto, na qualidade de presentes, retornavam aos seus antigos proprietarios. 4 1 Léry, t. II, p. 119; Soares' de Sousa, p. 339. 2 Cardim, p. 178; Nobrega, p. 93. a Léry, t. n, p. 121. 4 Thevet (2), fols. 925-926; Cardim, p. 177; p. LXXXIII. -217- Va~concelos, Alimentos e bebidas eram regularmente depositadas na tumba do morto até que o corpo ficasse completamente corrompido. 1 Os tupinambás explicavam esse costume dizendo que, "se Anhan não encontrasse outras carnes perto da sepultura, desenterraria o morto para o fim de devorá-lo". Yves d'Évreux 2 surpreendeu, certo dia, uma india cristianizada, que espalhava milho na. cova do marido; interrogando a razão do seu ato, respondeu que assim procedia pelo seguinte motivo: "se lhe damos comida, o morto toma-a e vai-se erribora". Em seguida a um obito, ordenava o feiticeiro, em certos casos, que todos os moradores da aldeia se banhassem para evitar a ameaça de um grande surto epidemico. 3 A inumação do cadaver não punha fim às manifestações de dor de seus parentes. "Depois d~ enterrado o defunto (diz Cardim 4 ) os parentes estão em continuo pranto de noite e de dia, começando uns, e acabando outros; não comem senão de noite e armam as redes junto dos telhados" (d). As mulheres tingiam-se de jenipapo e, no segundo dia, cortavam o cabelo,S visitando frequentemente o tumulo e perguntando ao morto, chorosas, se ele ainda não teria partido. 6 As parentas e amigas da viuva vinham vê-la na choça e esses encontros davam lugar a novas explosões de dor, nas quais todos tomavam parte. Os homens, que, de ordinario, se tonsuravam cuidadosamente, deixavam 1 Léry, t. H, p. 120; Cardim, p. 178. 2 P. 128. 3 Claude d' Abbeville, foi. 325 v. 4 P. 178. 5 Soares de Sousa, p. 340. 6 Cardim. p. 178. -218- ' crescer a cabeleira e pintavam-se com tinta de . jenipapo. O luto durava, no mínimo, uma lua. Era obser~ vado pela mulher, pai, mãe, irmãos e filhos do defunto. Terminava, para as mulheres, quando os seus cabelos cresciam tanto que já podiam cobrir-lhes os olhos. Os homens tinham mais liberdade; era-lhes permitido tirar o luto quando bem o desejavam. • Quando a pessoa julgava ter cumprido todos os seus deveres em relação ao morto, organizava um cauirn: "Seis meses após as exequias, esposa e filhos do falecido convidavam os parentes e amigos para homenagear a memoria do defunto. Tais exequias não são tão tristes como as primeiras. Nessa ocasião, os selvagens pranteiam o morto, pintados e empenachados, reunindo-se em casa do filho, onde fazem dansas e jogos em sua honra". 1 Na vespera, a pessoa de luto pinta-se de preto, corta o cabelo e, em companhia dos amigos, passa toda a noite a cantar. No dia seguinte, tem lugar a festa do cauirn. Todo o mundo, então, bebia a mais não poder e, dansando, cantava louvores ao morto ou .à morta, assim como à pessoa a tirar o luto. Essa festa só desligava aquele que a organizava. Quem quer que quisesse tirar o luto, tinha obrigação de oferecer um cauirn especial, realizando todas as praticas acima indicadas para retomar o curso normal da sua vida. Após a festa, as mulheres aparavam outra vez a cabeleira. 2 Quando alguma viuva tomava a resolução de permanecer fiel ao marido, não se pintava de jenipapo, nem assistia às festas da bebida, observando, demais, a castidade. 3 I Thevet (2), foi. 927. 2 Soares de Sousa, ps. 840-341. 3 Léry, t. li, p. 121. -219 Todas as vezes que as mulheres passavam junto ao local de suas antigas aldeias, outrora habitadas, prorrompiam nos seus prantos rituais. Diversos motivos, que se ignoram, poderiam provocar, a dado momento, a explosão dos lamentos funerarios. Nos campos, em viagem, acontecia que as mulheres caíam inopinadamente em pranto. A Yves d'Évreux, t que lhes • perguntou o motivo desse choro, responderam as indias: "Ah!.... Recordamo-nos da morte de nossos filhinhos". · Crenças na vida futura. - Thevet,2 tendo indagado de um chefe tupi se o mesmo acreditava que as almas sobreviviam, após a destruição do corpo, respondeu-lhe este furiosamente: "Omahiri-mohan (e), ou seja, em sua lingua- Malvado! Não sabes que, após a morte, nossas almas vã·o para regiões longínquas, agradaveis e cheias de delicias, onde estão todas reunidas? Não sabes que os nossos caraibas, conforme nos dizem, as visitam e lhes falam frequentes vezes? E as almas aparecem muito aos nossos filhos? Vejo que não nos acreditas, como se quisesses favorecer aos nossos inimigos, que, na verdade, vivem presos e garroteados por esse Hipouclzi agnan, o quotioso (f). Mas, se queres ser nosso aliado, não duvides do que digo". A alma unida ao corpo chamava-se An; quando separada tinha a designação de Angouere (Angueira), segundo Yves d'Évreux3 e Marangigoana no dizer de Marcgrave 4 (g). Essa ultima palavra teria significado, igualmente, "tudo o que anuncia morte iminente, I P. 80. 2 Ms. inedito, fol 98. 3 P. 283. 4 P. 279. -220- coisa pouco clara ao proprio gentio brasileiro e, por semelhante razão, tão temivel que o mesmo desfalecia sob o puro efeito desse terror vão e subi to". Quando o morto era enterrado no fosso, ao lado das coisas de sua necessidade, parentes e amigos "despediam-se dele, incumbiam-no de recomendá-los a seus pais e avós, que dansavam alem das montanhas dos Andes, lugar para onde julgavam ir após a morte; nes-. se momento, davam-lhe presentes destinados a seus amigos, cada qual exortando-o, entre outras coisas, a ter animo afim de fazer boa viagem". "Primeiramente, devia o morto evitar deixar extinguir-se o fogo; em seguida, recomendavam-lhe não passar pela terra dos inimigos e, finalmente, não esquecer, •quando dormisse, em algum lugar, os seus machados e foices" . 1 Essas recomendações testemunham a crença dos tupinambás em uma serie de provas, pelas quais a alma teria de passar antes de atingir a região da eterna felicidade. Consolida ainda mais essa suposição o fato de os apapocuvas,2 os guaraius 3 e os chiriguanos4 possuirem tradições muito pormenorizadas a respeito dos perigos passados pela alma em sua peregrinação ao paraiso. Entre as precauções, que a alma de um indio guaraiu deve tomar, afim de vencer os obstaculos, figura precisamente a de não deixar apagar o fogo, durante a travessia desse país obscuro no qual o morto se arrisca a perder o caminho. É então que o defunto utiliza o molho de palha, que foi posto em sua tumba. São numerosos os inimigos, que o esprei1 Yvres d':évreux, p. 127. 2 Nimuendajú (I), ps. 308-309. 3 Cardús, ps. 81-86. +· Nino, p§. IH-142. - 221 tam no caminho; só à custa de muitas penas consegue · o morto livrar-se deles. Quando o defunto se aproxima da terra, onde vivem os seus antepassados, deve bater com um bastão de marcar o ritmo afim de assinalar a sua pres~nça ao "Ancestral", o heroi-civilizador. Lembremo-nos que· todo tupinambá levava para o tumulo o seu chocalho. Estavam os guaraius persuadidos de que a felieidade, reservada .à alma, não a impedia de trabalhar. É por uma concepção identica da vida futura que se pode explicar o cuidado, tido pelos tupinambás, de dotar o morto de todos os instrumentos agrícolas por ele utilizados em vida. Vasconcelos/ aliás, di-lo explicitamente: "Uns· os enterram em um vaso de barro, que chamam igaçaba, com sua foice, e enxada ao pescoço, ou semelhante instrumento de seu trabalho, para que possam na outra vida fazer suas plantas, e não mor.:. ram de fome" (h). As almas dos que foram devidamente vingados ~ devoraram muitos inimigos "vão para alem das altas montanhas, em companhia das almas dos seus avós". 2 Esse lugar de repouso, onde as referidas almas "dansam sempre, sem que nada lhes falte", 3 estaria situado para alem dos Andes, dos quais, possivelmente, os tupinambás deviam ter uma vaga ideia. Os tupinambás representam esse paraiso como um lugar prazenteiro, recoberto de florestas e regado por maravilhoso rio, em cujas margens se viam enormes arvo·res.~ Era em tal país que vivia o heroi-civilizador. "Crêem (diz 1 P. 88. 2 Léry, t. 11, p. 62; Thevet ( 1), p. 181; Claude d' Abbeville, foi. 323. 3 Yves d'Évreux, ps. 283 e 127. 4 Cardim, p. 162; Marcgrave, p. 278; Thevet (2), foi. 1123. -222- Claude d'Abbeville') que as almas - que consideram imortais, - quando se separam do corpo, são transportadas para alem das montanhas, onde se encontra o antepassado, o avô, isto é, para um lugar chamado Ouiiloup~a (i), se, em vida, procederam bem. E assim vivem lá como num paraiso, dansando, saltando e divertindo-se sem cessar". Os tembés, os guaraius e os apapocuvas-guaranis têm a mesma crença. O acesso ao paraiso era interdito às almas dos efeminados e das pessoas insignificantes, que não porfiaram em defender o seu país" .z As almas das mulheres só dificilmente conseguiam alcançá-lo, sendo lá admitidas apenas as chamadas "mulheres virtuosas'? isto é, as esposas dos bravos, que haviam morto e devorado muitos inimigos. 4 Os chipaias, que são, a exemplo dos guaranis, uma nação belicosa, acreditam que as almas são acolhidas, na região dos mortos, a golpes de pau, se, porventura, as mesmas não podem exibir um colar de dentes humanos. Esse colar facilita-lhes uma recepção mais amistosa. 5 "(j). 1 2 8 4 ó Fol. 828 v. Léry, t. 11, p. 62; Thevet (1}, p. 181: Nieuhof, p. 220. Yves d'Évreux, p. 288. · Nieuhof, p. 220. Nimuendajú (8}, p. 868. -223 NOTAS AO CAPITULO X (EsTEVÃO l'lNTO) (a) O trecho vai citado conforme o original português. :f: jlem duvida (diz P. Ayrosa) che remimotarueimã (6, o que foi meu querido!). O mã final é partícula que exprime dor, ®vida. ( b) O trecho de Gabriel Soares de Sousa é transcrito de acordo com o original português. Foi citado por Métraux com supressão de uma ,frase. c) Aliás, pindo ou pindoba. Piadó (palma) ep1 Montoya. A pindoba, conforme observa Pirajá da Silva_ (em Gabriel Soares de Sousa, o.c., 11, p. 27), poderia ter sido qualquer uma das palmeiras hoje classificadas como a A ttalea pindobcusu Bondar, a Attalea concentrista B., a Attalea burretina B., etc. Talvez a Attalea compta, Mart. Cf. a nota a, cap. III. (d) Veja-se a nota a, acima. (e) Omahiri...anohan não significa "o mau", como supõe Thevet. Mair-mohan (veja-se o cap, I) era o nome dado pelos tupinambás aos seus herois-civilizadores, inclusive aos europeujl, a quem emprestavam, algumas vezes, essa qualidade. (f) Hipouchi agnan, o quotioao. As duas primeiras palavras !'ignificam o mau, o diabo. O resto da frase é duvidoso. (g) Marangigoana diz Marcgrave que não era divindade, mas a alma separada do corpo, ou outra coisa, anunciando o -224- in.etante da morte ( ed. cit., p. ~?'9). Plínio .A.yrosa observa que o termo !iignifica desordeiro, bulhento, trocista. Era o nome do espírito mau, conhecido tambem por marangiguara, maranigua.ra, etc. O Angotúire tem relação com o Kaagerre de Ury. Che anguera, minha alma, depois de ter saido do corpo (Léry, o.c., p. 262). (h) O trecho de Vasconcelos é transcrito conforme o original português. (i) Cf. o cap. V, nota e. (j) Métraux, recentemente, voltou ao assunto: Mourning Rites and Burial Form8 of the South American Indian8, em América Indígena, VII, México, D. F., 194.1. - 22~- CAPITULO XI A ANT~OPOFAGIA RITUAL DOS TUPINAMBÃS1 Durante os combates, os tupinambás visavam sobretudo à captura de prisioneiros, denunciando antecipadamente essa intenção ao conduzirem consigo cordas enroladas em torno do corpo. Após a luta preli1 No presente capitulo, procurei reunir em um todo os pormenores abundantissimos, que se possue a respeito da antropofagia ritual dos tupinambás. Para evitar chamar constantemente o leitor às mesmas referendas, julguei preferível dar, adiante, de uma só vez, a indicação dos autores .e dos trechos de onde foi extraida a descrição em apreço; Léry, t. II, ps. 4.5-58; Thevet (1), cap. XL, - (2), fols. 920 v., 923, 927 v., 932, 94.4.-94.7 v., - ms. inedito, f ois. 53-62 v.; Staden, párt. I, caps. XVIII, XXVIII, XXXVI, XXXVII e XL e part. II, cap. XXIX; Cardim, ps. 181-194.; Soares de Sousa, ps. 333-339; Gandavo, ps. 51-53 e 138-14.2; Nobrega, p. 93; Anchieta (3), t. I, p. 70 e t. II, ps. 99-106, passim; Knivet, ps. 222 e 24.7-24.8; Claude d'Abbeville, fols. 282 v., 290 v. e 295; Yves d'Évreux, ps. 4.6-56; Pezieu, ps. 12-16; Vasconcelos, ps. 81-83; Vicente do Salvador, ps. 32-33. Os mais antigos documentos concernentes à antropofagia dos tupinambás são: Vespucio, carta; Gaffarel, peças justificativas, p. 4.98; Fonteneau, ps. 4.12-4.13; a carta de Ramirez, em Medina, t. I, p. 4.4.3; Pigafetta, ps. 18-19. A antropofagia dos tupinambás foi estudada muito sumariamente por André & Friederici (2) e (3), ps. 124.-127. Breve alusão à antropofagia dos tupinambás é feita na obra de Pyrard de Lavai, p. 338. O capituJo de Coréal (t. I, ps. 214.-222), con~agrado a esse assunto, é um plagio de Léry. -226- minar, .à distancia, que durava algum tempo, os guerreiros de ambos os campos precipitavam-se uns contra os outros, cada qual se esforçando por desarmar o seu adversario e aprisioná-lo vivo. Um homem, só, raramente conseguia esse objetivo, se não era auxiliado por seus correligionarios. Sendo a captura do inimigo uma façanha rigorosamente individual, a· regra mandava que o prisioneiro pertenceria àquele que primeiro o tivesse tocado; mas como, no ardor da peleja, nem sempre era facil saber' a quem cabia tal honra, irrompiam, muitas vezes, querelas assás violentas. Para resolv.er amigavelmente a contenda, decidia-se, frequentes vezes, executar sem demora o prisioneiro e dividir sua carne pelas pessoas componentes da expedição. Sucedia, entretanto, que o chefe da tribu, de quem dependia o guerreiro vencedor, se esforçava por fazer prevalecer seus direitos, declarando que o capturado devia ser conduzido, vivo, à aldeia, para que as mulheres pudessem vê-lo e celebrar o fato com o cauim da revanche. Antes de deixar o campo da batalha, desmembravam-se os cada veres; suas partes, depois de assadas, devoravam os índios no proprio campo de batalha, quando as não levavam para a aldeia. Os tupinambás cortavam tambem os orgãos genitais das mulheres e das crianças mortas durante a luta, dando-os às suas esposas, que os preparavam ao moquem e os serviam por ocasião das grandes festas. . Os prisioneiros feridos eram dizimados e devorados imediatamente. Então tinha lugar a seguinte cerimonia, ·cuja autenticidade não se pode garantir em vista de ter sido relatada por uma só das fontes: assim que era feito algum prisioneiro, aquele a quem cabia a honra da captura retornava à aldeia, afim de anunciar a boa nova e, logo ao chegar, seus amigos atiravam-se a ele, -227- despojando-o de todos os ornamentos e armas, inclusive da rede, dos utensilios domesticas e das provisões; nesse momento, então, o guerreiro recebia novo nome e as velhas mulheres lançavam-lhe cinza preta nas costas "para recompensá-lo do seu prejuízo" (explica Thevet). Se o homem trazia consigo carne humana moqueada, as mulheres arrancavam-lhe o cesto, onde a mesma estava, devorando-a. A cesta, uma vez vazia, era escrupulosamente restituída ao dono pela mulher, que exercia certa autoridade sobre as demais. Todas as velhas, que haviam provado a carne, mudavam de nome, no dia seguinte. A passagem do ms. inedito de Thevef/ de onde são extraídos esses pormenores, descreve um conjunto de praticas, que, segundo confessa esse autor, são observadas todas as vezes que algum membro da tribu mata outro homem, ritualmente ou em campo de batalha. Segundo se verá, a pilhagem dos bens do matador tinha lugar após cada massacre cerimonial. Como nenhum outro autor faz alusão a tais medidas tomadas em favor do homem, que fez algum prisioneiro, pode conjeturar-se se Thevet não teria cometido engano, tomando por dono do prisioneiro o proprio matador, de volta à sua aldeia com a nova da mensagem da vitoria. Seja como for, desde que era conhecido o feliz resultado da empresa, as velhas mulheres da tribu passavam a noite ao claro, batendo na boca com a mão e gritando a mais não poder, só para manifestar sua impaciencia pela chegada dos vencedores acompanhados do prisioneiro. Durante esse tempo,_a tribu vitoriosa batia em retirada com o saque. Se o prisioneiro parecia, de certo modo, perigoso, passavam-lhe quatro cordas em torno do pes~ 1 Foi&. 59 v., 54. e 54. "· -228 coço e ligavam-lhe as mãos abaixo do queixo. Era o mesmo, então, insultado e maltratado, anunciandolhe todos, rejubilantes e em claros termos, a sua sorte, com morder a parte do corpo que ansiavam por devorar. Durante a contra-marcha, o prisioneiro era amarrado, todas as noites, a uma arvore; davam-lhe, entretanto, uma rede para que o mesmo dormisse comodamente. Os que se encarregavam de trazê-lo preso, diziam-lhe por motejo: "Eis o meu bichinho cativo" ( Est. V, fig. A). A expedição vitoriosa fazia uma entrada triunfal em todas as aldeias aliadas, que §C encontravam em caminho, e, em caso de acampar, o chefe, a quem cabia a hospitalidade, convidava os vencedores a tomar, cada qual, o se..l:l prisioneiro e a conduzi-lo até a paliçada em torno das ocas. Formava-se, então, um circulo em redor dos prisioneiros, aos quais se entregavam maracás para que eles o agitassem ao dansar. Cada prisioneiro, em seguida, ·era autorizado a dirigir aos guerreiros, que o traziam capturados, o seguinte discurso: "Partimos, como fazem os bravos, para · prender-vos e devorar-vos, a vós,. nossos inimigos. Fostes, porem, mais felizes e caímos prisioneiros. Não nos queixamos da sorte. Os valentes de verdade morrem na terra dos seus inimigos. Nosso país é grande e os patrícios se vingarão de vós". Ao que respondiam os assistentes: "Matastes muitos dos nossos amigos e, por isso, tiramos vingança". 1 Antes de reentrar na aldeia, o dono do prisioneiro raspava-lhe as sobrancelhas e os cabelos da parte superior da testa. Exteriormente, pelo menos, era impossível distinguir o escravo dos demais guerreiros tu1 Staden, part. I, eap. XLIV. -229- pinambás, cujos sinais característicos eram, entre outros, a tonsura frontal em forma de meia-lua e a ausencia de pêlo na face ou em qualquer parte do corpo. O cativo era, alem disso, ungido de, resina ou de mel, onde colocavam apenas, paramentando-o os índios, ainda, com os mais belos ornamentos plumarios usados pelos tupinambás. Se, aproximando-se da aldeia, a tropa encontrava as mulheres, obrigava-se o prisioneiro a gritar-lhes: "Eu, a vossa comida, cheguei". A coluna fazia alto a certa distancia da aldeia. Construíam-se algamas choças de palha de palmeira, nas quais os vencidos deviam alojar-se enquanto os guerreiros iniciavam uma bebedeira, que poderia durar de três a quatro dias. A entrada triunfal só tinha lugar quando os prisioneiros éram conduzidos .à tumba dos antepassados de seus donos, sendo, então, obrigados a "renová-la", isto é, a limpar a sepultura. 1 Logo que se espalha a noticia da volta dos expedicionarios, todos acorrem ao encontro dos vencedores. As mulheres, sobretudo as velhas, manifestam sua alegria, batendo na boca com a palma da mão, ao mesmo tempo que gritam, saltam e dansam. Nesse ínterim, retine o som das flautas, construídas com os ossos dos inimigos mortos anteriormente. E os guerreiros entregam o prisioneiro aos cuidados das mulheres, que o prendem e conduzem à cabana, ao meio de dansas e 1 Thevet (2), foi. 944: "Retornando a casa com esses saques, os índios manifestam enorme alegria, com as fanfarras, jogos, gritos e urros, com que anunciavam a vitoria obtida. Fazem, então, caricias ao prisioneiro e, antes de recolherem-se às ocas, conduzem-no ao tumulo de seus falecidos pais, obrigando-o a limpar o local, como se o cativo fôra uma vitima a ser imolada à sua memoria". Cf. ainda o ms. inedito de Thevet, foi. 61 v. -230- canções, - as mesmas canções entoadas na hora do sacrifício. As mulheres só se interrompem para bater no cativo; ou insultá-lo, e, assim fazendo, não cessam de repetir: "Vingo meu amigo, a quem os teus mataram". O prisioneiro podia repousar durante alguns instantes; depois, as mulheres voltavam a procurá-lo, e, agarradas a ele como pencas de uva, arrastavam-no até ante o chefe da aldeia. Segundo Staden/ de quem são recolhidas essas informações, só nesse momento era que os índios raspavam o pêlo do prisioneiro. Uma vez feitá a apresentação, as mulheres conduziam o prisioneiro para a frente da choça, onde estavam guardados os maracás. Punham, depois, guizos aos pés do mesmo e um colar de plumas à cabeça; então, cercando-o, obrigavam-no a dansar. Mostravamlhe, nessa ocasião, os maracás, salientando a veracidade da profecia à qual a sua captura dava inteira confirmação. Todo homem ou mulher feito prisioneiro, no curso de uma expedição, tornava-se escravo de quem o houvesse capturado. Isso em virtude do seguinte principio: "Ha11ia uma cerimonia belica, em uso entre essas nações, segundo a qual se ·o inimigo caía em poder de alguem, aquele que o aprisionava batia-lhe com a mão no ombro, dizendo-lhe: - Faço-te meu escravo. E, desde então, o pobre cativo, por maior que fôsse ele entre os seus, se reconhecia como tal, seguindo e servindo fielmente ao vencedor, sem o seu patrão preocupar-se com o mesmo". 2 Era o "coup" norte-americano (a). 1 Part. I, caps. XVIII-XXIII. 2 Yves d'f~vreux, p. 46. -231 Em geral, o cativo permanecia em poder do guerreiro, que o devia executar e .em mão do qual caira preso. Mas era tambem frequente o dono dar o prisioneiro, de presente, a um dos seus parentes, ou simplesmente ao amigo a quem queria prestar particular homenagem. Assim, Staden, 1 por exemplo, foi entregue ao tio de seu senhor, que ficava, desse modo, moralmente obrigado a desistir da presa em favor do primeiro. O tio, alguns tempos antes, fizera-lhe presente de um escravo, que havia sido morto de acordo com o ritual. A posse de um prisioneiro constituía privilegio ínvejavel e o seu possuidor não poupava sacrifícios no sentido de prover o seu sustento, pois preferia abrir mão do alimento a ver o seu escravo sofrer privações. Se algum guerreiro tupinambá possuía um filho, que ainda não tomara parte em nenhuma expedição, entregava ao mesmo o prisioneiro; este, passando a ser a vitima n. 1 do filho, contribuía, de qualquer modo, para dar-lhe o primeiro titulo. O bom tratamento, concedido aos escravos alguns dias após a sua chegada à aldeia, contrastava com a explosão de odio, com o qual os acolhiam os índios. Desde então, o prisioneiro tornava-se membro da tribu, gozando de quase todas as vantagens e privilegias concedidos aos seus senhores. Depilado e tonsurado como um tupinamóá, nada revelava a sua condição a não ser o colar conduzido ao pescoço, que consistia em grossa corda, dura como pau, da qual pendia, pela nuca, um~ franja feita de cordeizinhos de extrema finura. Tão complicado era o nó que somente o dono o poderia. desmanchar. Soares de Sousa2 assegura 1 Part. I, cap. XXIV. 2 P. 33fo. -232- que esses cordeis eram enrolados em torno do pescoço e tambem nos rins. De acordo com Thevet,' o referido colar teria outra significação, que não era a de um símbolo de escravatura. Era um verdadeiro calendario: "Conhecese, facilmente, o tempo que deve durar a ceva, por causa de um colar de fio de algodão, no qual os indias, quais se foram as contas de um rosario, 'enfiam certo~? frutos redondos; ou, então, em lugar dos frutos, ossos de peixe ou de outros animais. Se os selvagens desejam conservar a vida do prisioneiro por espaço de quatro ou cinco luas, tantas são as contas enfiadas no colar, que se põem ao seu pescoço, as quais, são, depois, retiradas, uma em cada lua. Quando não lhe resta nenhuma, é que chegou o tempo de acabar com o prision~iro. Algumas vezes, em lugar do rosario, os selvagens põem ao pescoço do .prisioneiro colarezinhos, tantos quantos são as luas corres- . pondentes à duração de sua vida". · Se a aldeia ficava localizada nas proximidades das fronteiras inimigas, os índios punham nos pés do , prisioneiro entraves feitos de fio de algodão. Os cronistas franceses, que ·viveram longos· tempos entre os tupinambás, negam formalmente que os prisioneiros fôssem embaraçados na sua menor liberdade de movimento. Eram os prisioneiros livres de andar .à vontade e nenhuma vigilancia se exercia sobre os mesmos. Por isso que, "se algum deles fugia e retornava à sua terra, não sõmente era tido como um Couaue eum ( b), isto é, um _poltrão e medroso, mas, tambem, os proprios correligionarios não deixariam de 1 (1), p. 198 e (2), foi. 945. Cf. Gaffarel, peças justificativas, p. 498: "pondo-lhe tantos sudarios quantos sejam as luaa em que pretendiam• colllervj\.lo". - 233--. matá-lo, reprovando-lhe a falta de animo em enfrentar a morte, em mãos inimigas, como se seus parentes e companheiros não fôssem bastante poderosos para vingá-lo". 1 Na realidade, o prisioneiro, provavelmente já não era considerado como pertencente à sua tribu, sendo, desde então, assimilado pela do inimigo, que o hayia adotado. Conta Gandavo,2 até, que certo prisioneiro recusou a oferta de liberdade, receoso de ser desprezado e expulso pelos seus. O sentimento, que animava os membros tribais em relação ao seu compatriota, feito prisioneiro, indica a preocupação de que este havia cessado de fazer parte do grupo natural pa~a integrar-se em outra comunidade. Esse fato, de extrema importancia, evidencia-se ainda mais por tudo o que se sabe do estatuto dos prisioneiros e, em particular, pela cerimonia se. guinte: logo após a sua entrada na aldeia, o prisioneiro penetrava na choça, onde vivera a pessoa, cuja tumba acabara de limpar, recebendo, ali, a rede, os colares, as provisões, as armas, tudo enfim, deixado pelo morto. Esses objetos pertenceriam, daí em diante, ao prisioneiro, que poderia servir-se deles .à vontade, lavando-os cuidadosamente, sem exceção de nenhum. Antes de os referidos objetos serem limpos de qualquer corrupção, era proibido usá-los.3 1 Claude d' Abbeville, foi. 290. 2 P. 53. 3 Thevet (2), foi. 944 v.: "Apenas o priSIOneiro entrava na aldeia, ou na choça, não era posto em nenhuma prisão, como se poderá imaginar. Nem, tampouco, amarrado ou maltratado, senão que o conduziam à cabana da pessoa, cujo sepulcro havia sido reparado, trazendo-lhe, os indios, então, o arco, as flechas, os colares, as penas, as redes, os frutos e outras coisas pertencentes ao defunto; isso com o fim de o prisiáneiro se servir de- ,...._ 234- Se parentes proximos daquele, cuja sepultura tinha sido "renovada", haviam perecido de armas nas mãos, as viuvas, às vezes, desposavam o prisioneiro feito por algum outro de seus parentes. Essa união compensava a perda do esposo. Se o morto era celibatario, o cativo recebia em casamento a irmã, a filha, ou até uma das mulheres de seu senhor ou dono. No caso de não haver nenhuma em disponibilidade, este rogava a· algum dos seus amigos ceder ao prisioneiro a irmã ou a filha. Tal requisição era sempre bem sucedida, pois se consideravam honrosos os liames com o inimigo vencido.' les ao seu gosto: da rede, para dormir, dos colares e plumas, para ornamentar-se. Quanto ao arco e as flechas, devia o cativo limpá-los, por isso que ninguem podia usar algum bem da pessoa falecida, sem, antes, o usá-lo primeiramente o inimigo, afi~ de tirar-lhe, conforme julgavam, a sua corrupção''. Cf. o ms. inedíto de Thevet, foi. 59. 1 Thevet (2), foi. 944 v.: "Se os irmãos, filhos, ou outros parent!S do defunto, cuja sepultura foi limpa, tinham morrido em combate, as mulheres não podiam contrair segundas nupcias antes que aqueles fôssem vingados pelo massacre de seus inimigos. Assim, logo que os prisioneiros recebiam os referidos equipamentos, algumas vezes davam-lhes as mulheres dos mortos,. paTa servi-los. E tais mulheres, desse modo, se associavam aos cativos, dizendo que estavam recompensadas pela derrota de seus primeiros maridos e dando aos prisioneiros os nomes de Pourra Offeu--notz, ou seja, nojo e t.rísteza (c). Demais, entretinhamnos bem, cuidando deles com muito zelo e diligencia, como o faziam outrora aos seus anteriores esposos, até o dia fixado para a morte e trucidamento dos prisioneiros (advêm, muitas vezes, filhos dessa união, os quais, embora nem sempre, devoram quando crescidos, pois acreditam, confo~me já o disse, que tais filhos jàmais lhes poderão ser fieis). Se, porem, o morto não tinha mulher, o dono do prisiOneiro procurava casar a irmã com o cativo e, se não tinha irmã, buscava a esposa entre os seul! -235- As bodas do prisioneiro tinhalJl lugar cerca de cinco dias após a sua entrada na aldeia. O cativo era estimado pela esposa, que lhe ofertavam, como se fôra membro da propria tribu. A mulher trabalhava em seu beneficio, exatamente como se lhe pertencesse por toda a existencia. Tinha o escravo direito de pintar-se e ornamentar-se todas as vezes que seu dono celebrava alguma festa. Claude d' Abbeville1 dá mesmo a entender que ele podia ter plantações e ir à caça ou a pesca quando bem lhe conviesse, morando .na oca do senhor, ao lado do qual repousava .à noite. Em poucas palayras, era tratado de igual para igual. Há de certo, nas informações dos missionarios franceses. muito exagero. A melhor autoridade. no que concerne à situação dos prisioneiros, é Yves d'Évreux. 2 Essa questão parece ter-lhe inter~ssado particularmente, pois deixou um quadro bem fiel da. situação dos prisioneiros de guerra, inteiramente confirmada pelas fontes portuguesas. Os prisioneiros eram constrangidos a trabalhar nos campos, a caçar e a pescar oara o seu dono, que lhe abandonava apenas o superfluo. Demais, os escravos não podiam dispor livremente dos seus bens; se, por exemplo, uma pessoa recebia do escravo, sem o consentimento do dono, algum presente, tinha tal pessoa obrigação de restitui-lo. amigos. E nunca era mal sucedido nessa empresa, pois os índios tinham muita satisfação em aparentar-se, .por esse modo, com algum inimigo. O selvagem, que ·fazia a presa, era multo louvado entre os companheiros; do mesmo modo que era censurado o indígena incapaz de fazê-lo, estando na Idade propria". Cf. o ms. inedito de Thevet, foi. 69. 1 Foi. 290 'f'. 3 P1. 41-lf. -236- Era interdito aos escravos, sob pena de morte, penetrar na cabàna passando através das suas paredes de palha, como faziam frequentemente os outros mo~ r adores. Os prisioneiros podiam entreter relações sexuais com todas as mulheres solteiras da. tribu, as quais, cumpre confessá-lo, se lhes entregavam sem relutancia. Essa& relações não causavam nenhuma deshonra, mas, possivelmente, davam lugar a motejos. Para subtrair~ se aos mesmos, as moças tinham os seus encontros na inata, onde construíam chocinhas destinadas a abrigar os seus amores. Como é de supor, não era apenas por motivo de suas relações com os prisioneiros que as jovens tomavam tais precauções, agindo provavelmente do mesmo modo com os demais rapazes da tribu. Pelo menos, no Chaco, onde reina a maior liberdade sexual, as mulheres solteiras arrastam sempre os amantes às diminutas cabanas erectas nos bosques. Quando o escravo se tornava amante de alguma india casada, era imediatamente condenado à morte e a mulher adultera sofria a pena ultima, ou tinha de ser batida ou repudiada. Em certas ocasiões, seu senhor obrigava-a a passear na aldeia afim de exibir-se a todo o mundo. Tambem nesse momento, cobriam-no com os ornamentos plumarios peculiares às grandes cerimo~ nias tribais, inclusive com o maravilhoso manto da· ibis rubra (d), que ainda hoje é admirado em alguns dos museus da Europa. No decurso dessas jornadas, os índios lançavam-lhe penas de papagaio. Esse ato tinha especi'al significação simbolica, pois, uma vez terminado o passeio, já nada podia salvar o prisioneiro da morte em expectativa. 1 1 Ms. itJedito de Thevet, fol 118 Y. -237- A todos os constrangimentos se juntava, ain'da, para o escravo, a humilhação de ser exibido em certas festas, onde o mesmo aparecia com as pernas enlaçadas e servia de mofa a todo o mundo. Havia o desígnio perverso de maltratá-lo e cada qual indicava em sua propria pessoa as partes corporais que desejava comer. Tais fatos que, transmitidos pela pena de Staden, parecem acidentais, são narrados por Thevet 1 ~ob a feição de cerimonias de carater proprio. A festa da bebida, onde o prisioneiro via todas as parcelas de seu corpo distribuídas aos assistentes, era organizada pelo dono, que convidava parentes e amigos. No dia do banquete as parcelas escolhidas iam ter, realmente, às mãos dos que, de qualquer modo, as tinham escolhido; em compensação, estes tinham o dever de proporcionar alimentos, de tempos em tempos, ao prisioneiro. Era nesse momento (informa Thevet2) que se confiava a cada um o papel a desempenhar no curso do drama. Tudo ficava previsto com antecede!_1cia: este devia matar, aquele era encarregado da tonsura, a outro cabia a função de tingir de jenipapo, aqueloutro se ocupava dos adornos de plumas. Havia ainda o que tinha o encargo de lavar o prisioneiro e o que tinha o mister de recolher os membros logo após o seu seccionamento. As mulheres tambem não eram olvidadas. Umas tinham por missão tomar conta da cabeleira do prisioneiro, que devia ser aparada ao fogo; a outras incumbia o dever de pôr um tampão de madeira no anus da vitima, logo após a sua morte. Era nesse indicado dia, segundo Thevet,l que o executor proclama1 (2), foi. 944 v.; ms. inedito, fols. 54. e 59 v. 2 Ms. inedito, foi. 54. v. a Ms. inedito, fol. 59 v. e (2), foL 94.4 v. -238- va, em presença do prisioneiro e dos .parentes ou ami• gos, o novo nome por ele escolhido. Nesse particular, Thevet encontra-se em contradição com todas as demais fontes, que acordam em situar a cerimonia da renominação após o massacre ritual, - unico momento em que o mesmo teria significação plausível. Exceto as manifestações rememorativas da condição do prisioneiro, os escravos eram tratados com doçura e tinham seus donos na qualidade de pais. Estes eram-lhes, igualmente, muito afeiçoados. Ao introduzir-se o costume de vender aos europeus os prisioneiros de guerra, os seus antigos donos ficavam pezarosos por vê-los sofrer brutalidades. Desse modo, quando fugiam, os escravos estavam certos de encontrar refugio entre os seus primitivos senhores, que os escondiam na mata, enviando-lhes os proprios filhos para viver em sua companhia e velar pelo seu sustento. Yves d'Évreux1 cita o caso de um escravo, que seus donos visitavam frequentemente, tão grande era a afeição que lhe devotavam. O escravo havia sido capturado ainda criança. Sua mãe fôra devorada e aguardàva-o a mesma sorte; mas a certeza da morte não alterava em nada o amor, que o escravo sentia por seus pais adotivos. A mulher, concedida ao escravo, devia responder por ele. Incumbia-lhe a tarefa de vigiá-lo e fazê-lo engordar. Contam alguns autores que, em certos casos, essas índias ajudavam seus maridos a fugir e até não hesitavam em partir em sua companhia. Se, porem, os fugitivos eram recapturados, a responsavel era batida e, até, algumas vezes, devorada; quanto ao escravo, deixava ele de pertencer ao seu antigo dono, 1 P. 56. -239- tornando-se bem comum de toda a tribu. Sua execução não devia mais ser protelada. A volta do fugitivo suscitava manifestações identicas .às que tinham havido por ocasião da entrada triunfal da expedição. As velhas mulheres agrupavam-se à sua frente, batendo na boca com a palma das mãos e exclamando a um sinal determinado: "Nós o comeremos; ele pertencenos". Nenhum escravo podia escapar ao sacrifício ritual a que era destinado. Se caía doente e seu estado era desesperador, os indígenas levavam-no para a mata e p_artiam-lhe o cranio (cujo cerebro se espalhava por terra), deixando o cadaver insepulto. Se o mesmo sucumbia instantaneamente, o corpo era jogado ao chão e arrastado, pelos pés, até a mata. Ali, abandonavamno às aves. Ainda nesse caso, os índios não esqueciam de quebrar-lhe a cabeça. Todavia, poupavam-se os indivíduos que vinham, voluntariamente, refugiar-se na tribu inimiga. Em tal caso, estes só eram submetidos à lei comum se tombavam doentes. A condição das mulheres cativas não diferia da dos homens. Tornavam-se, em geral, esposas dos seus captores; se, entretanto, eram rejeitadas, estavam livres de manter relações sexuais com qualquer outra pessoa, salvo aquelas interditadas pelo dono. Nenhum • indígena podia recusar esse direito à mulher cativa, sem. o que a esta cabia censurar ao dono o fato de ele não a ter querido para esposa. A acreditar em Oandavo,1 toda mulher inimiga, que se tornava esposa de algum chefe, escapava à execução; mas, após a morte dela, os selvagens abriam-lhe o cranio. 1 P. 142. -240 ~ As mulheres tinham, geralmente, liberdade de movimento; sua sorte diferia da dos homens por isso que . a duração do cativeiro era, entre elas, muito mais curta. Os filhos, havidos do conitbio com o prisioneiro, eram considerados inimigos e destinados a morrer debaixo dos mesmos ritos usados na matança dos guerreiros apanhados nos combates. Recebiam o nome de "cunhambira, filho do inimigo" 1 (e). Afirmam alguns autores que sua execução seguia de pe:-to ao nascimento deles; a maior parte, entretanto, está de acordo em declarar que, em quase todos os casos, a mãe podia conservá-lo durante alguns anos. Eram, então, criados como filhos da tribu até a idade da execução. E, nesse momento, os índios enviavam-no a seu tio maternal, ou, na falta deste, ao mais proximo parente da mãe, do lado paternal, o qual devia demonstrar muito prazer com essa honra e testemunhar reconhecimento por ela. A execução da criança, que seguia ritos identicos aos do adulto, realizava-se em presença do pÇti, que tambem era morto no mesmo dia. A mãe era a primeira a consumir a carne da vitima. Algumas índias tupis procuravam, todavia, proteger seus filhos, fazendo que os mesmos fôssem adotados definitivamente pela tribu. Outras praticavam o aborto. De acordo com Alfonse de- Saintonge,.2 eram poupadas as meninas consideradas portadoras da mesma natureza materna. Cerimonias preliminares à execução do prisioneiro A duração do cativeiro variava muito. Os velhos eram mortos quase sempre após o retorno da expedição; os jovens, ao contrario, conservavam-se prisionei1 Na realidade, "filho de m'll.iher''. 