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REM4rE DE M42 ES Campinas-SP, v.41, m., pp. 238-267, jan./jun. 2021 A ESTRUTURA PSICOLOGICA DO FASCISMO' Georges Bataille I-A parte homogénea da sociedade A descricio psicoldgica da sociedade deve comecar pela parte mais acessivel ao conhecimento ~ aparentemente, parte fundamental —, cujo carater significative é a homogeneidade® tendencial. Homogeneidade significa aqui comensurabilidade dos elementos ¢ consciéncia desta comensurabilidade (as relacdes humanas podem ser mantidas por uma reduco a regras fixas, baseadas na consciéncia da identidade possivel de pessoas e de situagdes definidas; a principio, toda violencia esta excluida do curso de existéncia assim implicado). A base da homogeneidade social éa producao. A sociedade homogénea a sociedade produtiva, quer dizer, a sociedade util. Todo elemento inutil é excluido, nao da sociedade total, mas de sua parte homogénea. Nesta parte, cada elemento deve ser util a um outro sem que a atividade homogénea jamais possa atingir a forma da atividade vélida em si. Uma atividade util sempre tem uma medida comum com uma outra atividade titi], mas no com uma atividade por si. A medida comum, fundamento da homogeneidade social e da atividade que dela deriva, é 0 dinheiro, quer dizer, uma equtivaléncia cifravel de diferentes produtos da atividade coletiva. O dinheiro serve para mensurar qualquer trabalho e faz do homem uma fungao de produtos Publicado originalmente em La Critique Sociale, n. 10, Paris, 1933 > As palavras homogéneo, heterogéneo e suas derivadas sao sublinhadas sempre que forem entendidas em um sentido particular a esta exposicao. DOI: 10.20396/remate.v4rit.8664633 mensurdveis. Cada homem, segundo o juizo da sociedade homogénea, vale pelo que produz, quer dizer, deixa de ser uma existéncia por si: nada mais é que uma funcdo, ordenada internamente aos limites mensurdveis, da producao coletiva (que constitui uma existéncia por outra coisa que ndo por si). Mas 0 individuo homogéneo nao é verdadeiramente funcdo de seus produtos pessoais sendo na producao artesanal, quando os meios de producao sao relativamente pouco custosos e podem ser possuidos pelo artesdo. Na civilizacdo industrial, o produtor se distingue do detentor dos meios de producao, e é este tiltimo que se apropria dos produtos: por conseguinte, ele é, na sociedade moderna, funcao dos produtos; é ele, e no o produtor, quem funda a homogeneidade social. Assim, na ordem atual das coisas, a parte homogénea da sociedade é formada poraqueles homens que detém os meios de produc4o ou o dinheiro destinado a sua manutengéo e a sua compra. E na classe dita capitalista ou burguesa, exatamente na parte média dessa classe, que se opera, basicamente, a redugdo tendencial do carater humano a uma entidade abstrata e intercambiavel, reflexo das coisas homogéneas possuidas. Essa reducao se estende em seguida, na medida do possivel, as classes geralmente ditas médias, que se beneficiam de partes do lucro apreciadas. Maso proletariado operario resta em grande parte irredutivel. A posicao que ele ocupa na relagaio com a atividade homogénea é dupla: esta o exclui no quanto ao trabalho, mas quanto ao lucro. Enquanto agentes de produgao, os operarios entram nos quadros da organizac’o social, mas a redugao homogénea toca, em principio, somente a sua atividade assalariada; eles sao integrados a homogeneidade psicolégica quanto a seu comportamento profissional, nao, em geral, enquanto homens. Fora da fabrica, e mesmo fora de suas operagdes técnicas, um operdrio é, em relagéo a uma pessoa homogénea (patrao, burocrata etc.), um estranho, um homem de outra natureza, de uma natureza nao reduzida, nao submetida: Il-O Estado No periodo contemporaneo, a homogeneidade social esta essencialmente ligada & classe burguesa: assim a concepgao marxista se acha mantida enquanto o Estado € representado a servico da homogeneidade ameacada. A principio, a homogeneidade social é uma forma precaria, 4 mercé davioléncia e até de dissenc6es internas. Forma-se espontaneamente no Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jun. 2023 ~ 230 jogo da organiza¢ao produtiva, mas deve ser, sem cessar, protegida contra os diversos elementos agitados que nao tiram proveito da producao, ou tiram-no menos do que gostariam, ou, simplesmente, nado podem suportar os freios que a homogeneidade opée aagitacao. Nessas condigées, a salvaguarda da homogeneidade deve ser encontrada recorrendo-se a elementos imperativos capazes de aniquilar ou de reduzir a uma regra as diferentes forcas desordenadas. O préprio Estado nao é um desses elementos imperativos, distingue- -se dos reis, dos chefes de exército ou das nagdes, mas é resultado das modificagdes sofridas por uma parte da sociedade homogénea em contato com tais elementos. Essa parte constitui uma formacao intermediaria entre as classes homogéneas e as instancias soberanas, as quais deve tomar emprestado seu carater obrigatério, mas que exercem sua soberania apenas por intermédio dela. Somente a propésito destas tiltimas instancias que sera possivel visualizar de que maneira esse carater obrigatorio & transferido para uma formacao que nao se constitui, entretanto, como uma existéncia valida em si (heterogénea), mas apenas como uma atividade cuja utilidade na relacao com a outra parte é sempre manifesta. Praticamente, a funcdo do Estado consiste em um jogo duplo de autoridade e adaptagao. A redugdo das divergéncias por compensagiio na pratica parlamentar indica toda a complexidade possivel da atividade interna de adaptagdo necessaria a homogeneidade. Mas, contra as forcas inassimilaveis, o Estado decide pela autoridade estrita. Conforme o Estado seja democratico ou despédtico, a tendéncia que prevalece é a adaptagao ou a autoridade. Na democracia, 0 Estado tira a maior parte de sua forca da homogeneidade espontanea que ele nada mais faz do que fixar e constituir como uma regra. O principio de sua soberania - a nacao -, que lhe confere ao mesmo tempo seu fim e sua forca, encontra-se logo diminuido pelo fato de que os individuos isolados se consideram a si mesmos, cada vez mais, como fins em relacio ao Estado, que existiria para eles antes de existir para a nacéo. E, nesse caso, a vida pessoal se distingue da existéncia homogénea enquanto valor a dar-se como incomparavel. III - Dissociacées, criticas da homogeneidade social e do Estado Mesmo em circunstancias dificeis, o Estado é suficiente para manter impotentes as forgas heteragéneas, que nado cedem sendo por sua coer¢ao. Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jun. 2021 ~ 240 Mas ele pode sucumbir a uma dissociacao interna da parte da sociedade da qual ele nada mais é do que a forma constritora. Fundamentalmente, a homogeneidade social depende da homogeneidade (no sentido geral do termo) do sistema produtivo. Assim, cada contradicao nascente do desenvolvimento da vida econémica arrasta consigo uma dissociacdo tendencial da existéncia social homogénea. Essa tendéncia a dissociacdo se exerce da forma mais complexa, sob todos os planos e em todos os sentidos. Entretanto somente atinge formas agudas e perigosas na medida em que uma parte consideravel da massa de individuos homogéneos deixa de se interessar pela conservacao da forma de homogeneidade existente (nao porque ela € homogénea, mas, pelo contrario, porque esta perdendo seu cardter préprio). Essa fragao da sociedade associa-se, entao, espontaneamente a forcas heterogéneas ja compostas e confunde-se com elas. Assim, as circunstancias econémicas agem diretamente sobre elementos homogéneos que elas desintegram. Mas essa desintegracdo representa somente a forma negativa da efervescéncia social: os elementos dissociados nao agem antes de ter sofrido uma alteracao completa, a qual caracteriza a forma positiva dessa efervescéncia. A partir do momento em que eles se juntam as formacées heterogéneas ja existentes (em estado difuso ou organizado), tomam-lhes emprestado um carater novo, o carater positivo geral da heterogeneidade. Ademais, a heterogeneidade social nao existe em estado informe ou desorientado: tende pelo contrario, de modo constante, a uma estrutura distinta e, quando os elementos sociais passam para a parte heterogénea, sua acdo encontra-se ainda condicionada pela estrutura atual desta parte. Assim, 0 modo de solucio de contradicées econémicas agudas depende do estadio histérico e ao mesmo tempo das leis gerais da regio social heterogénea na qual a efervescéncia toma uma forma positiva; depende, particularmente, das relacées estabelecidas entre as diversas formagées dessa regiao no momento em que a sociedade homogénea se encontra materialmente dissociada. Oestudo da homogeneidade e de suas condigdes de existéncia conduz assim ao estudo essencial da heterogeneidade. Constitui, alias, a primeira parte dele, no sentido que a primeira determinagao da heterogeneidade definida como n3o homogénea pressupde o conhecimento da homogeneidade que a delimita por exclusao. Remate de Males, Campinas-SP, v.41, 1, pp. 238-267, jan./jun. 2021 ~ 241 IV - Aexisténcia social heterogénea Todo problema de psicologia social repousa precisamente sobre a necessidade de conduzir a andlise principalmente por uma forma que no apenas é dificil de estudar, mas cuja propria existéncia ainda nao tenha sido objeto de uma determinagao positiva. O préprio termo heterogéneo indica que se trata de elementos impossiveis de assimilar, ¢ essa impossibilidade que toca, basicamente, Aassimilagao social, toca ao mesmo tempo a assimilagao cientifica. Esses dois modos de assimilagao tém uma mesma estrutura: a ciéncia tem por objeto fundar a homogeneidade dos fenémenos; em certo sentido, ela é uma das funges eminentes da homogeneidade. Assim, os elementos heterogéneos que ficam excluidos desta encontram-se igualmente excluidos do campo de atengdo cientifica: mesmo por principio, a ciéncia nao pode conhecer elementos heterogéneos enquanto tais. Obrigada a constatar a existéncia de fatos irredutiveis — de natureza tao incompativel com sua homogeneidade quanto os criminosos natos, por exemplo, coma ordem social -, ela se acha privada de qualquer satisfacdo funcional (explorada da mesma maneira que um operdrio em uma fabrica capitalista, utilizada sem participar dos lucros). Com efeito, a ciéncia nao é uma entidade abstrata: ela é constantemente redutivel a um conjunto de homens que vivem as aspiragdes inerentes ao proceso cientifico. Nessas condicées, os elementos heterogéneos, enquanto tais pelo menos, encontram-se submetidos a uma censura de fato: toda vez que podem ser objeto de uma observacao metédica, falta a satisfa¢ao funcional, e, sem tal circunstancia excepcional - a interferéncia de uma satisfacao cuja origem, écompletamente outra -, ndo podem ser mantidos no Ambito da atencao. A exclusio dos elementos heterogéneos fora do dominio homogéneo da consciéncia lembra assim, formalmente, a dos elementos descritos (pela psicandlise) como inconscientes, que a censura exclui do eu consciente. As dificuldades que se opdem A revelacdo das formas inconscientes da existéncia sio da mesma ordem que aquelas que se opdem. ao conhecimento das formas heterogéneas. Como veremos em seguida, certas caracteristicas sao, ademais, comuns a essas duas formas, e, embora nao seja possivel acrescentar imediatamente precisées sobre esse ponto, parece que o inconsciente deva ser considerado como um dos aspectos do heterogéneo. Se admitida essa concep¢ao, dado o que se conhece do recalque, sera tanto mais facil compreender que as incursées ocasionais feitas no dominio do heterogéneo nao tenham sido ainda suficientemente Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jun. 2022 ~ 242 coordenadas para alcangar mesmo que a mera revelagao de sua existéncia positiva e claramente separada. Como indicagéo de importancia secundaria, a fim de contornar as dificuldades internas que acabam de ser levantadas, é necessdrio estabelecer os limites das tendéncias inerentes a ciéncia e constituir um conhecimento da diferenca ndo explicdvel, que pressupde 0 acesso imediato da inteligéncia a uma materia anterior 4 reducao intelectual. Provisoriamente, basta expor os fatos conformea sua natureza e introduzir, com vistas a definir o termo heterogéneo, as seguintes consideragées: 12 Da mesma maneira como mana e tabu designam na sociologia religiosa formas restritas a aplicacées particulares de uma forma mais geral, o sagrado, o sagrado pode ser considerado como uma forma restrita em relacao ao heterogéneo. Mana designa uma forca misteriosa e impessoal da qual dispdem certos individuos, tais como reis e feiticeiros. Tabu indica a proibigao social de contato, a qual se aplica, por exemplo, aos cadaveres ou as mulheres durante o periodo menstrual. Esses aspectos da vida heterogénea sao faceis de definir, em razao