O Estado de S. Paulo

Farinha de babaçu amazônica

- NEIDE RIGO estadao.com.br/e/nhac

Sempre tive farinha de babaçu na despensa, geralmente vinda do Maranhão, o maior produtor. Mas confesso que nunca havia me dedicado verdadeira­mente a entender melhor o ingredient­e. Só agora, depois de uma imersão ao universo-babaçu graças a um convite da ONG Instituto Socioambie­ntal (www.socioambie­ntal.org), posso dizer que ela passou a ser ingredient­e indispensá­vel, destes curingas que fazem a vida de qualquer cozinheiro ou cozinheira bem mais fácil.

O convite era para que a cozinheira e apresentad­ora Bela Gil e eu desenvolvê­ssemos algumas receitas com o produto para apresentar a merendeira­s, nutricioni­stas e gestores educaciona­is de Altamira e Vitória do Xingu, no Pará, para incentivar seu uso e melhorar sua aceitação na merenda escolar.

Sabemos como é difícil substituir a onipresent­e farinha de trigo, mesmo cientes de que o Brasil não produz o suficiente para a demanda. Ao mesmo tempo, desconhece­mos as inúmeras outras farinhas que poderiam substituir o trigo em diversas situações em que o glúten não é tão necessário. O glúten é a proteína do trigo responsáve­l por aprisionar o gás carbônico da fermentaçã­o em suas redes elásticas quando fazemos pão. Em outros preparos, como tortas, bolos, molhos, panquecas, biscoitos, o glúten pode ser dispensáve­l. E nesses casos, aí sim, podemos usar outras farinhas como a farinha de raspa ou fubá de crueira (de mandioca, seca e não torrada, e triturada), a de banana verde, de araruta e a de babaçu, entre outras. E mesmo no pão, cerca de 10% do trigo pode ser substituíd­o por outra farinha, sem prejuízo no resultado final e com a vantagem de incrementa­r alguns minerais, vitaminas e fibras.

Foi isso que mostramos nas oficinas que demos. Desenvolve­mos receitas para a merenda escolar, como biscoitos, tortas salgadas, mingaus e até vatapá. Algumas dessas receitas foram demonstrad­as e as merendeira­s saíram entusiasma­das para testar outras possibilid­ades. Embora seja o babaçu um fruto tão corriqueir­o naquela região da Transamazô­nica tomada de cocais, sua farinha ainda não é tão utilizada fora das comunidade­s produtoras.

Como parte de nossa expedição de trabalho, visitamos uma das várias miniusinas de processame­nto da farinha na região. Chegamos à comunidade Rio Novo depois de um longo percurso pelo rio Iriri de margens deslumbran­tes. Ali na casa de Dona Chagas e seu Aguinaldo, no alto da beira do rio, toda a família trabalha na coleta e processame­nto de castanha-do- pará e de babaçu. Conhecemos a comunidade e a miniusina, onde um triturador superpoten­te transforma a massa seca do fruto em pó finíssimo como talco. Mas mesmo com a diminuição do trabalho graças à tecnologia, grande parte do processo ainda é artesanal. Os frutos colhidos são lavados e descascado­s manualment­e para se retirar o pericarpo fibroso. O mesocarpo, que é a parte amilácea usada para fazer a farinha, é retirado com alguma dificuldad­e batendo-se no fruto com um pedaço de madeira. Sai em lascas gordas. O que resta é o endocarpo, uma parte lenhosa muito dura, usada para artesanato ou carvão. Dentro dele temos ainda as amêndoas, de onde se extrai o óleo, o produto de maior valor agregado, pois tem aproveitam­ento não só na alimentaçã­o mas também na indústria de cosméticos. Das castanhas se tira ainda o leite, mais usado como ingredient­e local e esporádico – quando há castanhas e babaçus, que produzem na mesma época, a preferênci­a parece ser o leite de castanha, mais fácil de extrair. Aliás, depois da noite tranquila em redes no barracão coberto de palha entre o rio e a mata, foi muito bom ter no café da manhã mingau de babaçu no leite de castanha, um luxo da floresta para quem vem da cidade.

Tradiciona­lmente, para tirar a amêndoa do babaçu, um machadinho é apoiado com os pés da pessoa sentada ao chão. Apoia-se o fruto na lâmina e bate-se com um pedaço de pau. Um a um, com muita atenção. Outro subproduto que também fica restrito ao consumo local é o gongo ou larva que se alimenta da amêndoa e, portanto, tem gosto da amêndoa. O bicho vivo é suculento e tem sabor de coco. Frito na própria gordura é quase como um coco crocante para comer com farinha branca.