2 P. ~18. -241- ros durante varios meses e até varios anos. A crer em Thevet, I a duração do seu cativeiro podia atingir· a quinze ou a vinte anos. Quando o carbé (f), isto é, o conselho dos pr:incipais guerreiros, fixava a data ·da execução, mensageiros eram enviados a todas as aldeias circunvizinhas e aliadas, convidando-as a tomar parte no festim. A convocação dos parentes e amigos exigia bastante tempo; devia, efetivamente, observar e aguardar a chegada de tribus, que estacionavam em um raio de trinta a quarenta leguas. Logo que o sacrifício ritual do prisioneiro era anunciado, todo o mundo se entregava ativamente aos preparativos iniciais da cerimonia. Os homens trançavam a corda chamada musarana (g), destinada a prender o prisioneiro, cuja fabricação era confiada aos caciques, a qual consistia num verdadeiro objeto de culto e respeito religioso. Não era torcida (explica-o Cardim), mas entrançada, processo que importava em enorme trabalho. Acrescenta esse mesmo autor qu,e um ano mal chegava para a sua fabricação e só a;guns chefes possuíam tais cordas. Staden, ao contrario, afirma que, em cada execução, era entrançada uma nova corda: o referido autor julgava ess~ objeto tão importante que deixou um desenh.o dele em seu livro. No manuscrito de Thevet, o comprimento da nzusarana é avaliado em trinta braças.z Cabia provavelmente aos homens o encargo de preparar a cl~va, com a qual era golpeada a vitima. Como essa arma representava papel de primeira ordem nas cerimonias preliminares da execução, convem dar 1 Ms. inedito, fol. 54. 2 Fol. 66. -242- O tacape tinha uma cabeça mais ou menos arredondada, quase elipsoide. O punho, do comprimento de sete a oito palmos, possuía, nas proximidades da cabeça, a largura de quatro polegadas; daí se estreitava progressivamente até a sua extremidade inferior, ornada com um mosaico de palha. O punho era ainçia enriquecido por uma guarnição, que os tupinambás chamavam "Aterabébe, feita de varias especies de plumagens entrelaçadàs e lindamente tecidas"1 (/z). Atribuía-se especial importancia aos cordeis e pompões, que ornavam o cabo dessa macaná, os quais só eram atados .à arma na vespera da execução. 2 As mulheres encarregavam-se da fabricação de numerosos vasos de formas e dimensões diversas, que decoravam com cuidado todo especial. Determinados potes serviam para guardar as bebidas fermentadas; outros a tinta com a qual o prisioneiro devia ser pintado. Certas moças estavam encarregadas de preparar a cauim. decurso dos preparativos, o prisioneiro vivia como se nada fôsse com ele. Claude d' Abbevi11e 3 assegura, que, um ou dois meses antes da execução, "os índios o prendiam e amarravam, como faz o carrasco, após a sentença de morte, ao malfeitor rebelde, embora, assim enlaçado, tivesse ele licença, durante .todo esse tempo, de dar ou bater nas galinhas, patos e outros animais, ou furtá-los, ou, ainda, fazer coisas muito piores; tudo com o sentido de vingar sua morte, sem â sua descrição. No I Claude d'Abbeville, foi. 292 v. 2 Um desses tacapes, talvez mesmo o do famoso cacique Quoniambec (i), encontra-se atualmente no Trocadero. Thevet, ms. inedito, foi. 85 v.; Métraux (2), p. 82, fig. 5, a Foi. 290 v. -243- que ninguem disso o impedisse". Cardiml teve ocas1ao de observar esse curioso costume, que atribue à necessidade.: o escravo, não recebendo nenhum alimento de seu dono, via-se na contingencia de procurá-lo· a viva força. Fig. 4 - Indios tupinambás celebrando uma bebedeira geral, à chegadn dos hóspedes convidados n .assistirem à execuçüo do pris~oneiro (segundo Staden) . I P. 182. -244- Durante todo o tempo da preparação do cauim, as mulheres, duas ou três vezes seguidas, conduziam o prisioneiro ao pateo da aldeia e executavam dansas em redor dele. E, no dia prefixado, chegavam as tribus convidadas, inclusive as mulheres e crianças, e, bailando, entravam na aldeia, cujo chefe, adiantando-se ao _seu encontro, dava-lhes as boas vindas nos seguintes termos: "Vi estes ajudar-nos a devorar o inimigo". Os recem-chegados, nesse momento, tomavam parte em uma bebedeira preliminar e só então se dava inicio às cerimonias predecessoras do grande repasto antropofagico. O primeiro diq. - A corda, com a qual a vitima ia ser amarrada, era conduzida ao pateo da aldeia em meio de tumultuoso alarido. Em presença de um dos prisioneiros, untavam-na com uma substancia embranquecida, semelhante a cal, que se deixava secar suspendendo a corda a duas forquilhas, fincadas de antemão em terra. · Certo individuo especialmente adestrado, segundo Cat.dim (ou, no dizer de Thevet,l os mais velhos da tribu), fazia nela dois nós bem complicados, "por dentro dos quais com força corre uma das pontas de maneira que lhes fica bem no meio um laço; estes nós são galantes e artificiosos, que poucos se acham que os saibam fazer, -porque têm algumas dez voltas e as cinco vão por cima das outras cinco, como .se um atravessasse os dedos da mão direita por cima dos da esquerda" 2 (j). No momento preciso em qu.~ os nós eram acabados, os assistentes batiam palmas aos gritos de alegria. A musarana era posta em 1 Ms. inedito, fol. 55. 2 Cardim, p. 184. -245- um vaso e levada para a cabanà da pessoa a quem pertencia o prisioneiro. A acreditar em Cardim, o primeiro dia não era caracterizado por nenhuma outra cerimonia, alem das que já foram descritas. Mas Thevet, 1 em seu manuscrito inedito, dá noticias de um conjunto de ritos e preparativos, que seriam realizados imediatamente após a consagração da musarana e, como afirma ter sido testemunha ocular dos fatos relataç!os, seu depoimento é precioso e não pode ser negligenciado, mesmo na hipotese de nem sempre concordar com as outras fontes. Na propria manhã, em que a musarana era pintada, os selvagens faziam sair os prisioneiros. das ocas onde, até então, tinham sido "cuidadosamente guardados", conduzindo-os a uma cabana situada ao sul da aldeia. Estes levavam consigo as suas redes, que logo suspendiam na choça, sendo-lhes, então, raspada a parte dianteira da cabeça. Depois os índios pintavamlhes o rosto e o corpo com jenipapo. A maior parte das mulheres do lugar, jovens ou velhas, convidadas pelos guerreiros, das quais dependiam os prisioneiros, vinham tambem .à mesma cabana pintar-se igualmente de preto. Isso feito, os prisioneiros voltavam para as suas casas, retornando, à noite, ~à oca acima referida, onde os aguardavam certo numero de velhas, que, pela manhã, tinham sido enegrecidas como as demais. Essas velhas deitavam-se nas redes, que tinham armado em redor das dos prisioneiros, entoando, nessa ocasião, canções. As canções, que duravam toda a noite, exprimiam o desdem dos tupinambás pelos cativos e pela gente de sua tribu, que jamais fôra capaz de matar "algum dos amigos" daqueles. Anunciavam, ainda, a 1 Ms. inedito, fols. 55-57 v. " -246- sorte que lhes aguardava e a vingança que se propunham tirar deles. Tal é, de certo modo, o sentido geral dos canticos interpretados e traduzidos por Thevet. Ao pé da rede de cada prisioneiro era cravado um poste, de perto de setenta centímetros e da grossura de uma coxa, onde se pendurava um casquete de cera, confeccionado durante o dia e no qual os índios enfiavam lindas penas. Entre os indivíduos destinados ao morticínio, havia um (diz o referido viajante), que dormia com uma jovem de quinze anos, cedida ao prisioneiro naquela noite, embora fôsse ele já unido a outra mulher. A mulher dormia, como de costume, sob a rede do marido. Enquanto se procedia à toil1ete dos prisioneiros e das mulheres, os homens, que deviam tomar parte ativa no sacrifício, reuniam-se na cabana especialmente construída para tal fim, traçando na propria pele, com tinta de jenipapo, desenhos de todas as especies. Depois· do que se untavam de resina, colavam no corpo plumas vermelhas e no rosto pó de cascas de ovos verdes. Na cabeça, pregavam-se, com cera, penas e eram as pernas pintadas de vermelho. Algumas mulheres ornavam-se do mesmo modo, embora não pusessem adornos nos cabelos. No decurso da noite, a população restante, que não estava em companhia dos prisioneiros, dansava sem cessar, percorrendo todas as choças, até mesmo as casas o.nde repousavam as futuras vitimas. Observe-se, em conclusão, que as cerimonias descritas por Thevet tinham lugar dois dias antes da execução. O segundo dia. - Todo o mundo ia bater os campos afim de colher bambus da altura de uma lança. À noite, os bambus eram plantados no meio do pateo, com as extremidades apoiadas umas nas outras. Obti- -247- nha-se, assim, uma especie de cabana conica, à qual se ateava fogo. Homens e mulheres dansavam, então, em torno da fogueira, carregando maços de flechas ao ombro.1 O prisioneiro, colocado a certa distancia dos dansarinos, atirava-lhes com tudo o que se encontrava ao seu alcance. O terceiro dia. - A população reunia-se no pateo da aldeia, levando uma gaita a mão. Homens e mulheres punham-se, então, a executar dansas, ao som desses instrumentos, batendo todos no chão, ora com um pé, ora com outro, segundo determinado ritmo. Nessa ocasião, os silvicolas não entoavam nenhuma canção. O quarto d~a. - Ao amanhecer, era o pns10neiro conduzido .às margens do rio, onde se banhava. De acordo com Thevet, 2 essa derradeira limpeza teria lugar entre as choças situadas ao norte e a oeste da aldeia; consistia em fazer a "barba" (?) do prisioneiro e tirar-lhe os pêlos restantes do corpo. De volta, era o mesmo subitamente assaltado por outro indio, que se esforçava por maltratá-lo, enquanto os demais amarravam-no com a musarana. O cativo, então, porfiava em demonstrar sua força e coragem, resistindo tanto 1 Convem notar que a ~ribu, da qual Thevet, em seu ms. inedito, descreve os ritos antropofagicos, não observava todas as cerimonias aqui descritas. Essa tribu, sobretudo, 'não parece ter conhecido. os ritos, que os tupinambás da Baía praticavam ao segundo e no terceiro dia. As cerimonias rituais, que precediam a morte do prisioneiro, duravam três dias e não cinco, como sucedia entre os índios vistos por Cardim. 2 Ms. inedito, fol. 57. - 248 -::- quanto p-ossivel ao agressor, - que era tido como valoroso se conseguia paralisar os movimentos do adversario sem o auxilio dos companheiros. Se, porem, o agressor via-se constrangido a abandonar a partida, outro selvagem retomava o seu lugar e reiniciava a luta. Quando a peleja se arriscava, algumas. vezes, a prolongar-se, os tupinambás prendiam, por precaução. as pernas do prisioneiro. Claude d'Abbeville 1 descreve esse episodio diferentemente: "Libertam o prisioneiro um ou dois dias antes da matança (é verdade que por pouco tempo), tirando-lhe os ferros e dizendo-lhe Ecoiiin, salva-te ( k). O infeliz principia logo a correr, como se desejasse salvar-se. Mas os índios corremlhe atrás, como cães em perseguição ao veado. E, em poucos instantes, o desgraçado está de novo preso: à semelhança daquele que o prendeu em combate, o índio, a quem, por ser o mais corredor da companhia, cabe pôr-lhe novamente a mão à gacganta e agarrá-lo, é considerado um dos mais valentes, adquirindo, com essa proeza, mais um titulo de qonra, - titulo que conserva durante toda a vida. Tais ações são reputadas heroicas, bem como o encargo de matar o prisioneiro. Uma terceira versão dessa pratica ritual é fornecida-pelo manuscrito inedito de Thevet:2 os índios, pintados conforme já se explicou e conduzindo nos rins rodelas de penas de avestruz, colocavam-se em duas fileiras, diante das choças, deixando entre si um intervalo de vinte passos. Então o prisioneiro, libertado antecipadamente de todos os seus entraves, devia cor1 2 Fol. 291. Fol. 57. -249- rer rapidamente nessa pista, até o momento em que era sustado por um individuo especialmente designadp para tal fim. Nesse exato instante, todos os homens do grupo precipitavam-se sobre o prisioneiro, arrastando-o até o pateo da aldeia e, quando o mesmo era subjugado, chegavam as moças, correndo, com a corda embranquiçada, que traziam no vaso recentemente pintado. A corda, era, então, enrolada no pescoço da vitima e mantida no lugar graças a um nó simples, feito entre outros ali já existentes. E, enquanto os homens prendiam o prisioneiro, as ditas moças, sob a direção de uma velha, entoavam cantigas referentes às cenas, que se passavam no momento. Em seguida, faziam-se duas rodas nas extremidades da corda, que os índios punham nos braços da mulher encarregada de acompanhar o prisioneiro. Esta era ajudada por seus companheiros, se a corda se tornava muito pesad;:t. Chegava a" vez, então, de as moças cantarem: "Somos as que torcem o pescoço do passaro" ou "Não escaparias, voando, mesmo que fosses papagaio" (Est. V, fig. A) (l). Os indígenas, entre os· quais conviveu Thevet, 1 procediam diferentemente: as extremidades da corda eram seguras por dois homens, que acompanhavam o prisioneiro a todas as partes. Davam . ao cativo jenipapos, dos quais o mesmo se servia à maneira de projeteis contra todas as pessoas a seu alcance. Algumas vezes, entregava-se ao prisioneiro um arco, com flechas de pontas rombudas, com o qual ele não perdia tempo em atirar nos circunstantes. Seguia-o a esposa, para aprovisioná-lo com a munição, ou apanhar as flechas lançadas pela futura vitima. 1 Ms. inedito, foi. 51 v. -250- Quando essas cerimonias já se prolongavam lJastante, reconduzia-se o prisioneiro à cabana, onde estava a sua rede e o seu sombreiro encerado. Como já se viu, a cabana em questão ficava ao sul e não a oeste (como o diz, por engano, Thevet 1). Chegavam, pouco depois, algumas das mulheres, para cobrir-se de plumas, entre as quais as de avestruz, que traziam, em rodelas, nos rins e, assim equipados, saíam; aos grupos, de quatro em quatro, batendo na boca com as mãos e desfilando .à frente do prisioneiro. Essas mulheres, no pateo da aldeia, portavam-se como se estivessem em combate, findo o que retornavam à cabana, passando novamente, de quatro em quatro, diante da vitima. Tais cenas eram repetidas varias vezes. Por volta das cinco horas da tarde, vinham as indias buscar a vitima e reconduzi-la à choça provisoria, levantada na praça central. Essa mudança fazia-se ao som dos maracás. Em certo momento do dia, - não se sabe quando, - os selvagens transportavam para a choça do morto o tacape do sacrificio, assim como os dois potes, nos quais tinham sido guardadas as plumas, os fios de algodão e a resina destinada .à ·decoração. A arma era levada em um vaso novo. Tudo isso se fazia na presença do prisioneiro. O tacape não podia ser utilizado sem, de qualquer modo, passar a ntecipadamente por uma forma de consagração e, para tal fim, os índios preparavam-no, por assim dizer, como se fôra a propria vitima. 2 Essa arma era, de fato, recoberta de uma camada de mel ou 1 Id., f oi. 55 v. 2 Ms. inedito de T hevet, foi. 56. -251- resina e pulverizada com pedacinhos de conchas e fragmentos de ovos verdes de macucara (Tetrao major, Linn.) (a que os índios atribuíam poder magico). O Fig. .5 - O tacape, com o qual o prisioneiro deveria. ·1er executado, era 8uspen,,o no tecto da choça. Homens e mulheres dansavam em redor desse instrumen- to afim de adormecê-lo (segundo Staden). revestimento deveria conferir-lhe especial virtude, pois, antes da partida para a guerra, os tupinambás jamais esqueciam de espalhar sobre o tacape um pouco do pó sagrado. 1 1 Claude d'Abbeville, foi. 137._ -252- Quando se tratava de matar o pnswneiro, uma das mulheres, famosa por sua habilidade na decoração dos potes, traçava na camada viscosa, que recobria a macaná, algumas figuras de significação provavelmente particular. Enquanto essa mulher preparava assim o tacape, as demais cantavam ininterruptamente e, terminando o trabalho, seéavam a pintura, deitando o instrumento, por algum tempo, na vasilha onde o tinham trazido, depois do que era o mesmo suspenso ao tecto da choça, da qual antecipadamente mandavam-se sair os ocupantes (Est. V, fig. B). Um grupo de mulheres montava guarda, durante a noite inteira, cantando e dansando em redor do tacape. As canções, ouvidas nesse momento, eram de um sentido profundamente triste, ainda mais acentuado pelos sons surdos do tambor no, qual os índios tocavam uma especie de dobrado. Toda essa musica tinha por objetivo adormecer a maça (fig. 5). Em seguida, os decoradores do tacape procediam à toilette do prisioneiro, untando-o inteiramente de mel ou resina, em que eram colocadas plumas cortadas em pedacinhos. Alem disso, polvilhavam-no com cascas de ovos de macucara, sendo todo o corpo pinta do de negro (à exceção dos péSi que eram pintados de urucu). Enquanto parte das mulheres adornavam a futura vitima, as restantes cantavam sem cessar. Após o pôr do sol, os selvagens, reunidos na aldeia, apressavam-se a celebrar o acontecimento com um grande cauim. Antes do inicio da beberragem, trazia-se o prisioneiro para o meio da assembléia, onde o mesmo dansava ao som do maracá; mas é de crer, todavia, que nem tod.os os prisioneiros executassem o bailado de bom grado, pois, dentre os cativos, cuja -253- execução é relatada por Thevet,t só um, o mais velho, consentiu em dansar, seguido logo pelos assistentes, homens e mulheres; o nome desse bailado era "a dansa das corças"; a dansa, aliás, foi interrompida pelos demais prisioneiros, que fizeram chover nos dansarinos uma verdadeira saraivada de projeteis. Em seguida à tal manifestaçJío de hostilidade; o prisioneiro era conduzido à cabaua provisoria, adrede construída, na qual os índios o prrndiam às ramagens, que Thevet 2 o qualificava de pequeninas arvores. A partir desse momento, não podia ele penetrar em nenhuma oca, nem servir-se de nenhum alimento, a não ser de certa fruta, cujo gosto lembrava o da noz e à qual se atribuía a propriedade de impedir o excesso de efusão do sangue. Durante a noite, a vitima ficava sob vigilancia, estendida em sua rede, com a cabeça presa na musarana, cujos "laços correntes e nós sutilmente feitos" o mantinham imobilizado. As mulheres, que o estavam velando em casa, seguravam as extremidades da corda. Para demonstrar seu desdem pela morte, o infeliz gemia essa lamuria, do qual Thevet3 conservou aproximadamente o texto: ·"Nossos amigos, os maracajás, são homens de prol, fortes e poderosos guerreiros, tendo prendido e devorado varios de vossos parentes, oossos inimigos. E varios parentes tambem dos queCme têm em poder e me destinam à morte. Mas, cedo eles me vingarão e vos hão de devorar quando bem quiserem. E o mesmo sucederá aos vossos filhos. Quanto a mim, já matei muitos amigos desse maligno Aignan, que me fez prisioneiro. Sou forte e poderoso. Fui eu 1 Ms. inedito, fol. 56. 2 (2), fol. 945. 3 (2), fol. 945. -254- quem, inumeras vezes, pus a correr a vós outros, poltrões, que não entfndeis nada em ma teria de guerra". Os convidados e anfitriões passavam o resto da noite a beber, a gritar e a cantar, em uma palavra no tumulto peculiar .às festas do cauim. Recordavam os guerreiros, todos a um só tempo, os altos feitos por eles realizados, exaltando-se a lembrança das suas proezas. Numerosos autores dignos de fé asseguram que o prisioneiro tomava parte na orgia, bebendo, dansando e cantando como os demais, sem nenhuma preocupação pela sorte (aliás, inveja da) , pois se considerava excelsa honra "morrer à maneira dos maiorais, entre dansas e bebidas, vingando-se, a ntes de ser morto, pelos que o iam devorar" . 1 O quinto dia. - Se já não restava mais cauim, tinha lugar, então,. o massacre. Geralmente assim acontecia. 1 Yves d'É vreux, p. 56. Cf. Thevet (2 ), foi. ' 945: "Tive oportunidade de conversar com alguns desses pobres índios na vespera de sua execução. Eram homens jovens, belos e possantes, aos quais, tendo perguntado se não receava a morte tão proxima e espantosa, assim responderam, risonhos e motejantes: - Aiouroiou mahire, mouhan, ou touy (m), isto é:- Estrangeiro mau, não sabes o que dizes. Afast a-te de nós. Os amigos vingar-nos-ão. Essa morte é, para nós, uma honra. - Assim, sem levar-nos em conta, mostravam os ·prisioneiros segurança, ousadia e jubilo tais que nos deixavam completamente assombrados. E tomavam por mofa as propostas no sentido de libertá-los ou resgatá-los, dizendo, com mostra de mau humor, que nós, os Aiouroiou (assin1 como nos· chamavam eles, se bem que esse nome se aplique, sobretudo, a uma certa especie grande de papagaio), não eramos homens de animo, parecendo-nos com os seus OuaiM· · passa (n), bugios que viviam no t emor perpetuo de morte, ou receosos de sofrerem algu!D golpe". -255- Logo ao alvorecer do dia, levantavam-se as mulheres, dirigindo-se à choça onde s~ achava suspenso o tacape. Lá chegando, cantavam em redor dela e, e·m seguida, iam acordar o prisioneiro e destruir a choça provisoria, que haviam construido. Umas sete ou oito velhas mulheres vinham receber o prisioneiro, .à saida da cabana, conduzindo-o à praça da execução, situada geralmente no centro da aldeia, junto às ocas. 1 E conta Thevet, 2 em seu manuscrito, que, entre a escolta do prisioneiro, alguns seguravam os ramos onde repousara a musarana, enquanto outro·s avançavam, tocando, cantando e dansando. O sexo das pessoas componentes desse cortejo infelizmente não é indicado. Chegados ao sitio reservado ao sacrifício, os indios retiravam a corda dos ramos, onde estivera fixa, estendendo-a no solo e retirando-a do pescoço da vitima para amarrá-la, solidamente, em torno da sua cintura. A mulher do cativo aproximava-se, então, do mesmo, fazendo-lhe algumas carícias e, logo em seguida, atas-· tava-se dele em lagrimas. Narrando os acontecimentos que se produziam no dia antecedente, referi-me .à vingança, que o prisioneiro era levado a tirar dos seus carrascos, lançandolhes em cima todas as especie~ de projeteis. Os viajantes, que trataram da antropofagia ritual dos tupinainbás, são unanimes em colocar essa cerimonia alguns inst~ntes antes do ato final do drama. Se não 1 Segundo Soares de Sousa, essa praça estaria situada um tanto longe das habitações. Podia-se reconhecê-la por causa de seus dois mourões providos de orificios, por entre os quais se introduzia a corda com a qual era amarrado o prisioneiro. Nenhum outro autor faz referencia a esie particular. 2 Ms. inedito, foi. 56 v. -256 hesito em colocá-la na véspera da execução, faço-o én1 consideração a Thevet, que, por sua precisão, merece ser acompanhado quase literalmente. E' bem possível que os ritos, notadamente a sua ordem de desenvolvimento, apresentassem algumas variantes da tribu a tribu. Seja. como for, entre os tupis do Rio de Janeiro assim ·como entre os da Baía, punham-se diante do prisioneiro frutas extremamente endurecidas (da grossura de maçãs), pedras e cacos, convidando-o os índios a "tirar yingança de sua morte". Este não se fazia rogar e logo a munição caía, como granizo, por sobre os assistentes. Mulheres redemoinhavam em torno do prisioneiro, ameaçando devorá-lo e exortando-o a contemplar, pela ultima vez, a luz do dia. O desgraçado denotava, em sua "vingança", um tal frenesi que, quando já não lhe restava mais nada, atirava nos adversarios ramos de palha e punhados de terra. Como os que tinham o encargo de segurar a corda e manter o prisioneiro preso eram os mais expostos a seus golpes, os índios autorizavam-nos a cobrir-se com escudos. Em breve surgia no pateo sete ou oito velhas mulheres, pintadas de preto e vermelho, trazendo ao pescoço colares de dentes humanos. Avançavam dansando, cantando e tamborilhando em vasilhas, que as mesmas acábavam de pintar e nas quais se apressavam a recolher o sangue e as entranhas do morto. Incumbia-lhes levar aos moradores de cada oca a parte pertencente a cada um. Em seguida, acendia-se fogo, a dois passos do prisioneiro, de modo a permitir que este o visse. Isso feito, uma velha mulher chegava a correr, tendo à mão o tacape, que ela tinha o cuidado de transportar com o punho dirigido para cima. A es- -257- pada era tomada por um guerreiro, que. se destacava da turba, o qual a mostrava ao prisioneiro. 1 Durante todo esse tempo, o executor permanecia encerrado na cabana, paramentado dos mais belos ornatos em moda entre os tupinambás. À cabeça levava o sombreiro de plumas e, ao redor da fronte, o diadema rubro, "côr da guerra". Ao peito, cruzavam-se colares de conchas, ou ainda de plumas. De plumas eram tambem os braceletes, ou ligas, que lhe recobriam os braços e as partes. Dos rins pendia uma enorme rodela de plumas de avestruz e, nas espaduas, tinha um manto de penas de ibis vermelha. Estava o rosto pintado de rubro e o corpo enbranquecido de cinza. Parentes e amigos vinham , então, procurá-lo e, escoltando-o, cantavam, soavam os tambores e tocavam flautas ou trombetas. Nessa ocasião, proclamavam-no bem-aventurado, pois chegara "a ganhar tamanha honra, como é vingar a morte de seus antepassados e de seus irmãos e parentes" .2 Todos os que tinham tomado parte no cortejo eram preliminarmente besuntados com uma substancia embranquiçada. 1 Existe ainda, na versão de Thevet (ms. inedito, foi. lí6 v.), uma variante que estâ longe de ser negligenciada. Ei-la: o tacape, consagrado na vespera da execução, era conduzido ao pateo e entregue às mulheres. Estas, por sua vez, passavam-no aos assistentes, que o seguravam durante algum tempo. Esse gesto, a que davam muita honra, infundia-lhes a crença de que, com tal manejo, poderiam os assistentes, futuramente, matar tambem os inimigos. Só depois que todos terminavam o cerimonial, era o t acape apresentado a algum dos maiorais, o qual, então, r estituía-o ao matador. 2 Soares de Sousa, p. 337. Segundo esse cronista, canções eram ca ntadas, na manhã da execução, tendo a vitima por seu tema. -258- Avançava então o carrasco, rodeando o pateo, ao mesmo tempo que dansava, contorcia-se e roláva terrivelmente os olhos. Com as mãos, imitava o falcão no ato de abater-se sobre a presa. Finalmente, parava em frente à sua vitima e, nesse instante, recebia o· tacape das mãos do guerreiro, que até então o mantinha. Um dos velhos, reputado por sua bravura, - geralmente algum morubixaba - retomava a espada, que passava e repassava entre as pernas e os braços, de cada vez em diferente sentido. Em seguida, empunhando a macaná com ambas as mãos, visava aos olhos do prisioneiro e fazia-o sibilar por cima da cabeça deste. Por fim, era a espada restituída ao carrasco, que se dirigia ao prisioneiro no seguinte tom; "Não pertences à nação . . . (tal ou qual), nossa inimiga? Não mataste e devoraste, tu mesmo, aos nossos parentes e amigos?" Ao que o prisioneiro, mais altivo que nunca, respondia: "Pa, che tan tan, aiouca atoupavé (o) . Sim, sou muito valente e realmente matei e devorei muitos . . . Não estou a fingir, pois, com efeito, assaltei e venci vossa gente, devorando muitos." O executor, então, replicava: "Agora estás em nosso poder; serás logo morto por mim e moqueado c devorado por todos".... "Pois bem" (tornava a responder o_ prisioneiro) "vingar-me-ão meus parentes." Manifestava, então, a vítima profundamente a satisfação por sua morte, felicitando-se a si proprio por essa ventura. 1 "Só há uma coisa capa z d afligi-lo, sobretudo em se tratando de algum guerreiro de fama: o fato de o seu algoz porventura não ter estado ainda na guerra e não ser, como ele proprio, um Kerembaue Tetanãtou, isto é, como dizem, um grande e valente 1 Léry, t. II, ps. 45-46. -259- guerreiro. Nesse caso, fica o pnswneiro desesperado, julgando isso afrontoso aos seus brios e considerando o caso a maior desonra que lhe possa acontecer. Mas, se o encarregado de matá-lo é algum Kerembaue, ou algum Tetanatou ou Tautiyue, então não se importa de morrer e encara a morte como honra maxima" 1 (p). Acontecia, efetivamente (como já o disse .atrás), ser o prisioneiro executado pelo filho do guerreiro, que o havia capturado. Para facilitar a tarefa do jovem noviço, ligavam-se as mãos da vitima, que o carrasco exortava, por sua vez, a resistir corajosamente afim de não se propalar ser o mesmo homem "fraco e afeminado. E lembrava-lhe "que dos valentes he morrerem daquela maneira, em mãos de seus inimigos, e nam em suas redes como mulheres fracas, que nam foram nascidas pera com suas mortes ganharem semelhantes honras." 2 ( q). Após essa troca de palavras, o carrasco brandia o tacape e procurava assestar o golpe na nuca da vitima, que, por sua vez, empreendia todos os esforços no sentido de evitar a arma e, sendo possível, dela amparar-se, - luta desigual, com possibilidade de prolongar-se durante varias horas. Algumas vezes, por bravata, entregava-se ao prisioneiro uma macaná, para que lhe fôsse permitido defender-se com eficacia. Acontecia, de fato, o prisioneiro apoderar-se da clava do executor, mas,- logo, acorriam os companheiros em seu socorro e retomavam a arma. Aliás, os homens, que mantinham as extremidades da corda em redor de sua cintura, puxavam-na tanto quanto possível com o fim de impedir os movimentos do prisioneiro. E, no exato momento de o tacape do matador abater-se na nuca 1 Claude d' A-bbeville, foi. 293 v. 2 Gandavo, p. 139 (p). -260- da vitima, soltavam os assistentes grandes clamores, fazendo zunir e estalar as cordas dos arcos. Observava-se;· então, ~o momento da queda, a posição do corpo do executado: se este tombava de bruços, não havia prognosticas a tirar (faziam-se apenas algumas cerim'onias especiais); se, porem, caía de costas, era o fato augurio da proxima morte de seu inimigo (Est. VI, fig. A). Algumas vezes, o matador começava por assestar golpes nos flancos da vitima, de modo a derrubá-la; se o prisioneiro ainda se podia manter de pé, os índios procurav~m erguê-lo. E o jogo prosseguia até a exaustação do prisioneiro. Antes do golpe final, o vencedor passava, duas vezes, por diante do prisioneiro.:tMal o mísero era massacrado, velhas mulheres precipitavam-se para récolher-lhe. em uma cuia, o sangue e os miolos; ó sangue era então bebido ainda quente. A mulher dada ao prisioneiro, nessa ocasião, aproximava-se do morto e vertia algumas lagrimas. O choro era puramente ritual, pois, em breve já a mulher não demonstrava nenhum pesar e era até a primeira a saborear a carne do esposo. 2 O cadaver era então assado e, como se faz com os porcos, escaldado a ponto de permitir a raspagem do couro. Em seguida, introduzia-se no anus um bastão destinado a impedir a excreção. Em primeiro lugar eram cortados os quatro membros, que as velhas levavam até as cabanas aos uivos de alegria; depois, fazia-se uma incisão no esMs. inedito de Thevet, foi. 58. 2 ~ Thevet (2), foi. 925 v.: "Assim que morria o prisioneiro, sua mulher mostrava um pouco de dó, chorando e hurrando; mas, depois, se juntava à festa, tomando parte na alegria comum do~ parente,t! e amigos". 1 -201 tomago e convidavam-se as crianças a vir devorar os intestinos. Afinal, procedia-se ao retalhamento, pelo dorso, do tronco (Est. Vf, {Lg. B). Fig. 6 - A cabeça do prisioneiro era cozinhada em um pote e as mãos assadas em espetos (segundo Staden). Os quartos eram assados ao moquem e .,os cuidalos -.ulinarios entregues às velhas mulheres, que manifestavam o seu prazer por uma agitação frenetica; es- " -262- tas, sobretudo, conforme observa Claude d' Abbevile, 1 "se pudessem embriagar-se de carne humana de bom grado o fariam." Até a gordura, que escorria pelos varais do moquem, lambiam as velhas, exclamando repetidamente, com jubilo, Ygatou, "é bom" (r). Algumas mesmo chegavam ao ponto de lambusar o rosto, a boca e as mãos com as ·banhas do morto, bebendo todo o sangue que se podia recolher. Nada era perdido: os homens coziam as entranhas, devorando-as; as mulheres lambiam o caldo. Língua, miolos 2 e certas partes do corpo estavam reservadas aos jovens; para os adultos ficava a pele do cranio e para as mulheres os orgãos sexuais. Porções havia consideradas nobres; 3 eram dadas aos hospedes de honra, que as moqueavam e levavam consigo (fig. 7). Obrigavam-se as crianças a tocar no cadaver e a embeber as mãos no sangue vertente, encorajando-as com as seguintes palavras: "Estás vingado. Vinga-te tambem, meu filho. Eis aqui um dos que te deixaram orfão de pai". 4 A outros, os indios untavam de sangue o corpo, braços e coxas; para que os bebés tomassem, do mesmo modo, parte no· festim, as mulheres molhavam de sangue os bicos dos seios, pensando, desse modo, tornar os filhos valorosos. Se as crianças estavam em idade de compreender, as mulheres exortavam-nas a tratar os adversarios à maneira de seus maiores. 1 Foi. 294. 2 Segundo Léry (t. 11, p. 50), os miolos não eram comidos. 3 Thevet (2), foi. 956: "o mais saboroso, para os selvagens, eram as pontas dos dedos das mãos, assim como as partes de junto do fígado e do coração". 4 Ms. inedito de Thevet, foi. 61. -263- Quando o numero dos convidados era tão consideravel que não permitia a distribuição, a cada um, de parte da carne , os · indígenas coziam o pé, as mãos, ou mesmo um dedo do cadaver na gàme:la e todos po- Fig. 7 - Os memb1·os do p1·isioneiro .•ão assaçlos ao '71Wquem. (segundo Staden). diam, então, provar-lhes o caldo. Se havia, ao ·contrario, abundancia de carne, o excedente do banquete era preparado e guardado nas ocas .à espera de outra -264- fe~tança. Os hospedes levavam para casa pedaços de ca·rne, e, mal chegavam à aldeia, organizavam nova bebedeira para o fim de concluir o banquete. Se o chefe da aldeia estava ausente, não esqueciam' os índios de guardar a sua parte. Em regra, as velhas mostravam-se mais avidas de carne humana do que os homens. Mas os velhos rivalizavam com aquelas na paixão por esse manjar, separando cuidadosamente pedaços de carne hu!l'lana para deles se servirem em outras ocasiões. Preservação religiosa mereciam os ossos dos mortos, sendo os cranios fincados em estacas à frente da choça do vencedor. Os dentes serviam pàra a fabricação de colares e as tíbias para a fabricação de flautins ou apitos. Consistia numa prova de valor, acarretando muita consideração, trazer ao ,pescoço longos colares de dentes humanos e ostentar numerosas cabeças em derredor da cabana. Nenhum traço dos costumes tupinambás excitou tanto a curiosidade e o interesse dos antigos viajantes como esse de devorarem os índios a seus prisioneiros de guerra. As perguntas propostas sobre a origem e a finalidade de tão perverso habito, respondiam os selvagens, invariavelmente, que assim agiam com o fito de vingar a morte de seus pais; era a vingança do sangue o unico e exclusivo movei de suas expedições belicas, consideradas incompletas se o inimigo não era afinal devorado. Esse sentimento é ilustrado por uma anedota contada por Thevet: "Certo indígena, muito doente, prometera, em caso de cura, converter-se ao cristianismo; mas, tomando conhecimento de que teria de abandonar o habito de vingança, exclamou: - -265- "Quando o proprio Tupã lhe ordenasse tal coisa, ele não o poderia fazer, merecendo de preferencia morrer se, acaso, a isso viesse a acceder". Tudo faz crer, pois, que os tupinambás interpretavam a antropofagia como uma especie de "vendetta". Estavam esses silvícolas tão convencidos da necessidade de devorar, ou morder o ofensor, como satisfação do dano, que aplicavam semelhante lei aos proprios animais e objetos inanimados. 1 Ao ser mordido por um.a pulga, todo índio se aprel?Sa a esmagá-la nos dentes, - para "prendre !e pource", isto é, por causa das mordeduras desse parasita. "São os selvagens muito vingativos, enfurecendo-se facilmente contra tudo o que lhes possa causar mal; se, por exemplo, topam numa pedra, mordem-na enraivecidos como fazem os cães". 2 Se tal vem sendo a significação dada .à antropofagia, não menos certo é ter esse costume, no começo e nos princípios do seculo XVI, um carater mais elevado e mais profundo, conforme o testemunha a multiplicidade dos ritos observados por essa epoca. O canibalismo tem sido, frequentes vezes, considerado como uma pratica exclusivamente destinada a aumentar a força vital daqueles que o praticam, ou, pelo menos, um processo capaz de permitir a aquisição de deterI Thevet (1), p. 207 e (2), foi. 947; Soares de Sousa, p. 321; Staden, part. II, cap. XVIII: "Wann eyns dem andern lauset die leuse essen sie. I ch hab sie offtmals gefragt warumb sie es thun Sie sagten Es weren ire feinde Essen inem vom heubt wollen sich an inem rechen." 2 Léry, t. I, p. 183; Pezieu, p. 12: "Os velhos exortavam os filhos à vingança; se, acaso, feria-os uma espinha (ou qualquer outra coisa), levavam-na logo à boca, depois de extraí-la''. -266- minadas qualidades. 