dos fatos precisos e limitados aos quais se referem. Em contrapartida, uma compreensao explicita do saqrado, cujo dominio de aplicacao ¢ relativamente vasto, apresenta dificuldades consideraveis. Durkheim viu-se na impossibilidade de dar uma definic3o cientifica positiva dele; contentou-se com a caracterizagdo negativa do mundo sagrado como absolutamente heterogéneo em relagao ao mundo profano (DURKHEIM, 1912, p. 53) Entretanto, pode-se admitir que 0 sagrado seja positivamente conhecido, ao menos de uma maneira implicita (sendo a palavra de uso corrente, representada em todas as linguas, seu uso supde uma significacdo percebida pelo conjunto dos homens). Esse conhecimento implicito de uma valor que se refere ao dominio heterogéneo permite comunicar a sua descri¢do um carater vago mas positivo. Ora, é possivel dizer que uma parte importante do mundo heterogéneo é constituida pelo mundo sagrado e que reacGes analogas as que provocam as coisas sagradas revelam aquelas de coisas heterogéneas que nao sao propriamente vistas como sagradas. Essas reagdes consistem. > Seguindo sua analise, Durkheim (1912) termina por identificar 0 sagrado com o social, mas essa identificacao necessita da introdugaio de uma hipstese ¢, independentemente de seualcance, nao tem o valor de uma defini¢ao imediatamente significativa (ela representa, alias, a tendéncia da ciéncia a propor uma representac3o homogénea a fim de escapar a presenca sensivel de elementos profundamente heteragéneos), Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./juun. 2021 ~ 243 em que se supée a coisa heterogénea carregada de uma forga desconhecida e perigosa (a lembrar o mana polinésio) e que certa proibicao social de contato (tabu) a separa do mundo homogéneo ou vulgar (correspondente ao mundo profano da oposicao estritamente religiosa). 2° Fora das coisas sagradas propriamente ditas, que constituem o dominio comum da religido e da magia, o mundo heterogéneo compreende © conjunto de resultados da despesa improdutivat (as proprias coisas sagradas formam uma parte desse conjunto). O que significa: tudo 0 que asociedade homogénea rejeita, seja como dejeto, seja como valor superior transcendente. Sao os produtos de excrecao do corpo humano e certas matérias andlogas (lixo, vermes etc.); partes do corpo, pessoas, palavras ou atos que tenham um valor erédtico sugestivo; diversos processos inconscientes, tais como os sonhos e as neuroses; intimeros elementos ou formas sociais que a parte homogénea é impotente para assimilar: as multidées, as classes guerreiras, aristocraticas e miseraveis, os diversos tipos de individuos violentos ou, pelo menos, que recusam a regra (loucos, lideres, poetas etc.). 32 Os elementos heterogéneos provocam reacées afetivas de intensidade varidvel a cada pessoa, e pode-se supor que 0 objeto de qualquer reacao afetiva seja necessariamente heterogéneo (se nao em geral, pelo menos na relacao com o sujeito). Ora ha atrac’o, ora repulsa, todo objeto de repulsa pode tornar-se sob certas circunstancias objeto de atragao e vice-versa. 42 A violéncia, o desmesurado, o delirio, a loucura, caracterizam sob graus diversos os elementos heterogéneos: ativos, por pessoas ou por multidées, eles se produzem rompendo as leis da homogeneidade social. Essa caracteristica nao se aplica de maneira apropriada aos objetos inertes, conquanto estes apresentem certa conformidade com os sentimentos extremos (pode-se falar da natureza violenta e desmesurada de um cadaver em decomposicao). 5° A realidade dos elementos heterogéneos nao é da mesma ordem que aquela dos elementos homogéneos. A realidade homogénea se mostra sob 0 aspecto abstrato e neutro dos objetos estritamente definidos e identificados (ela é, basicamente, realidade especifica dos objetos solidos). A realidade heterogénea é aquela da forca ou do choque. Surge como uma descarga, como um valor, passando de um objeto a outro de Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jun. 2021 ~ 244 maneira mais ou menos arbitréria, quase como se a mudanga tivesse lugar nao no mundo dos objetos, mas apenas nos juizos dos sujeitos. Esse ultimo aspecto nao significa, porém, que os fatos observados devam ser vistos como subjetivos: assim, a agao dos objetos de natureza erdtica é manifestamente fundada em sua natureza objetiva. Entretanto, de maneira desconcertante, 0 sujeito tem a possibilidade de deslocar 0 valor excitante de um elemento para um outro analogo ou vizinho. Na realidade heterogénea, os simbolos carregados de valor afetivo tém assim a mesma importancia que os elementos fundamentais, e a parte pode ter o mesmo valor que o todo. E facil constatar que - sendo a estrutura de conhecimento de uma realidade homogénea aquela de uma ciéncia - a estrutura de conhecimento de uma realidade heterogénea enquanto tal se acha no pensamento mitico dos primitivos e nas representagdes do sonho: ela é idéntica a estrutura do inconsciente.* 62 Em resumo, a existéncia heterogénea pode ser representada em relacdo a vida corrente (cotidiana) como totalmente outra, como incomensurdvel, sendo esses termos carregados do valor positivo que tém na experiéncia afetiva vivida. Exemplos de elementos heterogéneos Referidas agora essas proposicées a seus elementos reais, os lideres fascistas pertencem, incontestavelmente, a existéncia heterogénea. Opostos aos politicos democratas, que representam em diferentes paises achateza inerente a sociedade homogénea, Mussolini ou Hitler aparecem de imediato ressaltados como totalmente outros. Quaisquer que sejam os sentimentos que sua existéncia atual como agentes politicos da evolugao provoque, é impossivel nao ter consciéncia da forga que os situa acima dos homens, dos partidos e até das leis: forca que quebra o curso regular das coisas, a homogeneidade pacifica, mas fastidiosa e impotente para se manter por si mesma; o fato de que a legalidade seja quebrada nada mais é do que o signo mais evidente da natureza transcendente, heterogénea, da acao fascista. Considerada nao quanto a sua a¢ao exterior, mas quanto > Parece que os deslocamentos se produzem sob as mesmas condigées que os reflexos condicionais de Pavlov. ° Sobre o pensamento dos primitives, cf. Léon Lévy-Bruhl, La mentalité primitive, e Exnst Cassirer, Das mystische Denken; sobre o inconsciente, cf. Sigmund Freud, La Science des Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jun. 2022 ~ 245 4 sua origem, a forca