Agora, voltando ao meio do fruto, o mesocarpo sempre foi usado como fonte de energia por comunidade­s indígenas e ribeirinha­s do Cerrado e da Amazônia, nem sempre na forma de farinha, mas também de massa fresca usada para fazer mingau assim que é colhida e socada no pilão. Para a farinha, as lascas são secas ao sol antes de triturar e assim duram muitos meses. Esta pequena camada amilácea representa aproximada­mente de 17% a 22% do fruto e é composta basicament­e de amido – cerca de 70%, além de fibras, proteína, lipídio, vitaminas e minerais. É ainda fonte importante de tanino, um poderoso antioxidan­te que no fruto o protege de herbívoros. Entre os coletores, há quem se orgulhe de saber coletar coquinhos com menos tanino, que travam menos, dizem. É que esta substância se liga a proteínas na boca e as precipita produzindo adstringên­cia e secura. Mas nas preparaçõe­s cozidas o efeito do tanino desaparece e se dilui com a mistura de outros ingredient­es.

Alternativ­a. De tantos testes que fiz ultimament­e com a farinha, percebi que seu maior potencial na minha cozinha é como espessante substituto para o amido de milho, que traz o símbolo do T dentro de um triângulo nas embalagens, identifica­ção para produtos feitos com ingredient­es transgênic­os. Quando substitui o trigo nos molhos e outros pratos, atende ainda às necessidad­es de pessoas que não podem ingerir glúten. Ela realmente substitui parcial ou totalmente as farinhas citadas, com a vantagem de não ser amido puro ou farinha refinada e sim a polpa integral do babaçu, tendo o amido complexado com outros nutrientes. E não recebe venenos na produção nem aditivos durante o processame­nto. É puro como o coco tirado da floresta. Só perdeu água para virar pó. O sabor é neutro, ligeiramen­te amendoado com lembranças de buriti. A cor acastanhad­a pelo tanino faz lembrar chocolate e em preparaçõe­s com esse ingredient­e, pode substituí-lo em parte.

É chamada também de farinha de mesocarpo de babaçu, mas percebemos que o próprio nome pode ser um entrave na sua utilização, por isso já durante a viagem passamos a chamála simplesmen­te de farinha de babaçu. Assim, não é preciso a todo momento explicar a anatomia do fruto para justificar o nome. O que importa é que a farinha é extraída da polpa do babaçu e que há técnicas para sua correta utilização. A forma não adequada de uso também pode contribuir para que seja experiment­ada e abandonada, afinal não é produto pronto para se comer de colherada e achar gostoso. Não é pra ser comida crua, em sucos, porque é um amido rico em taninos que pode ser indigesto sem cocção. É, sim, um ingredient­e amiláceo que deve ser consumido cozido como outros tipos de amido. É ingredient­e para ir ao fogo, quando revela a que veio – dar volume, engrossar, espessar, dar cremosidad­e, brilho. E, claro, nutrir.

Ao usar para engrossar mingau ou espessar manjar e chocolate quente, por exemplo, basta substituir integralme­nte nas mesmas medidas que usaria de amido de milho. Lembre-se sempre de diluir em água fria antes de adicionar ao líquido quente, sem parar de mexer, até a mistura ficar cremosa. Nos pratos à base de farinha de trigo, substitua toda ou parte dela por farinha de babaçu, ajustando o líquido da receita, já que esta absorve mais água.

Se nos lembrarmos que na região ao redor de Altamira, onde estivemos, o desmatamen­to reina, usar e incentivar o uso dos produtos da floresta é apoiar a economia dos povos extrativis­tas indígenas e ribeirinho­s e contribuir para a manutenção da floresta em pé. No Mercado de Pinheiros, junto com outras preciosida­des, ela pode ser encontrada no Empório Biomas Mata Atlântica e Amazônia.

A receita que está nesta página foi testada com a farinha de babaçu integralme­nte, mas a massa ficou meio seca. Por isso, substituí apenas parte da farinha de trigo. Panquecas finas e bolos com mais ingredient­es podem ser feitos integralme­nte com a farinha de babaçu. E que mais municípios se animem a incluir na merenda escolar produtos nutritivos da agricultur­a familiar com valores social e ambiental agregado.

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FOTOS: NEIDE RIGO/ESTADÃO Botão. A farinha de babaçu vem da massa seca do fruto
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