1 Os tupinambás não permaneceram extranhos à tal concepção, como o indica o fato de os velhos, - isto é, os indivíduos cujo corpo debilitado necLssita .de uma carga de energias novas, serem sempre tidos como us mais particularmente avidos de carne humana. Se existia essa crença entre os referidos indios, não é ela, todavia, a unica rcsponsavel pelos massacres por eles executados. A noção do "mana" não é extranha ao canibalismo tupi. Servindo-se de carne do inimigo, não somente os tupinambás se apropriavam de sua substancia, mas, tambem, manifestavam a superíoridade dos mesmos sobre o adversario. Pigafetta 2 conservou o mito, pelo qual os tupinambás explicam a origem da antropofagia: "Certa velha tinha um filho unico, morto pelos inimigos; tempos depois, em prosseguimento da guerra, o assassino foi feito prisioneiro e conduzido à presença da velha. Esta, por vingança, atirou-se ao mesmo, mordendolhe as espaduas qual se fôra um cão enfurecido. Porem o homem conseguiu fugir e, ao retornar a casa, mostrou a carne rota e contou como os seus inimigos tinham tentado devorá-lo vivo. Desde então, os índios se puseram a comer, uns aos outros, os indígenas caídos prisioneiros". Não eram apenas os homens que morriam ritualmente. O pior inimigo dos tupinambás, após os seus vizinhos da mesma especie, era o jaguar. Desse modo, se os selvagens apanhavam o jaguar, abatiam-no 1 O unico estudo de conjunto, que se possue a respeit() da antropofagia dos indios sul-americanos, é o capitulo que lhe· c<?nsagra Andrée no livro concernente a esse costume. Os exemplos dados são assás maus e duvidosos. 2 P. 18. -267- na praça publica, praticando as mesmas cerirnonias realizadas com o inimigo humano. Corno o espírito da fera podia vingar-se, o matador devia rnudqr de nome e submeter-se .às praticas mais adiante descritas. 1 Com a colonização europeia, os tupinarnbás cedo perderam ocasião de fazer a guerra, por ausencia de adversarios a combater. Isso, todavia, não impedia a sobrevivencia dos velhos habitos. Os derradeiros tupinarnbás dirigiam-se às taperas inimigas, com o objetivo de desenterrar os mortos. Trazendo os cranios para a aldeia nativa, os tupinarnbás, ornando-os de plumas, partiam-nos a golpes de tacape. E o autor dessa façanha desempenhava, em seguida, os rituais prescritos para os casos reais, tomando até norne. 2 A antropofagia é um costume característico dos caraibas e dos tupi-guaranis. Todas as tribus dessa ultima familia Iinguistica, a proposito da qual somos tão mal informados, assinalam-se como antropofagos. Na maioria dos casos, as acusações têm fundamento, pois, em todas as suas tribus, o canibalismo é praticado ritualmente. A essa pratica estão os índios tão presos que diversas de suas crenças são a ela associados. A antropofagia ritual era praticada pelos antigos guaranis,"' chiriguanos/ guaraius,~ jurunas,8 chipaias,' apiacás 8 e oiampis. 9 Os omaguas e os cocamas são 1 Cardim, p. 38. 2 Soares de Sousa, p. 308. 3 Nunez Cabeza de Vaca, t. I, ps. 199-200; Montoya, p. IH; Techo, p. 213. 4 Lizárraga, p. 553. õ Annure littérre, ps. 428 e 437; Cardús, p. 73. 6 Steinen, p. 262. 7 Nimuendajú (3), ps. 1023-1025. 8 Castelnau, t. II, p. 314. 9 Bauve, t. XXVIII, p. 277.. ~ 268 frequentemente acusados de antropofagia.1 Defendemnos os missionarios dessa imputação, mas os pormenores contados a respeito do modo por que são tratados os prisioneiros fazem supor que outrora sua condição era identica à dos cativos entre os tupinambás. Assim os indígenas considerados particularmente bravos eram executados mediante determinadas festas, sendo a cabeça enfiada em um poste à guisa de trofeu e o corpo lançado à agua; os demais passavam a ser adotados pela tribu. Os omaguas e cocamas dão a impressão de ter renunciado, em recente data, ao canibalismo, por influencia de seus vizinhos. Comparando as resenhas deixadas pelos viajantes a respeito dos ritos antropofagicos dos tupis, fica-se surpreendido com a similitude existente entre si. Os costumes e ritos guaranis, nesse sentido, são muito parecidos com os dos tupinambás. Era o prisioneiro bem tratado, 4limentado e amimado; davam-lhe uma esposa; e, no dia fixado para a execução, os habitantes das aldeias proximas, convidados, acorriam numerosos. À vespera do dia fatal, organizava-se uma "procissão"; duas moças da povoação conduziam, respectivamente, o tacape (em um vaso) e a "coroa destinada à vitima". O cativo era arrastado por vigorosas mulheres, que o prendiam com cordas atadas à cintura. Davam-lhe os índios, então, pedras e pedaços de pau, com <JS quais o mesmo metralhava os assistentes, que aplaudiam a sua destreza. Começava, então, a bebedeira, que se prolongava até o dia seguinte, data do sacrifício. A vitima, que se apresentava equipado como se fôra a uma festa, era abatida a golpes de tacape. Crianças, munidas de machadinhas de cobre, abriam o cranio do mo1 Acufía, ps. 119-121; Maroni, t. XXX, p. 195 e t. XXXIII, p. 115; Chantre y Herrera. p. 90. -269 -- ribundo é, enquanto se esforçavam assim nesse mister, os índios exortavam-nas a tornar-se destemidas e a vingar os pais. Depois do que se seguia nova distribuição de bebidas, que punha fim às cerimonias. O processo de execução variava entre os chiriguanos: quando esses indios decidiam a morte de um chané, mandavam-no banhar-se no rio e entregavamno às crianças, que o perseguiam, no pateo da ·aldeia, a flechadas. O cadaver era devorado por toda a tribu. Tal foi a sorte reservada a sessenta mil chanés, no decorrer dos seculos XVI e XVII. Hoje ainda, os chiriguanos dão aos filhos, para alvo, as cabeças dos inimigos mortos nos campos de batalha. 1 Tambem os guaraius não esqueceram rapidamente seus habitos antropofagicos: até os fins do derradeiro seculo guardaram a lembrança desse costume. Os ritos de seus ancestrais foram descritos nas Annure litterre: 2 "Se os índios fazem, em combate, algum prisioneiro, prendem-no, durante os dias da festa, a uma arvore, e, após tingi-lo de preto e de vermelho, ornamentam-no de penas e saturam-no de vinho (para que ele suporte mais consoladamente a morte). O prisioneiro, quer por embriaguez, quer por desespero, tendo esgotado o animo - pois não lhe resta nenhuma esperança de salvação - lança aos ,assistentes as piores injurias e os mais yergonhosos ultrajes, excita-os à matança e, depois, joga pedras no rosto do carrasco. Desse modo, exprobrando a covardia deste, inflama-o a tal ponto que o matador, armado da maça de pau endurecida ao fogo, dá-lhe três ou quatro golpes violentos e assim lhe fende a cabeça. Em seguida, sur1 2 Nino, p. 279. Ps. 428 e 437. -= 270- gem logo as mulheres e - horror! - devorám avidamente os membros do prisioneiro, enrijados pela morte e ainda quentes, dilacerando-o de um modo indescritível". Assim como os seus irmãos chiriguanos, os guaraius dão às crianças, para servirem de alvo, os inimigos capturados. Entre os chipaias, a antropofagia toma a forma de uma oferenda a K umã'fári. Esse demonio exige, por intermedio do feiticeiro, carne humana e, Jogo, organiza-se a expedição. Antes da partida, a sorte designa o guerreiro a quem está reservada a missão de fazer prisioneiro. Se o guerreiro é bem sucedido, passa, ao pescoço e em torno das espaduas do cativo, uma corda de algodão, de côres diversas, que ele tem o cuidado de levar consigo antecipadamente. E assim fica o mesmo preso, durante todo o tempo em que as mulheres preparam o caxiri, embora tenham o cuidado de alimentá-lo bem e receba, por consolo, a promessa de ser libertado. Somente na vespera do sacrifício é que se anuncia a resolução ao prisioneiro. Nesse dia, mulheres e crianças trazem-lhe alimentos e o matador tinge-se de jenipapo e canta, perante toda a gente, sua façanha, - sendo, por isso, louvado e aplaudido, - entregando a vitima aos demais guerreiros, que, um a um, servem-se dele como de alvo em carne. Procura o mísero lançar contra os seus inimigos as proprias flechas, que arranca do peito, enquanto as mulheres e crianças reprovam os carrascos por estes trucidarem ~um homem a quem não fizeram prisioneiro. A carne do morto é comida e parte dela ofertada a Kumã'fári. Nem os executores, nem o vtncedor são obrigados à purificação, como acontece nos casos da antropofagia ritual. Conserva-se a cabeça da vitima, em trofeu, na cabana, atribuindo-se-lhe o poder de anunciar a vinda das tropas adversarias. ~ 271 Os apiacâs (s) esquartejam e devoram ó cadaver dos inimigos mortos no campo de batalha. Só as crianças são poupadas; mas, quando atingem a idade de doze ou catorze anos, tambem são elas sacrificadas solenemente no pateo da aldeia. O indígena encarregado do golpe fatal era, em geral, o pai adotivo. O corpo da vitima é assado e devorado no curso de um festim, que durava por toda a noite. A crer em Castelnau, só. os índios com tatuagens em torno dos labios podiam saborear carne humana; Guimarães, todavia, afirma que todos, pequenos e grandes, participavam do banquete. O Museu de Gõteborg adquiriu, em 1921, o cranio de um índio mura, que tinha sido morto e devorado pelos parintintins. Os parintintins (segundo se diz) comem os olhos, a língua e os musculos das pernas e dos braços de suas vitimas, afim de impedir que estas vejam, falem, andem e usem o arco. O cranio guardado preciosamente pelo vencedor, torna-se objeto de toda a sorte de cerimonias, renovadas, aliás, cada vez que se recebem visitas. Após saudar os assistentes com manifestações belicas, o matador, tendo o cranio suspenso pelo braço, narra a sua façanha, cantando toadas guerreiras enquanto passa, pela frente dos hospedes, seguido de dois mancebos, que oferecem hidromel em cabaças cheias desse liquido. Trofeu e cabaças são, depois, postos em terra e todos, aos gritos, descarregam as flechas nesses objetos. Em seguida, dansa-se ao som do toré, em derredor do cranio, com o qual algumas pessoas bebem, bailam e louvam as proezas. Segundo Garcia de Freitas/ outrora os parintintins sa1 P1. 70-72. -272- crificavam os seus prisioneiros no pateo da aldeia, abatendo-os com: uma lança (provavelmente o ta cape). Os mundurucus, que se celebrizaram pela ferocidade e pelo habito da caça aos cranios, não eram en...tretanto antropofagos. Esses índios adotavam os prisioneiros, tratando-os de igual para iguaJ.l Precauções tomadas pelo matador ' As praticas, ,às quais se entregava o executor após a morte çio prisioneiro, tinham por objetivo protegê-lo da vingança do espírito do morto. O matador, mal a vitima era abatida, abandonàva o manto e o maracá, refugiando-se em sua oca. 2 Seu padrinho, - isto é, o velho que lhe havia posto em mãos, solenemente, o tacape, - aguardava-o à porta da maloca e, no momento exato de sua entrada, fixava no chão uma das extremidades do arco, estirando a corda de modo a permitir que o afilhado deslisasse pelo centro dessa arma, sem tocar em nenhuma das suas peças. Logo que o executor passava por dentro do arco, o velho afrouxava a corda, fingia disparar a fie1 Tocantins, part. II, p. 93. Thevet, em seu ms. inedito (foi. 58 v.) informa que, no momento de o prisioneiro cessar ú respiração, o executor recebe, antes de retirar-se, "sapatos novos de algodão tipgidos de vermelho", assim como duas !ages para nelas repousar os pés, evitando tocar em terra. Como os tupinambás ignoravam Ó uso desses calçados, anteriormente à colonização europeia, fica-se surpreso com o pormenor fornecido por Tltevet. Talvez esses sapatos não passassem de sandalias de algodão, que deviam preservar os pés do "matador" de qualquer contacto com a terra; a continuação da frase parece confirmar essa minha maneira de ver. 2 -273- cha e ensaiava um gesto de enfado por não ter alcançado o seu desígnio. Esse ato deveria tornar o matador agi! e permitir-lhe evitar, no combate, os golpes contra ele lançados. Chegando à cabana., o executor punha..-se a correr em todos os sentidos, na realidade para subtrair-se à perseguição do espírito. Durante lsse tempo, irmãos e primos percorriam a aldeia gritando: - "Meu irmão chama-se assim". E diziam, então, o novo nome escolhido. A mudança de nome era a mais importante das precauções por quem quer que se julgasse exposto · · · · (t). No caso em especie, deviam tambem trocar de nome, alem do matador, as seguintes pessoas: o guerreiro que propriamente capturara o ptisioneiro; aquele que o havia alcançado na corrida, ou que o havia maltratado antes de o mesmo ser preso; a esposa, os irmãos, as irmãs e os primos do "matador"; enfim_, todas as pessoas que haviam participado, de qua.Jquer modo, na execução do inimigo, ou eram aparentados com o matador. A renominação era medida de prudencia igualmente adotada por todo individuo que tivesse morto a outrem e a quem cabia desviar o espírito de qualquer empresa dirigida contra a pessoa causadora de sua colera. Atualmente ainda, em casos de molestia grave, os apapocuvas recorrem à mudança de nome como remedio infalível. "Rebatizando" o paciente, esses selvagens imaginam afastar dele as influencias malignas responsaveis por seu estado. Acontecia o mesmo entre os antigos guaranis. Segundo Nufíez Cabeza de Vaca/ por exemplo, o filho que primeiro abria o cranio do prisioneiro tomava o 1 T. I, p. 199. -274- nome de sua vitima. Esses indígenas, parece, tinharrí tarito temor ao inimigo, por eles devorado, que. abandonavam em massa, por outro, o antigo nome: "Usam os índios do batismo, ou de outra pratica, para mudar de nome. O prisioneiro, feito na guerra, é cevado e alimentado a seu modo, sendo-lhe mesmo licito escolh ... r as mu,heres que quiser. Assim que engorda, matam-no solenemente. Cada qual golpeia o cadaver e troca de nome. Repartem, na aldeia, os pedaços do corpo. Esses pedaços são cozidos na agua e todo aquele que provar-lhe o caldo toma outro nome. Essa t...specie de sopa, ainda, é servida às crianças, por suas mães, que, do mesmo modo, mudam tambem de nome. A festa é muito importante e celebrada com numerosas cerimonias." 1 De passagem, devemos observar que as crianças guaraius, quando matam a flechada os guerreiros, adquirem igualmente novo nome. 2 FriedericP considera esse costume um segundo nascimento. O assassino transformar-se-ia em uma criança que renascia; a alma do morto, desse modo, seria burlada. Em apoio dt...ssa sutil hipotese, Friederici a1ega a obrigação, em que se encontra o matador, de permanecer estirado na rede, assim como o jejum ao qual se acha obrigado e o uso dos arcos em miniatura (mais adiante tratarei desse pormenor). Ma:5, os exemplos dados precedentemente não permitem, de modo absoluto, a aceitação da engenhosa teoria que acabo de resumir. O tabu do nome é fato bem conhecido em etnografia; do mesmo modo a participação da mentaMontoya, p. 51. Annure litterre, p. 437. 3 (2). 2 -275- lidade primitiva entr,e o significante e o significado. Trata-se simplesmente, para o guerreiro tupinambá, de adquirir nova per.sonalidade. Acrescento ainda a esse proposito que, segundo Soares de Sousa, a proclamação do novo nome adotado pelo matador teria lugar no final de uma serie de praticas às quais era forçado a submeter-se. Embora Thevet declare formalmente que o abandono do antigo nome e a adoção do novo precediam, de muito, ao massacre do prisioneiro e eram motivo de jubilos especiais. O matador ainda bem não retornava à cabana, era logo despojado de todos os seus pertences, sem que lhe fôsse permitido conservar nenhum deles. O mesmo acontecia quando o guerreiro voltava para a sua maloca após matar algum inimigo; todos os habitantes da casa precipitavam-se para o seu compartimento, esvasiando o local das armas e lanças até então usadas pelo matador, que não fazia o menor protesto. Em seguida, os indios traziam certo numero de mãos de pitào, nas quais o matador era obrigado a ter-se de pé, durante todo o dia, imovel e silencioso. Então, apresentam-lhe a cabeça do morto, à qual tinham arrancado um dos olhos, e, com os nervos da orbita, untavam-lhe os. pulsos, fazendo ainda do maxilar uma especie de manilha para o braço. Cardim, a quem se devem esses detalhes, assegura que tais praticas eram indispensaveis. Só assim se evitaria a vingança do morto, a quem· decepavam o punho direito para o fim de impedir-lhe usar o arco contra o seu executor. Semelhantes praticas eram apenas preliminares. Depois de concluídas, o vencedor devia ir acomodar-se na rede, corno se estivesse doente, na qual ficava ligado, braços e cintura, durante quatro dias, por meio de cordas. Decorridos os dias, tiravam-lhe os índios - 276'- essa ligadura e enegreciam-na com jenipapo. Tambem o executor era forçado a guardar rigoroso jejum: não podia saborear o cauim do morto, nem alimentar-se, durante um mês, de caça ou de pesca. Seu unico alimento consistia em farinha de mandioca, ou de amendoim (u), e, por bebida, agua pura.1 O uso do sal estava interdito e, em caso de infração, a ameaça de morte era certa. Mais ainda: não podia falar a ninguem, nem descer da rede (o contacto da terra considerava-se como particularmente perigoso). "Se o matador precisa ir a alguma parte para satisfazer as suas necessidades (diz Thevet2), irã carregaçlo, pois tem a louca opinião de que, fazendo-o de outro modo, cairia doente e, talvéz, viesse a perder a vida." Sua distração, durante esse periodo, é atirar flechas, com pequeninos arcos, contra figuras de cera, representativas, certamente, do espirito do morto, colocadas em sua frente.3 Ainda hoje os gu~ranis, quando executam dansas destinadas a expulsar os espiritos sedentos de vingança, levam nas mãos arcos minusculos, - armas julgadas suficientes para proteger os· dansarinos de qualquer agressão .dessa ordem. 4 Era obrigação do matador deixar crescer os cabelos em sinal de luto.s Quando, porem, cresciam su1 Thevet em seu ms. inedíto (foi. 61) pretende que o matador poderia beber cauím. 2 (2), foi. 946. 3 Staden, part. II, cap. XXIX: "Dann muas er denselbigen tag stilligen in eynem notz thun yhme eyn kleynes flitschboglin mit eynem pfeil darmit er die zeit vertreibt scheusset in wachs Gesicht darumb. das ime die arme nicht ungewiss werden von dlm schrecken des todtschlagens". 4 Nimuendajú (1), p. 310. õ Segundo Thevet (m!_!. inedito., foi. 61), o matador raspava o cabelo até a base. -277 ficientemente, organizava-se uma festa, que devia marcar o fim do "luto" da vitima, para servir-me da expressão dos cronistas. As mulheres preparavam cauim, e, quando havia bastante bebida, o baik começava. Na vespera, o executor pintava-se de negro e, após o pôr do sol, punha-se a entoar canções, que se prolongavam por toda a noite; no dia seguinte, cortava os cabelos e a gente da aldeia entrava a beber. Segundo Soares de Sousa, 1 era só nesse dia que o assassino consentia em revelar o nome, depois que seus companheiros se reuniam em torno dele, suplicando-lhe dizer como lhe deviam chamar dor avante (esse pedido era feito varias vezes, antes que o matador descobrisse o segredo). Nesse ínterim, morte ao inimigo e louvores ao vencedor eram o tema das canções dos assistentes. Terminado o festim, o heroi tingia-se outra vez de jenipapo, e, tomando um dente de cutia, abria incisões profundas no peito, nos braços, nas pernas e nas coxas; os talhos, longe de serem feitos ao acaso, obedeciam a um traçado artístico. Nas chagas salpicavam os índios carvão pisado, ou untavam-nas com o suco de certas ervas. As cicatrizes mantinham-se durante toda a existencia e davam ao corpo a aparencia de ter sido cinzelado ao buril. Quando algum tupinambá abatia um inimigo, nova tatuagem acrescentava-se .à antiga, auferindo-se o valor do guerreiro pelo numero de figuras que lhe cobrem o corpo. Essa operação teria lugar, no dizer de Cardim, antes da festa, que marcava o final da fase perigosa. De qualquer modo, a mesma não punha fim ao ciclo das provas pelas quais deveria passar o matador. Cabia-lhe ainda permanecer alguns dias na rede e observar prescrições alimentares. Os 1 P. 333. -278- jovens, todavia, poderiam subtrair-se à tatuagem: bastava que se tingissem de jenipapo e se tonsurassem. Quem passava, uma vez, por todas essas provas, poderia, daí em diante, abater inimigos sem necessidade de recorrer, depois, àquelas medidas de precaução. Se, por exemplo, partia, no pateo da aringa, o cranio da sua vitima, bastava-lhe recolher-se .à oca, aonde seus companheiros vinham trazer-lhe cumprimentos e apresentar-lhe a cabeça do morto; os filhos, felicitando-o, passavam o braço em torno do seu pescoço e lambusavam as mãos no sangue do morto. A vingança do sangue podia recair tanto no culpavel, como em qualquer dos seus parentes; irmãos, irmãs, primos, todos, igualmente como o matador, se julgavam em perigo. Devia a parentela, por conseguinte, não somente tomar novo nome, mais ainda jejuar, recolher-se à rede, cortar os cabelos, fazer incisões no corpo, em suma, entregar-se às mesmas praticas daquele que havia derramado o sangue do inimigo. Festa analoga .à anteriormente descrita era celebrada por cada um dos parentes, com o fim de tirar o "luto". O varão, que executava algum prisioneiro, de acordo com o ritual indígena, era sagrado "cavaleiro", isto é, recebia os qualificativos de Abaété ("homem verdadeiro"), de Murubixaba ("chefe") e de Mocarara ("meu amigo, meu camarada, ou aquele que busca comida para mim") (v). Seu prestigio aumentava em proporção ao numero de inimigos abatidos c tornava-o um dos "principais", ou seja, um dos que se encarregavam da ordem economica da tribu. Em caso de expedição militar, escolhiam-no para capitão. Não se podiam tornar chefes de tribu senão aqueles que possuíam, em seu ativo, varios massacres rituais. Outros aspectos da vida social do individuo podiam ser afetados pelos processos de execução do pri- -279- sioneiro. Assim, se algum mancebo não abatera a vitima de conformidade com o rito selvagem, ou se .não havia, pelo menos uma véz, mudado o seu nome de infancia, - via.- se recusado pelas moças casamenteiras, visto como os tupinambás "acreditavam que os filhos gerados de l,lm Manem, isto é, de um que jàmais havia feito prisioneiro, não poderiam tornar-se bons frutos; seriam tais rebentos Mébeck (w), que é o mesmo que fracos, madraços e covardes" 1 (x). Em principio, as viuvas tornavam a casar. Casavam com o cunhado, ou com o mais proximo parente do marido. O matrimonio só teria lugar se o futuro esposo tivesse vingado o anterior, na hipotese de este ter sido morto pelos inimigos. Se a morte era natural, o pretendente tinha que obter algum prisioneiro para o fim de "renovar" o tumulo do finado e fazer a limpeza dos bens do mesmo. As índias não podiam contrair novas nupcias se o segundo esposo não igualasse o primeiro em bravura. Se não encontravam algum varão nessas condições, guardavam a viuvez. 2 (y) . 1 Thevet (1), fol. 932 v. 2 No documento intitulado De algumas cousa.f mai.t ncta.vei.t do Brasil (ps. 387-389), encontro algumas indicações sôbre a antropofagia ritual dos tupinambás, que confirmam varios dos pormenores acima referidos. · Esse texto só me chegou às mãoa no momento em que as linhas precedentes já ~tavam impressas. -280- NOTAS AO CAPITULO XI (EsTEvÃo PINTO) ..... (a) A palavra coup foi o noq~e dado pelos canadense8 franceses a esse costume dos índios das regiões septentrionai8 da America-do-Norte. Cf. Robert H. Lowie, Manuel d'Anthropologie culturelle, p. 244, Paris, 1936. • (b) Aliás, couiiue eum. Explica Rodolfo Garcia: "Coáubeyma, de coáub, saber, entender,. conhecer, e eyam, posposição negativa: sem saber, sem entender, o imbecil, o tolo, e não o falto de coragem, o poltrão, conforme a interpretação do texto" ("Glossario", cit. p. 31). (c) Pourra Offeu-notz. Na Cosmografia, "Paraoussou-vots". Talvez poraraçába, dôr, magua. Cf. Dicionario português-bra.ti· liano, cit., p. 278. (d) Métraux refere-se ao guará (Eudocimus ruber L.), ave da familia dos ibidideos. A respeito dessa ave, leia-se o comentaria de Oliverio M. O. Pinto, em Marcgrave, ed. cit., p. LXIX. (e) Cunham-bira é propriamente "mulher morta", cunha ambyra. Ao filho, oriundo das relações entre o prisioneiro (ou estrangeiro) e as índias, chamavam os tupinambás de marabá (nota de A. de Alcantara Machado, em Anchieta, Cartas, cit., p. 243). (f) A respeito do carbé, cf. a nota de Rodolfo Garcia, "Glossario", cit. p. 28. Segundo Rochefort, o termo é caraiba . -281- e significa "casa publica". ( o.c., p. 273). O autor dos D~alogos escreve carpe (g) Staden ( o.c., p. 90) escreve mmsurana. Segundo Léry ( o.c., p. 177), a corda era feita de embira e segundo Cardim (a.c., p. 183) de algodão. G. S. de Sousa escreve muçurana (a.c., II, p. 279). (h) Rodolfo Garcia diz que a palavra provem de atirá (topete) e bébé (que vôa). ("Glossario", p. 22). Marcgrave (a.c., p. 278) escreve Atirabebe e Iatirabebe. (i) Algumas variantes: Quaniam begue ou Koniam-Bebe (Léry), Konyan Bébe (Staden), Cunhambebe (Simão de Vasconcelos). O Cunhambeba ou Cunhãbêba de Anchieta (o.c., ps. 213 e 449) não deve ser confundido com o de Thevet. O famoso Cunhambebe foi vitimado pela pestç logo após a chegada de Villegagnon ao Rio de Janeiro, como observa Capistrano de Abreu, fundado numa informação de Heulhard (o.c., p. 114). Por muito tempo, aquele frade conservou em casa o tllcape de Cunhambebe, "capable d'assomer un breu,f". (j) O trecho de Cardim foi citado de acordo com o ori- ginal. (k) De canhéme, fugir. Garcia, "9lossario", p. aa. E-canhém, foge tu. Cf. Rodolfo (l) A frase de Cardim não é propriamente a que vem em Métraux. Cardim diz: "Se tu foras papagaio, voando nos fugiras" ( o.c., p. 186). (m) Explica Plínio Ayrosa que ajum.ju = ajurujúba siguifica pescoço amarelo, por causa da barba geralmente alourada dos franceses. Tal nome designava especialmente o colono dessa nacionalidade. Mari, como se sabe, é o oposto a peró. O resto da frase depende de restauração. (n) ~orne, provavelmente, de alguma especie de saguim, que já não é possível identificar. -282 - (o) A frase correta, segundo Plinio Ayrosa, é Pa, che tantã, ajuká ha aú pavé (pabén) e significa apenas "Sim, sou forte, matei e comi 0 toqos." .Cf. Léry, ed. cit., p. 178. (p) Essas palavras já foram estudadas por Rodolfo Garcia, cf. Abbeville, ed. cit., ps. 232 e 233. Kerambaue está nos dicionarios tupis com a significação de forte e valoroso; Tetaniitou é, talvez, tetecatu, corpo rijo; Tauayue (ou 'l'auiiyue) pode ser taigaíb, ativo, diligente. ( q) O trecho de Gandavo vai transcrito de acordo com o original português. (r) Icatu, realmente, vem em Stradelli, "Voe." cit., p. 466, com esse sentido. (s) O trecho referente aos apiacás foi revisto e aumentado por Métraux, assim como tambem o seguinte, a respeito dos parintintins. Não consta da edição original. Guimarães, a quem se refere Métraux, é José da Silva Guimarães, autor da "Memoria sobre os usos, costumes, linguagem dos Appiacás", etc., pub. em Rev. do Inst. Hist. e Geog. Bras., VI, ps. 305-325, 2.• ed. (t) No ponto de vista psicanalítico, o resguardo do matador, com a sua consequente renominação, era uma atitude ambivalente. Sôbre o assunto, cf. Estevão Pinto, o.c., 11, ps. 294-295. (u) No texto, arachide. Trata-se do amendoim (Arachis hipogea, L.). Cf. Cardim, o.~., p. 193. (v) Os significados estão certos. Moçacara, não Mocacara, como vem no texto. As explicações são fornecidas pelas notas de Rodolfo Garcia à obra de Cardim. (w) Manem - manê = pané = panema, azarado, infellz. Jlebeck = membek = membeka, mole, fraco, poltrão. De acordo com Plínio Ayrosa. (re) Sobre o canibalismo em geral, cf. R. Andree, Die Anthropophagie, Leipzig, 1887; p; Bergemann, Die Verbreitung der -283- Anthropophagi6 iib6r di6 ErdiJ, Bunzlau, 1893; H. Henkenius, "Entstehung und Verbreitung der Anthropophagie", em D6utsch6 Rundschau f. Geog. u. StiÚístik, XV, Vienil, 1893; S. R. Ste_inmetz, "Endokannibalismus'', em lrlitt. diJr Anthr. Ges. in lVien, XXVI, Viena, 1896; Th. Kock, "Die Anthropophagie der Südamerikanischen Indianer", em Arch. f. E., XII, .Leiden, 1899; L. Capitan, "Les sacrifices humains et l'anthropophagie rituelle dans l'Amérique ancienne", em Rev. de l'Anthr., Paris, 1909-1910; P. Descamps, "Le cannibalisme, ses causes et ses modalités", em L' Anthr., XXXV, Paris, 192li. (y) De acordo com a teoria de Florestan Fernandes, que se aproxima, em alguns aspectos, da de Métraux, os tupinambás, com as praticas antropofagica~ - ritos do aprisionamento, sacrifício do prisioneiro, renumeração do matador - procuravam: a) intimidar os inimigos pela auto-afirmação do proprio poderio; b) pôr em ação o sistema tribual de compromissos recíprocos de assistencia mutua; c) intensificar os laços de solidariedade, que uniam entre si varios grupos locais. O.c., ps. 236-237. Desenvolvimento a ps. 104 sq. O matador adquiria forças sobrenaturais, que lhe aumentavam os dotes carismaticos. Em outras palavras, modificava o carisma do iniciado, a ponto de torná-lo um Aua completo e alterar-lhe a personalidade ( o.c., ps. 237-238). Ainda a proposito da antropofagia, é interessante ler poimento de Mauricio de. Heriarte, transcrito na Historia do Visconde de Porto Seguro, IH, 3.• ed., São Paulo, s/d, Aos ritos do matador, Heriarte chama as cerimonias de cavalheiro. o deGeral p . 215. armar J. ~ernando Carneiro (A antropofagia entre os indígenas do Brasil, Rio, 1946) quis negar a existencia do canibalismo; seus argumentos, entretanto, não convencem. As práticas descritas tão minudcnciosamcnte pelo jesuíta Cardim, p.e., não podiam ser inventadas ou criadas à custa de meras conjecturas. -284- CAPITULO XII PRATICAS MAGICAS E CRENÇAS DIVERSAS No presente capitulo, propus-me a reunir todos os informes esparsos, que consegui coletar na literatura concernente às praticas religiosas ou magicas, ligadas a varias atividades exercidas pelos índios tupinambás. Os pormenores aqui reproduzidos são de muito desigual valor. Só à custa de raros indícios é possível vislumbrar um conjunto de crenças e ritos a que· estavam subordinadas as ações coletivas ou individuais desse grupo indígena. Talvez no folclore da população mestiça do Brasil oriental moderno pudessem ser encontrados alguns t_raços das "superstições", que os velhos autores assinalaram entre os antigos autoctones do litoral. Agricultura. - Os tupinambás eram gente essencialmente agrícola, isto é, tiravam da terra a maior parte da sua subsistencia. A verificação desse fato dá a entender que as praticas magico-religiosas destinadas a aumentar o rendimento dos terrenos da cultura deveriam ser numerosas e importantes. A mitologia tupinambá é testemunha do papel preponderante representado pela agricultura em suas tradições. Os heroiscivilizadores são, antes de tudo, inventores de plantas pertencentes à base alimentar desses índios (a). As -285- principais funções dos feiticeir-os consistiam em fazer chover e a suprema felicidade da "terra sem mal" era o povo poder alimentar-se de legumes espontaneamente produzidos. Nada foi conservado dos ritos, festas e crenças dos tupinambás relativos .à agricultura, a não ser a referencia a três praticas dessa ordem, cuja descrição se deve a Yves d'Évreux. 1 A primeira destinava-se a assegurar a (lbundancia das colheitas de milho e de mandioca; a segunda a prover a fartura do algodão; a terceira, enfim, visava a obter as chuvas. As duas ultimas têm carater quase que puramente magico e penetram, talvez, no domínio da magia imitativa; a primeira, ao contrario, está nos limites situados entre a magia e a religião: cabia a determinado espírito o mister de encarregar-se de multiplicar os grãos (era possível, a esse tempo, entender por espírito a força mística do pagé). Eis os textos: "Morava lá um barbeiro ou feiticeiro, que tinha vida muito bem acomodada e era provido de todo o necessario. Chegara poucos tempos antes de nós para exibir suas feitiçarias e nigromancias e, assim, obter os adornos e instrumentos dos silvícolas, que, depois, levari~ consigo quando retornasse .à terra natal. Eram de diversas sortes as suas feitiçarias. Antes de tudo, havia uma grande boneca, que o pagé movia artificialmente, sobretudo o seu maxilar inferior. E dizia ele às índias que, se quisessem quadruplicar os grãos e legumes,· muito alem da colheita normal, bastaria fazer a boneca mastigar alguns desses generos, três ou quatro vezes; os vegetais, por essa forma, re1 Ps. 136-137. -286- cebendo a força da multiplicação contida na boneca, quando replantados nas roças fariam reproduzir milagrosamente os demais. Gozava o feiticeiro em questão, nas aldeias por onde perambulava, de muito prestigio, trazendo-lhes as mulheres grãos e legumes para tal fim, os quais, depois de assim mastigados, guardavam elas cuidadosamente. Instituiu o referido feiticeiro uma dansa ou procissão geral, fazendo com que todos os selvagens levassem na mão um ramo de certa palmeira aspera, chamada tucum; munidos de tal planta, os índios saíam dansando e cantando, em derredor das ocas, para exortar· (conforme dizia o feiticeiro) o seu espírito a mandar chuvas, que, naquele ano, estavam tardando muito. Após o cortejo, os indígenas cauinavam até cair. Tambem o feiticeiro mandou encher de agua varios potes de barro, dos grandls, e, resmungando em cima deles não sei que palavras, ensopava um ramo da palmeira, com o qual aspergia a cabeça dos assistentes. - Sê de limpos e puros (dizia então) afim de que o meu espírito possa enviar-vos chuvas em abundancia. - Depois, plantou o mencionado feiticeiro uma arvore de màio no centro da aldei.a, carregada de algodão, e, dando muitas voltas e vira-voltas em torno dela, prognosticou, para o ano, grande colheita desse vegetal" ( b). Guerra. - O primeiro cuidado dos tupinambás, antes da partida para a guerra, era consultar o "paygi." Este, geralmente, aconselhava-os a prestar, no decurso das noites subsequentes, peculiar atenção aos sonhos. Se, por exemplo, os índios viam em sonho um moquem assando carne dos inimigos, - podiam marchar sem temor; se, porem, percebiam os proprios -287- corpos, torrando na grelha, o acontecimento não pressagiava nenhuma vitoria. Em sendo os sonhos susceptíveis de interpretação favoravel, organizava-se um cauim, no qual tomavam parte todos os varões. Dansavam, então, os índios, agitando o maracá e rogando ao sagrado instrumento a graça de conceder-lhes prisioneiros. Antes de marchar, os tupinambás traçavam, até certa distancia, um caminho reto, que se dirigia para a terra do inimigo (c). A execução desse trabalho era indicio da resolução inabalavel de não recuar da empresa. 1 . Os tupinambás só se arrostavam à guerra quando estavam certos da vitoria. Chegados ao territorio rival, tornava-se de importancia maxima não negligenciar o menor sinal de pressagiamento. Na vespera do combate, o chefe da expedição concitava os companheiros a prestar especial cuidado aos sonhos. Antes de dormir, dansavam todos mais uma vez, agitando o maracá; nessa ocasião, o cacique exortava-os a ter sonhos felizes e, no dia seguinte, depois de mandar preparar a refeição, convocava os guerreiros mais reputados a contar-lhe, cada um de per si, os resultados. Bastava que algum deles tivesse visto as choças da aldeia inimiga, para que isso fôsse considerado como vitoria certa. Finda a discussão, recomeçavam todos a dansar, de maracá na mão.z O uivo dos animais, o encontro do jaguar; da cobra, de certas especies de aves, ou, enfim, a vista de qualquer fenomeno considerado de mau augurio, tudo isso podia determinar o abandono da expedição 1 Ms. inedito de Thevet, foi. li3. 2 Staden, part. II. cap. XXVI. -288- já iniciada (d). ·Cita Oandavo' o caso de certa tribu que, estando prestes a amparar-se de toda a aldeia inimiga, renunciou a tirar partido dessa vantagem por causa de algumas palavras, julgadas funestas, pronunciadas por um papagaio. Acontecendo fatos como esses, a tropa recolhia-se a casa para, pouco depois, voltar novamente à campanha.z A titulo de curiosidade, podem .ser enumerados os pressagias observados pelos antigos itatins antes de partirem para a guerra (tal.vez os mesmos, de que os tupinambás temiam o advento) : "Se, quando vão para a guerra, caem-lhe as flechas, ou se se rompem as cordas das redes, é isso, para os itatins, mau anuncio. Os feiticeiros examinam, Jogo, as flechas, lançando fora algumas e declarando outras boas: as primeiras são funestas e, se os índios teimam em conservá-las, as mesmas acabq.rão por plantar-se no éorpo do dono. As segundas, pelo contrario, são seguras e uteis."3 Retornando da expedição, os guerreiros reuniamse, em certa choça, para beber cauim. E ali eram executados bailes e cantos em honra dos seus maracás, aos quais os índios agradeciam a ajuda prestada.4 Caça. - Sem duvida, os tupinambás atribuíam aos animais alma identica a peles. Receava-se a vingança da fera morta, tanto quanto a de qualquer ser hum&no, se, acaso, a alma do animal era perigosa por si mesma depois da separação do corpo. A vindicta da alma do jaguar podia ser particularmente temível, exigindo a 1 Ps. 181-132 (e). 2 Ms. inedito -de Thevet, fol 53. a Annure litterre, p. 487. -4. Staden, part. I, cap. XXI. o -289- pratica de cerimonias especiais no sentido de apaziguar a colera legitima da fera. "Vigiando os selvagens o lugar por onde costuma passar essa fera, põem, Fig. 8 - Indios tupinambás entregues à pesca e à ca~a (segundo Staden). ali, uma arvore de mediana força e grandeza, no cume da qual prendem um laço corredio; de sorte que, mal lhe toca o animal, fica logo ele preso, quer pelos pés, quer pelo meio do corpo. Se, porventura, consegue a presa alcançar a arvore, acaba roendo o laço e esca- • - '290- panda. Algumas vezes isso, de fato, acontece, mas os caçadores, acorrendo. rapidamente ao local e encontrando o bicho assim caido, tratam logo de matá-lo a flechadas. D~pois do que cortam a arvore, transportando a fera para o pateo da aldeia. Nesse momento, então, as mulheres enfeitam-na de plumagens de todas as côres (como se faz com os prisioneiros que vão ser devorados), pondo-lhes até braceletes nas pernas. Depois do que, assentando o animal, exclamam, nà sua Jingua: - Não te vingues em nossos filhinhos (peço-te) pelo fato de teres sido aprisionada e morta, aliás por engano, pois não fomos nós que te iludimos, mas tu propria. Nossos homens haviam armado laços para apanhar animais de caça, cuja carne serve de alimento. Não esperavam apanhar-te e só te mataram co~ receio de que tu, quando solta, viesses a fazerlhes algum mal. Portanto, tua ahna não deve concitar à vingança as almas dos teus semelhantes, a fim de matar os nossos filhos. - E isso assim dito, os velhos tiram-lhe a pele,, unica parte que conservam do animal". 