de um lider é andloga a que se exerce na hipnose.” O fluxo afetivo que o une a seus partidarios - que toma a forma de uma identificacao moral destes com aquelea quem seguem (e reciprocamente) — é funcdo da consciéncia comum de poderes e de energias cada vez mais violentas, mais desmesuradas, que se acumulam na pessoa do chefe e tornam-se nele indefinidamente disponiveis. (Mas essa concentracdo em uma s6 pessoa intervém como um elemento que distingue a formagao fascista no interior mesmo do dominio heterogéneo: pelo prdprio fato de que a efervescéncia afetiva termina na unidade, ela constitui uma instancia dirigida, enquanto autoridade, contra os homens; essa instancia é existéncia por si, antes de ser util, e existéncia por si distinta daquela de uma sublevacao informe, cujo sentido por si significa “para os homens sublevados”. Essa monarquia, essa auséncia de qualquer democracia, de qualquer fraternidade no exercicio do poder — formas que nao existem apenas na Italia ou na Alemanha - indicam que se deve renunciar, sob constrangimento, as necessidades naturais imediatas dos homens, em beneficio de um principio transcendente, que nio pode ser objeto de qualquer explicagao). A titulo bem diverso, podem igualmente ser descritas como heterogéneas as camadas sociais mais baixas, que provocam geralmente repulsa e nio podem em caso algum ser assimiladas pelo conjunto dos homens. Essas classes miserdveis sao vistas na India como intocdveis, quer dizer, sao caracterizadas por uma proibicao de contato analoga a que se aplica as coisas sagradas. E verdade que 0 costume dos paises de civilizacdo mais avancada é menos ritual e que a qualidade de intocdvel nao é neles obrigatoriamente transmitida por hereditariedade: entretanto, basta existir nesses paises como ser htmano marcado pela miséria para criar entre si eos outros — queseconsideram comoaexpressao do homem normal — um fosso quase intransponivel. As formas nauseabundas da degradacaio provocam um sentimento de nojo t4o insuportavel que é incorreto exprimi-lo ou até fazer alusio a ele. A desgraca material dos homens tem claramente, sob a ordem psicolégica da desfiguracao, consequéncias desmesuradas. E, caso os homens felizes nao tenham sofrido a redugso homogénea (que opée a miséria uma justificacdo legal), excetuadas as vergonhosas tentativas de fuga (de evasao), tais como a piedade caridosa, 7 Sobre 05 aspectos afetivos dos seguidores para com os lideres e sobre a analogia coma hipnose, cf Freud (1929). Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jun. 2021 ~ 246 avioléncia sem esperanga das reacdes toma imediatamente a forma de um. desafio a razao. V- O dualismo fundamental do mundo heterogéneo Os dois exemplos precedentes, emprestados ao vasto dominio da heterogeneidade, ¢ nao ao dominio do sagrado propriamente dito, apresentam, contudo, as caracteristicas especificas deste ultimo. Essa conformidade aparece com facilidade no que concerne aos lideres que so manifestamente tratados por seus partidarios como pessoas sagradas. Ela & bem menos evidente no que concerne as formas da miséria que nao sao objeto de culto nenhum. Mas revelar que tais formas igndbeis sejam compativeis com o carater sagrado é precisamente 0 progresso decisivo alcangado no conhecimento do dominio sagrado, ao mesmo tempo que do dominio heterogéneo. A nocdo de dualidade de formas do sagrado é um dos resultados adquiridos pela antropologia social:$ essas formas devem ser divididas em duas classes opostas puras e impuras (nas religides primitivas, certas coisas impuras ~ por exemplo o sangue menstrual — nado séo menos sagradas do que a natureza divina; a consciéncia dessa dualidade fundamental persistia até uma data relativamente recente: na Idade Média a palavra sacer era empregada para designar uma doenca vergonhosa — a sifilis -, ea significacao profunda deste uso era ainda inteligivel). O tema da miséria sagrada - impura e intocavel — constitui exatamente o polo negativo de uma regido caracterizada pela oposicao de duas formas extremas: ha, em certo sentido, identidade de contrariosentrea glériaeadecadéncia, entreas formaselevadaseimperativas (superiores) © as formas miserdveis (inferiores). Essa oposicao divide o conjunto do mundo heterogéneo e se une as caracteristicas ja determinadas da heterogeneidade como elemento fundamental. (Com efeito, as formas heterogéneas indiferenciadas sao relativamente raras — pelo menos nas sociedades evoluidas -, e a analise da estrutura social heterogénea interna reduz-se quase inteiramente a de oposicao de dois contrarios.) VI - A forma imperativa da existéncia heterogénea: a soberania A acao fascista, heterogénea, pertence ao conjunto de formas superiores. Ela apela aos sentimentos tradicionalmente definidos como 3 CE Robertson Smith (1889) Remate de Males, Campinas-SP, v.41, 14, pp. 238-267, jan./jun. 2022 ~ 247 elevados e nobres e tende a constituir a autoridade como principio incondicional, situado acima de qualquer juizo utilitario. £ evidente que o emprego das palavras superior, nobre, elevado nao implica aquiescéncia. Esses qualificativos podem designar aqui somente o pertencimento a uma categoria historicamente definida como superior, nobre ou elevada: tais concepcées novas ou individuais nio podem ser tomadas em consideragao, senao em relacao as concepcGes tradicionais das quais derivam; elas sao, alias, necessariamente hibridas, sem extensaéo e, sem sombra de chividas, seria preferivel renunciar, 0 quanto fosse possivel, a qualquer representacao dessa ordem (quais seriam as razées admitidas pelas quais um homem queira ser nobre, semelhante a um representante da casta militar medieval, e absolutamente nado igndbil, quer dizer, semelhante, conforme o juizo histérico, a um homem cuja miséria material tivesse alterado o carater humano, tivesse-o tornado totalmente outro?). Formulada essa reserva, a significacéo dos valores stiperiores deve ser precisada com 0 auxilio de qualificativos tradicionais. A superioridade (soberania? imperativa) designa um conjunto de aspectos marcantes ~ que determinam afetivamente a atracao ou a repulsa — proprios as diferentes situagdes humanas nas quais ¢ possivel dominar e até oprimir os semelhantes, em razio de sua idade, de suas fraquezas fisicas, de seu estado juridico ou da necessidade simplesmente de colocar- -se sob a diregao de um so: a circunstancias diversas correspondem, situacdes definidas, a