“Se olharmos para o todo, continuamos com valores preocupantes de quantidade de precipitação”

Ricardo Deus, responsável pela Divisão de Clima do IPMA, acredita que nos devemos “preocupar” com a probabilidade de uma nova situação de seca no Verão, apesar de ainda haver conforto.

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As temperaturas devem rondar os 30 graus Celsius em partes de Portugal na altura da Páscoa Nuno Alexandre

A Primavera começa com temperaturas superiores à média para esta altura do ano e ainda não se ouviu o tão famoso ditado “em Abril águas mil”. Ricardo Deus, responsável pela Divisão de Clima e Alterações Climáticas do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), afirma que esta subida não é incomum e que as chuvas poderão surgir nas próximas semanas. As previsões do IPMA apontam para um fim-de-semana de Páscoa de sol e calor.

Esta variabilidade do estado do tempo em curtos períodos é usual e, por isso, para o meteorologista, não é “adequado” dizer que estas flutuações se inserem meramente “no âmbito das alterações climáticas”, mas que acontecem “num contexto de alterações climáticas”. Fica, no entanto, um aviso. Ricardo Deus observa uma tendência de défice de precipitação que, se continuar nos próximos meses, poderá colocar algumas regiões “nas classes mais graves de seca meteorológica”.

O calor dos próximos dias é normal para a época?
Acabámos de entrar na época da Primavera e é usual que, por vezes, ocorram nestes períodos do ano alguns dias consecutivos com temperaturas mais elevadas, ou acima do normal. É uma situação que acaba por ser recorrente.

O que causa estas subidas de temperatura?
O que fica associado a estes períodos mais longos de temperaturas elevadas e céu limpo é o regime de circulação anticiclónica, que normalmente se posiciona no Atlântico à frente do nosso território. Este regime faz com que não haja a passagem de superfícies frontais e de algumas depressões que possam passar no nosso território que influenciam o tempo, e normalmente estão associados a regimes de precipitação. É uma condição relacionada com o posicionamento do sistema anticiclónico que está no atlântico oeste.

Isto pode estar de alguma forma ligado às alterações climáticas?
Fazemos sempre, tendencialmente, uma ligação quando falamos de temperaturas elevadas com as alterações climáticas. Mas, quando falamos em variações nestes períodos curtos – estamos a falar de dez dias com céu limpo – é uma coisa que é usual acontecer. Então, dizermos que estes cinco dias ou estes dez dias estão associados às alterações climáticas não me parece adequado. Até porque, quando fazemos análises de clima, estamos a olhar para períodos muito mais alargados e não para uma situação tão pontual como esta.

Como é óbvio, se estas situações de vários dias consecutivos de céu limpo se estenderem durante quase um ou dois meses, estaremos a falar de um impacto muito grande. E, aí sim, podíamos estar a falar de uma situação perfeitamente anormal para a época. Sobre esta flutuação do estado de tempo não me parece que possamos dizer “está no âmbito das alterações climáticas”, diria antes que é uma variabilidade de clima que é usual, mas que está a acontecer num contexto de alteração climática.

E podem existir problemas de disponibilidade de água?
Se continuarmos nos próximos meses com esta tendência de défice de precipitação, poderemos entrar novamente nas classes mais graves de seca meteorológica em algumas regiões do país.

Apesar de termos tido, em 2022, um ano atípico com uma seca prologada e persistente – uma seca meteorológica, com repercussões na seca agrícola, e depois na seca hídrica e de alguma forma na seca social – nos últimos meses de 2022, aconteceram alguns fenómenos de precipitação intensa, o que fez com que todos os níveis relacionados com os índices de seca tenham melhorado. [Por isso], saímos de uma situação de seca meteorológica que atingia todo o território continental, para [uma em] zonas mais confinadas, onde os índices de seca meteorológica se mantêm um bocado elevados, mas já numas classes muito mais baixas.

Agora entramos no ano de 2023, e se olharmos para estes meses iniciais, principalmente Fevereiro e Março, observamos meses com precipitação abaixo do normal. E, portanto, voltamos a entrar numa situação de défice de precipitação.

Isto deve-nos preocupar a todos, porque apesar de termos recuperado um bocadinho os níveis de água no solo com a precipitação no final do ano passado, se olharmos para o todo, continuamos com valores preocupantes de quantidade de precipitação.

Teremos então que, desde já, voltar a olhar com mais atenção para esta questão meteorológica. Porque, com o avançar dos meses e com a entrada de uma época estival [Verão], a quantidade de precipitação que irá ocorrer será menor do que é provável acontecer agora. Tudo isto poderá precipitar-nos para um Verão com uma situação em que a seca meteorológica se instale, e depois se propague a uma seca agrícola, hídrica.

De momento, como é óbvio, estamos numa situação ainda de algum conforto, mas que deixa de [o] ser se continuarmos, durante os próximos meses, com regimes de precipitação abaixo do normal.

Tem de nos preocupar a todos, às entidades que fazem a gestão destas duas componentes, a gestão hídrica e a gestão agrícola.

O que aconteceu ao “em Abril águas mil”?
O trabalho que fazemos de previsão a longo prazo aponta para que haja uma ou duas semanas com precipitação acima do normal. E, portanto, é a nossa expectativa que essa precipitação acima do normal possa acontecer ainda durante o mês de Abril.

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A nossa previsão [para esta semana] apontava para temperaturas acima e precipitação abaixo do normal. Mas existe já, na próxima semana, um indicador que nos aponta para que haja uma probabilidade razoável de termos precipitação. Embora seja uma previsão, e a variabilidade faz com que tenhamos alguma precaução quando fazemos este tipo de análises a longo prazo, o sinal acaba por ser consistente.

Esta subida de temperaturas aumenta também o risco de incêndios?
O risco de incêndio tem uma dependência muito grande de factores meteorológicos. Não olhando para outros factores, olhando apenas para os factores meteorológicos, aumentando a temperatura, diminuindo a humidade e se existir um regime de vento elevado, estamos a criar as condições para que os valores do Índice Meteorológico de Risco subam dentro das classes de risco. O que é natural, porque existe uma dependência muito grande destes parâmetros meteorológicos. Havendo essas dependências, e esses valores aumentando, o índice também aumentará.

Sente-se muito calor de dia e muito frio de noite. Porque varia tanto a temperatura?
Não estamos ainda num período do ano onde a temperatura do ar permanece em valores mais elevados, como é no Verão. Estamos numa época de transição em que, com situações de vários dias de céu limpo, é normal durante o dia a temperatura do ar aquecer pelo forçamento radiactivo, isto é, com a radiação solar a incidir sobre a superfície. Depois, quando a radiação solar deixa de fazer a sua acção sobre a superfície esta tende a arrefecer mais rápido e o ar que rodeia a superfície da terra fica também mais frio.

Não temos valores acima dos 30 ou 35 graus, são valores acima da média, mas ainda não são temperaturas que possamos considerar de Verão. A temperatura e o ar à superfície aquecem rapidamente, mas depois também arrefecem rapidamente quando deixam de ter esse input de radiação solar.

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