1 Certos animais inofensivos eram suspeitos de serem capazes de privar os homens de suas qualidades masculas. Assim acontecia particularmente com os cervos: "Quando os selvagens apanham algum cervo ou veadinho, não deitam essa caça nas suas choças. ignoramos a razão - sem, antes, cortar-lhes os membros trazeiros (com os dianteiros não se incomodam). E têm a louca ilusão de que, se o fizessem de outro modo, isso tiraria, a eles e a seus filhos, o poder de aprisionar inimigos à la course. E tudo o que sabem 1 Thevet (2), ·foi. 937. -291 dizer sobre esse costume é que o mesmo lhes foi di· ta do e aconselhado pelos pagés." J Quando saem .à procura de formigas - alimento realmente muito apreciado - as mulheres colocam-se diànte do formigueiro e entoam uma cantilena, cujos versos foram conservados por Yves d'Évreux 2 : "Vinde, amiguinhas, vinde ver a moça bonita, que te dará avelãs". Esse encantamento era repetido à propor9ão que as formigas iam saindo. Era preciso evitar cuidadosamente a emplumação das flechas com penas ao mesmo tempo de aguia e de arara, pois a arara costumava ser devorada pela aguia.3 Navegação. Os homens encarregados de extrair as cascas de arvore, destinadas à fabricação das ubás, não deviam comer ou beber, sob pena de atraírem a desgraça quando estivessem navegando.~ Apaziguavam-se tempestades, lançando os indios ao mar penas de perdizes.s Tecnica. - Quem fabricava algum vaso devia ele proprio levá-lo ao fogo. Se esse mister era confiado a outrem, o vaso terminava por partir-se.6 Tabus. - Devia ser evitado o consumo de qualquer animal de marcha lenta, - a exemplo da tartarugà, da preguiça, da arraia.etc. Quem usasse de ali1 Ibidem. 2 P. 176. 3 Yves d'Évreux, p. 203. <to Thevet (1), p. 194; (2), foi. 943. /S ld., p. 19/S. 6 Soares de Sousa, p. 220. -292 mentos dessa especie perderia a agilidade necessaria aos guerreiros. 1 Em contraposição, recomendava-se a carne dos animais lestos. A do tamanduá era interdita aos mancebos, mas podia ser servida, sem risco, aos velhos. Os indios faziam remontar a origem de semelhantes tabus a Maire-monan, que os havia introduzido entre eles. 2 Observa-se,· de passagem, que os animais domesticas j.àmais eram abat:r!os e, ne nenhum modo, constituíam reserva aliientar para a tribu. 8 A carne de ,certos animais parecia estar reservada, em alguns casos, às pessoas de determinado sexo ou idade: "Os indios, algumas vezes, matam faisões. E' alimento das moças, que, aliás, não comem de todas as especies de aves, tais como, galos, peruas e galinhas. Julgam que a carne de tais aves fazem-nas en\'êl hecer"! Os tabus de carater temporario serão, ou já o foram, estudados por ocasião de certos acontecimentos críticos impostos ao individuo: Vida sexual. - Para tornar fecundas as mulheres estereis, batia,se-lhes nas ancas com cobras 5 (f). 1 Ms. inedito de Thevet, foi. 113: "Os selvagens do país evitavam comer arraias, assim como tartarugas e lixas. As arraias têm dentes iguais aos dos leões bravios; julgam os índios que, sendo esse peixe vagaroso em nadar, tornaria tambem moroso e pesado a quem provasse dele, impedindo-o de apanhar, na corrida, o inimigo. A arraia é chamada em sua lingua Ineuonea" (g). 2 Thevet (1), p. 147 e (2), foi. 915 v.; Léry, t. I, p. 171. 3 Léry, t. I, p. 170;. Soares de Sousa, p. 318. 4. Ms. inedito de Thevet, foi. 40. lí Cardim, p. 46. -293- Estados fisicos. - Nada inspirava tanta apreensão aos tupinambás como o emagrecimento. Os que tornavam de lôngas viagens eram acolhidos com aclamações de compaixão pelo seu estado: "Como estás magro!", diziam. As pessoas, cuja boa dis13osição deixava a desejar, reuniam-se em grupos e, por algum tempo, partiam para a caça. Entregavam-se, então, à alimentação abundante e só voltavam .à aldeia quando se sentiam suficientemente gordas. Certo escravo, que os franceses castigaram, por ter sido apanhado em falta, implorou indulgencia, alegando a magreza do seu corpo, cujas veias (dizia) podiam romper-se. 1 Estados afetivos. - Qualquer homem colerico tor_, nava-se objeto de temor alheio e os índios corriam a acalmá-lo. Essa ação tinham mesmo nome especial; .era o ·"mogere coap" (h), o que significava sossegar a quem se sentia irritado. Os contendores, terminada a querela, punham fogo à choça e ninguem tinha o direito de opor-se a isso. Ardia o casaria todo. 2 Alg-Uns, quando tinham graves motivos de descontentamento, comiam terra até morrer3 (i). Sonhos. - já se viu, na parte referente às operações belicas, a importancia dada pelos tupinambás aos sonhos. Staden 4 fornece, a proposito do assunto, um 1 Yves d'Évreux, ps. 107-108; Claude. d'Abbeville, foi. 106 v. 2 Yves d'Évreux, p. 101. 8 Soares de Sousa, p. 828. 4 Part. 11, cap. XXXV; cf. Thevet (2), foi. 921 v.: "Os índios preocupavam-se muito com os sonhos e crêem que os mesmos tornam-se. realidades. De sorte que, se sonham que vencerão o inimigo, ou, ao contrario, que sucumbirão em combate, não há como tirar-lhes a fantasia da cabeça. E' coi~a fatal, que não pode suceder de outro modo". -294 exemplo divertido: certo índio tupinambá veio, peta manhã, queixar-se-lhé das feitiçarias, dizendo-se vitima dàs mesmas. O silvícola havia visto Staden em sonho, o qual lhe· dissera: - "Vais morrer". Desse modo, estaya ele persuadido de que o seu sonho não tardaria a realizar-se. Ornamentos, colares, etc. Senão todos, pelo menos grande parte_ dos ornamentos usados pelos tupinambás eram tidos como impregnados de virtudes magicas. As pessoas que os conduziam. adquiriam essas virtudes, de acordo com os principias da magia simpatica. As moças, quando se tornavam nubeis, colocavam ao redor do pescoço colares de dentes de capivara. O predicado desses colares era tornar os seus proprios dentes fortes e aptos para a mastigação das plantas, das quais se faziam bebidas. 1 E' bom lembrar, enfim, Que os índios davam aos recem-nascidos unhas de jaguar -ou garras de certa especie de ,.aguia. Esses mimos tinham por obietivo tornar-lhes a alma valorosa. 2 "As unhas do jaguar (encontra-se isso escrito no manuscrito de Thevef!) são apropriadas para usar ao colo, .à moda de gargantilha. Servem para curar a colica e os puxas das mulheres gravidas, que as trazem frequentemente consigo e as têm em muita contÇt." Os ornaméntos plumarios tinham, sem duvida, significação mística. Usavam-nos os tupinambás em todas as suas festas religiosas, assim como na guerra. 1 Thevet (2), foi. 946 v. 2 Id., (2), foi. 915 v. 3 Ms. inedito de Thevet, fol 88 v. •- 295 Diziam esses índios que as rodelas de plumas, das nos rins, visavam a, imitqr "o natural do truz" 1 (j). trazi~ aves~ Reino animal. - Certa ave semelhante. ao falcão era considerada pelos tupinambás o rei dos animais. Para atribuir-lhe semelhante titulo, os índios apoiavam-se no seguinte fato: à maneira dos chefes das aldeias, os quais, diariamente e ao amanhecer, falavam a seus suditos, assim tambem o fazia a ave em questão com os demais passaros.2 O n;tito das amazonas. - A lenda das amazonas foi difundida, em grande parte, pelos proprios tupinambás. Conta Yves d'Évreux 3 que obteve copiosas informações, a respeito dessas guerreiras, entre os tu~ pinambás do Maranhão. Acufia4, do mesmo modo, assegura. que as. resenhas, que lhe foram fornecidas na região das amazonas, teriam sido a ele transmitidas pelos ditos indios. Os apapocuvas aindá hoje falam, em suas lendas, de mulheres que viviam sem maridos. 5 1 Yves d'Évteux, p. 24. Cardim," fol. 162. P. 25. 2 3 4 P. 175. li Nimuendajú (1), p. 364. - 296 NOTAS AO CAPITULO XII (EsTEvÃo P1Nro) (a) Nem sempre a invenção dos alimentos é atribuída nos deuses-criadores. Temos o exemplo frisante da lenda de Mani, referida por Co~to de Magalhl1es, O Selt•agem, cit., ps. 167-168. A esse proposito, cf. as lendas da mandioca e do milho, e,Zistentes entre os p~recis, que nos transmite Roquette Pinto, Rondonia, ps. 131-132, São Paulo, 1935. Nas Singularidades, ed. cit., p. 177, afirma Thevet que a invenÇão da mandioca foi transmitida a u'a moça. (b) :A boneca, de que fala Métraux, seria provavelmente o ma:racá enfeitado, abrindo-se nele, às vezes, um orificio que imitava a boca, conforme o atestam Léry, Abbeville e Gabriel ·Soares de Sousa. Alem da boca, pintavam os índios, na coité dos maracás, olhos e narizes (Carta.t Avulsa.t, cit., p. 97; Anchieta, o.c.; ps. 331-332; Nobrega, o.c., p. 99) . O mnxilar solto, referido por Évreux, deve ser alguma inovação de origem européia. (c) A respeito do caminho tra~ado preliminarmente pelos guerreiros, há uma referenda vaga nos Dialogos, p. 274. Para o estudo das guerras entre os povos elementares, cf. Maurice R. Davie, "La guerre dan.t le.t socióté.t primitivos", Paris, 1931. (d) Isso é confirmado tambem nos Dialogos, p. 275. O passaro agourento, crê Rodolfo Garcia ser a peiticn (Empidonomus vªriut, Vieill.). -297- (e) A pag. da obra de Gandavo, referida por Métraux, é a 133 e não a 131-132. (f) Essa informação é fornecida por c-ardim e a cobra é a boitiapoá ( boitiapoia em G. Soares). Trata-se ·da cobra de 'ip6 (Herpetodryas fuscus, L.). (g) Segundo Stradelli, o nome generico da arraia, na região amazonica, é iauira. O termo, empregado por Thevet, talvez seja uma corruptela daquele nome .(i-neu-1HI-á = i-na-u-i-á i-na-u-i-Tá). = (h) Segundo Plinio Ayrosa, deve ser mojerekoab, pacificar, aplacar o irar;lo, cf. ensina o Vocabulatio na L íngua Brasilica, cit. (i) A geofagia não tem nenhum carater religioso ou misticõ e é muito comum às populações primitivas de todas as zonas do globo. Hoje sabemos que esse suposto "vicio" decorre, talvez, de necessidades reais do organismo, conforme observa A. da Silva Melo, Alimentação, Instinto, Cultura, p. 30, Rio, 1942. Daf observar Ó padre Serafim Leite (Historio. da Companhia. de JeBUs no Brasil, li, p. 14, cit.) que a obra de Métraux ressente-se de "sistematização forçada", pois vê "instintos religiosos em simples manifestações folcloricas ou etnologicas (manifestações afins da religião, mas que não são ainda a religião)". Devo acrescentar, todavia, como aliás já o fiz, que Métraux escreveu a sua Religião dos Tupinambás aos vinte e pouco anos e, desde então, segundo ele proprio o confessa, suas ideias mudaram totalmente em muitas coisas. (j) Trata-se d as rodelas, enfeites de guerra, construídas com penas de ema, que se prendiam aos rins por dois cordeis. A rodela ou roseta chamava-se endu.ap (Staden) ou araroye (Léry). Arasoai, ou araçoaia, significa, no tupi da costa, rabo de ave. Estudo Interessante de Plínio Ayrosa vê-se em Léry, ed. cit., p. 105. -298- CAPITULO XIII A SAUDAÇÃO LACRIMOSA1 Quando algum estrangeiro chegava a uma aldeia tupinambá, dirigia-se diretamente para a oca de seu hoteleiro. Ali entrando, sem dizer palavra, estendia-se na rede, aonde acorria todo (ou pelo menos parte) do mulherio da maloca na qual se achava acolhido. Essas mulheres, ajuntando-se em torno do hospede, abraçavam-no, punham-lhe as mãos nos ombros, no pescoço e nos joelhos, cobrindo-lhe o rosto com os cabelos e, em seguida, acocoradas adiante dele, caíam· em choro. De permeio com os soluços, as referidas damas dirigiam ao hospede arengas ditas em tom de cantilena (em prosas travadas) (a) e cujo sentido merece ser acuradamente examinado, pois constituem estas o unico indicio capaz de sugerir a significação de tão curioso costume. De acordo com Claude d'Abbeville, contentavamse as mulheres em louvar o recem-chegado, d.izendoI Para a descrição desse costume, entre os tupinambás, leiam-se: Cardim, ps. 172 e 309; Soares de Sousa, ps. 323-324.; Léry, t. 11, ps. 101--105; Thevet (I), p. 226 e (2); .foi. 929; Claude d'Abbeville, foi. 286; Yves d'Évreux, ps. 37, 90 e 220; Gandavp, p. 127; Staden, part. I, cap. XXXIV; Vasconcelos, p. 84; e De algumas co~as mais not~veis do Brasil, p. 389. -299- lhe, entre outras coisas semelhantes, "ser ele benvindo e estimado, pois passara por tantas canseiras para vir visitá-los." Assegura Yves d'Évreux que, nessa ocasião, os índios, "uns após outros, palavra por palavra, recordavam os seus pais e avós, assim como tudo que se passara entre eles através de seculos." Os autores portugueses, referindo-se .às mulheres, são ainda mais explicitas: "E ali contam em prosas travadas quantas coisas têm acontecido desde que se não viram até aquela hora, e outras muito que imaginam, e trabalhos que o hospede padeceu pelo caminho, e tudo o mais que pode provocar a lastima e o choro" (Cardim) (b). - "Choram tantas Iagrim<J.s aos seus pés, correndo-lhes em fio, como se lhes morrera o marido, mãe ou pai; e juntamente dizem em trova de repente todos os trabalhos que no caminho poderia padecer tal hospede, e o que elas padeceram em sua ausencia" (Cardim) (c). - "Lhe dizem as saudades, que dele tinham, com sua ausencia, os trabalhos que uns e outros passaram" (Soares de Sousa) (d). Trazem "à memori<\ muitos desastres que lhe puderam acontecer buscando em ·fim pera isto as mais tristes e sentidas palavras oue podem achar pera provocarem o choro. E se he Portuguez, maldizem .a pouca dita de seus difuntos, pois foram tam mal afortunados que nam alcançaram ver gente tarri valorosa e luzida, como sam os Portuguezes, de cuja terra todas as boas cousas lhes vêm, nomeando algumas que elles têm em muita estima" (Gandavo) (e). O objeto dessa prova de cortesia tinha por obrigação, tambem, de chorar, ou, pelo menos, cobrir-se o rosto e_ soltar profundos suspiros. As mulheres só cessavam os lamentos a convite do hospede; mas, segundo Cardim, um pedido dessa ordem era considerado muito impolido. O dono da casa, esse _chorava -300- apenas, anteriormente à chegada do estranho, se lhe houvesse sucedido algum fata partiéularmente doloroso (um falecimento ou uma derrota, por exemplo); desse modo, enquanto perdurava o pranto feminino, afetando não ter percebido a chegada do hospede, entregava-se às suas ocupações domesticas habituais. E, apenas quando findavam os gemidos, era que se dirigia ao estranho para perguntar-lhe: "Ereiupe?" (Vieste?) (f). A partir çjesse momento toda etiqueta era posta de lado (Est. IX, fig. A). Os estrangeiros não eram os unicos a serem acolhidos por esse bizarro modo; todo membro da tribu, que se ausentava por mais de quatro dias, era tambem "chorado" pelas mulheres da choça (por sua parentela, se a viagem fôra longa e, sendo curta, por algumas velhas sàmente). Cada vez que o cacique retornava das campanhas ou expedições extra-territoriais, todas as damas da maloca vinham, de per si ou de duas em duas, verter lagrimas junto à sua rede. FriedericP consagrou um estudo à saudação lacrimosa dos jndios. Compulsando antigos autores, encontrou esse costume mencionado, afora os tupinambás, entre os charruas do Rio da Prata e entre os lenguas do Chaco. Esse elemento, embora raro, na realidade tem mais vasta distribuição na America do Sul. Foi visto entre os guaranis do Paraguai, entre os quais, como se pode ver da citação subsequente, era praticado exatamente à maneira dos fupinambás: "Os indios recebem os seus hospedes. e as pessoas chegadas de viagem com lamentações entrecortadas de discursos. QQando o hospede entra na oca, assenta-se ao lado do dono da 1 (1). Esse estudo foi reproduzido, nol! seus principais trechos, por Carvalho. -301- casa e, então, as mulheres, rodeando-o, mas sem dizer palavra, explodem •-em urros. Em seguida, falam dos pais do hospede, de sua morte, das façanhas e eventos da vida deles, assim como da boa ou má fortuna, que lhes tenha sucedido. Tambem os homens demonstram pezar, cobrindo-se os rostos e chorando do mesmo modo. Em voz baixa, aprovam os queixumes manifestados .pelas mulheres e, quanto mais elevada é a posição social da. personagem, mais ardentes são QS lamentos e os gemidos : tanto assim que, em derredor da choça, julgar-se-ia que morrera alguem muito querido. Afinal, enxugando as lagrimas e acabando-se o pranto, os índios dão a boa vinda ao estranho. Quem não é assim acolhido, pode considerar-se desventurado" .1 Como seria de esperar, os guaraius emigrados do Paraguai conservaram, durante certo tempo, o costume da saudação lacrimosa. "Celebram esses índios (diz o autor das Annme litterre2 ) os seus funerais com lagrimas e gritos; do mesmo modo, recebem as pessoas, recem-chegadas,_ de sua estima. De tal modo que julgaríamos ter álguem morrido." Ainda nos dias atuais, a saudação lacrimosa é um rito de polidez observado entre varias .tribus. Os apapocuvas e os tembés já o não praticam, mas conservaram a sua lembrança nos mitos: fiíandecy' chora em saudação aos que ingressam na "terra sem mal" 3 e a mãe tembé tambem chora, a pedido do filho, quahdo este retoma duma longa viagem. 4 Karl von den Steinen 5 observou, 1 Montpya, ps. lil-52. 2 P. 438. 3 Nimuendajú (1), p. 400. 4 Id. (2), p. 301. 5 P. 252. -302- certa vez, que dois jurunas, ao s.e encontrarem, sauda· ram-se vertendo abundantes lagrimas. Krause 1 ~ no curso de sua viagem pelo Araguaia, constatou a existencia da saudação lacrimosa entre os carajás e seus vizinhos· (os caia pós). Entre esses indígenas, quando os parentes se encQntram, após certa , ausencia, permanecem silenciosos e evitam olhar-se durante alguns minutos: no tempo em que dura esse re. colhimento, as mulheres iniciam um choro, que, aliã~, cessa rapidamente. Os caiapós, conforme se convenceu Krause, olvidaram inteiramente a finalidade de tal cerimonia. Entre as frases, em lingua guató, que Max Schmidt observou, encontra-se esta: "Quando voltas para casat tua mãe chora e indaga por onde andastes?" .2 Isso atesta, evidentemente, a existencia do falado rito da polidez entre os guatós. Quando dois oiampis se ertcontram, após longa ausencia, viram-se as costas e assim permanecem cerca de dez minutos sem falar. Esse cerimonial é, sem duvida, vestígio dos ritos de polidez aqui ·estudados. 3 As mulheres jivaros entoam melopéias funerarias todas as vezes que percebem algum forasteiro.4 No Chaco, se algum estrangeiro chega à aldeia indígena, em seguida ao falecimento de alguem, é ele acolhido com choros. Se uma tribu, da qual tenha morrido recentemente algum membro, restitue a visita a outra, tambem exige a etiqueta que esta a receba I P.s. 324 e 402. A primeira menção feita à saudaÇão lacrimosa dos carajás encontra-se em uma carta de Pinto da Fonseca, p. 379. 2 P. 246. 3 Condreau, p. 316. 4 Karsten (1), ps. 369-370 e (2), p. 27. -303- com lamentos; mas essas manifestações de dor aparente, verificadas em semelhantes casos, não devem, como erradamente fez Karsten I, ser assimiladas à saudação lacrimosa: trata.,se de um simples rito funerario, cuja duração não ultrapassa o período consagrado ao luto. Assim, entre os chiriguanos,z toda a pessoa aparentada com o morto, que visita a aldeia onde se' deu o falecimento, deve dirigir-se ao tumulo do defunto e lá permanecer, durante algum tempo, acoco-. rado, o rosto em lagrimas, voltado para a parede da choça. Só depois, então, o viajor vem saudar os hospedeiros e entreter, em voz baixa, conversação com eles_ Ordinariamente, os estrangeiros são recebidos sem nenhuma cerimonia especial. E' fato assás difundido na America do Sul essa explosão de dor assistida à chegada do forasteiro na aldeia em luto. Koch-Grünberg3 deixou uma forte descrição desse costume, a proposito dos silvicolas do Aiari, entre os. quais o pranto tem lugar tanto à chegada quanto à partida do forasteiro. E' costume esse tambem estreitamente associado aos ritos funereos. Como se pode ver, pela enumeração das tribus sul americanas dadas ao rito da saudação lacrimosa, tal costume surge exclusivamente a oriente dos Andes. É peculiar aos tupis e aos indígenas do estoque cultural mais primitivo do continente (vj. a carta, à pág. 306). Foram os tupis, de certo, que contribuíram para a sua difusão. Bom exemplo é fornecido pela fração da. tribu pur·i, estabelecida nas proximidades do Rio de janeiro, que, segundo parece, assim como ou1 2 3 ta. (1), p. 370. Nino, p. 295. (2), t. I, ps. 126-129. -304 tros mais elementos culturais, aprenderam com os tamoios esse rito de polidez. 1 Na America do Norte, a saudação lacrimosa estava espalhada em toda a região compreendida entre as cabeceiras do Mississipi e a costa do Texas, sobretudo entre os indios do grupo kaddo e entre os sioux. Friederici 2 acredita ter encontrado traços igualmente na America Central. Fora da America, a saudação lacrimosa foi assinalada nas ilhas Andaman, na Australia3 e em Nova Zelandia; talvez seja ela ainda praticada em outras ilhas dos Mares do Sul. 4 Friederici interpreta esse costume como uma manifestação de simpatia testemunhada pelos indígenas a seu hospede, "a quem agradeciam, de qualquer modo, por ter afrontado tantos perigos com o objetivo de vê-los." Karsten vê na saudação lacrimosa a expressão da dor real causada pela lembrança dos parentes mortos, que a aparição do forasteiro vinha despertar. Essa observação contrasta com o que testemunham os outros viajantes a respeito da indiferença, ou mesmo satisfação, de que as carpideiras dav?m prova uma vez concluído o rito de polidez, O referido autor interpreta ainda esse costume como uma forma da crença na reincarnação: o forasteiro, podendo ser o proprio morto, deveria ser recebido em meio de manifestações de dor. Essa hipotese, todavia, choca-se com o fato, tantas vezes já assinalado, a saber, 1 Knivet, p. 197. Para esse rito, entre os puris modernos, ci. Eschwege, t. I, p. 107. 2 (1). 3 A frequencia da saudação lacrimosa na Australia é uma informação que devo, por obsequio, ao prpfessor Mauss. 4o Schurtz, p. 186. -305- Oarta da distribuição da saudação .dmerioa do Sul, -306- lacrimo~a 114 A saudação lacrimosa (Explicação da carta) 91 : 92 Observaç~é8 Autore8 Tribu8 Tupinambás Cardim, p. 172; SoaI res de Sousa, ps. 323-324; Thevet (2), foi. 929; etc. Montoya, · ps. 51 ..52. Guaranis apapocuvas-guaranis conservam a lembrança desse ri- I to em sua mitologia. Cf. Nimuendajú (1), p. 400. ')s 1 Charrua:~ 12 13 Pu ris 11 Chorotis Lopes de Sousa. Knivet, p. 197; Eschwege, t. I, p. 107. Karsten (1), ps. 869- ~ 370. 93 25 Jtatins Guatós 23 Carajás 24 '21 Caia pós Jurunas 94 Tembés 1 I Annu~ litterre, p. 438. Max Schmidt, p. 246. Alusão ao rito em um trecho de con- ' ' versação na língua guató. Pinto da Fonseca, p. 379; K rause, p. 324. Krause, p. 402. K. v. d. Steinen, p. 252. Nimuendajú (2), 301. p. Alusão em um mito. Subsiste entre esses índios vestígios do rito. w Oiampis Coudreau, p. 316. 29 Jivaros Leuguas Coroados Karsten (1), p. 370. F riederici ( 1). Borba (2), p. 14. - 307 -- de que os indigenas não faziam nenhuma diferença entre o parente e o desconhecido. A meu ver, essa cerimonia deve ter origem mais complexa. Talvez esteja ela associada ao culto dos mortos. Da maioria dos textos citados, ficou esclarecido que o tema do pranto se relaciona com os mortos, sendo, nele, evocada a sua memoria e as suas façanhas (g). A saudação lacrimosa não era o unico rito de polidez •praticada pelos tupinambás. Parece que esses índios. conheceram a "saudação agressiva", se me é possível empregar tal expressão; isto é, em certos casos, os tupinambás recebiam o hospede com demonstrações de hostilidade, que, no fundo, não passavam de sinais de cortesia. Quando Cardim1 se dirigia, em canoa, a certa aldeia tupinambá, onde fôra fundada uma missão, os neofitos vieram ao seu encontro enfeitados com os seus mais belos ornamentos plumarios e, no preciso momento em que perceberam o barco dos jesuítas, se puseram a soltar espantosos clamores, imitando perfeitamente um combate na agua. Destacando-se uma das canoas, o indioziQho, que nela viajava, ofereceu a Cardim arco e flechas, advertindo-o: "Em tempo de guerra e cerco, como estás desarmado"? (h). ' A esse tempo, rodearam-no as demais pirogas, fazendo-o prisioneiro e conduzindo-o à aldeia entre cantos e dansas. Pode ser comparada essa recepção a outras, de carater analogo, verificadas na Patagonia2 e entre os j ivaros3 (i). 1 P. 339. 2 Musters, ps. 222-223. 3 }{arsten ( 1)., "ps. 251-252. -308 NOTAS AO CAPITULO XIII • (EsTEvÃo PrNro) (a) Em português, no texto, as três palavras anteriores. O trecho de Cardim, citado, foi ordenado por Métraux. Vai transcrito de acordo com o original português. ( b) (c) ( d) Sousa. (e) Idem, idem. Idem, idem, quanto ao trecho de Gabriel Soares de Idem, idem, quanto ao trecho de Gandavo. (f) Formula de saudação comum, cuja pronuncia correta, segundo Rodolfo Garcia, é ere-íu (ou ju) pe ?, que significa vieste então ? ( Cardim, p. 242). Cf. Léry, ed. cit., p. 215. (g) Sobre os cantos funereos dos tupinambás e a sua ana.. 1ogia com o vocero basco, cf. Roger Bastide, Arte e ~ociedade, ps. 81 aq., São Paulo, s/d. (h) tuguês. A citação vai transcrita de acordo com o original por- (i) Ainda a respeito da saudação lacrimosa, cf., além dos autores citados por Métraux: Anchieta, Cartas, ps. 435 e 436; Loreto Couto, o.c., p. 62; Dialogoa, p. 270.. Esse rito foi objeto de estudo por parte de varios etnologos. Só em 1906 surgiram três trabalhos a respeito: o de Georg Friederi e Alfredo de Car· valho (ambos citados por Métraux) e o de Rodolfo R. Schuller, -309 "El origen de los Charrúa", em Ann. de !a Univ. de Chile, CXVIII, Santiago. Fiz uma interpretação do costume em Indi~ genas do NordeBte, II, ps. 268 sq. Se os vestígios da saudação lacrimosa, existentes nos costu~ mes dos jivaros, indicam a primitividade do mesmo entre os referidos índios, - isso vem invalidar, talvez, a. teoria de Mé~ traux, isto é, de que forameos tupis os responsaveis pela difusão de semelhante rito. José Mariz (Per8pectivd8 p8iquiatricM de alguns ra8f108 to~ temico8 e tabu8 elo indígena brasileiro, p. 24, Recife, 1936) vê na saudação lacrimosa a ambivalencia de sentimentos, "um dos elementos mais em voga hoje em dia em psicopatologia, graças a Bleuler". -310- CAPITULO XIV FESTAS E DANSAS Existem varias excelentes descrições das dansas tupinambás, assim como estudos muito preciosos a respeito da natureza e carater de seus cantos. Confrontando as diferentes narrativas, pode-se fazer uma idéia bastante exata da maneira pela qual eram celebradas suas festas, cujo fim religioso, embora raramente conhecido, é sempre provavel. Léry1 teve ocasião de assistir a uma cerimonia, que esse autor descreve longamente, mas deixando ignorado o seu motivo. Informa Léry que tal cerimonia só tinha lugar por ocasião da visita dos caraibas: "Tendo dormido, certa noite, na aldeia chamada Cotina, no dia seguinte, pela madrugada, quando pensava em retomar a marcha, vi chegarem, de todos o~ recantos, os selvagens das vizinhanças, os quais, juntamente com os da taba, em numero de quinhentos ou seiscentos, foram reunir-se no pateo central. Parei, então, voltando para indagar o motivo dessa assembléia e, nisso, os indígenas .se separaram subitamente em três bandos: os homens recolheram-se em certa choça .àparte e as mulheres em outra. As crianças tam1 T. li, ps. 67-7,. -311- bem foram recolhidas. Como percebi dez ou doze caraibas entre os índios, suspeitei de algum extraordinario acontecimento e, desse modo, convenci meus compatriotas a permanecer ali até averiguar o misterio. Assim foi combinado. Convem notar que os caraibas, antes de se separarem das mulheres e crianças, aconselharam-nas severamente a não saírem das ocas, onde se encontravam, da qual deveriam escutar, com atenção, os seus cantos. Ali tambem nos encerraram os selvagens. já havia começado a almoçar, sem nada perceber ainda o que pretendiam os índios, quando comecei a ouvir, na casa reservada aos homens, distante cerca de trinta passos da nossa - um murmurio surdo de resas; imediatamente, as mulheres, em numero de quase duzentas, puseram-se todas em pé, de ouvido atento, muito perto umas das outras. Mas, logo que os homens pouco a pouco erguiam a voz, ouvi-os distintamente c~ntar e repetir, em conjunto, o seguinte estribilho de encorajamento: - He, he, he, hé. E fiquei ainda mais espantado quando as mulheres, por seu turno, começaram a secundar, em voz tremula: - H e, he, he, hé. Assim aconteceu durante mais de um quarto de hora, sem que eu soubesse o que fazer. Ao mesmo tempo, as mulheres urravam e saltavam violentamente, agitando os seios e espumando pela boca até desmaiarem como vitimas de gota coral. Por isso não me era possível deixar de acreditar que se tivessem tornado repentinamente possuidas do diabo." As crianças, na choça onde se achavam tambem encerradas, faziam ouvir o mesmo alarido, imitando, assim, os seus pais. "Ao cessarem, entretanto, os ruidos e os urros confusos dos homens, calaram-se tambem mulheres e crianças; mas, após pequena pausa, tornaram todos a cantar, dessa feita de modo tão har- -312- rnonioso que o medo passou e tive o desejo de ver tudo de perto". Léry atreveu-s~ mesmo a aproximarse da choça onde cantavam e dansavam os guerreiros, c·onseguindo vê-los: Estavam "juntos uns dos outros, formando rodas (sem se pegarem as mãos), mas fixos no lugar, curvados para a frente e movendo apenas a perna e o pé direito. Cada qual tinha a mão direita na cintura, conservando o braço e a mão esquerda pendentes. Suspendendo um tanto assim o corpo, cantavam e dansavam. Como eram numerosos, formavam três rodas, no meio das quais se mantinham três ou quatro caraibas ricamente adornados de mantos, cocares e bracêletes, feitos de belas plumas naturais, novas e de diversas cores. Os caraibas conduziam maracás, isto é, guizos feitos de certo fruto maior que um ovo de avestruz, dos quais já falei atrás. Os feiticeiros faziam-nos ressoar para que, conforme diziam, os espíritos lhes falassem através deles". Adiante, reproduzo integralmente dois trechos extraídos, respectivamente, de Claude d' Abbeville e de Yves d'Évreiíx, que completam os pormenores fornecidos por Léry. "Quanto a isso (diz Claude d' Abbevi1le1 ), dansavam sem trejeitos, sem desatinos, sem saltos, sem requebros e sem rodeios; colocam-se todos, muito perto uns dos outros, sem que se toquem, entretanto, ou se falem. Quase sem saírem do lugar. Assim, não se inflamam demasiado durante o baile a não ser no tempo do cauim, quando, então, dansam e cantam em redor das cabanas da ai dei a. Esses índios bailam, em geral, com os braços pendentes e, às vezes, com a mão direita nas ilhargas, 1 Fols. 299 v. e 300. -313 contentando-se em mover apenas a perna e o pé direito. É verdade que não raro se aproximam uns dos outros, voltam, param e giram, batendo sempre com o pé no chão; mas, depois de três ou quatro voltas, regressa cada qual, em cadencia, ao lugar primitivo". "Dispondo os seus índios em fileira (fala lves d'Évreux,X referindo-se a certo chefe tu'pinambá), eram em numer·o de cem ou cento e vinte .-- a uns deu cuias ou panelas, a outros escudos, espadas, facas, arcos, flechas e instrumentos semelhantes. Isso feito, separados os tangedores de maracás em grupos de dez, aproximadamente, os selvagens percorreram as ocas dos tabajaras e, depois, tornando à praça grande do Forte, onde nos achavamos, vieram aí terminar as dansas (aliás, muito. pare-Cida com a dos Pantalons), avançando e fazendo mesuras, batendo, todos, ao mesmo tempo, com o pé, o chão, tudo isso acompanhado da voz e áo som dos maracás. E, entoando louvores. aos franceses, j.àmais deixavam de observar o compasso. Mexiam em todos os sentidos a cabeça e as mãos, com tais gestos que fariam rir as pedras. Chamam os tupinambás a essa dansa Porasséu-tapoui, isto é, a dansa dos tapuias, porque era outra a daqueles indios: sempre em roda e nunca mudando de lugar". Por ocasião de certas festas, dois dansarinos destacavam-se do grupo e punham-se a bailar a sós, na 'praça publica; quando algum deles se fatigava, outro retomava o seu lugar. Algumas vezes o mesmo par de concorrentes tomavam-se as mãos, iniciando uma verdadeira luta corporal. 2 1 P. 134. 2 Cardim, p. 80~. -314- Em todas as dansas, quaisquer que fôssem, as mulheres permaneciam sempre afastadas dos homens. Não executavam nenhum passo, mas suas contorsões e momos eram mais exagerados, sobretudo se bailavam sós.l Algumas vezes, quando toda a tribu fazia rondas através da aldeia, duas moças introduziam-se, cantando, por entre os grupos.z Os meninos participavam das festas desde a mais tenra idade, iniciando-se assim, bem cedo, na disciplina e no conjunto perfeito observado em toda cerimonia.3 Em nenhuma festa os tupinambás cobriam o rosto com mascaras, a exemplo das tribus do Xingu e das Guianas. Entre os accessorios de dansa, afora alguns instrumentos musicais, tais como o maracá, uma especie de tamborim e o bastão de compasso, não havia senão os arcos e flechas, - assim mesmo em determinadas ocasiões. 4 Em compensação, apresentavam-se sempre pintados e revestidos de seus ornamentos plumarios. Fora das grandes solenidades, os tupinambás executavam, toda noite, dansas, cujo carater religioso se foi decompondo consideravelmente, transformando-se, como acontece no Chaco, em verdadeiras atividades recreativas. Os mancebos porfiavam em brilhar e exibiam-se ricamente emplumados, com a roseta de plumas de ema nos rins, guizos feitos de frutos secos aos pés e maracá na mão. "Não fazem outra coisa, 1 Cardim, ps. 176 e 806. 2 Soares de Sousa, p. 824. 3 Cardim, loc. cit. ~ Cardim, p. 805. -315- no decorrer da noite, com tal equ'ipamento, senão ir e vir, saltar e dansar, indo de casa em casa I". A titulo de curiosidade, podem comparar-se as dansas dos apapocuvas-guaranis 2 e a dos cainguás3 com aquelas, que acabo de descrever. Fica-se surpreso com a extraordinaria semelhança existente entre elas. A dansa pode ser, pois, considerada elemento cultural capaz de indicar as relações mantidas, outrora, por tribus hoje em dia separadas. Na passagem de Yves d'Évreux, atrás transcrita, onde se conta a recepção que os tupinambás deram aos tabajaras, observou-se que a dansa executada era a Porasséu-tapoui, isto é, a dansa dos tapuias. Assim a dansa pode passar de tribu a tribu como qualquer objeto ou como qualquer tecnica. É curioso, por:em, ver os tupinambás imitando os tapuias, aos, quais consideravam gente barbara da mais baixa cultura. Já fiz ver, em outro trabalho precedente, que os tupinambás aprenderam com os tapui?S o uso do botoque. 4 Esses dois fatos mostram que um povo mais civilizado pode tirar proveito das invenções ou mesmo dos ritos e costumes peculiares a raças tidas como inferiores. É bem possível, aliás, que os tapuias fôssem culturalmente mais desenvolvidos do que se crê em geral (a). Cantos. - Todas as dansas eram acompanhadas de cantos. Os tupinambás passavam, segundo asseguram os que os ouviram, por excelentes musicos. Os Léry, t. I, p. 153. Nimuendajú (1), ps. 346-349. Ambrosetti, ps. 673-674. 4 Métraux, (2), p. 168. I 2 3 -316 bons tocadores gozavam de respeito geral _e, quando caíam prisioneiros, deviam ao seu talento a circunstancia de escapar à morte. Era preciso mesmo ter o dom de improvisar. Realmente, as arias cantadas durante as dansas eram tiradas por um só individuo; os demais escutavam e, depois, retomavam, em coro, o mote. 1 Esses detalhes lembram o que nos diz Nimuendajú a proposito dos "chants-médecéne" dos apapocuvas. Esses indígenas dividem os membros da tribu em quatro categorias, de acordo com o numero de cantores magicos conhecidos por cada um. Logo que algum indio apapocuva tem, por inspiração, conhecimento de uma canção nova, apressa-se a ensiná-la a toda a aldeia. Saber varias canções de utilidade geral confere-lhe o dom de feiticeiro. 2 Tudo faz crer r-:e assim tambem sucedia entre os tupinambás. Só desse modo se explic~m as prerrogativas conferidas aos "bons tocadores". O "mestre do coro" não era senão o pagé. Entre os apapocuvas 3 e os guaraius 4 , é ele quem entoa os cantos, que os demais membros dà tribu acompanham. Provavelmente, os tupinambás não possuíam canções profanas. "Seus cantos (di-:lo Claude d'Abbeville5) são em louvor de uma arvore, de um passaro, de um peixe ou de qualquer outro animal ou coisa, e não contêm palavras escandalosas; mas; principalmente, cantam seus combates, suas vitorias, seus triunfos 1 Soares de Sousa, p. 324; Cardim, ps. 176 e 806. 2 Nimuendajú (1), ps. 338-839. a Id. (1), p. 346. 4 Cardús, p. 80. 5 Fols. SOOv.-301. -317- e outros feitos guerreiros, de que se vangloriam muito, tudo no sentido de exaltar o valor militar. Cada canto tem melodia propria, com estribilho, que é repetido, em coro e em cadencia, no fim de cada estrofe". Cardim,' que lhes ouviu os cantos, teve a curiosidade de procurar saber a sua significação. Responderam que os cantos tratavam de quantas "façanhas e mortes tinham feito seus antepassados"; as alusões a passaros, cobras e a outros animais eram de carater imitativo, isto é, serviam para iniciá-los "a pelejar". As canções tinham, possivelmente, carater mitologico e continham elementos tirados das tradições religiosas da tribu. É, pelo menos, o que se pode inferir da analise feita por Léry: " Disse-me o turgimão, em primeiro lugar, que os indios insistiam em lastimar seus avós tão valorosos e agora desaparecidos; consolavam-se, to'davia, em saber que, após a morte, iriam encontrá-los além das altas montanhas, com os quais iriam dansar e morar. Enquanto isso, ameaçavam perseguir os Quetacas ( b) (nação de silvicolas inimigos dos tupinambás, os quais, como já o disse alhures, são tão bravios que jàmais foram domesticados), aprisioná-los em breve e devorá-los, conforme lhes haviam prometido os caraibas. Finalmente, contaram, através de suas cantigas, que, certa vez, as aguas transbordaram e recobriram inteiramente a terra; toda a humanidade, desse modo, perecera, com exceção de seus pais, que se salvaram subindo às mais altas arvores da região." 