do pai em relacdo com seus filhos, a do chefe militar em relagao como exército e a populagio civil, a do senhor em relagio com oescravo, a do rei em relacao com os seus stiditos. Acrescentam-se a essas relacSes reais situacées mitoldgicas, cuja natureza exchusivamente ficticia facilita a condensacao de aspectos caracteristicos da superioridade. O simples fato dedominarseus semelhantes implicaa heterogeneidade do senhor, pelo menos, enquanto é 0 senhor: na medida em que se refere a sua natureza, a sua qualidade pessoal, como a uma justificacao de sua autoridade, ele designa essa natureza como totalmente outra sem poder dar conta racionalmente dela. Mas ndo apenas totalmente outra quanto ao dominio racional da medida e da equivaléncia: a heterogencidade do senhor nao deixa de se opor menos a do escravo. Sea natureza heterogénea do escravo confunde-se com ada imundicia na qual sua situagao material > O termo soberano tem origem no adjetivo do baixo-latim superanius, que significa superior Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jun. 2021 ~ 248 o condena a viver, a do senhor se forma em um ato de exclusdo de toda a imundicia, ato cuja direcdo é a pureza, mas cuja forma é sadica. Humanamente, 0 valor imperativo concluso apresenta-se sob a forma da autoridade régia ou imperial na qual se manifestam no grau mais alto as tendéncias cruéis e a necessidade de realizar e idealizar a ordem que caracteriza toda dominagao. A autoridade fascista nao deixa de apresentar esse cardter duplo, mas ela ndo passa de uma das muitas formas de autoridade régia, cuja descricdo geral constitui o fundamento de qualquer descrig3o coerente do fascismo. Oposta a existéncia miseravel dos oprimidos, a soberania politica aparece em primeiro Iugar como uma atividade sadica claramente diferenciada. Na psicologia individual, é raro que a tendéncia sddica nao esteja associada na mesma pessoa a uma tendéncia masoquista mais ou menos aberta. Mas na sociedade cada tendéncia é normalmente representada por uma instancia distinta, e a atitude sadica pode ser manifestada por uma pessoa imperativa, excluindo qualquer participagao de atitudes masoquistas correspondentes. Nesse caso, a exclusdo das formas imundas que servem de objeto ao ato cruel ndo é seguida de uma posicao dessas formas como valor e, por conseguinte, nenhuma atividade erdtica pode ser associada a crueldade. Os préprios elementos erdticos sao rejeitados junto com todo objeto imundo e, da mesma maneira que em um grande mimero de atitudes religiosas, 0 sadismo acede assim a uma pureza surpreendente. Essa diferenciagao pode ser mais ou menos completa — individualmente, soberanos podem viver, em parte, o poder como uma orgia de sangue -, mas, no conjunto, a forma régia imperativa realizou historicamente, no interior do dominio heterogéneo, uma exclusio de formas miseraveis ou imundas suficiente para encontrar, sob certo plano, uma conexao com as formas homogéneas. Com efeito, se a sociedade homogénea, a principio, afasta qualquer elemento heterogéneo, imundo ot nobre, as modalidades dessa operacio nao variam menos conforme a natureza de cada elemento afastado. A rejeicdo de formas miseraveis tem apenas, para a sociedade homogénea, um valor constante fundamental (tal que 0 menor recurso a reservas de energia representadas por estas formas exige uma operacao tao perigosa quanto a subversdo); mas, pelo fato de que o ato de exclusao de formas miserdveis associa necessariamente as formas homogéneas e as formas imperativas, estas ultimas nado podem mais ser pura e simplesmente rejeitadas. A sociedade homogénea utiliza, de fato, contra os elementos Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jun. 2021 ~ 249 mais incompativeis com ela, as forgas imperativas livres e, quando tem de escolher no dominio que excluiu 0 objeto mesmo de sua atividade (a existéncia por sia servico da qual ela deve necessariamente se pér), a escolha nao pode deixar de recair sobre forcas cuja pratica demonstrou agirem, a principio, no sentido mais favoravel. Ba incapacidade da sociedade homogénea de encontrar em si mesma uma razao de ser e de agir que a desloca para as dependéncias de forcas imperativas, da mesma maneira que é a hostilidade sadica dos soberanos contra a populacdo miseravel que os aproxima de qualquer formagio empenhada em manté-la oprimida. Restilta dessas modalidades de exclusao da pessoa do rei uma situiacao complexa: sendo ele o objeto no qual a sociedade homogénea encontrou stta razdo de ser, a manutencao dessa relacao exige que ele se comporte de modo tal que a sociedade homogénea possa existir por ele. Essa exigéncia recai em primeiro lugar sobre a heterogeneidade fundamental do rei, garantida por numerosas proibicdes de contato (tabus), mas é impossivel manter essa heterogeneidade em estado livre. Em nenhum caso a heterogeneidade pode receber sua lei de fora, mas seu movimento espontaneo pode ser fixado, ao menos tendencialmente, de uma vez por todas. E assim quea paixao destrutiva (0 sadismo) da instanciaimperativaé a principio exclusivamente dirigida seja contra as sociedades estrangeiras, seja contra as classes miserdveis, contra 0 conjunto de elementos externos ou internos hostis a homogeneidade. O poder régio histérico é a forma que resulta de tal situacdo. Um. papel determinante quanto a sua formacdo positiva fica reservado ao principio mesmo de unifica¢ao, realmente operada em um conjunto de individuos, cuja escolha afetiva recai sobre um objeto heterogéneo tinico. A comunidade de diregao tem, por si mesma, um valor constitutiv pressupde - vagamente, ¢ verdade - 0 carater imperativo do objeto. A unido, principio de homogeneidade, nada mais é do que um fato tendencial, incapaz de encontrar em si mesmo um motivo para exigir ou impor sua existéncia, e, na maior parte das circunstancias, o recurso a uma exigéncia tirada de fora tem o valor de uma necessidade primeira. Ora, 0 dever ser puro, o imperativo moral, exige o ser por si, quer dizer, o modo especifico da existéncia heterogénea. Mas essa existéncia, precisamente, escapa, no que lhe concerne a si mesma, ao principio do dever ser e nao pode em caso algum ser-lhe subordinada: ela acede imediatamente ao ser (em outros termos, ela se produz sendo ou ndo sendo como valor, nunca Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jun. 2022 ~ 250 devendo ser como valor). A forma complexa na qual termina a resolugso dessa incompatibilidade situa em existéncias heterogéneas o dever ser da existéncia homogénea. Assim, a heterogeneidadeimperativa naorepresenta somente uma forma diferenciada em relagao com a heterogeneidade vaga: ela supée, além disso, a modificagao da estrutura de ambas as partes, homogéneae heterogénea, emcontato. Porum lado, a formacao homogénea vizinha a instancia régia, o Estado, toma emprestado a essa instancia seu carater imperativo e parece aceder a existéncia por si, realizando o dever ser despojado e frio do conjunto da sociedade homogénea. Mas 0 Estado nada mais é, na realidade, do quea forma abstrata, degradada, do dever ser vivo, exigido, no alto, como atracao afetiva e como instancia régia: nada mais do que a homogeneidade vaga tornada coer¢io. Por outro lado, esse modo de formacao intermediario que caracteriza o Estado penetra, por reacdo, a existéncia imperativa: mas, no curso dessa introje¢ao, a forma propria da homogeneidade torna-se, dessa vez realmente, existéncia por sia negar-se a si mesma: ela se absorve na heterogeneidade e se destréi enquanto estritamente homogénea pelo fato de que, tornada negagao do principio de utilidade, recusa qualquer subordina¢ao. Entretanto, penetrado profundamente pela razdo de Estado, o rei nao se identifica mais com esta ultima: integralmente, ele mantém o carater separado proprio a majestade divina. Ele escapa ao principio especifico da homogeneidade, & compensacdo de direitos e deveres que constitui a lei formal do Estado: os direitos do rei sao incondicionai: Seria quase intitil representar aqui que a possibilidade de tais formas afetivas tenha trazido consigo a submissao infinita que degrada a maior parte das formas de vida humana (bem mais do que os abusos de forca, cles mesmos, alids, redutiveis, como a forca em jogo é necessariamente social, a formagdes imperativas). Se visualizarmos agora a soberania sob sua forma tendencial, tal como foi historicamente vivenciada pelos sujeitos responsaveis por seu valor atrativo, embora independente de uma realidade particular, sua natureza nos aparecera, humanamente, a mais nobre - elevada até majestade — e pura, mesmo em meio A orgia, fora do alcance das fraquezas humanas. Ela constitui a regido formalmente isenta de intrigas de interesse, a qual 0 sujeito oprimido se refere como a uma satisfacdo vazia, mas pura (nesse sentido a constituicao da natureza régia acima de uma realidade inconfessdvel lembra as ficgdes justificantes da vida eterna). Enquanto forma tendencial, ela realiza o ideal da sociedade ¢ do curso das coisas (a mente do stidito, essa fingao expressa—se Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan. /jum. 2021 - 251 ingenuamente: se o rei soubesse...). Ao mesmo tempo, é autoridade estrita. Acima da sociedade homogénea como acima da populacao miseravel ou da hierarquia aristocratica que dela emana, a soberania exige de maneira sangrenta a repressao do que lhe é contrario e confunde-se em sua forma decisiva com os fundamentos heterogéneos da lei: é, assim, a um so tempo, a possibilidade e a exigéncia da unidade coletiva; 6 em drbita ao rei que se elaboram o Estado e suas fungées de coercao e de adaptacao; é em proveito da grandeza régia que se desenvolve, a um sé tempo como destruigao e como fundagio, a reducdo homogénea. Pondo-se como principio de associacdo de intmeros elementos, o poder régio desenvolve-se espontaneamente como forca imperativa destrutiva contra qualquer outra forma imperativa que lhe possaseroposta, e manifestam-se assim, no alto, a tendéncia fundamental e o principio de toda autoridade: a reducgdo a unidade pessoal, a individualizacdo do poder. Enquanto a existéncia miseravel se produz necessariamente como multidao e a sociedade homogénea, como reducao a uma medida comum, a instancia imperativa, o fundamento da opressio se desenvolve necessariamente no sentido de uma reducdo a unidade na forma de um. ser humano excludente da prépria possibilidade de um semelhante, em outros termos, como uma forma radical de exclusio que exige a avidez. VII - A concentragao tendencial Essa tendéncia a concentracao aparece, é verdade, em contradicao coma coexisténcia de dominios distintos de poder: o dominio da soberania régia é diferente daquele do poder militar, diferente do dominio da autoridade religiosa. Mas precisamente a constata¢ao dessa coexisténcia incita a dirigir a atencdo para o carater compositivo do poder régio, no qual é facil encontrar elementos constitutivos dos dois outros poderes, militar e religioso.* Mostra-se, assim, que a soberania régia nao deve ser vista como um elemento simples a possuir uma origem auténoma, tal como o exército ou a organizacao religiosa: ela ¢ exatamente (e, alias, unicamente) a * Freud, em Psychologie collective et analyse du “moi”, estudou precisamente as duas fangées, militar (exército) ereligiosa (Igreja), em relag3oa forma imperativa (inconsciente) da psicologia individual que ele nomeia ideal do eu ou super-eu. Se nos reportarmos ao conjunto de aproximagies estabelecidas na presente exposisao, este trabalho, publicado emalemao desde a década de 1910, aparece como uma introducao essencial & compreensio do fascismo. Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jun. 2021 concentragao realizada desses dois elementos formados em duas direcdes diferentes. O renascimento constante dos poderes militares e religiosos em estado puro nunca modificou o principio de sua concentragaéo tendencial sob a forma de uma soberania tinica: mesmo a recusa formal do cristianismo nao impediu — para empregar a terminologia simbdlica vulgar ~ a cruz de vagar pelos degraus do trono com a espada. Historicamente considerada, a realizagao dessa concentracao pode ter sido espontanea - ou ainda o chefe do exército consegue fazer-se consagrar como rei 4 forga — ou 0 rei consagrado se apossa do poder militar (no Japao, o imperador, em data recente, realizou esta ultima forma, embora sua iniciativa propria nao tenha cumprido papel determinante). Mas, todavez, mesmo no caso em que a realeza é usurpada, a possibilidade de reunido dos poderes depende de suas afinidades fundamentais e, sobretudo, de sua concentrac¢ado tendencial. Aconsideracao dos principios queregemesses fatostemevidentemente um alcance capital no momento em que o fascismo renova sua existéncia histérica, retine mais uma vez a autoridade militar e religiosa para realizar uma opressao total. (A