1 P. 308. 318 NOTAS AO CAPITULO XIV (EsTEvÃo' PINTO) (a) Em resumo, segundo o que se depreende dos autores citados por Métrau:, acrescidos das notas extraídas de frei Vicente do Salvador ( o.c., p. 53) e das Cartas Avulsa.! (p. 147), .verifica-se o seguinte: 1.• - As dansas estavam associadas às bebedeiras e, em determinadas epocas, duravam dois ou três dias. 2.• - Os dansarinos, nessa ocasião, apresentavam-se geralmente pintados e adornados com os seus paramentos plumarios, inclusive os chocalhos. 3.• - Um dos circunstantes tangia o tamboril, mas sem dobrar as pancadas. 4.• - O compasso era tambem marcado com o maracá. 5.• - Algumas vezes, dois dansarinos destacavam;se do conjunto e bailavam, sozinhos, no centro da roda. 6.• - Alem do tamboril e do maracá, havia outros accessorios, como sejam, os arcos, as flechas e o bordão de compasso. 7.• - Os componentes colocavam-se sempre em circulo, sem tocar-se e mudar de lugar, exceto no tempo do cauim, ou quando pretendiam imitar os tapuias. 8. • - A pose mais característica era a da mão direita nas ilhargas, o braço esquerdo pendente, o corpo meio curvado para a frente. ll.• - A batida no solo se fazia com o pá direito . ._ 319- Quanto ao mais, sabemos o seguinte: L• - Os tupis guardavam "entre si diferenças de vozes em sua consonancia", e, de ordinario, as mulheres faziam de "triplos, contraltos e tenores". 2.• pondiam. Um dos cantores tirava a cantiga e os demais res- 3.• - As cantigas tinham yor obJetivo o louvor de arvores, passaros, peixes, etc., ou enalteciam o valor dos guerreiros e as façanhas dos seus ancestrais. 4.• a pouco. A voz dos cantores, a principio baixa, elevava-se pouco • Segundo Flausino Rodrigues Vale (Elementos de folclore musical brasileiro, p. 30. São Paulo, 1936), são os seguintes os traços marcantes da musica indigen~ brasileira: a) escala diferente da nossa, "talvez devido à remota origem oriental, empregando, possivelmente, terços e quartos de tom"; b) "como corola rio, é diverso seu sistema harmonico"; c) quadratura rítmica completamente original. A respeito ainda do assunto, de modo geral, cf. J. Combarieu, La musique et la magie, Paris, 1909. A dansa era uma das mais importantes instituições das sociedades inferiores. O poraci fazia· parte dos principais acontecimentos da vida tribal do aborlgene brasileiro (estações do ano, nascimento, imposição do nome, puberdade, casamento, comemoração dos mortos, guerras, etc.). Com os bailados, os índios participavam da essencia mística dos avós e dos antepassados. Finalmente, entre os elementos culturais de origem gê, alem da dansa (certa especie de dansa) e do botoque, absorvidas pelos tupinambás, - devemos incluir tambem o uso do cercilho ou cabeleira em "forma de prato", para usarmos a expressão de Paul Ehrenreich. (b) O mesmo que guaitacás. -320- CAPITULO XV A FESTA DO CAUIM Nada ocorria de importancia na vida social ou religiosa dos tupinambás que não fôsse seguido de vasto consumo de certa bebida fermentada conhecida pelo nome de cauim. 1 Essa bebedeira tinha lugar em determinadas ocasiões, como sejam, o nascimento da criança, a primeira menstruação da moça, a perfuração do labio inferior do mancebo, as cerimonia"S magicas que precediam a partida para a guerra, ou que sucediam em seu retorno, o massacre ritual do prisioneiro, o trabalho coletivo da tribu na roça do chefe2 e, em geral, em todas as assembléias destinadas à discussão de assuntos importantes: "os quais jàmais seriam levados a bom termo se, precedentemente, não fabricassem os indios o seu cauim para dele beberem até não mais poder." 3 O fato mesmo de impor-se a absorção de bebidas fermentadas, todas as vezes que estava em jogo o interesse da comunidade, prova que esse ato se revestia de carater religioso. Para beber o vinho era preciso I Léry, t. li, p. 72. 2 Yves d'Évreux, p. 42; Cardim, P• 178. 3 Claude d' Abbeville, foi. 301. -321- atingir-se a puberdade; o consumo do cauim estava, de fato, rigorosamente interdito .às crianças. Mas diz Cardim' que o mancebo só era obrigado a tomar parte no banquete, pela primeira vez, por ocasião de celebrar o seu matrimonio. Por outro lado, assegura o autor anonimo da Informação do Brasil2 (a) que o adolescente só se considerava nubil a partir do dia de sua participação na -borracheira organizada para festejar a propria virilidade. O rapaz apresentava-se, nessa ocasião, inteiramente pintado e recoberto de ornamentos plumarios. As minudencias, que os antigos autores deixaram a respeito da fabricação do cauim, põem ainda mais em evidencia as virtudes ao mesmo atribuídas. Essa bebida extraía-se de diferentes plantas, sendo as mais apreciadas a mandioca doce ou amarga, o milho ~ o caju ( b). Sua preparação era confiada só às mulheres. Homem que se. intrometesse nesse serviço, alem de cair em ridiculo, poderia arruinar a bebida, ou tirar-lhe a virtude.3 As moças encarregadas de tal mister trabalhavam sob a vigilancia das velhas. 4 O labor consistia, sobretudo, em mascar as frutas e impregná-las de saliva. Como as propriedades inebriantes do cauim dependiam exclusivamente dessa operação, esta revestia-se, aos olhos dos tupinambás, de significação mística (c). As mulheres que tomavam parte na mastigação deveriam ser virgens,5 ou, pe1 P. 164. 2 P. 432. Cf. t ambem: De algumas cousas mais notaveis do .Brasil, p. 386. 3 Léry, t. I, p. 149. 4 Yves d'Évr eux, p. 90. 5 Gandavo, p. 51. -322 - lo menos, guardarem, durante certo tempo, a castidade. As moças bonitas tinham preferencia sobre as feias' (Est. Vlll, fig. B e est. IX, fig. B). Quando alguma tribu decidia festejar o "vinho", seus membros convidavam a população das aringas circunvizinhas, que, na data marçada, acorria em massa e entrava na aldeia a dansar. 2 Na vespera da festa, os índios punham os seus atavios maracá .à mão, rodeavam as cabanas, "cantando, dansando e pulando toda a noite sem nenhum repouso."3 No dia seguinte, uns poucos dos ocupantes da oca, por onde deveria ser iniciada a festa, percorriam a. aldeia, entre cantos e bailes, convidando os vizinhos a beber com eles 4 : todo o mundo se precipitava pára a maloca na qual encontravam as mulheres prontas para servi-los. E, então, os hospedes, dansando, cada qual de per si, passavam diante das moças, recebendo, nessa ocasião, uma cuia cheia de bebida. Se o cauim sabia bem, improvisavam-se canções, que eram recitadas fazendo-se volta, em torno da oca, ao som dos maracás.s Os temas das cantigas baseavam-se na qualidade excelente do vinho: "ó, vinho, ó, bom vinho (cantavam os indios)! j.àmais existiu outro igual. ó, vinho, 6, bom vinho! Vamos beber dele a vontade. ó, vinho, ó, bom vinho! ó bebida que não dá preguiça!" Vinho preguiçoso era aquele que não embriagava.6 e, 1 2 3 4 5 6 Soares de Sousa, p. 818. Cardim, p. 188. Claude d'Abb.eville, foi. soa v. Cardim, p. 166. L éry, t. I, p. 150. Yves d'Évreux, p. 42. -323 Enquanto assim se bebia, os ancwes e principais estendiam-se nas redes, onde, fumando em canudos de fumo 1, discutiam os assuntos de seu interesse ( d). .Esses velhos eram objeto de atenções especiais; se algum deles (diz Yves d'Évreux 2 ) "vai à festa do cauim, é o primeiro a sentar-se e a ser servido e as distribuidoras do vinho, - escolhidas entre as mais honrosas e as· mais aparentadas com o anfitrião, - vêm logo apresentá-lo aos convidados". E todos dansam, cantam e assobiam, "encorajandd-se e exortando-se reciprocamente a manter o animo valoroso e a fazer muitos prisioneiros na guerra" .3 As mulheres podiam beber tanto quanto os homens. "As proprias mulheres (observa maliciosamente Léry 4 ), servindo de dispenseiros, não se esquecem de bebericar na mesma medida dos homens". A ação do alcool era particularmente violenta para as mesmas, que se entregayam a contorsões grotescas e se comportavam como possessas.6 Era nessa unica ocasião que as mulheres dansavam lado a lado com os homens, p"ondo-lhes a mão nas ilhargas. 6 Esgotado o cauim da primeira cabana, os índios passavam às seguintes. E assim por diante, até que todas as cabanas estivessem vazias. 7 As bacanais duravam de dois a três dias; por esse tempo ninguem Ciaude d' Abbeville, foi. 303. P. 84. Léry, t. I, p. 152; Cardim, p. 187. T. I, p. 150. Yves d'Évreux, p. 42. 6 Ciaude d'Abbeville, foi. 299 v. 7 Staden, part. 11, cap. XV. 1 2 3 4. 5 -324- comia e apenas se interrompia a beberagem para fumar (Est. VIII, fig. B). Nessas orgias, em que os animos se inflamavam de mais a mais, as rixas, como é obvio, eram frequentes. Demais, no momento, reinava liberdade sexual em Fig. 9 - Mulheres tupinambás preparam as bebidas, que extmem da mandiocf! e do milho (segundo Staden). -325- demasia. I Os quadros pitorescos, que os antigos cronistas deixaram das cenas provocadas pelas festas do · cauim, mostram bem a exaltação selvatica a que chegavam esses indios ordinariamente. tão calmos. Não é, pois, de surpreender que um tal estado tenha sido considerado pelos tupinambás como uma crise mistica da coletividade, na qual todos se sobrepunham acima de si mesmos. 1 Cardim, p. 166. -326- NOTAS AO CAPITULO XV (EsTEvÃo PINTO) (a) Confira-se a nota j do cap. I. ( b) A planta propria para a fabricação do vinho era o aipim, que os índios, no dizer de Gaóriel Soares de Sousa, plantavam de preferencia ,para tal fim. Vinho se fazia ainda do abacaxi, do ananás, da mangaba, da pacova, da jabot\caba, da batata e do jenipapo. (c) "O mastigar por moças, dando mais gosto, não é galanteio indígena: a saliva ajuda a sacarificação do amido, pelo fermento; é este fermento que faz ferver a bebida, e não o fogo, cómo inadvertidamente se poderia supor; há produção de gases e elevação de temperatura, o que esquenta a bebida" (notas de Afranio Peixoto à p. 74 das Cartas Avulsas, cit.). Léry diz que os franceses procuraram fabricar o cauim sem a mastigação; mas, para falar verdade, a experiencia mostrou que, assim feita, a potagem nãó era boa ( o.c., p. 121). (d) No texto, "tout en fumant des cigares". Trata-se propriamente das "cangueiras" de folhas, especies de canudos por onde fumavam os tupinambás, pondo fogo a uma das suas pontas. -327- CAPITULO XVI O MITO DA "TERRA SEM MAL" E AS CRENÇAs, POR PARTE DOS INDIGENAS SUL..AMERICANOS, EM UM MUNDO IDEAL Quando povos, civilizados ou. não, são vencidos e subjugados por despotas impiedosos, que ameaçam suas mais caras crenças ou tradições, revela-se entre os mesmos uma nostalgia do passado. Essa nostalgia serve de alimento a visões de um porvenir grandioso, que lhes proporcionará a anelada vindicta e o retorno ao passado. Um passado, que se identifica com a idade de ouro. Crises misticas semelhantes, frequentemente de consequencias politicas serias, tiveram lugar, numerosas vezes, entre as sociedades primitivas da America, da Oceania e da Africa. A historia dos indígenas norte-americanos oferece-nos muitos exemplos de movimentos politico-religiosos, que expressam a intensa melancolia de uma civilização moribunda, mas, por isso mesmo, esforçando-se ainda em reafirmar-se à custa dos mais fantasiosos sonhos. Como tais sonhos, acompanhados de revoltas e migrações, foram repetidamente provocados por individuas representando o papel de salvadores ou reden- -328- tores, há quem os tenha comparado .às crenças manifestadas em vários textos bíblicos por ocasião do advento de um messias. Esse paralelo justifica-se, tendo-se em vista antes a essencia do que as exterioridades multiplas do fenomeno. A fatos dessa ordem dá-se o qualificativo de fenomenos revivalistas. Os índios sul-americanos não foram alheios às crises messianicas, sendo os primeiros a sofrê-las os tupinambás do trato costeiro do Brasil. As crises em questão caracterizavam-se ora por acessos de entusiasmo coletivo provocados pelas profecias dos grandes xamãs, que anunciavam a transformação radical da sorte dos tupinambás, ora por migrações em busca da "terra-onde-não-se-morre". Movimentos analogos produziram-se entre os guaranis do Paraguai ( secs. XVI e XVII), entre os guaàlius e os chiriguanos ( secs. XVI 11 e XIX) e entre os moxos (sec. XIX). O mesmo ocorreu entre os índios campas, por ocasião da revolta de Santos Atahuallpa ( 1-750) e entre algumas tribus do Rio Negro e da Guiana, na ultima centuria. Os missionarios, que viveram, nos seculos XVI e XVII, entre os tupinambás do litoral brasileiro, falam, .reiteradamente, na influencia exercida sob·re esses aborígenes pelas profecias de certos xamãs e pelas perspectivas de uma era aurea, anunciada para muito proximo. Pormenores, frequentes vezes obscuros, fornecidos a respeito do assunto pelos antigos cronistas, tornam-se mais compreensíveis quando os comparamos aos acontecimentos, relativamente recentes, que se produziram no seio de alguns grupos guaranis do Paraguai e do sul do Brasil. Pode-se empreender o estudo dos movimentos messianicos dos tupinambás partindo-se do conhecido para o desconhecido, isto é, do -329- exame dos fatos contemporaneos para a interpretação dos velhos textos .. É a Nimuendajú 1 que cabe o merito de ter iniciado as primeiras pesquisas metodicas nesse domínio. O referido sabio encontrou, em 1912, em litoral perto de São Paulo, um pequeno bando de índios guaranis vindos do Paraguai. Eram alguns sobreviventes do numeroso grupo que se pusera. em marcha em busca, alem oceano, da "terra onde ninguem morria". A leva constituía a ultima vaga de vasto movimento migratorio de origem religiosa, que, começando em 1810. se prolongara até os começos do seculo XX. Três tribus tinham tomado parte no movimento - os apapocuvas, os tanhiguás e os oguauívas, todas, outrora, habitantes do sul do Mato Grosso, nas fronteiras paraguaias. Seu exodo fôra provado pelas profecias de certo numero de feiticeiros, que, persuadidos do fim do. mundo, tentaram salvar os compatriotas, exortando-os a buscar refugio na "terra sem mal", onde estariam ao abrigo do cataclismo. Essas palavras despertaram grande entusiasmo. Logo, ·os apapocuvas se puseram em marcha, seguidos dos tanhinguás e dos oguauívas. Cada grupo tomou diferente itinerario. Varias foram as vicissitudes pelos mesmos suportadas. Alguns conseguiram alcançar a borda marítima, após dificuldades inauditas; outros foram interrompidos no curso da viagem. Mas todos, até os que se viram obrigados a acampar ao pé das cidades ou missões, permaneceram fieis ao ideal primitivo. Cada vez que se oferecia ocasião, os mencionados índios tentavam fugir e ganhar o litoral. 1 ( 1), ps. 286-293 e 354--364.. -330 ' Sàment; pouco antes da ultima guerra, os indígenas em questão renunciaram definitivamente a transpor o oceano, tendo sido asilados, por concessão do governo brasileiro, na reserva de Ariribá. As mais amargas desilusões, todavia, não lhes abalaram a fé na existencia de uma especie de paraíso terrestre e na possibilidade de alcançá-lo antes da morte. Durante a longa convivencia entre os apapocuvas, Nimuendajú pôde recolher, a respeito da origem e natureza de sua migração, consideraveis informações, que vou tentar o mais possível resbmir. A crençé\ na existencia da "terra sem mal" está em estreita relação com antigos mitos a respeito da destruição do universo. Quando Nanderuvuçú, "o pai grande", resolveu acabar com a terra, advertiu ante- ' . cipadamente o feiticeiro-mor Ouyr:aypoty e ordenoulhe dansar; este, em obediencia, executou, durante toda a noite, seus bailados rituais, após o. que !Vanderuvuçú retirou um dos esteios, onde repousava o mundo, provoêando devastador incendio. Ouyraypoty,' percebendo o perigo, emigrou para o mar com toda a sua família. Tão rapida foi a fuga, que os índios não tiveram tempo de plantar e recolher a mandioca; todos teriam perecido de fome, se não fôra o poder magico I de Ouyraypoty, que conseguira milagrosamente obterlhes os viveres necessarios à vida. Quando os fugitivos atingiram as bordas do Atlantico, seu primeiro cuidado foi a construção de uma casa de dansa, na qual. noite e dia, bailavam e cantavam, batendo no solo com os seus bordões de compasso, enquanto o perigo se, tornava cada vez mais iminente pois o mar, como quises.'>e extinguir o incendio, ameaçava submergir a su• perfic~e do globo. I Guyraypoty e os seus, entretanto, -331- quanto mais aumentava a ameaça, tanto mais dansavam freneticamente. E, no momento exato em que iam ser tragados pelas aguas, a cabana elevou-se, transpôs a porta do céu e só foi parar junto .à casa I de tvandecy, "a mãe grande", esposa de fíranderuvuçú. I O país celestial onde hábitam Ouyraypoty e a I -I mulher tem o nome de Yvy marãey (a terra sem mal). Nesse lugar, as plantas nascem por si proprias, corre o mel em abundancia e todos os que o alcançam usufruem a felicidade. O cataclismo, que já uma vez aniquilou o universo, não é o ultimo a ameaçar o mundo, cujo fim, aliás, está proximo. Quando esse acontecimento se I produzir, o criador enviará o morcego (Mbopí recoypy), que devorara o sol, soltando o tigre azul, animal semelhante a um cão. O tigre azul destruirá impiedosamente a raça humana. Em seguida, virão o fogo e agua .. Os guaranis modernos vivem persuadidos· da proxima destruição da terra, considerando toda ·catastrote, de que têm noticia, como signo prenunciador do desastre. Quando os sonhos, visões ou simples fenomenos naturais insolitos fazem pressentir a algum feiticeiro a aproximação do perigo, este, seguindo o exem1 plo de Ouyraypoty, procura escapar-se-lhe, reunindo em torno de si e sob a sua direção, os mancebos, que se entregam ao jejum e à dansa; todo um ano consagrado .à dansa mal chega para revelar a orientação ou caminho a seguir. Reina a respeito da situação da "terra sem mal" duas opiniões divergentes: alguns a loçalizam no cen.tro da terra, no proprio sitio onde ·o criador construiu sua morada e abateu a mata afim -332- de prepara! os campos maravilhosos, que dão abun ... dantes colheitas algumas horas após a semeadura. Pes~ soas competentes, entretanto, estão de acordo em as~ segurar que a "terra sem mal" fica situada para o este, alem do mar. A conjetura dessas ultimas pareceu ter prevalecido, pois foi sempre o oceano que os tupis, migrando à procura do paraíso, se propuseram atingir .. O feiticeiro provocador do movimento vinha a ser naturalmente o seu chefe e dirigente. Era dever dele velar, todas as noites, pela estrita execução da dansa peculiar ao mito e da qual dependia o exito da em~ presa. Dansas ininterruptas e jejuns rigorosos, todavia, não contribuíam para retardar a marcha migrato'ria já de si tão ardua. Geralmente, eram a fome, as doenças ou a guerra que dizimavam a tribu lançada nessa aventura. Devia o feiticeiro dar provas, constantemente, de seus dons, --:- aproximar as margens dos rios para facilitar a passagen1, afastar os inimigos ou alimentar milagrosamente os adeptos. Se, apesar dos obstacuJos, os emigrantes alcançavam o trato costeiro, seu primeiro cuidado era a construção de uma casa de dansa, onde, talvez, munidos de chocalhos (maracás) e de bastões de compasso, iniciavam furiosamente a dansa. Imprimindo movimento constante ao corpo, julgavam os apapocuvas dar-lhes a agilidade necessaria para a travessia, a pé enxuto, das vagas. Estavam tambem persuadidos de que a casa da dansa se ele"' I varia, com eles, para o céu, isto é, para o Yvy' marãey. O pagé indígena, que ditou a Nimuendajúl os mitos tribais, descreveu assim a viagem: "Dansou-se du1 (1), pt' 400. -333- rante todo o ano. Quando veio O· tempo, o caminho a tomar revelou~se ao feiticeiro. Acompanhamo-lo pa- , ra o este e atingimos a agua imensa. O feiticeiro, nosso pai, caminhava por cima da gente; os mancebos marchavam por terra. Logo a agua, para dar-lhes passagem, secou e, assim, atravessámos o mar e chegámos à terra da bebida de jaboticaba. Aproximandonos de i'íandecy,' no~sa avó, encontrámos o velho campo e o bosque de bananeiras, que foi preciso atravessar para ir ter .à floresta. Nossos labios estavam secos e havia mel para beber, Ultrapassando a floresta, atingimos o lago das aguas pegajosas;· não pudemos beber e a nossa lingua ficou ainda mais sedenta. Cami.. nhámos mais e, afinal, encontrámos agua boa de be:.. I ber. Dirigimo-nos, então, para a casa de N'cmdecy e, à nossa aproximação, a arara apareceu e disse: "IVan- decy' pergunta o que os seus filhos qu,erem comer". ' Respondemos-lhe: "Queremos pão. doce de milho verde". Passando mais adiante, deparamo-nos com uma especie de tordo, o sabiá. E o sabiá pôs-se à nossa frente a indagar: "Que é que meu filho quer comer?" I Dissemos: "Queremos cágutjy (cauim)." I E o sabiá I levou a resposta a N'andecy. • Nesse momento, Nandecy, chorando, disse: "Vocês vão morrer todos na terra. Não voltem mais para lá; fiquem aqui." Pessoas, sozinhas, tambem podiam alcançar a "terra sem mal". Segundo a tradição, feiticeiros houve que foram viver na solidão, entregando-se, então, .às dansas e ao jejum rigoroso. Os raros alimentos por eles gastos eram-lhes trazidos por invisíveis poderes. Esse esforço acabou coroado de exito: suas almas (outros dizem os corpos) voaram para a "terra sem mal". -334- A mesma ventura tiveram os feiticeiros, que conduzi-ram os apapocuvas e tanhiguás até as bordas do mar; , tiveram o privilegio de penetrar na morada da "mãe grande", muito embora a empresa não tivesse sido bem sucedida? ·A dansa tem primordial importancia em todos os ritos destinados a permitir a participação do homem no convívio dos deuses. Os proprios apapocuvas dão a razão disso, - se alguem consegue dominar a enorme, fadiga causada pela dansa prolongada, poderá movimentar-se ·automaticamente, sem esforço algum, prova de que o corpo perdeu seu peso e, em consequencia, aumentou de leveza. Os que possuem energia bastante para isso, acabam por elevar-se até o céu. A dansa é, alem do mais, um• meio de pôr-se o individuo em comunicação com os seres sobrenaturais: quando os gemeos míticos decidiram reunir-se ao "pai grande", inventaram uma dansa, que foi executada, . ininterruptamente, durante quatro meses. 2 Os guaraius emigraram do Paraguai, no seculo XVI, para o fim de estabelecer-se nas margens do Guaporé, onde, como é natural, conservaram as crenças ancestrais. Entre e~ses índios hâ, tambem, noticia de um g.rande ancestral, o Tamoi, que "voou para o oriente, enquanto os anjos batiam na terra com os seus toros de bambu, cujo ruído discordante agradou aos ouvidos divinos". E, à maneira de seus primos, os guaraius visitados por Orbigny3 acreditavam tambem que, "após a morte, do alto de uma arvore sagrada plantada sempre nas- proximidades de suas ocas, 1 Nimuendajú (1), ps. 827-329. 2 Nimuendajú (1),'p. 827. 8 T. 11, ps. 329-830. -335 Tamoi os conduz ao oriente, onde ressuscitam e participam de todos os bens usufruídos por eles na vida terrena." Não é apenas na condição de almas separadas do corpo que os guaraius contam juntar-se ao "pai grande"; praticam esses indios, do mesmo modo, cerimonias destinadas a provocar sua imediata ascenção ao céu. Orbigny,t. que assistiu a uma dessas cerimonias, descrevendo-a sumariamente, não procurou explqrar-lhe o objetivo. Mais completo, a esse respeito, é o padre Cardús. 2 "Os homens, cobertos com os seus mais belos ornamentos plumarios, reunem-se no tocai, ou casa das dansas. Fumigando os bordões de compasso, os participantes da festa põem-se a executar rondas, cuja cadencia é marcada pela batida, no solo, dos toros de bambus". A finalidade dessa manifestação (assegura o referido missionario) é de fazer-se transportar, o mais breve possível, pelo Ancestral, conforme promessa deste e conforme assim esperam os índios; alguns pretendiam até - tanto são fanaticos - , que, antes da chegada dos missionarios,· costumq.va o "pai grande" arrebatar os netos para o ceu, juntamente com o tocai, "arrancando-os do solo quando os índios, no seu interior, estavam a ponto de cantar." O mito da "terra sem mal'i conservou-~e intacto entre os tembés do baixo Amazonas. Nimuendajú8 recolheu uma versão, que mostra. evidentes analogias com a por ele precedentemente obtida entre os apapocuvas. Maira é o heroi-civilizador dos tembés. Habita no meio de uma vasta planura, coberta de flores, onde os passaros falam e fazem ninhos no proprio solo. 1 T. 2 a n. aao. Ps. 78-81. (2). p. 288. -336- Perto da casa de Maira existe uma enorme aldeia, cujos habitantes levam vida amena e feliz. Seu alimento quotidiano consiste em frutos semelhantes a cabaças. Os campos não exigem lavoura: as plantas, depois de semeadas, nascem espontaneamente. Maira e os companheiros da planura de I kaiwéra acodem pelo nome de Karuwara. Quando as pessoas atingem a velhice, não morrem; ao contrario, rejuvenescem. Esses índios cantam e celebram festas continuas. Segundo alguns, o paraiso está situado a leste; segundo outros, a oeste. Da derradeira aldeia tembé, no Cajuara, até a região dos Karuwara, a viagem dura um mês. Outrora-; os tembés tentaram, frequentes vezes, alcançar o bemaventuradó. /kaiwéra, mas falharam todos em suas tentativas, exceção apenas de alguns dos eleitos. Certos elementos desse mito se conservaram entre os chiriguanos; ou, mais exatamente, entre os cha. nés falando o guarani. Contam os chiriguanos que Tatu-tunpa trabalhava em seus roçados de um modo todo miraculoso. Num instante, os instrumentDs cavavam o chão, enquanto os ventos varriam os menores entulhos e as sementes eram plantadas pelas aves. A I<rvoura, feita assim sem o menor esforço, produzia repentit'lamente abundante seara.t A maravilhosa pá' de Tatu-tunpa foi-lhe arrebatada por Aguara-tunpa, em seguida a uma aposta que o primeiro perdera. Desde então, a humanidade se viu obrigada a laborar penosamente a terra. 2 A sumula desses dois mitos basta para evidei1ciar o parentesco entre ambos, sobretudo quando se tem em vista que os dois herois fazem, entre os chiriguanos (conforme já o mostrei), o papel de civilizadores. • 1 Nordenskiold (1), p. 226. 2 Id. (1), pro. 1169-210. -337- A presença de mito identico entre tribus há secuJos insuladas é prova suficiente em favor de sua antiguidade. Os textos, ,que agora vão ser examinados, não deixam subsistir nenhuma duvida a esse respeito; atestam, alem disso, que as aspirações messianicas dos tupis, assim como as respectivas legendas basicas, pertencem às primitivas noções religiosas de todos os indígenas da familia em especie. São os fatos modernos suficientemente claros para dar idéia do alcance e significação dos antigos textos referentes aos fenomenos da mesma ordem. Õ primeiro documento alusivo às crenças messianicas dos tupinambás é uma carta do padre Nobrega1 : "Em chegando o feiticeiro .. . . lhes diz que não curem de trabalhar, nem vão à roça, que o mantimento por si crescerá, e que nunca lhes faltará que comer, e que por si virá à casa, e que as enxadas irão a cavar e as frechas irão ao mato por caça para seu senhor e que hão de matar muitos dos seus contrarias, e cativarão muitos para seus comeres e promete-lhes longa vida, e que as velhas se hão de tornar moças" (a). Para dar credito às profecias, os feiticeiros, aos quais se refere o padre Nobrega, convenciam os índios de que as mesmas lhe eram ditadas pelo espírito encerrado em uma cabaça. Em nenhum outro autor, as cabaças e os espíritos nelas contidos são designados como os intermediarias, de que se serve o feiticeiro para anunciar as novidades ( b). Outro jesuíta, em epoca diversa, menciona a atividade desenvolvida pelos feiticeiros no sentido de convencer os tupinambás da aproximação ott advento dos 1 Ps. 92-93. -338- fatos, a que se poderia dar o nome de tempos novos :1 "Alguns de seus feiticeiros, que chamam pagés, inventam uns bailes e cantares novos, de que estes índios são mui amigos, e entram com eles por toda a terra, e fazem ocupar os índios em beber e bailar todo o dia e noite, sem cuidado de fazerem mantimentos, e com isto se tem destruido muita gente desta. Cada um destes feitit:eiros (a que tambem chamam santidade) busca uma invenção com que lhe parece que ganhará mais, porque todo este é seu intento, e ~ssim um vem dizendo que o mantimento há de crescer por si, sem fazerem plantados, e juntamente com as caças do mato se lhes hão de vir a meter em casa. Outros dizem que as velhas se hão de tornar MlOÇas e para isso fazem Iavatorios de algumas ervas com que lavam; outros dizem que os que os não receberem ·se hão de tornar em passaros e outras invenções semelhantes" (c). Os novos cantos e bailes trazidos pelos feiticeiros .não passavam, possivelmente, da dansa da "terra sem mal", na qual se deveria iniciar a tribu antes de empreender a migração. As dansas continuas, a que os pagés constrangiam os guerreiros, antes do exodo, eram aque" Ias destinadas a ensinar-lhes a rota do paraíso. Cardim,2 uma das melhores autoridades em materia de religião dos tupinambás, resume, quase nos mesmos termos dos dois autores precedentes, as profecias da pagelancia. Assegura que os feiticeiros s.ó davam começo a praticas dessa ordem após adquirirem incontestavel fama. Para ganhar a confiança e o respeito dos índios, recortiam eles a milagres de toda especie. Um desses milagres consistia ·em ressuscitar algum morto, - na realidade uma pessoa que se fazia de 1 Informação do Braail, p. 432. 2 Ps. 162-163. -"339- morto. Cardim insiste no entusiasmo suscitado por tais discursos: "E com estas falsidades os traz tão embebidos, e encantados, deixando de olhar para suas vidas" ( d). As crises místicas tiveram consequencias lamen• taveis para as tribus por elas atingidas. Os grupos, formados em torno do pagé, desagregaram-se pouco a pouco; os fieis, famintos, morriam como q;oscas e o "santo" acabava ficando só, quando não sucumbia às mãos dos proprios· discípulos ludibriados. Marcgrave• trata de fatos identicos. É duvidoso, todavia, que tais movimentos místicos se produzissem ainda em sua epoca, entre os tupinambás degenerados e subjugados de Pernambuco. Esse autor confessa que as mdicações a resp•eito do assunto lhes vieram através de fontes .Portuguesas, as quais, aliás, confirmam a noticia de Cardtm a respeito da extensão rapida do movimento, capaz de abranger todo o vasto continente. Claude d' Abbeville 2 assistiu a uma das cerimonias praticadas pelos tupinambás, destinada a apressar a partida para a mansão do "pai grande". Sua descrição deve ser dada por inteiro, pois contem inumeros pormenores dos mais interessantes: "Há outra estrela a que os maranhenses chamam /aouãre, isto é, o cão (e). E' muito vermelha e, ordinariamente, acompanha a lua de perto; tanto assim que, quando vêem a lua deitar-se, dizem que a estrela late em seu encalço, como um cão, para devorá-la. Quando a lua permanece muito tempo oculta, durante a estação invernosa, acontece, em alguns casos, se surge Jogo após às chuvas, mostrar-se vermeI :l P. 279. Folil. 327-828. -340- lha que só sangue. Afirmam, então, os maranhenses que é por causa da estrela Jaouare. E logo todos os homens pegam os seus bordões e, voltando-se para a lua, batem no chão com toda a força e exclamam, continua e repetidamente, em altas vozes: - Eycobé cheramoin goé, goé, goé; Eycobé cheramoin goé! O que significa- Au, au, .au, meu pai grande, boa saude; boa saude, meu pai grande, au/ (f). Entrementes, mulheres e crianças choram e gemem, aos gritos e uivos, voltadas paya o céu, depois do que se deitam e rolam por terra, batendo, durante todo o tempo, com a cabeça e as mãos no solo. Desejando saber o motivo desse desatino e dessa diabolica superstição, vim a saber que os índios pensam morrer quando avistam a lua assim sanguinolenta, logo que aparece após as cl'luvas. Os homens, por isso, batem no chão em sinal qe alegria e contentamento, por que vão morrer e juntar-se ao pai grande, a quem desejam um longo bem estar. - Eycabé cheramoin goé goé gné; Eycobé cheramoin goé. Au, au, au, meu pai grande, saudei Meu pai grande, au! As mulheres, porem, têm medo da morte e, por isso, choram e se lamentam." O tumulto e o místico entusiasmo, provocados pelo insolito aspecto da lua, encontram explicação no mito apapocuva, atrás resumido. A ascenção ao "pai grande" deveria ocorrer antes do fim do mundo. Ora, esse cataclismo tinha de ser precedido pelo desaparecimento do sol, tragado por um morcego, seguido da vinda do "tigre celeste, semelhante a um cão e de côr azulada", que se arremessará contra os homens para devorá-los. O animal lendario pode ser identificado com a estrela, que traz o seu nome, cuja posição particular contribue para a genesis do mito do qual é objeto. A côr da lua, supostamente vitima do furor do jaguar celeste, era provavelmente considerada pres- -341- sagio do aniquilamento do universo e anuncio de que os tempos estavam findos. Seria, pois, para escapar ao perigo iminente e alcançar, o mais brevemente possível, a mansão do ancestral, que os tupinambás entoavam seus canticos e dansavam com os seus bastões rítmicos. Talvez- mesmo esses índios esperassem sumir-se, juntamente com a aldeia nativa, desde quando tivessem adquirido a agHidade necessaria, pois essa crença parece ter sido tão forte entre os tupinambás quanto entre os apapocuvas e os guaraius. Em um dos mitos reproduzidos por TheveP, conta-se que, pouco antes do diluvio, a aldeia onde viviam os gemeos míticos, filhos do heroi-civilizador, "havia voado para o céu." A inquietude e agitação religiosa, que os missionarios assinalaram entre as tribus costeiras do Brasil, não eram senão sintomas precursores de uma migração .à "terra sem mal". Varias tentativas feitas pelos tupinambás para realizar o seu sonho deveriam ter fracassado, apenas começadas. Em 1S62, por exemplo, como se sabe, três mil índios da Baía fugiram para o "sertão", acompanhando dois feiticeiros, que haviam arrastado atrás de si aqueles índios, "com embustes, e razões diabolicas" 2 (g). Esse exodo foi obstado a tempo Relos jesuítas. As autoridades portuguesas e os missionarios opuseram-se sem duvida, pela força, a mais de uma dessas migrações, que lhes causavam tão real prejuízo. Mas, apesar da sua vigilancia, entre os meados e os fins do seculo XVI, numerosos índios tupis conseguiram abandonar o litoral à procura da "terra sem mal". 1 2 (2), foi. 914 v. Va§concelos, liv. 11, p. 178. -342- Em 1549, os habitantes da ciqade de Chachapoyas, no Peru, aprisionaram trezentos selvagens, reconhecidos como sendo povos tupis do trato costeiro do Brasil. Tanto quanto o seu itinerario pode ser reconstituído, através das informações contraditarias das fontes, 1 esses indios, subindo o Amazonas, a partir da .sua embocadura, atingiram o rio .Maranhão; em seguida, remontando o Huallaga, teriam chegado a Chachapoyas. A narrativa, que fizeram da sua aventura, despertou profundo interesse no Peru; referiamse os mencionados índios a uma região fabulosa, o reino dos omaguas, onde abundavam o ouro e as pedras preciosas. Essa descrição contribuiu, em larga escala, para a formação da legenda de El Dorado, que provocou a tragica expedição de Pedro de Ursúa (1558). A maioria dos cronistas, que relatam a migração em especie, assinalam como sua causa o insaciaveJ desejo de guerras e aventuras, tão característico dos povos tupinambás. Segundo outros, o fato não passou de ,uma tentativa para escapar da dominação portuguesa. Oandavo2 , que viveu longos tempos na costa do Brasil e conhecia muito bem a mentalidade e as crenças desses silvicolas, é o unico a indicar a sua verdadeira razão. Segundo esse autor, o feiticeiro Viaruzu e seus companheiros teriam partido com o obje1 Os docurp.entos concernentes a essa migração foram reunidos, em .grande parte, por Jiménez de la Espada, nas Relacionl!a geográficas de Indiaa, t. IV, p. 132-139. Estudei eu pro· prio essa migração, completando a bibliografia de Jiménez de la Espada. Cf. Métraux (1), ps. 21-22. 2 P. 148: "E seu intento nam seja outro senam buscar sempre terras novas, afim de lhes parecer que acharão nellas inmortalidade e descanço perpetuo". -343 tivo de encontrar a terra da "imortalidade e do descanso perpetuo". A migração teve lugar de este para oeste. A escolha da diretriz corresponde, provavelmente, a uma concepção particular da situação da "terra sem mal". Perdendo a esperança de atravessarem o oceano, a cujas margens se tinham estabelecido há tantos anos, o feiticeiro revelador do mundo ideal persuadiu-se, sem duvida, de que deveria procurá-lo no rumo do oeste. Fato identico se passou nos dias atuais: um dos feiticeiros apapocuvas, que conduzira esses índios até as bordas do Atlantico, dando-se conta da impossibilidade de franquear o obstaculo, não hesitou em retomar o caminho, atribuindo o fracasso a uma falsa interpretação das lendas tradicionais e aderindo, assim, aos partidarios da teoria da localização da "terra sem mal" no amago da terra. 1 Os dirigentes das duas outras migrações místicas, das quais fazem menção os antigos autores, permaneceram fieis à opinião geral referente ao local da Yvy' "' ' marãey. A primeira dessas migrações teve lugar ao expirar o seculo XVI. Claude d' Abbeville, que deixou o relato do acontecimento, não lhe explica os fins: os oito ou dez mil indios, cujas aventuras narra, deixaram em massa a região de Pernambuco afim de acompanhar certo feiticeiro português ( ?) , que havia conseguido assenhorear-se da personalidade e dos atributos dos "caraibas". "A fadiga de tão longa e penosa caminhada (conta Claude d' Abbeville) 2 não parecia existir para esses pobres retirantes, tanto era a admiração tributada ao condutor da caravana: seu renome 1, Nimuendajú ( 1), p. 293. 