propdsito, pode-se afirmar - sem prejuizo de qualquer outro julgamento politico — que toda realizacao ilimitada de formas imperativas tem o sentido de uma negag3o da humanidade enquanto valor dependente do jogo de suas oposi¢Ses internas). Como o bonapartismo, o fascismo (que significa etimologicamente reunido, concentragéo) nada é além da reativacao aguda da instancia soberana latente, mas com um carater de certo modo purificado pelo fato de que as milicias, que substituern 0 exército na constituicdo do poder, tém imediatamente este poder como objeto. VIII - O exército e os chefes de exército A principio — fiuncionalmente - 0 exército existe em razao da guerra, e sua estrutura psicolégica ¢ inteiramente redutivel ao exercicio de sua funcdo. Assim, seu carater imperativo nao resulta diretamente da importancia social ligada 4 detencao do poder material das armas: ¢ a organizacao interna do exército ~ a disciplina e a hierarquia - que faz dele asociedade nobre por exceléncia. Evidentemente, a nobreza das armas pressupée em primeiro lugar uma heterogeneidade intensa: disciplina ou hierarquia nada mais sio, elas mesmas, do que as formas ¢ nao fundamentos de heterogeneidade; somente o sangue derramado, a carnificina, a morte respondem a base da Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jum. 2021 - 253 natureza das armas. Mas 0 horror ambiguo da guerra nao possui, ainda, sendo uma heterogeneidade baixa (a rigor, indiferenciada). A direcao elevada, exaltante, das armas pressupée a unificacdo afetiva necessaria a sua coesao, quer dizer, a seu valor eficaz. O carater afetivo dessa unificacao manifesta-se sob forma de aderéncia do soldado ao chefe do exército: implica que cada soldado considere a gloria daquele como sua propria gloria. E por intermédio desse processo que o massacre repulsive se transforma radicalmente em seu contrdrio, em gléria, quer dizer, em pura e intensa atragado. Basicamente, a gloria do chefe constitui um tipo de polo afetivo que se opée a natureza ignabil dos soldados. Independentemente mesmo de set. emprego horroroso, os soldados pertencem a principio & parte infame da populacao; despojados de seus uniformes, cada homem revestido de suas vestes habituais, um exército profissional do século XVIII teria o aspecto de um populacho miseravel. Mas a eliminacao completa do recrutamento de classes miseraveis nao seria suficiente para mudar a estrutura profunda do exército; essa estrutura continuaria a fundar a organiza¢ao afetiva na infamia social dos soldados. Seres humanos incorporados em um exército nada mais sio do que elementos negados, negados com uma espécie de raiva (de sadismo) manifesta no tom de cada comando, negados no desfile, pelo uniforme e pela regularidade geométrica cumprida em cada movimento cadenciado. O chefe, enquanto é imperativo, é a encarnagao dessa negacao violenta. Sua natureza intima, a natureza de sua gloria se constitui em um ato imperativo que anula o populacho infame (constitutivo do exército) enquanto tal (da mesma maneira como anula 0 massacre enquanto tal). Na psicologia social, essa nega¢do imperativa aparece em geral como o carater proprio da a¢do; em outros termos, toda a¢do social afirmada toma necessariamente a forma psicolégica unificada da soberania; toda forma inferior, toda ignominia, socialmente passiva por definicSo, transforma-se em seu contrario pelo simples fato da passagem a acgao. Um massacre, enquanto resultado inerte, é ignobil, mas 0 valor heterogéneo igndbil assim estabelecido, deslocando-se sobre a agao social que o determinou, torna-se nobre (acao de matar e nobreza sao associadas por liames histdricos indefectiveis): basta que a acéo se afirme efetivamente como tal, assuma livremente o cardter imperativo que a constitui. Precisamente essa operacao — o fato de assumir com total liberdade o carater imperativo da acao ~ é 0 proprio do chefe. Torna-se possivel aqui Remate de Males, Campinas-SP, v.41, n4, pp. 238-267, jan./jun. 2022 ~ 254 apreender sob uma forma explicita o papel representado pela unificagsio (a individualizagao) nas modificagées de estrutura que caracterizam a heterogeneidade superior. O exército, posto sob o impulso imperativo - a partir de elementos informes e miseraveis -, organiza-se e realiza uma forma interiormente homogénea, em razao da negacao cujo objeto € 0 carater desordenado de seus elementos: com efeito, a massa que constitui o exército passa de uma existéncia encalhada e pusilanime para uma ordem geométrica depurada, do estado amorfo para a rigidez agressiva. Essa massa negada, na realidade, deixa de ser ela mesma para tornar-se afetivamente (“afetivamente” se refere aqui a comportamentos psicolégicos simples, como 0 sentido ou 0 marchem) a coisa do chefe e uma parte do préprio chefe. Uma tropa em sentido é de certo modo absorvida na existéncia do comando e, assim, absorvida na negacao de si mesma. O sentido pode ser analogicamente considerado como um movimento trépico (uma espécie de geotropismo negativo) a elevar, ndo somente o chefe, mas 0 conjunto de homens que respondem a sua ordem, a forma regular (geometricamente) da soberania imperativa. Assim, a infamia implicada dos soldados nao passa de uma infamia na base, que, sob 0 uniforme, transforma-se em seu contrario, em ordem e em brilho. O modo da heterogeneidade sofre explicitamente uma alteragdo profunda, concluindo a realizagio da homogeneidade interna sem que a heterogeneidade fundamental decresca. O exército em meio a populagao subsiste num modo de ser totalmente outro, mas um modo de ser soberano ligado a dominacao, ao carater imperativo e decisivo do chefe, comunicado a seus soldados, Assim, a direcdo dominante do exército, desligada de seus fundamentos afetivos (infamia e massacre), depende da heterogeneidade contraria da honra e do dever encarnados na pessoa do chefe (trata-se de um chefe nado subordinado a uma instancia real ou a uma ideia; o dever encarna-se em sua pessoa da mesma maneira que naquela do rei). A honra e o dever, simbolicamente expressos pela geometria dos desfiles, sdo as formas tendenciais que situam a existéncia militar acima da existéncia homogénea como imperativo e como razdo de ser pura. Essas formas, em seu aspecto propriamente militar, tendo um alcance limitado a certo plano de acdo, sio compativeis com crimes infinitamente covardes, mas sio suficientes para afirmar o valor elevado do exército e para fazer da dominacao