2 Ps. '1'1-'18. -344- era tão grande que os índios o tinham pelo seu grande profeta. O profeta, realmente, dava-lhes a entender, por encantamento ou malícia, não ser homem nascido de pai e mãe, como os demais; saíra, isso sim, da boca de deus-pai, que o fizera baixar .à terra para anunciar-lhes a palavra divina. Dizia-lhes ainda ser o autor da vegetação e quem mandava sol e chuva. Em suma, quem lhes outorgava todos os bens e alimentos que ós índios possuíam. Soube, de fato, por pessoas da comitiva, que, quando sentia falta de vinho e outros alimentos semelhantes, atrasava-se um bocado e, erguendo os ·olhos para o céu, dizia em voz clara: Meu deus, meus pobres soldados precisam de vinho (ou mencionava outra qualquer coisa); rogo-vos qu.e lhes deis o de que necessitam. Imediatamente, surgiam algumas garrafas de vinho, ou os objetos pedidos, afirmando ter sido deus quem os enviara. E os índios ficavam embasbacados . . . De modo identico agia para obter agua, quando esta se fazia necessaria à tropa que o acompanhava: após ter dito, por exemplo, a sua prece, o profeta ordenava a alguem que cavoucasse a terra, no lugar por ele indicado, assegurando que o liquido ali se encontraria. E, com efeito, segundo o afirmam testemunhas, j.àmais errou, embora, até então, nunca tivesse havido agua no lugar. Essas e outras coisas semelhantes tornavam-no muito estimado entre os índios, que não sabiam como explicá-las. Ainda mais: quando os índios lhe rogavam que comesse ou bebesse, o profeta recusava, assegurando não ter precisão, como as demais criaturas, de alimentar ~o corpo para viver; seu unico alimento era um licor enviado do céu por deus. E em verdade nenhum indio jàmais o viu beber ou comer, durante todo o tempo em que permaneceu em sua companhia. O companheiro alimentava-se à semelhança dos demais. E quando o -345- personagem presenteava os índios com os bens, que deus, por seu intermedio, . . . miraculosamente lhes enviava, o companheiro, sem a menor hesitação, participava, junto aos soldad9s, da distribuição. O profeta, esse, é que nada queria, a não ser, segundo dizia, o seu manjar celestial. Se tomava algum outro alimento, fazia-o tão às ocultas que ninguem o via. Nisso o ajudaria, sem dUvi-da, o companheíro. Assim pensavam a seu respeito os mais sensatos". O feiticeiro em questão porfiava em atrair .à sua causa os moradores de todas as aldeias, por onde transitava. Para impor-se aos índios, fazia-se constantemente transportar sobre duas espadas e exigia toda especie de provas de veneração. Conseguiu atravessar, com a sua tropa, a região compreendida entre a província de Pernambuco e a do Maranhão, mas não pôde prosseguir aJem da serra de Ibiapaba, onde se chocou com a resistencia encarniçada dos tabajaras das serras. Morreu pouco após o cerco de uma aldeia. Fome e doença dizimaram as tribus, que o haviam acompanhado. Não é nada duvidoso que esse estranho aventureiro, graças .à idéia do milagre da "terra sem mal", tivesse conseguido incutir a um tão grande numero de indios a deixa,r a sua terra para afrontar os perigos de tão longa marcha, através de matas e de regiões infestadas por inimigos. Embora europeu, deveria conhecer bem as crenças e os mitos dos tupis. Sué!-S palavras 'e atos são copiados das· dos feiticeiros indígenas. Alguns anos mais tarde, Montoya 1 assinalou a atividade de um poderoso pagé guarani, que, de ai1 P. 48. - 346 -- deia em aldeia, afirmava "ser deus, criador do céu e da terra", a quem incumbia provocar as chuvas ou as secas, sendo a fertilidade da terra obra sua. Assegurava esse feiticeiro que, se alguem lhe desse motivo para desçontentamento, impediria ele as chuvas e tornaria o solo esteril. Fazia ainda outros discursos ridículos, atraindo bom numero de pessoas simples. "Sou eu (dizia) o criador das coisas e o fertilizador dos campos; eu, quem castiga os incredulos com doenças variadas e dolorosas". Examinando mais cuidadosamente as falas desses "profetas" sul-americanos e suas correspondentes ações milagrosas, verifica-se que os mesmos imitam, em sua conduta, os herois-civilizadores. Tudo faz supor que pretendem ser o ancestral mítico reaparecido na terra. Pormenor particularmente tipico confirma essa hipotese. O feiticeiro, de quem tratei mais atrás e que afirmava ter força para subverter e reconstruir, a seu bel prazer, o mundo, estava acompanhado de um companheito, que ele havia criado com a luz de sua face. Ambos entretinham relações intimas com uma jovem, que haviam conjuntamente gerado. Fica-se surpreso com a analogia existente entre o papel assumido por tal feiticeiro e o começo do mito das origens, tal como é narrado pelos apapocuvas, descendentes daqueles mesmos guaranis. Nanderuvuçú, o do peito brilhante, "encontra" a seu lado um companheiro, Mbaecuaá; os dois formam a mulher Nandecy,' da qual se servem cada um de per si. Nanderuvuçú já aniquilou o mundo e ainda desencadeará sobre a terra novo cataclismo. A tradição parece, pois, ter sido o tema em que se inspiraram os mencionados feiticeiros, autores reais do drama mítico. -347- Os milagres que fazia o feiticeiro "português" (?) para o fim de prover a alimentação de seu povo não deixam, tambem, de ter analogia com certos traços do mito tupico. Basta lembrar a historia de GUJ'raypoty,' na qual se vê esse heroi nutrir os fieis à c.usta de sua forma magica. · O exodo desses índios mal acabava de ter lugar quando, na propria região de Pernambuco, adveio outro movimento semelhante, que iria seguir o mesmo itineràrio do anterior e cujas causas não deixam nenhuma duvida a respeito. Pelos proprios testemunhos de Claude d' Abbeville e de Yves d'Évreux, que lhes relataram as peripecias, vê-se ter tido a migração, por unico movei, a terra da promissão. · 'Eis o que diz o primeiro desses cronistas: 1 "Assim foi que, após a destruição da sua raça pelos perós, muitos deles foram maltratados pelo diabo. Este apareceu-lhes encarnado em um dos seus al_ltepassados e discorreu acerca das miserias dos índios e dos meios de adquirir a liberdade. Acrescentou que fora tambem igual aos selvagens, mas que, quando bem lhe aprouve, transformara-se em puro espírito; se os mesmos tivessem fé e quisessem segui-lo, tornarse-iam todos iguais a ele e iriam todos para o paraíso terrestre, onde assistiam os caraibas e os profetas. Dando credito às palavras persuasivas do demonio, que lhe aparecia assim em forma humana, seguiu-o o povo em numero não inferior a sessenta mil. Como, porem, o diabo na realidade .só desejava a sua desgraça, já na travessia do primeiro rio fez com que boa parte perecesse afogada. Outros foram mortos pelos 1 Foi. 323. -348- contrarias e os poucos restantes levados para o deserto, onde deviam continuamente dansar em homenagem a juripari. Todavia, o diabo mandava-os semear muita coisa, mas nada recolhiam e nem sequer sabiam on-. de se encontravam. Afinal, verificaram que·· se achavam proximos do rio Turi, ruais de seiscentas leguas distante de Pernambuco, isto é, o l~;~gar de onde haviam partido. Em sua primeira viagem a essa região, La Ravardiere descobt iu-os e trouxe-os consigo para junto de seus companheiros de nacionalidade, no "Maranhão. E contam os índios, hoje, essa historia, na qualidade de testemunhas oculares e martires dos maus tratos sofridos, dizendo que, afinal, se cumpriu a promessa de j urupari porquanto se encontram agora no pais dos caraibas e dos profetas, Isso por vontade de deus, que, para o seu bem, assim o permitiu". E, segundo Yves d'Évreux 1 , que fala pela boca de um velho cacique tupinambá: · "Lembro a crueldade de jurupari para com a nossa nação, pois nos dizimou a todos e persuadiu os pagés. a conduzir-nos ao çentro de uma floresta desconhecida, onde não parámos de dansar, alimentando-nos exclusivamente do àmago das palmeiras e da caçai pelo que sucumbiam muitos de fraqueza e debilidade ... Mas, antes de passar adiante, convem explicar o que pretendeu o velho dizer, quando falou de infortunio de sua nação, provinda dos conselhos dos feiticeiros, assim como da carnificina feita pelos tupinambás. Ha~ via entre os índios um grande feiticeiro, que entretinha visíveis relações com o diabo. Gozava o referido pagé tal poder entre os selvagens que todos lhe obe1 Pi. i49-IISO. -349- deciam. Aproveitou-se, pois, o diabo do ensejo para seduzir e enganar a população, ordenando o pagé a persuadir os índios a segui-lo até uma maravilhosa região, ond~ as coisas necessarias surgiam sem necessidade de nenhum esforço ou trabalho. Essa nação, assim ludibriada, acompanhou o desgraçado, não demorando que não sofresse a zombaria do espírito do condutor: faleceram logo milhares e foram ter, afinal, ao meio de vasta floresta, aonde os arrastou o feiticeiro, que os persuadiu a dansar continuamente até que o espírito aparecesse para mostrar o lugar procurado. Achou-os ali La Ravardiere e, mostrando-lhes o engano, que reconheceram, seguiram-no os índios e embarcaram, com ele, nos navios, em destino .à ilha do Maranhão. Tempos após, um miseravel francês, tendo se desavindo com o principal dessa gente, instigou, por vingança, os tupinambás a acabar com ela. Assim foram mortos e devoraqos cerca de cem ou cento e vinte índios; os restantes teriam sido reduzidos à escravidão. Tal barbaridade foi praticada cinto ou seis meses antes da nossa chegada." As duas versões desse acontecimento põem em re:levo o consideravel papel representado pelo feiticeiro, que foi o seu promotor; sugerem tambem que a dansa, nessas tentativas, tinham então tanto valor quanto atualmente. Eco quase apagado dessas crenças encontra-se no que nos informa Castelnau1 a respeito do paraíso dos apiacás, no qual as plantas brotam expontaneamente. Pouco se sabe, infelizmente, da maloca onde as almas dos tnundurucus levam uma existencia cheia de delicias; nada autoriza a identificar a '~terra sem mal" com a 1 T. II, p. 314. -350- imagein, q~e esses indígenas fazem da maloca maravilhosa.' O mito <jo parai.so terrestre parece ter-se expandido, 1gualmente, por outros recantos da America do Sul, entre tribus não pertencentes .à família linguistica tupi-guarani. As memorias do conquistador alemão, Philipp von Hutten, 2 contêm a esse respeito minucias muito interessantes. Esse aventureiro aportara, com alguns companheiros, nas proximidades do fabuloso . reino dos omaguas, na região vizinha do 2° % de latitude norte. Os índios prisioneiros, que ele pôae interrogar, falaram-lhe das amazonas e de um país onde não se conhecia a morte. Fica-se surpreso com essa coincidencia. A crença, com efeito, na "terra-onde-não se-morre" e o mito das amazonas constituem os dois principais temas das narrativas, que os antigos viajélntes puderam obter dos tupi-guaranis. Ora, sem nenhuma duvida, naquela região não se encontrava nenhuma tribu que falasse o dialeto tupi. A legenda da Fonte da juventude, na versão americana, pertence à mesma categoria de crenças. Sabiase, por tradição espalliada entre a população aruaque de Cuba, da existencia, na Florida, de uma fonte maravilhosa, que rejuvenescia os que nela se banhavam. Esse mito parece ter sido tão popular que tribus dos taínos partiram para o continente norte-americano e es1 Tocantins, t. XL, l i parte, p. 116. 2 P. 68: ". . . gaben uns dieser Indier Anzeigung wie die86 Ryvir hinab etlich 1'ag. Reise JV eiber wohneten, 80 mit den Miinnnern gar kein gemeinschaft liaben, dann etlich Zeit im Jahr, in alle mass und gestalt, wie man von Amasonen schreibt, auch hiitt es im Bürg din ander Volk 80 nicht sterben und Immortale1 11eyn, wo ihnen diese unnaturchlich thorheit komme weils ich micht". -351- tabeleceram-se na costa da Florida.t Foi a referida legenda que, como não se ignora, determinou Juan Ponce de León a organizar sua famosa expedição, cujo resultado foi o descobrimento daquela pehinsula. As tradições concernentes à Fonte da Juventude são, infelizmente, bastante fragmentarias para que se possa identificar tal crença com a da "terra sem mal"; mas oferecem, entretanto, com esta ultima um elemento comum: entre as bonanças prometidas pelo pay aos que ingressassem na "terra sem mal" figurava, tambem, a segunda juventude.2 Os guaraius contam que os mortos, quando vão ter com os Tamol, são emersos em uma bacia, de cujo banho saem na idade de contrair matrimonio. O mesmo motivo encontra-se no mito tembé 3 e, talvez tambem, nas crenças dos chipaias. 4 Durante o primeiro seculo da colonização dos espanhois e jesuítas, numerosos profetas e messias insurgiram-se, entre os guaranis do Paraguai, com o objetivo de concitar os indígenas a permanecerem fieis a seus usos e crenças. Alguns se denominavam "os donos da morte, das mulheres e das searas". Diziam 1 Sobre a fonte da Juventude e a migração dos taínos, consultem-se: Berrara, t. I, p. 24-9; Fontaneda, citado por Loven, p. 50; Roth, p. 151; e o estudo de conjunto de Beauvoís. 2 Cardús, p. 35: " Y allí, él mismo en persona (el Tamoi), lo da un bafio en todo el cuerpo. Al contacto de la prodigiosa agua, queda el guarayo repentiMmente sano de todas las enfermidades y lisiaduras que hubieaae padecido; se le quita y pierd6 enteramente del cuerpo el tufo que se hubiese pegado del roco con los cristianos, cria una mui larga y negra caballera, y ~~ pone un jóven el mas gallardo y hermoso que pueda fígurarse". 3 Nimuendajú (2), p. 288 : "JVenn sie gealt9rt 6incl, to tterb9n ti41 nicht, ~ondern werclen wiecler jung". 4o I cl. (3) '· p. 371. -352- ainda que 11 reinavam no universo e detinham o poder de destrui-lo e recriá-lo à sua vontade". Um desses messias, que pretendia ter sido concebido por uma virgem e em virtude de graça superior, fazia crer aos 'selvagens possuir a faculdade de despertar a agressividade das· onças, desencadear as tempestades, aleijar os homens, secar os lagos e causar inundações. O mais famoso entre esses messias foi o morubixaba guarani, de nome Oberá, ao qual Barco Centehera1 dedicou um pesado e fastidioso poema. Eis o que Lozano 2 conta a respeito da tal personagem: "Como Obera era extremamente eloquente, o~ guaranis, por indole muito propensos às novidades, deramlhe, sem relutancia, credito e de bom grado ofereceram-se para segui-lo, iludidos por fagueiras promessas de liberdade. O messias sondou, secretamente, a disposição do povo de três aldeias vizinhas, encontrando-as acess1veis. E, quando lhe pareceu ser asado o momento de tirar a mascara, começou a agir à maneira de um soberano divino, embora tão temeroso que se cercou de arqueiros para a vigilancia de sua pessoa. Recebia culto e oferendas, permitindo aos índios, em retribuição, que estes vivessem de acordo com os seus modos e leis. Àqueles que lhe ofereciam perfumes, transmudava-lhe os nomes mediante determinada cerimonia. Obera dirigia-se para o Paraná, ao mesmo tempo usufruindo vergonhosos prazeres, aliás tambem permitidos aos demais indios, como, por exemplo, manter grande quantidade de concubinas com as quais se entregav.a a abominaveis dansas, ou a canticos, compostos pel~ messias em sua honra. Per1 Ps. 285-286. 2 T. I, Pl!· 212-218. -353- suádiu Obera, aos indígenas, que deveriam eles entregar-se aos mesmos exercícios se pretendiam merecer a sua confiança. Obera tornou.,.se rapidamente uma ameaça para as jovens fundações espanholas do Paraguai. De todos os lados, vinham índios para se juntarem a ele e prestar-lhe homenagens .à divindade. Ofereceu-lhe batalha Juan de Garay, à testa de 120 soldados, proximo das cabeceiras do Ipané. As hostilidades começaram pelo combate singular entre dois espanhois e dois guaranis. O resultado desse duelo _d!!sfavoreceu os indios, que tiraram disso prognosticas desalentadores. As primeiras defecções ocorreram logo em seguida. Obera foi abandonado por diversos éhefetes, que, para angariar os favores dos espanhois, não hesitaram em denunciar os seus contrarios, querendo destrui-los assim por tão comodo processo. · Nesse ínterim, Obera reentrincheirou-se num campo fortificado do Ipané e, antes do prelio, mandou matar e, em seguida, incinerar uma vaca, cuías cinzas lançou aos quatro ventos. Como o sacrifício não surtiu o desejado efeito, os índios, decepcionados pela ineficacla do rito, debandaram. E o messias, após ensaiar sem exito passes magicos, pelos quais pretendia demonstrar, tangivelmente, seu carater divino, viu-se perdido e fugiu. Os espanhois massacraram, a seu gosto, os silvícolas. A campanha termina em 1579. Guevarai, a proposito de Obera, faz referenda a um indio do rio Huibay, adorado pelos guaranis. Narra tambem o caso de certo feitiCeiro famoso, oriundo 1 Pa. 50-51. -354- do Brasil, que se estabeleceu na povoação de Santo Inacio de Guayra. Vestia roupas brancas compridas e trazia na mão um maracá feito de caveira e cascos de veado. Dansava o magico ao som desse instrumen~ to, dando saltos que demonstravam extraordinaria agi~ !idade. Prometia desencadear tempestades e raios so~ bre os que se lhe opusessem. O aguazil da povoação, não ligando .às ameaças, apoderou-se de sua pessoa e, acorrentando-o, em presença de todQ.<;, ordenou que lhe administrassem cem bastonadas. Entre os m·essias levantados contra os espanhois, figura ainda o corregedor d. Rodrigo Yaguariguay. Quando os colonos quiseram edificar a fortaleza de Tap4á, convocaram numerosos índios ·guaranis, que "acorreram conforme lhe tinha sido ordenado". "Entre os mesmos, figuravam os índios de Arecaya, que embora cristãos de nome, na realidade não passavam de perversos idolatras, incitadores dessas praticas nas fio~ restas, crime do qual se tornara culpavel, em particular, o corregedor d. Rodrigo Yaguariguay. O homem impunha-se à adoração dos indígenas, dizendo-se Deus Pai; sua mulher era a Santa Virgem. Pretendia, ainda, ser a filha sua uma Santa Maria, a pequena, procurando assim imitar, por tão infam~ temeridade, o misterio sacrossanto. Alem da abominavel ador~­ ção, adotou outros sacrilegios e diversas cerimonias imitativas dos sacramentos do matrimonio e da penitencia, - mediante determinadas formulas, celebrava, por exemplo, casamentos por sua propria autoridade .e fantasia. Finalmente, aconselhava o uso de abluções com infusão de cascas ou folhas de arvores, por meio das quais denotava quanto estavam corrompidos os seus. costumes. Tais operações indicavam bem a sua indiferença pelas coisas sagradas. Ficavam os in~ -355- dios, desse modo, persuadidos de que, sem confissão, seus pecados estavam perdoados". Yaguariguay impulsionava os selvagens .à revolta. Por esse motivo, foi preso e enforcado 1 • Fala N. del Techo de muitos fatos semelhantes ocorridos entre os guaranis, dos quais, para não me tornar monotono, citarei apenas uns poucos. Primeiramente, o de Juan Cuara, pagé originario de Guayra, já batizado. Esse pagé percorria as tabas guaranis do Paraguay excitando os indios contra os missionarios: "Vivei (dizia-lhes) segundo os antigos costumes, entre dansas e bebidas; celebrai a memoria dos vossos maiores. Não adoreis as imagens dos santos. Considerai a mim como a vossa divindade. Se não obedecerdes, farei com que vos transformeis, no Paraná, em sapos e rãs". Como os indios lhe obedecessem e lhe acompanhassem os passos, os missionarios mandaram aprisioná-lo e executar 2 • Três importantes caciques da região do Tape mataram e devoraram as crianças batizadas, atraindo à sua roda inumeros partidarios, entre os quais "certo feiticeiro que se dizia deus e afirmava, em sua voz cava, dominar os planetas e o sol". "Pretendia o cacique que, quando começasse a guerra com os neofitos, estes me~ulhariam nas trevas e os gentios seriam envoltos em luz. Outro feiticeiro, tão fanatico quanto o precedente, declarava que se converteria em tigre para fazer uma bela carnificina dos cristãos" .3 A revolta dos chiriguanos da aldeia de Masav~ em 177S, foi igualmente l,lm movimento messianico provocado por certo profeta, que se proclamou "deus". I Lozano, t. III, ps. 330-363. 2 Techo, t. III, ps. 178 e seg. 3 Techo, t. IV, p. 370. -356- Andava o profeta seguido de uma mulher, que o tal apresentava como sendo a Virgem Maria; acompanhava-o tambem determinado individuo passando por irmão do proprio Inca: este voltara a reclamar os tesouros, dos quais o haviam privado os espanhois, afim de enriquecer os fieis indígenas. O messias sublevou os indios, prometendo-lhes transformar em pedras os soldados espanhois. A esse tempo, outros messias parece que se manifestaram entre os chiriguanos. Alguns indígenas abandonaram as missões para acompanharem o profeta de Masavi, animados por aquela esperança e, tambem, em busca de escapar da destruição do mundo, que o. mago não cessava de anunciar. Apõs procurar apoderar-se das missões franciscanas, os partidarios do profeta foram, afinal, derrotados. O proprio messias, diz-se que desapareceu, ou foi . morto e queimado por outros índios. No ultimo seculo, alguns tuxauas chiriguanos, cansados de sofrer a opressão d~ certos co.Ionos perversos, reconheceram como Tunpa, isto é, deus, a um .mancebo, todavia capaz, por sua esperteza e falta de escrupulo, de fazer-se passar por uma divindade em carne e osso e arrastar os índios a uma guerra santa1 • Eis .o que o cacique Novillo me contou a respeito de Apiawaiki, o derradeiro dos messias chiriguanos, chefe da grande insurreição de 1892 : "Há muitos anos, por ocasião da guerra de Curuyuqui, um índio fez-se passar por deus. Os chiriguanos atacavam e roubavam os almocreves. Assegura-lhes o deus que os fuzis dos brancos haveriam de expelir agua ao passo que as suas 'flechas teriam o poder de exterminar os adversa·rios. Os cristãos infringiram-lhes pesada derrota 1 Nino, p. 183. -357- em Curuyuqui, local onde ainda hoje se podem ver os seus ossos". Narrou-me outro chiriguano que Apiawaiki era um i-paye, assegurando este aos avas, índios da mesma família, ser imortal. Os cristãos é que teriam de perecer e seriam expulsos do país. Seguiram-no os chiriguanos, muitos arrastado pelo temor. Nos pampas de Curuyuqui, os avas tombaram, abatidos como gado. Apiawaiki foi logo espingardeado. Os chiriguanos, como aconteceu frequentemente em sua historia, se encontravam desunidos perante o inimigo comum e foram alguns proprios contingentes desses índios que auxiliaram ds colonos a subjugar seus irmãos de raça e de lingua. Em 1799, os guaráius da Bolivia oriental foram presa de uma grande convulsão messianica. O profeta chamado Luís anunciou-lhes que "o Grande Ancestral fizera, por meiQ de bastões de compasso, revelações, mandando dizer aos índios para abjurar o cristianismo e seguir para I rapinta, aonde o Grande Ancestral os iria conduzir". Os índios abandonaram as vestimentas fornecidas pelos missionarios, encerrando-se em choças onde dansaram noite e dia, na esperança de serem transportados para o céu. Posteriormente dispersaram-se em grupos, cada qual levando consigo sua casa de dansa. Vinte anos depois, o mesmo Luís, que, entrementes, se convertera, fugiu do aldeamento missionario, em companhia de numerosos indígenas. Mais uma vez, os guaraius ergueram as choças de dansa e procuraram, por processos identicos, alcançar o Grande Ancestral. Só em 1844 foi que capitulou o messias1 • 1 Cardús, ps. 86-109. 358- No momento em que os indios do !cana sofreram violencias, por parte dos seringueiros, a ponto de julgarem ameaçada a sua civilização, reagiram eles, a exemplo daqueles índios, entregando-se a uma crise messianica. Kgch-Grünberg 1 recolheu, a esse respeito, as seguintes informações: "Há cerca de 25 anos apareceu no rio lçana um messias, que se fazia passar por novo Cristo. Houve enorme agitação entre os índios, que juravam por ele e, em grande numero, queriam segui-lo. O messias curava as molestias soprando e esfregando; quando entrava nas aldeias era acompanhado de muita pompa. Dizia ainda aos fieis que não havia mais necessidade de trabalhar nos roçados, que todas as plantas cresceriam por si proprias. Só se fazia preciso uma condição - que ele abençoasse os campos". Esse feiticeiro foi aprisionado pelas autoridades brasileiras; ainda hoje vive, gozando de duvidosa reputação. A proposito de tal acontecimento, Koch-Grünberg cita outros exemplos de fenomenos da mesma ordem. Nos meados do seculo passado, certo índio do alto rio Negro "teve a habilidade de fazer crer que era um segundo Cristo e o enviado do Criador. Embora maltratasse muito os discipulos, conseguia conservá-los juntos de si à custa das dansas selvagens, âos excessos de bebidas e dos deboches a que todos se entregavam". O entusiasmo religioso afigurou-se subversivo, para a~ autoridades brasileiras, que abafaram o movimento com cruel energia. Em 1857, outro indígena fez-se passar por profeta e reproduziram-se as mesmas cenas anteriores. Os índios, abandonando o tra1 T. I, ps. 39-41. -359- balho, entregaram-se a uma vida ociosa. A região do Caiari-Urupés conheceu, tambem, o,.seu messias. Em 1880, um mago da tribu dos arapasós pretendeu que vivia em comunicação com os espiritos; dizia ser o deus dos cristãos na terra e o pai dos missionarios por ele enviado. Fanatizados, os aborigenes segujam-no às cegas. Infelizmente, para si proprio, pretendeu tambem expulsar da região as populações brancas e, por isso, sofreu pronto castigo. Koch-Grünberg observa, com razão, que se trata de uma velha legenda indigena, mesclada com alguns elementos cristãos puramente exteriores. Supõe que o feiticeiro, provocador do despertar das antigas crenças, é considerado a reincarnação do heroi-civilizador da tribu. Esse ponto de vista parece-me conforme aos fatos. Já tive ocasião de mostrar, a proposito dos tupis, a profunda similitude, que as ações sobrenaturais do pagé apresentam com os fatos e as gestas atribuidas às personagens legendarias. Um dos fatos mais interessantes do movimento messianico é a sua forma, que se reveste de aspectos semelhantes em todas as tribus, mesmo distantes entre si, ou mesmo quando os fatos ocorrem em epocas das mais diversas. Basta lembrar, por exemplo, o caso dos Acawai e dos caraibas da Guiana Inglesa, do quaJ nos'"fala W. H. Bretfl. Por volta de 1845, certo indigena, que pretendia ser o senhor deus, dirigiu-se, seguido de seus fieis, para os sertões e estabeleceu-se no curso superior do Cuyuni, importante afluente• do Essequibo. De lá, enviou missionarios .às populações de todas as missões vizinhas, com o objetivo de incitar os silvicolas a aban1 Ps. 222-223. donar as ocas e. previsões, juntando-se ao pagé. Prometia-lhes campos que produziriam enormes colheitas de mandioca de uma só plantação e "outros absurdos proprios a lisongear a sua indolencia". Essas profecias e a ameaça de horríveis flagelos, suspensos sobre a cabeça dos índios rebeldes, tiveram profunda influencia e atraíram muitos para a côrte dos messias. O movimento em questão começou entre os Acawai do Essequibo que, como se verificou, procuraram, antes de iniciar a empresa, angariar armas de fogo. Pretendiam os índios aliciar-se aos caraibas. Centenas de indígenas de diversas tribus acorreram de todos os recantos para ver o "deus". Numerosos, no curso da rota, pereceram de doenças e outros tantos alcançaram o termino de sua peregrinação exaustos de recursos. Apenas um dos catecumenos aderiu ao movimento, mas incontaveis foram os pagãos a atender ao apelo. Algumas aldeias, localizadas em regiões das mais longínquas, foram totalmente abandonadas. As populações de certas tabas, entretanto, apenas chegaram a meio caminho, retornando, então, famintas e abatidas pela vergonha. O numero dos caraibas participantes da crise foi bastante diminuto em relação aos Acawai e ao tamo dos Waika, que abandonaram suas redes, por bastante tempo, nas margens do Barima e do Barama. · Kobise, o catecumeno caraiba que, após ter sido seduzido pelo chamado messias, voltara ao Waramuri, contou minucias do ocorrido: "Andámos o mais rapidamente possível durante treze dias e, finalmente, atingimos uma savana onde se achavam reunidos uns poucos Acawai e outros aborígenes. Possuíam os índios excassa quantidade de alimentos e, por causa do numero demasiado de arqueiros, a caça afugentara-se. -361 - Conduziram-nos a uma chocinha, na qual ouvimos uma voz qu~ nos aconselhou -voltar à procura dos companheiros, pois fogo imenso e diluvio assolariam, em breve, toda a terra, exceção apenas do local onde nos encontravamos". Acrescentou o catecumeno que o impostor não apareceu, permanecendo oculto de todos. As profecias eram feitas à noite. Sua voz parecia ser a de um branco. Ao seu derredor, só se viam pessoas dansando e bebendo. Tomando o pouco da caçava, que os ditos índios tinham transformado em bebida fermentada. Tudo isso lhe pareceu, então, não passar de um artifício de Yourika, o mau espírito, pelo que fugiu, nessa mesma noite, retornando à sua missão. Disseram-lhe os Acawdi que, se o chefe do posto, ou qualquer -outro colono branco, tiv~sse a ousadia de visitar o ,messias e imiscuir-se em seus negocios, poderia fazê-lo, mas, de certo, não retornaria ao lar com vida. De Brette declara ignorar como terminou a crise. Os casos de movimentos messianicos, entre os indígenas americanos, é bem possível que tivessem sido muito numerosos. Mencionarei ainda a revolta dds campas do Peru oriental, ocorrida no seculo XVIII, por instigação de Santos Atahuallpa. As promessas feitas por essa personagem são da mesma natureza das dos demais profetas guaranis, etc. Os movimentos messianicos representam, pois, um fenomeno particular de _aculturação. Ocorrem no momento critico em que determinada população se sente incapaz de suster a ruína ameaçadora e angustiante. A revolta messianica é, sem duvida, a mais perigosa e irrazoavel solução, que um povo pode adotar quando as vicissitudes historicas o forçam a essa alternativa. A outra seria resignar-se à mudança, procurando conservar a tradição daquilo que fosse mais viavel e ~ 362- fecundo. As manifestações messianicas são ora formas brutais de· repulsa, ora um exemplo de desvario diante da realidade dos fatos, ou, ainda, evasões fu-· teis no campo dos sonhos e do misticismo. Lembremo-nos que semelhantes fenomenos não sobrevêm apenfis às sociedades primitivas, mas tambem ocorrem entre os povos civilizados. Que o exemplo dos tupinambás seja uma lição .àqueles que se, recusam a enfrentar o realismo das coisas. -363- NOTAS AO CAPITULO XVI (EsTE\'ÃO Pn<ro) (a) O trecho de Nobrega vai publicado segundo o original português. ( b) Talvez a cabaça, de que fala Nobrega, possivelmente seja o proprio maracá. Cf. nota i do cap. VII. O padre Pero Correia, em carta de 1551, jnfôrma que os índios faziam "umas cabaças a maneira de cabeças, com cabelos, olhos, narizes e boca com muitas penas de cores que lhes apegam com cera composta à maneira de lavares e dizem que aquele santo tem virtude para lhes poder valer e diligenciar em tudo, e dizem que fala, e à honra disto inventam muitos cantares" (Carta11 Avulsas, ps. 97-98). (c) O trecho d~ Nobrega, citado por Métraux, é de 1549; a Informação do Brasil, como já se sabe, da autoria de Anchieta, reponta a 1584. As datas, pois, não são tão distantes entre si. O trecho de Anchieta foi transcrito de acordo com o original português. ( d) A frase de Cardim vai transcrita de acordo com o original português. (e) Jaguar, na lingua tupi. Cf. Abbeville, cit., p. 24.7. E' a estrela da tarde, a vesper. (f) Icobé catu, saude, bem estar. Cf. Plinio Ayrosa; "Vo· cabul'ario", de frei À.rronches, cit., p. 284. (g) A frase de Vasconcelos vai citada de acordo com o original português. -364- (h) A identidade entre os pagés e os ancestrais míticos já foi tambem estudada por Métraux em sua excelente monografia "Les hommes-dieux chez les Chiriguano et dans I' Amérique du Sud", em Rev. del Inst. de Etn. de la Univ. Nac. de Tuc., 11, Tucumán, 1931. Cf. tambem Messiahs of South America e A Quechua Messiah in eastern Peru, cits. Idem tambem Os Indios do Nordeste, cit.,- li, ps. 297 sq. A visão de um mundo ideal, conforme já tivemos ocasião de obser• var nota a ao cap. VII, consistia na ultima e na mais excelsa das características do homem-deus. As migrações, provocadas pelo homem-deus eram legitimas psicoses gregarias, ou histerias coletivas, a que \Vahl dá o n~me de "delírios arcaicos", tão frequentes nas populações inculf'às. Artur Ramos, citado, inclue na serie dos delirios arcaicos as manifestações místicas de Canudos, çlo Contestado e do J oazeiro (O negro brasileiro, cit., ps. 183-184). A hecatombe de Pedra Bonita, ocorrida em Pernambuco ( 1838), pertence tambem à mesma serie. A migração dos g"Qaranis remonta a 1522; foi estudada por Nordenskiiild, "The Guarani invasion of the Inca empire in the sixteenth century: an historical indian migration", em The Geographical Review, Nova York, 1917. A dos tupis, cujos trezentos restantes - eram doze mil a principio - foram ter a Chachapoyas (1539-1549), foi conduzida por um suposto português de nome Mateus. De 1530 a 1612, aproximadamente, realizou-~e a migração dos tupinambás, narrada por Acufia ( cit. por l'!létrau~. E' dos fins do sec. XVII a dos jurimaguas,. que foram parar no Huallaga; idem a dos omaguas. Os tapirapés tambem emigraram, !llas um pouco antes, no sec. XVI. São ainda conhecidos os exodos dos canoeiros, dos parintintins e dos cauaibas. O episodio, ao qual se refere Abbeville, quando conta a historia de "um feiticeiro português", que arrastou de dez a doze mil índios, de Pernambuco até a serra de Ibiapaba, está hoje esclarecido. Trata-se de viagem do jesuíta Francisco Pinto. -365- Rodolfo Garcia, em nota· à edição da Historia Geral de Porto Seguro, 11, ps. 121-122, já chamo\]. a atenção para o engano do frade francês, que confunde a expedição de Francisco Pinto-Luís Figueira com a de Pero Coelho de Sousa. Figueira, na carta de 26 de março de 1609, publicada pelo Barão de Studart em Documentos para a historia do Brasil e especialmente do Ceará, I, ps. 1-42, descreve a marcha. do jesuíta, desde J aguaribe através da serra dos Corvos (Uburetama) até a serra de Ibiapaba, onde foi trucidado pelos tocarijus. Todavia, a sua qualidade de mago é atestada pelo apelido que lhe davam os índios, Amarutyara, .isto é, o senhor das chuvas. Não é exato, entretanto, que se transportasse sobre duas espadas, ou em tipoias ou redes, como pretende Porto Seguro, mas à maneira dos missionarios primitivos, como um peregrino, "de bordão, breviario sob o braço e cabaço de agua às costas". Cf. Serafim Leite, Hist. da Comp., cit.,. 111, ps. 4 e seg. O numero dos índios - dez a doze mil - tambem não "! exato. Mas, muitos índios, na epoca do padre Figueira, deixa· ram Pernambuco ou outras zonas e rumaram para a reg1a1J amazonica, em busca do paraíso terreal, tradição que foi ainda encontrada. por Heriarte entre l)S tupinambaranas, ib., p. 225. 366- APENDICES Mitos dos tupinambás Transmitidos oralmente a Thevet pelo rei Quoniambec e por outros velhos índios, por ocasião de suas viagens ao Rio de janeiro, em 1550 e em 1555. Extraídos da Cosmografia Universal\ fols. 913 a 920 v. Je vous deduiray chose que jamais homme du monde n'a mis par escrit, et ce suyvant le récit qu'ils m'en ont faict, conversant avec eux familierement; sçavoir est, de leur croyance, toucnant )'origine des choses, et la venue de leurs Prophetes, qu'ils appelent Caraibes et Pageez, .à fin que ceux qui ont fréquenté familierement cest abstracteur de secrets, et qui a esté Caraibe en leur terre, ayant de quoy philosopher sur ce qu'ils ont ouy dire à leurs peres et ancestres ( atI No manuscrito inedito de Thevet (cf. a Bibliografia), esses mitos foram reproduzidos com algumas variantes, que são importantes, pois eJ.as retificam os erros de impressão cometidos pelo editor da Cosmografia Universal. Essas variantes comple" tam igualmente certas passagem~ e, por isso, são indicadas em nota. Obs. do tradutor. - Confira-se o prefacio, onde explico porque deixei de traduzir as transcrições de Thevet, publicadas em apendice. A~ notas são de Métraux. -367- tendu qu'ils n'ont rien par escrit que de pere en fils) des façons de la superstition de ces pauvres gens. La premiêre cognoissance dane que ces Sauvages ont de ce qui surpasse la terre, et d'un qu'ils apellent Monan, auquel ils attribuent les mêmes perfections que naus faisons à Dieu, le disans estre sans fin et commence.., ment, estans de tout temps, et leque! a créé le Ciel, la terre, et les oyseaux et animaux qui sont en eux, sans toutefois faire mention de la mer, ne d' Aman Atouppaue1, qui sont les nuees d'eau en leur Iangue, disans que la mer a esté faite par un inconvenient advenu en terre, qui auparavant estoit unie et platte, sans montaigne quelconque, produisant toutes choses pour l'usage des hommes. Or la cause pour laquelle la mer 2 fut faite, ils vaus la deduisent en ceste sorte. Comme ainsi soit que les hommes vesquissent .à leur plaisir, jouissant de ce que produisoit la terre, aidee de la rousee du ciel, advint qu'ils s'oubliereHt en leurs façons de faire, vivans desordonnemen t. Ils tombêrent en telle et si grande .folie, qu'ils commencerent à mépriser Monan, leque) pour lors ils disent, que demeuroit parmy eux, et y frequentoit fort familierement. Monan voyant l'ingratitude des hommes, leur meschanceté, et le mepris qu'ils faisoient de Iuy, qui les avoit ainsi bien heurez, se retira d'eux: puis feit descendre Tatta, qui cst le feu du ciel, leque! brusla et consomma tout ce qui estoit sur la face de la terre: et y besongna ce feu de telle sorte, qu'il baissa la terre d'un costé, et la haulsa d:un autre, de telle maniere qu'elle fut redigee en la forme que las voyons, sçavoir en vallons, collines et montaignes, et en la largeur estendue de quelque belle campaigne. Or de tous les hommes n'en y eut I Variante, foi. 41 v.: Aman Atouppane. 2 Variante, foi. 41 v.: qu'ils appellent Paranan Vari. -368- de sauvé qu'un, leque} se nommoit lrin-Magé, Jequel Monan avoit ·transporté au Ciel, ou autre lieu, à fin qu'il evitast la fureur de ce feu tout consommant. Cest Irin magé voyant le tout ainsi destruit, s'adressa à Monan, luy disant ainsi avec !armes et soupirs, Veux-tu aussi destruire les Cieux et leur ornement? Hé, et ou ser a desormais nostre demeure? de quoy me servira de vivre, n'ayant aucun qui me soit semblable? Monan à ces mots fut tant esmeu de compassion: que voulant remedier au mal qu'il avoit fait à terre, .à cause des peschez des hommes, i! feit plouvoir en telle abandance sur la terre, que tout le feu fut estaint, et ne pouvan_s les eaues s'en retourner en hault, furent contraintes de s'arrester, et prendre cours par les lieux les plus courans de la terre, et y furent assemblees de tous costez : dont cest amas d'eau fut appelé par eux Paranan, qui signifie ahlertume, ce que nous disons la mer.. Et à fin que vous coignoissiez, que ces sauvages ne sont pas du tout si bestes, que nature ne leur donne quelque raison pour les discours des causes naturelles, lls disent, t]ue la mer est ainsi amere et salee, comme nous la goustons, pource que la terre estant redigee en cendre, par la combustion qu'en avoit fait le feu envoyé par Monan, causa ce mauvais goust en ce grand amas de Paranan et la mer courant alentour de la terre. . . Mais revenons .à nostre propos. Monan voyant que la terre estoit remise en sa premiere beauté, et que la mer embellissoit la face d'icelle, l'entourant de toutes parts, luy semblant c&ose incommode, que tout ce beau ornement demourast sans quelcun qui en fust le cultivateur, appela à soy Irin-magé, auquel il donna une femme, à fin qu'il repeuplast le monde d'hommes meilleurs, que n'avoient esté ceux qui avoient está les premiers habitateurs de la terre. De cest lrin-magé tien- -369- nent-ils estoient venuz tous les hommes, qui estoient avant !e grand deluge d'eau, qu'jls disent estre advenu en leur terre, et duque! je parleray poursuivant ce discours. De cest Irih-magé disoient-ils, que sortit un grand Caraibe, qu'ils tiennent pour leur Prophete, tout ainsi que les Turcs leu r Mahomet: et .à cau·se des reuvres merveilleuses qu'il fa)soit, Iuy imposerent !e nom de Mairé-monan, duque! nom i! faut que je vaus donne l'interpretation. Donc ce mot Maire, en langue sauvage, signifie autant ·que transformateur: d' ~utant que cestuy cy estoit fort adextre à transformer aucunes choses en d'autres, et Monan signifie autant que vieil ét ancien. Toutefois à l'endroit de ce grand Caraibe, i! emporte autant que immortel, veu que !e grand Monan, qui fit descendre !e feu. sur terre, est sans commencement et sans fin: et c'est luy, ainsi qu'ils disent, · qui orclonne toutes choses selon son bon plaisir, les formant en plusieurs manieres, et puis les convertissant et changeant en diverses .figures : et formes de bestes, oyseaux, poissons, et serpens, selon leur pais et habitation, changeant l'homme en beste, pour !e punir de meschanceté, comme bon luy semble. Mais ce Caraibe Maire-monan estant familier du grand Monan, usoit de ses transfornrations, desquelles je parleray au chapitre suyvant, .à fin que je ne confonde leurs histoires, desquelles j'ay esté fait certain par ceux du pais. Or disent-ils, que pour l'esgard de ce second Monan, qui estoit admirable entre les hommes, deja fort multipliez sur la terre, ceux qui faisoient quelque chose de plus grand et merveilleux que les autres, estoient appelez infifferemment Mair.e, comme heritiers et successeurs de Maire-Monan... Et a esté ce mot Maire, usurpé jusques à leur deluge, qu'ils disent avoir esté universel, sur ceux qui estoient rares en reuvres : de sorte que encor voyans que nous sçavons faire plus -370- de choses qu'eux, et que nos exercices leur apparoissent admirables, ils 1 disent que nous sommes les successeurs et vrays enfans de Maire-Monan et que sa vraye race s'est tournee en noz terres, là ou ils en sont privez, .à cause du deluge, et pource qu'ils furent meschans à l'endroit de ce second Maire-monan, lequel tomba en telle haine et indignation de tout le peuple, à cause que ( soit par Negromance ou autrement) il leur faisoit apparoistre qu'ils estoient transmuez en nouvelles formes, qu'ils delibererent de le faire mourir. Mais le voyant si accort ils se doutoient qu'il s'en apperceust, estimans que toutes choses, tant passees, presentes que .à venir, luy fussent aussi bien cogneues que au grand Monan, et qu'il ne les changeast tous en diverses formes de bestes. A la fin, ne pouvans plus souffrir sa vie, ils !e deceurent en ce qu'il se flattoit luy mesme. Car comme i! ftlst Pagé, il ne cerchoit rien mieux, que d'estre honoré du peuple comme un Dieu. Car un jour ils le vindrent convier en un village, qu'ils appellent en leur baragouin Deteptan, pour luy faire Jtauonguez qui signifie l'honneur, reverence, et presens qu' on doit offrir aux prophetes, et saincts Caraibes, à fin d'obtenir d'eux ce qui est necessaire pour soutenir leur vie. A quoy i! ne se feit pas trop prier, quoy qu'il cogneust la haine que le peuple luy portoit : toutefois il estimoit tant de soy, et de la crainte que le commun avoit de sa puissance, qu'il alia avec eux 1 Variante, foi. 43: Et ainsi nous loüoit, et presehoit estans dans son lit couché le grand Roy Quoniambec, leque! à ouyr discourir avec sa grosse voix, sembloit que sa vraye race de Luy, et de ses peres estoit toumée en noz terres, là ou ils en sont privés à cause du Deluge. 2 Variante, foi. 43: ltauougane. -371- sans compagnie aucune des siens. Dés qu'il est parmy ses ennemys, on luy disant, qu'il luy falloit passer par dessus ces trois taz tous allumez, et que s'il passoit sans brusleure, ils croiroient qu'il seroit le grand Caraibe souverain Luy voyant que c'estoit un faire le sault, et qu'il n'y avoit moyen quelconque des sortir des mains de ce peuple furieux, s'accorda à leur requeste, et se lançans sur le premier taz, passa sans sentir mal ou brusleure quelconque. Ce qui luy donnoit deja quelque esperance, et grand estonnement au peuple assistant. Mais il s'esvanouyt si tost qu'il fut sur le second buschier : ou il n'eut pas si tost mist le pied, qu'il fut tout en feu et flamme, et fut bruslé et consommé tout soudain. Ils disent toutefois que cela ne se feit sans miracie. Car Ia teste Iuy fendit, avec une si grand impetuosité et cbruit si hideux, que le son monta jusques au Ciel, et .à Toupan, et de là disent, que s'engendrent les tonnerres dés le commencement, et que l'esclair qui précêde I'esclat du tonerre, n'est que Ia signification du feu, par leque! ce Maire fut consommé. Pour la mort duque! s'ensuyvit quelque temps apres Ia ruyne de Ia terre ainsi que maintenant je vous conteray. . . Le deluge donc que ces barbares chantent, et duque! m'ont souventefois parlé, à leu r advis et opinion a- esté universel et general, disans que Sommay, grand Pagé, et Caraibe, descendu de la race d'iceluy que les Sauvages firent brusler, eut deux enfans, l'un nom1né Tamendonare, et l'autre Aricottlet, lesquels estoient de diverses complexions et nature, et par ainsi se hayoient à mort I'un l'autre. Oyez comme ces bonnes gens en Ieurs comptes approchent de I'Histoire de !'Escriture. Tamendonare ( disent-ils) I Variante, foi. 44: Aricoute. -372 estoit un grand mesnager, et bon pere de famille, ayant femme et enfans, et se plaisant .à cultiver la terre : Ariconte au contraíre ne se soucioit de tout cela, seulement estoit ententif à la guerre, ne desirant qu'à subjuguer par sa puissance toutes les nations voisines, et mesmement son frere. Or .advint un jour, que ce guerrier revenant d'une bataille, apporta le bras d'un sien ennemy .à son frere Tamendonare, en luy disant avec grande fierté et arrogance, Va craintif que tu es, j'auray ta femme et tes enfans en ma puissance, car tu n'es point assez fort pour te deffendre. Le bon bomme mesnager, oyant ainsi parler son frere, fut fort marry de son orgueil : Et pource luy dit-il : si tu estois si vaillant, que tu dis, tu eusses apporte ton ennemy tout entier. Ariconte indigné de ce reproche, jetta le dit bras contre la porte de la maison de son frere : mais à l'instant mesme, tout le village ou ils estoient fut eslevé au Ciel, et ils demeurerent bas en terre. Tamendonare voyant cecy, soit d'estonnement ou de dépit, frappa si rudement la terre, que de là sourdit une grande source d'eau, si hault, que en peu de temps elle atteignoit par dessus les collines et costaux, et sembloit surpasser la haulteur des nues, et laqueUe persevera jusques .à ce que Ia terre en fust couverte. Ce que voyans les deux freres, et soigneux de se sauver, monterent sur des montaignes les plus haultes de tout le pa'is: Et taschoient se sauver contremont les arbres avec leurs femmes. Ce qu'ils feirent aussi, sçavoir est Tamendonare monta sur un arbre, nommé Pindona . .. y tirant avec Iuy I' une de ses femmes: et Ariconte monta avec sa femme sur un autre arbre, nommé Oenipar, à fin qu'ils veissent si Ies eaues s'abaissoient. Estans sur lesdits arbres, Ariconte donna du fruict d'iceluy à sa femme, luy disant, Romps de ce fruict, et en laisse choir en bas. Ce qu'elle -373- ayant faict, ils cogneurent qu'il n'estoit point temps de descendre aux vallees, et que les eaues estoient encor fort haultes. Ils tiennent que par ceste inondation tous les hommes et tous les ahimaux furent noyez, sauf les deux freres et leurs femmes, desquels sortirerit deux divers peuples apres le deluge, nommez Tonassif.arres, surnommez Toupinambaux, et les Tonaiatz Hoyanans, surnommez Tominousl, lesquels sont en discorde et guerre perpetuelle : tellement que les Toupinambaux se voulans glorifier, et se dire plus excellens •que leurs compaignons et voisins, ils disent, Nous sommes descenduz de Tamendonare2 , et tu es yssu d' Ariconte: comme si par là ils vouloient inferer que Tamendonare estoit plus homme de bien qu' Ariconte. Mais la cause de te! advantage, je ne l'ay peu sçavoir d'eux, et ne le sçeurent onc dire, veu que l'un iut aussi bon que l'autre, en addressant ceux qui sont descenduz de leur race, lesquels sont tous sanguinaires, et gens qui mangent la chair humaine. lnstitution du grand Caraibe, et des transformations faictes par leurs Prophetes. Chap. V. Je vous ay desja dit, d'ou ces Sauvages estiment que l'eau de la mer a pris son origine, qu'elle est la cause des esclairs et des Tonnerres: 11 ne ser a point aussi inconvenient de vous amener leur opinioQ touchant le feu. lls disent que Monan avoit reservé le feu entre les espaules d'une beste assez grande et lourde qu'ils nomment AJP, et leque! les deux freres en tire1 Variante, foi. 44: Tornais. 2 Variante, foi. 44: Taman-donare. 3 Variante, foi. 45: .tl.pht. -374- rent apres !e deluge, et disent, que encor cest animal en porte Ies marques : Parce que, à dire Ia verité, si vaus contempliez ceste beste de loing, comme j'ay fait quelquefois, Iorsqu'ils me Ia monstroient para une certaine curiosité, vaus jugeriez ( tant sa couleur est vive vers Ies espaules) qu'elle est toute en feu, et de pres on jugeroit qu'elle a esté bruslée au dit endroit : et n'apparoist ceste marque sinon aux masles. Encare de present Ies Sauvages appellent ceste impression de feu en !adite beste Tatta-ou Pap 1, c'est-à-dire, F eu et Foyer ... leque! (peuple) tient comme chose asseuree et veritable que depuis le dit deluge advenu, ne sont passees que cinq ou six générations, et disent tous, tant grands que petits, qu'ils le tiennent de Ieurs peres. . . Leu r estant si fresche la memoire ( comme ils disent) de ce deluge, fault penser, qu'il ne gastast plus de sept à huict cens Iieues de pais, à sçavoir depuis Ia riviere de Plate, jusques au Promontoire des Canibales2; vers que ceux du Cap ou Promontoire de Frie, se disent estre venuz de la race des Caraibes, peuple qui est parmy Ies Canibales. Ce Maire et grand Caraibe, duquel j'ai parlé cy-devant, estoit homme fort solitaire, viv:ant ·de peu, et faisans grande abstinence: non que pour cela Iuy ou ceux qui le hantoien t, suyvissent quelque exercice de religion, fors qu'ils se monstroient Angatouren, sçavoir bons et debonnaires et gracieux à toutes personnes, sans que sa grande familiarité causast aucun prejudice à son prochain. Bien est vray, qu'il menoit toujours avec luy • 1 Variante, foi. 45 v.: Tataoupaph (lugar do fogo). 2 Variante, foi. 45 v.: dit de saint Augustin, ou il peut avoir autant de lieues, qui est terre de Brésil, et ou se trouve ce bois, et non plus haut, ne plus bas. -375 ·- bonne compagnie, et menu peuple, qui le suyvoit pour opinion de sa saincteté de vie, et .à cause que ce Caraibe disoit bien ce qu'il pretendoit leur persuader, à la maniere que faisoit le peuple de la barbarie le temps que le Cherif preschoit contre les erreurs de Mahomet, combien que luy mesme fust Mahometan. Or ce dequoy le Caraibe leur parloit c'estoit non de la consideration de la vie eternelle, en laquelle il estoit aussi peu instruict que ceux qui !e suyvoient, ains seulement leur apprenoit Ia grandeur du Ciel, ainsi qu'il la pouvoit comprendre, lé cours de la Lunel, et du Soleil2 : et ce fut le premier qui leur apprint les Cherippy couares3, c'est-.à-dire, les ames estres immortelles, sans passer plus outre en l'estat auquel elles sont, estans sortis de leur corps. Leur apprint en oultre, quels fruicts, arbres, et plantes estoient bons ou mauvais, venimeux ou salutaires : en quoy ils ont fait si bon profit, qu'ils n'ont affaire de Chirurgien, Medecin ou Apoticaire, pour les ayder .à guerir leurs playes ou maladies. Leur monstra aussi l'usage de ce qui est profitable, et comme il se falloit gouverner, leur defendant certaines bestes, comme nuisibles à leur santé, si comme sont bestes pesantes et Iourdes à la course: pource ( disoit-~1) que cela les rendroit pesans et endormis, soit pour courir .à la chasse, ou aller à la guerre contre son ennemy: autant leur en disoit des poissons, qui ne sont legiers et prompts à la neige soit en mer, ou és riviere, d'eau doulce. De luy· ils apprindrent aussi à ne porter aucun poil sur eux, que celuy de la teste. . . C'est de l'institution ce grand • 1 Variante, fol. 46: qu'ils nomment Jassi, tata ouassou. 2 Variante, fol. 46: qu'ils appellent Courassi. 3 Variante, foi. 46: Cheripiconnres. -376- Caraibe, qu'ils usent de éertaine ceremonie envers les enfans nouveaux-nez, â fin qu'ils deviennent bons et vaillans au fait de guerre . . . . . • ,• ............ . .·.................. . .......... . Poursuyte des peuple. Chap. VI. transformation~ et croyan~e de ce . . . . . . Et premierement nous paria il (Ie vieillard informateur de Thevet) de la maniere, comme Ia racine, de laquelle ils font la farine, Jeur estoit esloignee. 11 fut un temps ( disoit-il) qu'il y eut une grande famine en ceste terre, si que les habitans mouroient presque tous de faim, et entre autres estoit une pauvre femme, chargée d'enfans, Jaquelle les envoyant aux champs, pour y trouver quelques herbes pour Jeur vivre, il se présenta a eux un autre enfant, qu'ils ne cognoissoient point, et pensans qu'il fust là venu pour Jes devancer à cueillir ce qu'ils cerchoient, se meirent à ruer sur luy, et le battre à bon escient: mais ainsi qu'ils le battoient, ils faisoient plouvoir sur eux des racines, qu'ils appellent Yetic, qui sont comme nos raves, et du mil, qu'ils nomment Avaty, et des legumes qui sont comme poids et febves, qu'ils appellent Comendrà: et voyant qu'ils cessoient de !e frapper, com me estonnez de chose si miraculeuse, Jes incitoit à frapper encore, .à fin qu'ils en eussent davantaige. Au reste, leur défendit de n'en parler à personne, non à Ieur mere propre; .à fin (disoit-il) que tout le monde s'esbahisse de vous voir si gras et en bon poinct. En cecy ils Iuy obeyrent. Mais la mere curieuse de sçavoir, ou ses enfans trouvoient tant de vivres, et par quel moyen ils se tenoient si bien en chair, les suyvit,, et advisa tout le mystere de Ia batterie et ses fils estans ~ 377- saouls, elle alia reeueillir ee qu'ils avoient laissé, et !e sema et planta: si que de la en avant, jamais ils ne sentirent default de vivres en toute eeste eontrée: et dit que sçavoit esté Maire-monan, qui s'estoit ehangé et mué en enfant, pour soulager par son enseignement la neeessité de son peuple. Ceste histoire de leur Theologie, qui est eouehee, non en eserit, mais en la simple mémoire de ehaeun, est bonne pour leur eontentement. Au reste ils disent qu'un pere de famille avoit en sa maisàn un familier du grand Monan, leque! se nommoit Maire Poehy, leque! il tenoit eomme son serviteur et esclave. Ce Poehy, quoy qu'il fust laid et desfiguré, estoit de grand profit en toutes ehoses pour son maistre, d' autant que fust à la ehasse, ou à la peseherie, i1 ne s'en venoit jamais sans aporter quelque ehose; ear il sçavoit les seerets de Monan, et estoit grand Caraibe, quoy qu'on ne eongneust point sa suffisanee, grand pouvoir et exeellenee. Ce Maire Poehy venant un jour de la peseherie, apporta eertain poisson, duque! la Quoniatlze, sçavoir la filie de son Seigneur, luy demanda quelque peu pour s'en repaistre; ee qu'il luy aeeorda. Mais des qu'elle en eut mangé, elle se sentit grosse de Cognomimery, qui est d'enfant: laquelle sans temps limité, et sans attendre le terme prefix aux autres femmes, enfanta un fort bel enfant. Tous lcs parents de la filie furent estonnez d'un te! aeeident, et sur tout la mere, qui en avoit esté tressoigneuse gardienne; laquelle s'enquerant qui ee avoit fait, luy fut respondu par la filie, que jamais homme ne l'avoit attouehee. Ce nonobstant feit on venir tous les hommes du village, portans ehaeun son are et ses flesehes, pour les présenter .à l'enfant, et voir de qui il prendroit les flesehes et !'are, s'asseurans que eelui là seroit son -378- pere, ainsi qu'ils avoient esté enseigné par les anciens Caraibes. Mais l'enfant refusa de prendre l'arc de quelque ce fust des assistans. La mere à la fin conseilla, que Maire Pochy vint, et portast son are .à l'enfant, lequel ne l'eut pas si tost presenté, que le· petit enfant le receut, e-t print de sa main. Ce fut l.à, que chacun se prist à grommeller contre Pochy, quoy qu'il s'en souciast gueres, qui se faisoit bien fort de chevir de tous, s'ils vouloient luy nuyre: mais tout le monde s'en alla, et laisserent la mere avec son enfant. Cest enfant devint incontinent grand, pource qu'il croissoit plus en un jour, que les autres en demy an. Au reste, le lieu ou se tenoit ce Maire, abondoit en toutes choses, et ou les autres habitoient, estoit sterille, et sans nul fruict, tellement que les pauvres gens mouroient de male faim. Ce que sçachant bien Pochy, dist .à ceste femme, Va et pren ton enfant sans pere, et va veoir tes parens et leur porte des vivres de ce lieu, à fin qu'ils en soient rassasiez, et leur dy qu'ils nous viennent _icy voir quelque jour. La femme s'en y va, et porte du mil sauvage, et certaines racines semblables à nos naveaux, qui sont fort nutritives, menant son fils avec elle: et ayant présenté de ses biens .à sa mere, la pria qu'il luy pleust, et à son pere, freres et parents, s'en venir les veoir, pour se recreer en lettrs bienl;i et maison. Ce qu'ils luy accordérent assez facilement, plus pour la nécessité qu'ils souffroient de vivres, que d' amitié qu'ils eussent .au Pochy, ou à leu r filie: ce que Pochy sçavoit bien, et s'en sceut aussi fort bien venger. Arrivez qu'ils sont au Palais rustique de Maire-Pochy sur le chemin pres la maison y avoit plusieurs beaux jardinages, pleins de Febves, Citrouilles, Naveaux, Manihot, tous fruits différents toutefois .à ceux de par deça. Les parents de la filie, soit qu'ils fussent affamez, ou que la beauté -379- du lieu les y conviast, ne se peurent tenir d'y mettre la main, quoy que leur parenté leur dissuadast de ce faire, sçachant bien que le Pochy, offencé de cela, leur feroit mauvais visage: mais les bonnes gens passerent outre, et en mangerent: et tout aussi tost furent chang~z en pourceaux et oyseaux, qu'ils appelent Marganan-tressatá qui sont espece de Perroquetz, et autres: si qu'il ne resta que Ie pere et la mere de !adite filie, et quelque petit nombre des siens, qui ne passassent par la rigueur de ceste estrange metamorphose. Les pere et mere furent estonnez oustre mesure, et voyoient bien Ia fa\llte qu'ils avoient commise, se fians à celuy qu'ils hayssoient, et qui ne leur estoit guere bien affectionné; coignoissans aussi qu'il n'y avo ir ordre de s'en retourner, estoient merveilleusement en peine. Ce pendant Maire Pochy sort, et ayant repris son beaupere, Iuy dist, que sa ..filie luy apporteroit de l'eau en un vaze, de laquelle estailt Javé, ne debvoit craindre ces transformations. Mais le pauvre homme ne se fiant point en ses parolles, s'en alia Javer en une fontaine !à voisine, et tout incontinent il devint Crocodille, ou serpent d'eau, qu'ils appellent Jacare: et de telles especes j'en ay veu en ces pai's l.à, aussi bien qu'en Egypte. Sa femme voulut faire !e semblable, et fut convertie en Tortue d'eau doulce, qu'ils nomment /cara. Le reste de ses parents qui estoient entrez en la maison, aussi tost qu'ils eurent gousté des fruits et legumes qui estoient en feste d'icelle, furent changez et transformez en Criquets et Grillons, qu'ils appellent Coujou..... Ce fut ainsi que Maire Pochy se vengea de ceux qui avoient murmuré contre luy pour !e fait de l'engrossement de sa femme, laqueiJe finalement il print eh telle haine, qu'il se retira d'elle, et la Iaissant entre les hommes, il despouilla son orde et laide fi- -380- gure, devenant te plus beau de tous les humains, et s'en alia -au Ciel, pour y vivre à son aise. O r disent ils, que son fils voulant le suyvre, à fin d'apprendre ses sec.rets, fut pour un temps converty en une grande pierre laquelle separoit la mer d'avec la terre, .à fin que nul ne le peust suyvre: si que tous ceux, qui essayerent et ·s'efforcereytt de l'aller voir, il les feit noyer, ou les changea en pierres, bestes ou poissons. Au bout de certam temps, ce fils, qui estoit converti en pierre, rejrint sa premíere forme, et commença à fréquenter les compa1gmes des Sauvages, et se nommoit Maire, du nom de son pere, et nom général pour tous les Caraibes, tau;ant de grandes merveutes, ainsi qu'avoient fait tous ces ancestres. Ur entre toutes chosés mémorables qu'1l fe1t, tut un ornement de teste, tet qu'1Is en font coustunuerement, du ptumage de divers oyseaux, et appeltent ces chappeaux Acamenterà. Mais celuy .que ce lVlaue fa1soit, quoy qu'il apparust de pennage, si estoit il fait de flambes de feu. Comme il tenoit ce chappeau en sa main, un de ces voisins vint, leque! athré ae 1a beauté de tel ornement, luy dist avec une parole fort arrogante, comme coustum1rement ce peuple tait ses requestes, Baille mof ce que tu tiens en ta main .à fin que je le mette sur ma teste, pour voir s'il me sera b1en fa1t. Le Caraibe fasché de l'arrogance de cest homme, luy dist: Attens encor un p(;!u que je l'aye achevé, et puis tu l'esprouveras: L'autre continua avec importunité telle, que Maire tout despité, luy meist sur la teste, laquelle tout aussi tost luy devint toute en feu, se fendant tout net. Ce misérable se sentant brusler sans remêde, se lança dans un estang voisin, ou tout soudain il fut changé en un Ralle, qu'ils nomment Sarracou et disent encor qu'il a les pieds, jam- -381- bes et bec rouges, en souvenance du feu qui brusla celuy qui fut changé en cest oyseau. Or ce Maire, s'en estant allé avec son pere Car:oubsouz au Ciel, succeda son fils, nommé Maire Atá, qui print une femme de son pais: et elle estant enceinte, luy prinst fantaisie de s'en aller és regions lointaines: pour ce prenant sa femme, se meist en chemin. Elle qui estoit pesante à cause de sa grosseur, ne pouvant aller autant que son mary se meist à reposer: luy qui voulut l'esprouver, la laissa toute seule. Oyez, je vous en prie, comme ces bonnes gens poursuyvent leurs histoires. Le fruict qu'elle avoit au ventre, parloit avec elle, et la confortoit luy enseignant le chemin que son pere avoit suivy. . . . . . Or ce fils du Caraibe se commença .à courroucer, et despiter contre sa mere, ~ cause qu'elle refusa de luy donner de petites legumes, qui estoient par les chemins: et pource cessa il de luy donner response, et luy enseigner le chemin: qui fut cause, que la pauvre femme s'esgara si bien que prenant un chemin pou l'autre, elle vint en un jardinage, ou se tenoit un homme appelé Sarrigóys, leque! la receut, et la voyant !asse, la pria de se reposer en sa maison, espérant la decevoir et en jouir. Elle qui avoit besoing du repos, luy obeyt, et se coucha: Mais ledit homme la voyant endormie, se vint coucher avec elle, et eust sa compaignie, comme bon luy sembla, si bien qu'U l'engrossit encor d'un autre fils, leque! tint au ventre compaignie au premier. . . Ce meschant trompeur ne fut point sans payement de sa folie: car dés qu'il eut fait son plaisir de la femme du Ptophete i! fut changé en une beste, qui se nomme du nom de l'homme mué, à sçavoir Sarigóys, laquelle a la peau fort puante. Mais !e malheur de ceste femme fut encor plus grand, lors que arrivant en un autre village, elle fut prinse par !e chef et principal du lieu, leque! s'appeloit !amare. Cest -382- homme estoit cruel .à merveilles: et bien le monstra, veu qu'il tua ceste femme, et la mangea, la deschirans en piêces, et en feit part à ses voisins, ainsi que encor ils ont de coustume d'en user aux grands banquets de leurs massacres. Mais les deux enfans qui estoient dans le ventre, furent jettez commes excremens au lieu ou l'on jette les balieures et ordures des maisons. Et le jour d'apres, une femme s'en allant, querir des racines, les advisa joüans ensemble: et estant esmeue de pitié, les porta en sa maison: et en peu de temps ils devindrent grands, outre l'attente et foy de ceste femme, à laquelle ils estoient de grand proffit, veu que tant qu'eile les eust en sa compaignie, elle ne sentit jamais nécessité de chose quelconque, et croissoient toujours en beauté et force sur tous les humains. Or estant la saison arrivée, qu'on cueilloy un fruict nommé /uaia, qui estoit en sa maturité, lors !adite femme envoya les enfans Caraibistes aux champs, pour querir desdits fruicts, .à fin de s'en sustenter: et eux estans dehors se souvindrent du cruel massacre qu'on avoit faict de leur mere. Pour ce désireux de s'en venger, s'en retournerent avec peu de fruicts, et pour s'excuser envers leur nourrice luy dirent, Nous avons esté en un lieu les plus beau du monde et auquel i! y a telle abondance de Iuaia, qu'il est impossible d'en penser de pareille. Pour ce sommes venus vous en advertir, à fin que demain vous veniez avec nous, et tous ceux du village, pour en manger et vous en fournir tout à votre aise, et en rassassiez voz gens, lesquels vous y pourrez mener avec vous. La femme, qui jamais n'eust pensé en la malice et desseings de ces enfants, qui prétendoient ruiner· tout !e village, le dist .à tous les habitans, lesquels ne se monstrerent en rien retifs à la besongue, ainsi y vindrent tous grands et petits, -383- hommes et femmes, sans que larnare s'en excusa. Or le lieu ou estoient ces fruicts, c'estoit une Isle assez grande, et falloit passer un bras de mer. Ces galands, à fin de mieux tromper la compaignie, les firent attendre qu'ils eussent dressé leurs canoes pour passer. Ce que estant fait, comme tous les Sauvages, qui avoient mangé de leur mere, furent au meillieu de l'eau, ceux cy comme successeurs du Caraibe sur la force des transmutations, feirent enfler la mer avec telle impetuosité et orage, que tous ceux qui passoient, furent submergez, et en un moment changez en diverses formes hideuses et figures de plusieurs animaux terrestres, si comme sont Loups, Chiens et Chats sauvages, et autres semblables, lesquels sont appelez en Ieur lan.., gue, Janrare: et en y a plusieurs sortes, sçavoir cet /amare-este, /arnarlz-bouten, Pau, Apiroupsou, lona Tonapech, Marga, Ianacsou, Margata Miry, Cirat et plusieurs autres especes de bestes, qui se voyent en la dite terre. Par ce moyen se vengerent lesdits enfans de ceux qui avoient si cruellement fait mourir leur mere et se voyans estre seuls, et que aucun ne restoit pour l'acointer, ny femme pour la prendre en mariage, prindrent complot de faire tant par leurs journees, qu'il, trouveroient Maire Ata leur pere, lequel ainsi que avez leu cy devant, s'estoit esgaré de sa femme enceinte, pour l'esprouver, lorsqu'elle se trouva !asse par les chemins. Ces enfans coururent tant par Jes pais et regions estranges, sans ouyr aucune nouvelle de ce qu'ils queroient, que à la fin ils parvindrent en un vilIage, basty sur le Cap de Frie, ou ils entendirent parler d'un grand Caraibe ou Pagé, qui faisoit çhoses merveilleuses, et rendoit les responces Houiousira, qui est I'Esprit, par leque! ils devinent ce qui est à venir. Ce qui les asseura que c'estoit celuy qu'ils cerchoient. A ceste cause, addressez à l.à loge ou ce tenoit ce Pro- -384- phete, ils entendirent qu'il estoit entré pour se reposer. Or personne n'estoit si hardy de mettre le pied dans sa loge, sans son congé, et encor avec grande crainte et reverence, pour l'esgard des merveilles que faisoit cest homme là ou ces enfans y entrerent, sans faite semblant ny de frayeur ny de reverence. L'ancien Pagéz voyant ces jeunes hommes tenir si peu de compte· de luy les prist à regarder d'un reil fort furieux et despit, puis paria à eux regoureusement en ceste sorte, Marapeico, c'est-à-dire, Qui est-ce qui vous meine icy? A quoy l'aisné respondit, Nous cerchons nostre pere Maire monan Ata : et ayant entendu que c'est toy, nous te venons visiter, et servir comme pere : et luy compterent tout ce qui s'estoit fait de leur mere, sauf la bastardise du second, et comme ils avoient vengé rigoureusement la mort de leur deffuncte mere et massacree. Maire Ata, quoy qu'il fust joyeux de voir ses enfans, si ne vpulut il legerement adjouster foy .à leur parolle, ains leur proposa plusieurs choses estranges et difficiles, avant que les auoüer. En premier lieu, il voulut que devant luy ils tirassent de l'arc: ce qu'estant fait, leurs flesches se tindrent pendües en l'air. Ce ~igne commença à l'asseurer que ce fussent ses enfans. Neantmoins il ne se contenta point de cest essay, ains leur commanda d'aller passer par trois fois, et rapasser, par une grande roche fendue, laquelle continuellement s'en trouvroit et refermoit, de sorte que rien n'y pouvoít passer sans y estre escarbouillé: Et est appellee ceste roche en leur langue Itha-lrápi. A quoy les enfans obeyrent tout soudain, et comme ils. furent pres de la roche, l'aisné dist à son puisné, d'autant que tu n'es point le fils de Maire, ains seulement de ma mere, passe le premier, .à fin que si la roche te brise, je rassemble les pieces et te reunisse en ton entier. A quoy le bastard obeit et ne fut pas si tost ·en -385- la fente de la roche, qu'il fut tellement rompu et brisé, que les pieces en estoient aussi menus que d'une pierre bien pillee : et n'eust esté possible (comme comptoient ces sauvages) que un autre fils du Caraibe les eust ramassees, leque! en un instant les r'assembla et remeit en sa forme premiere, ainsi qu'il encourust aucun danger et les feit passer pour la seconde et troisieme fois sans qu'il encourust aucun danger de sa personne: puis apres y passa l'enfant légitime du Prophete. Ayant fait leur épreuve, s'en viennent à Maire Ata, auquel ils disent, qu'il debvoit Ies advouer pour ses enfans puis que sans aucune lesion ils avoient passé le pas effroiable de la roche fendue, et tout encore l'aisné, ce qui estoit advenu à son puisné, fils du Sarigóys. Le pere s'asseuroit desja de leur sang, et qui vrayment ils estoient de la race choisie des Caraibes, comme jadis ceux qui estoient feez pour la conquette du saint Graal en la grand Bretaigne. Toutefois voulut i! faire un troisieme et grand essay ·sur eux: pour ce leur commanda, ,qu'ils s'en allassent en un lieu nommé Agnen pinaiticane 1 qui est ou ils disent que les morts bruslent et font seicher le poisson nommé Alain : enjoignant à iceux de luy apporter l'amorce de Iaquelle Agnen (qui: est le maling esprit en leur langue, qui souvent les tourmente, comme j'ay veu) prenoit le poisson Alain. lei l'aisné usa de pareille fidelité à son puisné, qu'il avoit fait en la roche ltha Irápi et !e feit aller !e premeier au fond de l'eau pour prendre l'amorce. Mais il fut luy mesme pris par l'esprit Agnen, qui le meit en plusieurs pieces: toutefois !e légitime rassembla le tout, et !e calfeutra si bien, que le bastard fut remis en sa forme et beauté premiere, sans qu'il eust aucune ·I Literalmente, "o lugar onde Agnen pesca". -386- apparence de blessure. úuery .qu'il est ils se plongerent tous deux en l'eau et allerent jusques au fond, en tirant c e qu'ils cerchoient à sçavoir I' amorce d' Agnen, avec Iaquelle il prenoit le poisson Alain, et ostant le hamesson, et tout !e reste audit esprit Agnen, l'appor- , terent .à leur pere : leque! cogneut pour vray, qu'ils estoient descenduz aux profonds abysmes de I'eau, d'antant que ceste amorce estoit la vraye pasture dudit poisson, à sçavoir un cartier d'une beste, qu'ils nomment Tapiroussou. . . . Ce qui causa que Maire Ata les avouant pour ses énfans, les aco11a et receut en sa maison: non que tous les jours il ne leur donnast quelque nouveau assault avec ses commissions fascheuses, à fin de·· les adextrer en ses sorcelleries : lesquelles choses je passe sous silence, comme en ayant desja assez compté. Vanthropophagie rituelle des tupin~ba (Extraido do manuscrito inedito de Thevet, intih11ado: "H isto ire d' André Thevet Angoumoisin, Cosmographe du Roy de deux voyages par luy faít aux /ndes Australes et Occidentales etc., foi. 53-62v.). La maniere comme ils font la guerre, et de ta façon comme leurs prisonniers entr.ent dedans leurs villages. La nation la plus prochaine qu'ils ayent pour leurs ennemis sont les Tapouys, lesquels sont entre les Potonarres, et ceux des Caniballes. lceux I;>otonarres, et Caniballes sont amis, et se frequentent les uns les autres, mais sont contraints passer au travers du Pais des Tapouys de nuit. Iceux Tapouys sont" gens de -387- guerre, et n'ont nulle habitation, ou demeure stable. Tellement qu'ils sont dedans leur pais mangeans racines, et venaison, de laquelle ils ont grande abondance. Ils ne font jardins, ny maisons, comme ceux du Bresil. Or pour revenir a leur façon de mener guerre, Ie plus hardy d'entre eux entreprend la guerre, et meine avec luy le plus d'hommes qu'il peut. Mais devant que partir ils feront un grand chemin droit au Lieu auquel ils veulent aller. Et est chose certaine entre eux que depuis qu'ils ont fait ce chemin, ils ne rompent l'entreprise de leur guerre. Et ainsy apres qu'ils ont deliberé entre eux de mener guerre contre l~urs ennemis, ils commencent .à faire provision de farine de guerre. Ces preparatifs estans faits, tout à un instant ils despartent en faisans longues journées en allant. Que si d'aventure ils rencontrent une ronce, ou une couleuvre emmy leur chemin, tout soudain ils rebroussent chemin, predisans que cette rencontre leur est un mauvais presage de leurs affaires. Aprés leur retour en leur pai"s, ils ne sont pas plus tost arrivés, qu'incontinent ils s'en retournent, et arrivans dedans le pa'is des Tapouys. leurs ennemis, ils observent les pas par ou ils ont passé, puis les suivant au lieu, auquel ils sont, et le plus s<JUvent montent au sommet des arbres pour pouvoir mieux les descouvrir, et appercevans Ies fumées qu'ils font, ils s' asseurent du li eu, · ou ils sont. Au point du jour ils chargent dessus, et les surprenent, et en tuent les uns, prenent Jes autres tout vifs. Si tant est que les Tapouys puissent tant soit peu avoir de relache pour prendre leurs armes ils chargent furieusement 'sur noz amis.- lls sont beaucoup plus vaillants que ne sont les Bresilieus. Que s'ils voyent qu'ils soient descouverts par leurs ennemis, tout en un instant ilz se retirent, faisans en trois, ou quatre jours le chemin, auquel ilz auront demouré un mois à faire. -388- Si Jes Tapouys Ies prenent, ils ne les font Janguir. Car aussy tost qu'ils les ont, ils Ieur cassent Je front, et les laissent l.à, sans les manger. Ce que ne font les nostres. Car ils les mangent avec grande pompe, et solemnité, ainsy que pourrés veoir au chapitre suivant. Cette nation des Tapouys ne mange les corps de Ieurs ennemys, quand ils les ont prins : mais eux mourans, tous leurs parens s'approchent et mangent leur parent mort. Aprés que Ia chair, et tout ce qui se peut manger est mangé, ils couppent les cheveux bien menu, ensemble pilent les os le plus menu qu'ils peuvent, Ie tout estant ainsy pilé, ils Je mettent dans un potage qu'ils font de sorte qu'ils ne perdent rien. Ils disent que la terre n'est digne de les pourrir. Or pour revenir à nos guerriez, si tost qu'ils ont pris quelques prisonniers, incontinent ils envoyent aux villages, les habitans desquels sont à la guerre advertir de ce qu'ils ont fait. Tout .à l'instant les vieilles femmes desdits Villages tant que tes nuits durent ne cesseront de chanter sans dormir, ny sommeiller aucunement, frappans de leurs mains Ieurs bouches, et crians à gorge ouverte, attendans ce pendant la venue des prisonniers, lesquels estans prés du village, les font arrester pour quelque temps, jusques à ce qu'ils leur ayent préparé une loge non couverte, sinon que de feuilles, dedans laquelle Je font coucher une nuit seulement, pendant leque! temps boivent outrageusement, ~stans yvres pour trois, ou quatre jours. Cela fait, ils font entrer te prisonnier dans leur village, et le laissent converser librement avec eux, jusques au temps qu'ils te doibvent tuer. Aucune fois ils le gardent plus de quinze, ou vingt ans, tes autres ne Ie gardent longtemps. Cela despend de Ia volonté de cetuy qui I'a en garde. Ils Jes marient bien souvent avec celles qui leur sont agreables: mais ce, Jeur est peu de plaisir. Car autant qu' ils ont 'd 'en- -389- fants d'elles ils sont tués, et mangés le jour qu'on tue lesdits prisonniers leurs peres et on les tue en leur presence et ce jour là ils mettent en potage le reste de quelque autre prisonnier. Aprés ils s'assemblent tous en Ieur maison de vi.lle, qu'ils apQellent Carbe. Le prisonnier estant assis au milieu d'eux, distribuent à chacun Ieur part, et portion de ce qu'ils doivent avoir quand il est tué, tellement qu'ils ne reste membre sur Iuy, qui ne soit distribué, toutefois ils ne le tueront pas pourtant plus tost. Ceux auxquels en est adjugé quelque peu, sont subjets de contribuer pour subvenir à leur nourriture. Ce qu'ils ne refusent. Car eux mesmes souffriront plus tost Ia faim que leurs prisonniers ne soient bien traittés. Le mesme jour accordent entre eux de celuy qui le doibt tuer, de celuy qui le doibt 'touzer, et de ceux lesquels Ie doibvent noircir de genipap, emplumasser, peindre par le visage, de celuy aussy qui le doibt prendre quand il est deferré, et qui le doibt laver. Et · celles, lesquelles doibvent mettre Ie f eu aux cheveux, et mettre quand il est tué le tizon dedans le cul, de peur que rien ne se perde de ce qui est dans le corps. Je vous descriray au chapitre suivant la façon de Ies tuer, et les ceremonies qu'ils observent à ce faire, pour les avoir veu, et curieusement escrit toutes leurs ceremonies, parce qu'il auroit esté besoing faire cestuy cy plus ample. Ils ont accoustumé que celuy qui aura prins, ou tué, aussy tost tous ses amis se ruent sur luy, Iuy ostant tout ce qu'il a, mesmes son lit, pierres, leurs ares, flesches, et farines de guer_re. Et aussy tost que la prinse des prisonniers est faite, ou bien le massacre fait ii va devant au village, com!)le messager advertir comme le tout est passé. Et pour le récompenser de sa perte qu'il a faite quand -390- il entre dedans le village, et qu'il publie son nom, de nouveau les vieilles luy jettent de la cendre sur !e dos, et si tant est qu'il y ayt de la chair de quelqu'un de leurs ennemis boucanée, les femmes se jettent dessus les premieres, et se saisissent du panier, dedans leque) est Ie dit boucan. Adonc Ia maitresse des auhes femmes !e va rendre à celuy, auqQel il appartient. Puis aprés toutes celles, lesquelles y doilvent avoir part commence à prendre leurs nomes, lesquels !e lendemain ils publient par le village. Poursuitte de leurs guerr.es et prisonniers. Estant au village de Margariampin, je descouvris encores quelques autres ceremonies qu'ils tiennent .à traitter leurs ennemis, c'est qu'ils font apporter dans de grandes poéles !e Maussorent, autrement une ·grand'corde de cotton, ayant pour !e moins trente brassées de longueur, et !e mettent à leur Carbe, place au milieu de leurs villages: Estans au lieu, l'estendirent dessus des fourches, à fin de le feire seicher, parce qu'ils l'avoient blanchy, estant sec les plus anciens d'entre eux !e prenent pour y faire un nreud fort difficile à faire, leque) estant fait, en signe de joye tous frappent leurs mains, jettans tous un grand cry, !e tout se faisant en la presence des prisonniers. Aprés que toutes ces ceremonies sont faites, ils reposent iceluy Maussorent dedans des poéles, et le portent en la maison du maistre des prisonniers: En aprés firent sortir les prisonniers de dedans leurs loges, faites toute de grosses pieces de bois, mesme l'huys d'icelle loges. Et cela Ieur sert d'une prison, dans Iaquelle ils sont soigneusement gardés. Estans doncq sortis les meinent dedans les Ioges du Sud, dedans lesquelles · ils porterent. leurs lits. Ces prisonniers y estans assis, -391- leurs cheveux furent rasés, par devant, et notrcts de genipap tant par le visage, que tout Ie corps. Estans ainsy noircis, leur maistre fait venir la plus part des femmes tant vieilles, que jeunes, et les fait toutes noirCir de Genipap en la presence desdits prisonniers. Cela fait, ils rámenerent Iesdits prisonniers dedans Ia mesme loge, en Iaquelle ils avoient esté mis auparavant, ou ils furent seulement jusques au soir venu. Le ~oir estant venu, ils furent renvoyées (síc) en la mesme Ioge, dont ilz estoient partis le matin, y mettans Ieurs lits. Ce fut la derniere fois qu'ils entrerent en leur loge, y estans couchées toutes les vieilles lesquelles avoient esté noircies en leur presence, ayans Ieurs Iits pendus tout autour desdits prisonniers, et incontinent oommencerent à chanter et ne cesserent toute la nuit sans jamais sommeiller. Les prisonniers n'estoient beaucoup endormis, oyans la melodie de ces douces Proserpines. Pour resjouir iceux prisonniers faisoient entendre comme eux, ny aeux de leur nation n'avoient tué aucuns de leurs amis, que le temps estoit venu qu'ils payeroient la debte, et qu'ils seroient mangés la nuit mesme. J'ay esté voir ces diablesses par trois fois pour voir si elles ne dormiroient point, mais j amais ne dormirent. J'y menay mesme l'un de mes truchemens pour m'expliquer leur chant, lesquels me dirent qu'elles disoient en leur chant, qu'elles auroient vengence de leurs amis. Il y avoit l'un des prisonniers jeune de vingt ans, auquel cette mesme nuit avoit esté baillée une jeune filie de l'aage de quinze ans, pour ooucher avec luy. Toutefois je croy qu'il n'avoit grand desir de donner dessus. Sa pauvre femme estoit couchée dessoubs son lit, pendant qu'icelle jeune filie estóit avec Iuy dans le Jit. · Ce mesme jour au matin tout ainsy que les prisonniers et Ies femmes. estoient -392- nO!rC!es, de mesmes Ies hommes, qui estoient destinés au service du sacrifice, furent noircis en une loge pour ce faite exprés, estans tous couverts de gomme, et par dessus force plumes rouges. Le visage ne leur fut couvert de plumes, ains de gomme seulement, et par dessus de I'escalle d'reuf de perdrix bien battue ayant couleur verd de gris. lls estoient tres difformes à Ies veoir. 11 y avoit aussi en Ieurs testes de belles plumes, attachées avec de Ia cire. 11 y eut aussy quelques femmes accoustrées de mesme, que Ies susdites, reservé qu'elles n'avoient point de plumes en leurs testes. Toute Ia nuit Ie reste des autres femmes et hommes ne cessoient de danser, allans de Ioge en Ioge, et mestnes en la Ioge, ou furent emplumassés Ies hommes, et femmes. Ce mesme jour fut fait sur de Ia cire .à chacun desdits prisonniers un scophion couvert de belles plumes. Chose excellement, e proprement faite. Et auprés des lits desdits prisonniers y avoit une piece de bois fichée dedans terre d'un pied, et demy, sur leque! estoit mis iceluy scophion, et estoit icelle piece de bois de grasseur de Ia jambe 'deux pieds hors terre. Tost aprés furent menés Ies prisonniers hors !e village, entre Ies loges du Nord, et du Ouest, et en iceluy Iieu Ieur Iaverent Ia barbe, et Ieur raserent encore quelque chose, qu'ils n'avoient fait Ie jour precedent. Et en mesme instant furent defferrés. Tous les Sauvages estoient rangés, et d'autre costé de I'entrée des Ioges. Par Ie milieu desquels sauvages l'on fit courir lesdits prisonniers, y ayant en iceux rangs un sauvag~ constittié pour recevoir iceux prisonniers, ayans chacún un Amonas derriere Ie dos, et estoient tous peinds, comme cy devant a esté dit, ayans un soulier (sic) de cotton tout neuf. Aussy tost que les prisonniers partirent du Iieu, pour courir dedans les deux rangs de sauvages, y ayant -393- espace entre eux de vingt pas. Aussy tost furent saisis par le corps, et tous se ruerent dessus eux, les portans au milieu de là place des quatre loges, au lieu qu'ils appeHent Carbé, et passerent le maussorent, du_quel avons cy dessus parlé dedans le col, leur laissant à chacun d'eux, deux hommes pour porter iceluy, d'autant qu'il e~toit permis de frapper avec des pommes de genipap, et avec des fondes toutes les personnes· qu'ils avoient en volonté, m_esmes avoient des ares, et flesches non pointues, desquelles tiroient, combien qu'elles ne fussent comme celles, desquelles ils ont accoustumé de tirer, si est-ce" qu'icelles flesches ne laissoient de blesser. La femme de chacun des prisonniers estoit derriere son mary, avec un panier plain de pommes de Genipap, ou bien de monceaux de racines, lesquels elles suppeditoient à leurs maris, mesmes portaient aprés Ieurs dits rharis, fléches. Et couroient iceux de chacun costé là ou bon leur sembloit ce dit jour, avec leurs gardes neanmoins, lesquelles estoient contraintes de courir aprés. Quand ils avoient couru quelque peu, furent menés en la maison du ouest, auquel lieu leur lit estoit pendu, et leurs scophions prés d'iceux. Et en leur presence furent derechef plusiers femmes emplumassées, lesquelles aprés avoir esté bien parées de leurs beaux accoustrements, sortoient d'icelle loge comme quatre à quatre avec chacunes un Anonas derriere te dos. En sortans d'icelle loge frappoient de leur main leur bouche ou passant pardevant eux, crians au plus qu'elles pouvoient: puis estans toutes dehors couroient par le milieu de la place, en se mutinant, comme si elles eussent voulu se combattre. Et aprés avoir esté quelque temps en ce lieu, elles retournoient aussy tost dedans des loges, passans toujours pardevant les prisonniers, pour leur faire plus de fascherie. Et sortirent derechef quatre à quatre par diverses fois, -394- faisans comme la premiere fois. Sur les cinq heures du soir ils font sortir les prisonniers hors de leurs loges, et les meinent dedans une loge faite exprés pour les coucher cette nuit, en mettant auprés de chacun son escofion. lls les y meinent avec les instruments, desquels ils ont accoustumê de s'aider .à leurs dances. Sur le soir, ainsy que le solei! se couche, menerent les susdits prisonniers au milieu de la place avec les instrurrients, dont est faite mention cy dessus, à fin de faire danser lesdits prisonniers. Ce que l'un d'eux ne dedaigna faire, à sçavoir le plus ancien, 1lequel dança, la danse finie, en laquelle danserent tous les Sauvages tant hommes que femmes, laquelle danse ils appellent la danse de la biche: mais elle fut rompue par lesdits prisonniers d'autant qu'ils commencerent .à les poursuivre à coup de fonde, telement qu'elles furent contraintes tout quitter. Tout cela estant finy, l'on commença à les referrer dedans leur derniere prison, ayants !e Maussorent entourtillé en de petits arbres, leque! ils portoient .à costé d'iceux, à fin de les monstrer à un chacun, ayant toujours iceluy Maussorent au col. Ce mesme jour en la presence des prisonniers furent les espées portées chacune dedans une poêlle neufve, tenans pour le moins demy muid, et deux autres petites poêles, dedans lesquelles estoient la gomme. plumasserie, et fi! de cotton pour les accoustrer. Elles furent portêes en la maison du Nord, auquel lieu chacune d'icelles espées furent par chacune vieille femme emplumassée proprement, à sçavoir une live de cotton par le bas, à fin de les rendre plus fortes, et aprés furent aussi gommées par le saillant, et plat de. l'espée, sur lesquelles elles firent une infinité de compartiments bien dressés sur la gomme, elles poserent dessus de !'escale d'reuf. Estans ainsy icelles espées ai::coustrées, elles furent laissées couchêes de plat dedans icelles -395- poéies, puis sur Ie soir e!Ies furent pendues en Ia Ioge, et toute Ia nuit fut faite une danse autour d'elles, et dis·oient qu'elles endormoient les espées, menans en leur chant une pitoyable chanson, avec un tambour battant de la sorte qu'on fait en France à l'enterrement d'un homme de guerre. Aussy n' ay voulu oublier que ce mesme jour les prisonniers furent gommés par le visage, et couverts d'escale d'reuf, ensemble avec eux les femmes, qui accoustrerent les espées, furent celles qui firent les compartiments sur !e visage des prisonniers. Le lendemain, qui fut Je jour de l' execution, iceux furent menés incontinent qu'il fut jour au carbe, lieu auquel ils finirént leur vie, les y menans ils jouoient de leurs instruments accoustumés, portans au bout des petits arbres le Maussorent. Ceux qui les accompagnoient alloient chantans et dansans. Estant arrivés au dit lieu ils osterent le Maussorent des petits arbres, et l'estendirent de sa longueur, et ce qu'ils avoient en leur co! le 'devalerent au milieu du corps, leur laissans les bras Iibres. Leurs femmes estoient autour d'eux les tenans embrassées, pleurans amerement. Aussy tost l'on apporta les espées qui furent baillées par ces femmes, qui les avoient accoustrées, à tous à manier, estans par rangées. Et tiennent que c'est un grand heur .à ceux qui les manient. Cela leur est un presage qu'ils tueront de leurs ennemis. Cela fait lon presente l'espée à l'un des principaux, leque! la baille à celuy qui est député pour faire l'execution. Apres qu'il )'a reçue, il s'en vient au prisonnier, !ui monstrant l'espée, et faignant !e vou! oi r frapper, en disant: "!e temps est venu qu'il faut que tu meures et à fín que soyons vengés de noz amis tués par toy, et tes amis". Là dessus le prisonnier asseuré comme un rocher, luy fait -396- response qu'il ne se donnoit peine de sa mort, estant bien asseuré que ses amis auroient vengeance de sa mort quoy qu'il tardast. Ces parolles finies, celuy qui a I'espée !e frappe incontinent au costé par plusieurs coups, tellement qu'à Ia fin i! !e fait entr~buter par terre. Et à fin d'avoir Ieur plaisir, !e redressent pour veoir s'il sé tiendroit debout, ce qui ne fut à son pouvoir de faire le voyant bas, luy passe deux fois par dessus, puis Iuy casse Ia teste, !e sang de laquelle, et ce qui tomba de la cervelle ne demeura longtemps à terre, qu'il ne fust aussy tost recueilly par une vieille, laquelle !e cueilloit dedans une vieille courge, Iaquelle "prés qu'elle en eust osté Ie sable, le but tout cru. Aprés qu' il fut mort, i! y eut une vieille, laquelle lui mit un tison dedans !e cu!, de peur de ne rien perdre, et aussy tost le porterent dessus un grand feu, leque! est preparé devant sa mort, .à fin de peller, y ayant aussy une chaudiere en laquelle l'eau est toute bouiiIante, pour cuire ce qu'ils veulent cuire, et le reste est delivré à ceux ausquels avoit esté promis i! y avoit longtemps. Les boudins et trippes sont données aux jeunes hommes, et toute la courée est pour les jeunes filies. lls mettent Ies trippes dedans Ies poésles, ainsy comme elles sortent du corps; sans en rien en oster. je vous Iaisse à penser quel potage. 11 y eut l'un des prisonniers, leque! arracha l'espée des mains de celuy, qui vouloit !e tuer, et eust fait quelque mal, si lon ne Iuy eust tost arraché des mains, laquelle fut rendue à l'executeur. S'H n'y eust eu que le prisonnier et Iuy, i! Iuy eust fait tourner la chance. En nostre presence fut commis un acte par une vieille femme, !e plus horrible, et !e plus cruel, duque! on aye ouy parlé. Laquelle avoit mieux mérité le nom de chiene (sic) que de femme. Car i! faut que vous entendiées qu'aussy tost que l'un des petits enfans, n'ayant seulement que - 397-- sept ans, enfant que l'une des filies mariées au prisonnier executé, aussy tost di-je qu'il fut mort, elle luy couppa la teste, et par !e trou luy sucça toute la cervelle, et le sang n'eut !e loisit de le cuire. La filie avoit six ans, et Ie fils sept, lesquels furent tués en la présence de leur pere. Apres l'execution faite, ces venerables executeurs se retirerent, ausquels lon baille un soulier (sic) neuf de cotton teint en rouge, et ausquels sont baillées deux pierres pour reposer leurs pieds sans marcher à terre, et durant quatre jours ne mangent rien de salé. Que s'ils mangeoient quelque chose de salé, ils tiennent pour tout asseuré qu'ils mourroient tous, ausquels durat ce temps qu'ils sont au lit, on lie un fil aux bras, et un par le milieu du corps. Les quatre jours expirés, ils sont desliés et noircis de génipap. Cela fait ils beuvent et forit grand'chere s'ils ont de quoy. Pendant toutes ces ceremonies ils ne font que boire de leur Cahoüin, et promenent leurs prisonniers dans Ie village avec certains accoustrements, et fronteaux, bonnets, bracelets de diverses couleurs, mesme de robes de plumes, qui sont tres belles à les veoir de prés, et de loing. j'en donnay une au retour de mon premier voyage de ces pais l.à à feu monsr. Bertrandy, qui depuis fut Cardinal, leque! comme de chose rare en fit present au roy H,enry second, de plumes Arrassoit, ou Arait, Assajaboucou, Touapuap, et autres. Aussy ces Bar bares j etten t sur leurs prisonniers de la plume de Perroquet en signe de mort. Dépuis qu'ils ont fait ces braves ceremonies sur eux, jamais ils ne reschappent qu'ils ne soient tués et mangés. Voilà pourquoy quand ils sont entrés en la maison, ils apportent devant iceux !'are, les flésches, les colliers, plumasseries, Iits, fi!, et autres autres choses appartenans au defunct, et les Iuy donne on pour son usage, -398- sçavoir !e lict à se couchet, les colliers .à l'entour de son co!, la plumasserie à se parer quand bon luy semble les ares, et les flésches sont par luy lavées et nettoyées. Car ii n'est permis à nu! autre d'entre eux se servir des biens d'un mort, jusques à ce qu'il en aye esté ainsy ordonné par un de leur ennemis, leur esclave. Et si daventure les parents de çeluy, à qui appartient le prisonnier, ont esté tués à la guerre, jamais les vefves ne reprennent mary. Et à cette occasion baille on aux vefves !e prisonnier pour recompenser la perte de leur defunct mary, jusques à ce que !e jour soit venu de !e tuer, et manger en vengeance de leur mary, qu'ils appellent en leur baragouyn Paraoussdu-vots. Et cela les oste de destresse et ennuy. Ce mot ne signifie autre chose que le prenom de sondit mary, qui est !e nom du grand arbre, semblable à celuy qu'ils nomment Gera-l)ua, qui est une espece de palmier, de quoy ils font leurs hottes, ou ils portent leurs vivres en temps de guerre. Façon du massacre que font les sauvages de leurs prisonniers. D'autant que je vous ay commencé au précedent chapitre, comme ce peuple gouverne, et entretient ses ennemis les ayant prins en guerre. 11 me reste plus à vous dire, que la façon, qu'ils ont à les faire mourir. Premierement i1 faut que !e lecteur entende que les femmes qui ont le gouvernement de ce pauvre Barbare, l'entretiennent tout de mesme façon qu'a esté leur defunt mary, jusques à ce que !e jour soit venu de !e tuer et manger. Et s'il n'y a point de vefve, celui à qui est le prisonnier, doibt bailler de ses sreurs, ou ses femmes, et s'il n'en a, en requerra à ses amis, qui -- 399- n'ont garde luy en refuser, d'autant que c'est la plus grande joye qu'ils scauroienj en esperer que de recevoir un de leurs ennemis, et celui qui en a fait la prise est fort estimé entre eux. Quelque temps apres I' arrivée du pauvre prisonnier, ou plusieurs, s'il y en a, tous les parens, et amis, qui leur attouchent, sont mandés pour les observer quels membres ils auront, quand on les tuera, .à fin qu'ils ayent à leur apporter aucune fois à manger, comme c'est leur coustume. Et à cette fin font un grand et solennel banquet, puis celuy qui doit tuer le prisonnier, prend un nom en la presence de ce pauvre captif pour ce nullement esfroyé, ou estonné, et sans aucune crainte, ou apprehension, ainsy qu'ils dient: ains ont une opinion que ce leur est beaucoup plus grand honneur de mourir de telle façon, qu'en casaniers en leur lit, de Jeur beiJe mort, ou contagion, joint qu'ils se sentent de beaucoup advantagés en ce que ces derniers meurent sans vengeance. Mais ceux qui sont occis en guerre, ou comme prisonniers sont vengés par la prinse de autres leurs ennemis ausquels, ainsy que nous avons dit, on fait de mesme passer le pas. Or quand le jour auquel on doit faire mourir Je prisonnier, approche on fait un grand Caouyn, selon la grandeur du village, qui est un breuvage, leque!, selon que j'ai descrit en ma Cosmographie, est fait par les femmes, de racines, qu'ils nomment Aipi, et de Mil ensemble bien cuits et pillés : puis apres le mettent en de grands vaisseaux, qu'ils nomment vassaue. Et le troisieme jour ils Je beuvent, d'autant qu'il se pourroit garder d'avantage sans estre corrompu, et gasté. Au reste tous le parents, et amis sont mandés en ce banquet, comme ils avoient esté auparavant, et en plus grand nombre, pour leur estre faits Jes presens -400- des mambres, et pieces du prisonnier ainsy qu'il leur avoit esté promis. Et font trois jours plus ou moins sans cesser de boire, et trois jours aprés le prisonnier est tondu de nouveau, et la face peinte de poudre d'escales d'reufs verds, puis en mettent avec des plumes par dessus la teste, puis est lié avec de grosses. .cordes de coton assés bien faites, qui sont en double, et des lacs, et noeuds subtilement faits par un desputé .à ce faire, leque! bien peut estre de trente brassées, gros environ comme le pouce d'un grand homme. Cela fait on Ie met coucher avec ses femmes, qui portent !e lien aprês !ui, et !e gardent toute la nuit, de peur qu'il ne s'enfuye, comme ils font assés souvent. Le lendemain ce lien luy est osté du co!, et luy est ruis au corps, et estendu ·par d'autres de chacun costé, et celuy qui le doibt tué est devant luy, qui feind lui bailler quelques coups pour s'en despescher, puis !ui en baille a bon escient, un dessus le chinon de la teste, si bien asséné, qu'il le verse à bas !ui redoublant plusieurs autres coups, jusques a ce qu'il luy ayt parfaitement cassé la teste. 11 y a de trois .sortes de bois, dont · on fait ce bas~n, a scavoir Ouapparrarap~ leque! est noir, lacarensa, leque! est rouge marré, et Reruigappen, leque! est rougeastre. Ce meurtríer prend .apres vingts andou'illes, des plumes d'oiseaux jaunes, et blancs, qu'ils appellent Canyde, et Arrat, qui sont ro1.1ges, bleus, et jaunes, orangés avec un ygapommemby, par dessus tout fait de plumes du Tocan jaune. Les vieilles prenent ce pauvre assommé et le portent sur un feu, et le buclent comme un cochon, pour luy faire sa premiere peau, puis le mettent sur son ventre, et le detaillent de long de travers et de costé. Sur tout leur voyés lever de grandes tranches pour leur carbonnades. lls luy levent I'eschine, et la teste ensemble, aprés Iuy -401- avoir coupé les bras, et les cuisses. Des intestins et frissure ils eq font une curée, et brouet, qu'ils appellent Mygao, dont Dieu sceit quelle chere ils font, et comment ils s'en dorent les barbes. D'autres femmes viennent ~ncor avec Ieurs enfans; et leur mettent la main dessus, et la mouiilent au sang, leur disans. Tu es vangé de ton ennemy, vange toy à ce coup mon enfant. Voil.à l'un de ceux qui t'ont rendu orphelin de ton pere, et ce avec des cris, et hurlements si tres saugreneux, qu'avec les Iaides, et hideuses grimaces qu'elles font, on diroit que se sont sorciers, qui veulent vomir dehors quelque morte!, et .diabolique exorcisme. Les partages se f.ont selon Ies portions, qui ont esté accordées sur son corps. Puis ces sauvages se retirent chacun a son village, et demenent grand'liesse. Si celuy, qui avoit fait le sacrifice, n'en avoit autrefois tué, i1 faut qu'il fasse une diette plus estroitte, que ceux qui ont tué. C'est qu'il se découpe par toutle corps d'une dent de beste,. qu'ils appellent Paguest, de sorte que ,le sang en decoule a bon escient: Puis aprés i1 est une !une entiere, (c'est un mois) sans manger chair, ny ,poisson, et ne mange que de la farine, et des naveaux, et boit du caouyn. 11 est aussy tondu ·de prés, comme s'il estoit rasé d'un rasoir. 11 demeure quinze jours sans oser toucher la terre de ses pieds. Il passe plusieurs autres ceremonies superstitieuses, dont ces rustres~ ont coustume d'user, par ce qu'elles sont si ridicules, que j'ay honte de les ramentenoir, quoy qu'ils soient fort scrupuleux pour l'interruption d'un point d'icelles. Un point ay-je à ramentenoir, à sçavoir que les Toupinambaux, Toupinenquin, Touajat, Temernyvou, et autres, q!li sent issus 'd'entre eux, ont cette loy touchant le meurtre d~ leurs ennemis, qui si tost qu'ils en ont tué un, ils prenent un nom nouveau, et pour ce ne laissent ils pas de retenir le leur propre, qu'ils ont -402- eu auparavant de ceux qu'ils ont tué. Que si aucun n'en a point tué, et qu'il ne face que commencer en ce mestier, il change le nom qu'il avait en enfance, au nom qu'il luy agrée, lequel nom ne luy chet pas volontiers entre Ies autres qu'il prendra puis aprés. Et est une maxime involiable entre eux, qu'ils prenent autant de noms, qu'ils tuent de leurs ennemis. Or celuy qui a Ie plus de noms, est Ie plus brave, prisé et réputé, pour avoir mis .à mort le plus d'ennemis, et tenu un tel rang que celui qui a la plus exterminé, d'essait, et abattu d'ennemis, en signe d'honneur est appel& Kereumbaue, c'est-à-dire de grand surveil. Aucunefois pour marque de plus grande et signalée excellence, ii est nommé Toupichah-gatou, moyenant que soubz luy il ayt gens pour administrer aux autres ses amis passans. Quant auxdites femmes vefves, elles ne se remarient point, si ce n'est aux freres, et plus proches parents de leur defunct mary, desquels faut qu'auparavant ils vengent Ia mort, s'll a esté prins, ou mangé de l'ennemy, s'il est mort de vieilesse, ou maladie, faut que celuy, qui doibt prendre la vefve pour femme, ameine· un prisonnier, qui nettoye sur la fosse du trépassé, soit qu'on aye changé de village, ou autrement. Aussy que toutes les panasseries, c-olliers, ares, et fléches d'iceluy soient lavées par ledit prisonnier, mesmes son grand lit, ou il couchoit de son vivant, encores ne se remarient jamais lesdites vefves à un moins fort, et vaillant qu'estoit leur mary. Car autrement on les despriseroit, et leurs enfans, et alliés mesmes en seroient fachés, et mal contents. De façon que s'il n'y a rencontre pareille, elles ayment mieux demeurer ainsy vefves tout le reste de Ieur vie, et finir Ieurs jours avec leurs enfans. Et encores qu'elles se remarient, si est ce que toutefois plus de douze lunes, sca- -403- voir d'un an aprés le trespas de leur mary. A ce propos je vous raconteray icy d'une femme, laquelle aprés la mort de son mary, qui avoit esté pris et mangé de ses ennemis, ne se voulat jamais remarrier, par ce disoit elle que nu! des parents du deffunct son mary ne s'estoit efforcé de venger sa mort. Et pour cette cause prenant !'are et la fJ.eche s'en alia elle mesme à la guerre avec les hommes, qu'elle bailla à tuer à ses enfans, leur disant, tués mes chers enfans, vengés la mort de votre pere defunct, puis que nu! de ses enfans, n'en fait autre vengeance. C'est possible pour ce que je ne suis pas jeune, et assés belle. Mais une chose est en moy, c'est que je suis forte, et vajllante pour venger la mort de votre pere mon mary. Et de fait cette femme fit tant, qu'elle print plusieurs de ses ennemis prisonniers entre autres !'une des plus belles jeunes filies qui fut en tout le pa"is, que l'on dit au seigneur de Villegagnon qu'elle estoit filie d'un capitaine portugois et d'une sauvage, et ne laissa pourtant à passer le pas, et estre tuée comme les autres que l'on y envoya. De sorte que remettant tous actes féminins, et prenant les masculins, et viriles, ne portoit plus .de cheveux longs, comme les autres femmes, et comme elle av<_>it accoustumé, ains s'accoustroit avec des plumasseries, l'espée de bois faite, comme elle font par delà en sa main, et autres choses convenantes aux hommes. Vous eussiés veu pendu au coi de ceste femme plusieurs flustes, des os, du bras, et jambes de ses ennemis, et à ses enfants autres instruments, comme tabourins faits à leur mode, selon qu'ont accoustumé faire les autres sauvages, lesquels ayans bien banqueté et caouyné, saufent, et dansent joyeusement tout autour de leurs loges, là oit cependant les plus anci.ens laissent tout le long du jour de boire sans manger et_ sont servis par les veufves du defunct, et parentes d'iceluy. -404- Et m'estant informé me trouvant à telles solemnités, comme volontiers font les mariniers, et plus grands des navires, de ces façons de faire, me respondirent que cettoit pour hausser !e creur .à la jeunesse, et à fin de l'animer a marcher hardiment en guerre contre leurs ennemis avec l'espoir d'un te! honneur aprés qu'ils seront décédés. A mon premier, et second voyage je fus par trois f-ois en cette isle des Margageaz, !à ou à mon grand regret, je veis faire deux massacres de trois pauvres prisonniers, et de cinq qu'ils estoient de reste, nous les rachetasmes, d'autant qu'ils estoient Chrestiens portugois, et les amenasmes à nostre fort, Jes ayant vestus, et accomodés, estans auparavant tous nuds, comme les autres. Trois mois apres se saisirent de nos barques, et de nuit s'en allerent rendre en Ia riviere de Morpiou tenue par les Portugais. -405- INDICE BffiUQGRAFICO ACU~A (Christoval de). - "Nuevo descubrimiento del gran rio de las Amazona!!"· Colección. de libros que tratan d6 América, raros ó curiosos, 11, Madrid, 1891. AMBROSETTI (Juan B.). - "Los Indios Cainguá dei Alto Paraná (Misiones)." Boletín del lnl!_tiwto Geográfico Argentino, XV, Bueno!! Aires, 1895. ANCHIETA (José de). - "Informação dos casamentos dos Indios do Brasil". 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Contenant la façon de vivre des peules Barbares, et observation des principaux points que doivent tenir en leur route les Pilotos et mariniers, p,our éviter le naufrage, et autres dangers de ce grand Ocean, avec wna res,ponse aua: libelles d'injures publiés contre lo chevalior Villegagnon. Bibliotheque National de Paris. TOCANTINS (Antonio Manuel Gonçalves). - "Estudos sobre a tribu MuNnunucu". Revista do Instituto Hilltorico e Geografico Brasileiro, XL, Rio de Janeiro, 1877. VASCONCELOS (Simão de). - Cronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil (1663). Lisboa, 1865. VESPUCCI. - Von der new gefunnde Region die wol eine welt genennt mag werden, durch den Chrilltlichen Kunig von Portugal, wunderbarlich erfund9n. Nüremberg, 1505. VICENTE DO SALVADOR (Frei). - "Historia do Brasil". Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, XIII (18851886), Rio de Janeiro, 1888. YVES D'ÉVREUX - Voyage dana le nord; du Brésil, fait durant les années 1613 et 1614. Leipzig e Paris, 1864. -415- INDICE DAS FIGURAS lndios tupinambás da baia do Rio de Janeiro (segundo Léry) ............... · · · · · · · · · · · · · · · ··· · · · · · · · · • · · · · ' Fig. 1 - Indios tupinambás fazendo fogo (s.egundo Staden) . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . 39 Fig. 2 - Indios tupinambás fumam, reunidos em conselho (segundo· Staden) . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . 165 Fig. 3 - Tratamento de um doente. Os feiticeiros sopramno e uma mulher suga-o por meio de certo fio preso ao braço do paciente (segundo Thevet) . . . . . . . . . . . . . . 182 Fig. 4 - Indios tupinambás celebrando uma bebedeira geral, à chegada dos hospedes convidados a assistirem à execução do prisioneiro (segundo Staden) . . . . . • • . . . • 244 Fig. 5 - O tacape, com o qual o prisioneiro deveria ser executado, era suspenso no tecto da choça. Homens e mulheres dansavam em redor desse instrumento afim de adormecê-lo (s.egundo Staden) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 252 Fig. 6 - A cabeça do prisioneiro era cozida em um pote e as mãos assadas em espetos (segundo Staden) 262 Fig. 7 - Os membros do prisioneiro são assados ao moquem (segundo Staden) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 264 _, 417- Fig. 8 - Indios tupinambás entregues à pesca e à caça (segundo Staden) . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . .. . • .. • • .. .. • 290 Carta da distribuição da saudação lacrimosa na America do 806 · Sul Fig. 9 - Mulheres tuJ;.inambás preparam bebidas, que extraem da mandioca e do milho (segundo Staden) . . . . Estampas fora do texto (pagina 192-A). - 418-;_, 325 INDICE GERAL Prefacio do tradutor . . . . . . . .. . .. . . . .. . . . . .. . . . .. . . . . . . . . . 9 A religião dos tupinambás. Introdução . . . . . . . . . . . 31 Notas à introdução (Estevão Pinto) .. .. . . . .. . . . .. 37 Cap. I - Os criadores e civilizadores . . . . . . . . . . . . . Herois-civilizadoref! de outras tribus tupi-guaranis . . Nota§ ao cap. I (Estevão Pinto) . . . . . . . . . . . . . . . . . Cap. II - 39 58 68 Os gemeos míticos . .. . .. .. .. .. . . . .. .. 75 Notas ao cap. II (Estevão Pinto) . . . . .. . . . • . . . . . 90 Cap. III - Mitos cosmicos e mit os da criação . . . 92 A destruição do mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92 A criação da humanidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96 A origem do fogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97 Mitos astrais . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98 Notas ao cap. 111 (Estevão P into) . . . . . . . . . . . . . . 102 Cap. IV - 109 Tupã, o demonio do trovão . . . . . . . . . . . . . . . . . . Notas ao cap. IV (Estevão Pinto) . . . . . . . . . . . . . . . 115 Os geniof! da mata . . . . .. . . . .. .. . . . . .. . 117 Notas ao cap. V (Estevão Pinto) . . . . . . . . . . . . . . . • 130 Ca p . VI - Os espíritos . . .. . . .. . . .. . .. .. .. . . . . . .. 137 Notas ao cap. VI ( E!!_tevilo Pinto) . . . . . . . . . . . . . . . . l.W Cap. V - -419- O feitlceiro .........................• 153 Notas ao cap. VII (Estevão Pinto) ....... . . . .... . 170 Cap. VIII - O tratamento das doenças ... . ...... . 181 Notas ao cap. VIII (Estevão Pinto) •............ 184 Cap. ,YII - Cap. IX - Ritos concernentes ao nascimento, à puberdade e ao casamento .... . ...................... . . . ....189 Nascimento 189 Puberdade dos rapazes ................. . .... . 199 A primeifa menstruação ..................... . 202 ..... Casamento ···· · ·· ····· · · · · · · · · ····· · · · '~' .. .... . 207 Notas ao cap. IX, (Estevão Pinto) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 208 Cap. X - 211 Cerimonias funerarias e crenças no alem-turnulo Notas ao cap. X (Estevão Pinto) 224 Cap. XI - 226 A antropofagia ritual dos tupinarnbás . Cerimonias preliminares à execução do prisioneiro 241 O primeiro dia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245 O segundo dia m O terceiro dia ........................... . .. .. 248 O quarto dia 248 ••••• • o •• • •• o ••••• ~ • o ..... . .. . ... . O quinto dia 255 Precauções tornadas pelo mat ador . . . . . ..... .. . 273 Notas ao cap. XI (Estevão Pinto) .............. . 281 Cap. XII - 285 Praticas magicas e crenças diversas ...... . Agricultura 285 Guerra 287 Caça Navegação :m 289 --. 420- ~ Tecnica 292 Tabus 292 Vida sexual 293 Estados físicos 294. Estados afetivos 294. Sonhos 294. Ornamentos, colares, etc. . . . ............... . . . 295 Reino animal ... ..... .... . .. . ...... . ... . . . . . 296 O mito das amazonas ............... ... ..... .. 296 Notas ao cap. XII (Estevão Pinto) 297 Cap. XIII - 299 A saudação lacrimosa Notas ao cap. XIII (Estevão Pinto) ............ . 309 Cap. XIV - 311 Festas e dansas ...... . ........ .. .. . ......... . .. . ................. · ·. · · . · · 316 Notas ao cap. XIV (Estevão Pinto) . ... .. . ..... . 319 Cantos Cap. XV - A festa do cauim .. .... ... ......... . . . . . . .. . - Notas ao cap. XV (Estevão Pinto) ... . .. ..... ... . Cap. XVI - 321 327 O mito da "terra sem mal" e as crenças, por parte dos indígenas sul-americanos, em um mundo ideal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . Notas ao cap. X VI (Estevão· Pinto) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 328 364 367 Apendices Mitos dos tupinambás . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 367 A antropofagia ritual dos tupinambás . . . . . . . . . . . . . . . 38"7 lndice bibliografico 407 Indice das estampas e figuras .. .. .. .. .. . .. .. .. .. .. .. . 1·' 7 -421- Est. 11. A. - Feiticf<iros tupinambâs, cobertos com os manto1 de 1Jlumaa, lançam fumaça nos índios, que dansam em redor. 6fltU Est. 11. B. - Enterro de um índio tupinambá (segundo De Rry). Est. 111. A. - Iudigcnas tupinamúâs sitiam uma aldeia fortificada (segundo De JJry). Est. I li. U. - H arda tupinambá, 'l'itorio.•a, conduziu do colonos europeu.~ prisioneiro.~ ( segu11do De JJry). Est. IV. A. - Jlulhe·res tupinambá.s dnusnm em torno do prisioneiro, que será, depois, mo·r to (seguudo De Bry). Est. I V. B. - l11dios tupinnmbds, em expedição, dnn8rom com o objetivo de ntrair a proteção dos espirito.~ ( segunclo De Bry). Est. V. A. - O prisi01~e·iro é conduzido ao pateo da aldeia, antes de ser exe'cutado. Procede-se ii sua toilette (segundo De Bry). Est. V. n. - O tacape, com o qual o prisioneiro vai ser executado, é tingido e recoberto de plumas. O prisioneiro, ao fundo, está sendo enfeiifHlo (segundo De Bry) . Est. ·vi. A. E.1:ecução de wm prision eiro (segundo De Bry) . .. Est. VI. !3. - O corpo elo prtstoneiro é lavado e raspado, auf (;S do seu esquartejamento (s egundo De Hry). Est. Yll. A. Est. Eiq'Ultrtejnmento do r.orpo (lo priaiv?ll!iro ( .~errundo De Hry). vn. n. - Refeição antropo{fi[Jicn, eutre os IUJ1i- 71l!mbâa (segundo De Br,IJ). Est. VIII. A. - Est. Yl I I. B. - Os tupiunmbtís combatem em (segundo De JJry). Fe.~ta ClfllOW! do cattim, entre os tupiunmbâs Thevet). (~tegundo Est. IX. A. - Saudação lacrimosa a um francês, feit(t zJelos tupinambás (segundo Thevet). Est. IX. B. - Salivação nas cubas de mandioca ou de milho pelas mulheres tupinambás, para o fim de f ermentar a bebida (seguudo Thev et).