interna, que caracteriza sua estrutura, um dos elementos Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./juun. 2021 ~ 255 fundamentais da autoridade psicolégica suprema, instituida acima da sociedade coagida. Contudo, o poder do chefe de exército néo tem imediatamente por resultado senao uma homogeneidade interna independente da homogeneidade social, enquanto o poder régio especifico existe apenas na relaco com a sociedade homogénea. A integracdo do poder militar no poder social pressupée, portanto, uma mudanca de estrutura: pressupde a aquisicao de modalidades proprias ao poder régio, na relacio com a administragao do Estado, tais como foram descritas a propdsito desse poder. IX- O poder religioso De maneira implicitae vaga, admite-se que adetencao do poder militar possa ter sido suficiente para exercer uma dominagao geral. Contudo, se forem excetuadas as colonizacées, que estendem um poder jé fundado, ¢ dificil achar exemplos de dominagées duraveis exclusivamente militares. Em realidade, a forca armada simples, material, nao pode fundar qualquer poder: ela depende, em primeiro lugar, da atracao interna exercida pelo chefe (o dinheiro ¢ insuficiente para realizar um exército). E quando este quer utilizar a forca de que dispde para dominar a sociedade, deve ainda adquirir os elementos de uma atragdo externa (de uma atracdo religiosa valida para a populagao inteira). E verdade que estes tiltimos elementos estado as vezes a disposicéo da forcga, mas a atracdo militar como origem do poder régio nao tem provavelmente um valor primordial com relacao a atracao religiosa. Na medida em que é possivel formular um juizo valido concernente a periodos humanos recuados, aparece com certa clareza que a religiao, nao. 0 exército, é a fonte da autoridade social. Por outro lado, a introdugdo da hereditariedade significa regularmente a predominancia do poder de forma religiosa, que pode manter seu principio de sangue, enquanto o poder militar depende, em primeiro lugar, do valor pessoal. Infelizmente, é dificil atribuir uma significagSo explicita ao que, no sangue ou nos aspectos régios, é religioso em sentido prépri chega-se aqui amplamente a forma nua e ilimitada da heterogeneidade indiferenciada, antes que uma direcao ainda vaga fixe um aspecto apreensivel dela (suscetivel de ser explicitado). Embora essa direc3o exista, as modificagées de estrutura que ela introduz abandonam, em todo caso, 0 campo a uma projecao livre de formas afetivas gerais, tais como a Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jun. 2022 ~ 256 angustia ou a atragdo sagrada, Por outro lado, nao sao as modificagdes de estrutura aquelas imediatamente transmitidas, pelo contato fisiolégico na hereditariedade ou pelos ritos nas sagracées, mas antes uma heterogeneidade fundamental. A significacao (implicita) do carter régio puramente religioso 36 pode ser alcancada na medida em que aparece sta comunidade de origem e de estrutura com a natureza divina. Sem que seja possivel, em uma exposicdo rapida, tornar sensivel o conjunto de movimentos afetivos aos quais a fundagdo de autoridades miticas (terminando na posicao ultima de uma autoridade suprema ficticia) deva ser referida, a simples aproximacao possui em si um valor significativo suficiente. A comunidade de estrutura das duas formacées correspondem fatos inequivocos (identificagdes com o deus, genealogias miticas, culto imperial romano ou xintoista, teoria crista do direito divino). O rei 6, no conjunto considerado sob uma forma ou outra, como que a emanagao da natureza divina, com tudo 0 que o principio de emanacio carrega de identidade quando se trata de elementos heterogéneos. As notaveis modificacées de estrutura que caracterizam a evolucao da representacao do divino ~ a partir da violéncia livre e irresponsavel - nada mais fazem do que explicitar aquelas que caracterizam a formagao da natureza régia. Em ambos os casos, ¢ a posicdo da soberania que dirige a alteragdo da estrutura heterogénea. Em ambos os casos, assiste- -se a uma concentracao dos atributos e das forcas: mas, no concernente a Deus, nao sendo compostas as forcas que ele representa sendo em uma existéncia ficticia (sem a limitagao ligada a necessidade de realizar), puderam-se alcancgar formas mais perfeitas, esquemas mais puramente légicos O Ser supremo dos tedlogos e dos filésofos representa a mais profunda introjecao daestrutura propria da homogeneidade naexisténcia heterogénea: Deus realiza assim, em seu aspecto teolégico, a forma soberana por exceléncia. Porém, uma contrapartida dessa possibilidade de acabamento é implicada pelo carater ficticio da existéncia divina, cuja natureza heterogénea, nao possuindo o valor limitativo da realidade, pode ser eludida em uma concepcao filoséfica (reduzida a uma afirmacao formal nunca vivida). Na ordem da especulaco intelectual livre, pode-se substituir Deus pela Ideia, como existéncia e como poder supremos (0 que implica em certa medida, éverdade, a revelacdo de uma Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jum. 2021 ~ 257 heterogeneidade relativa a Ideia, como tem lugar quando Hegel eleva a Ideia acima do simples dever ser). X- O fascismo como forma soberana da heterogeneidade Essa agitagdo de fantasmas - aparentemente anacrénicos — seria decerto va, se o fascismo nao tivesse, sob nossos olhos, retomado e reconstituido da base ao topo ~ partindo, por assim dizer, do vazio — 0 processo de fundagao do poder tal como acaba de ser descrito. Até os nossos dias, existiu apenas um exemplo historico de formac3o brusca de um poder total, a uma s6 vez militar e religioso mas principalmente régio, que nao se apoiasse em nada de estabelecido antes dele, aquele do Califado islamico. O Isla, forma comparavel ao fascismo por sua fragil riqueza humana, ndo tinha recurso sequer a uma patria, menos ainda a um Estado constituidos. Mas ¢ preciso reconhecer que o Estado existente nada mais foi para os movimentos fascistas do que uma conquista, logo um meio ou um quadro,* e que a integracao da patria nado muda o esquema de sua fundacao. Da mesma maneira que o Isla nascente, o fascismo representa a constituicgaéo de um poder heterogéneo total que encontra sua origem manifesta em uma efervescéncia atual. O poder fascista caracteriza-se, em primeiro lugar, pelo fato de que sua fundagdo é a uma 86 vez religiosa e militar, sem que elementos habitualmente distintos possam ser separados uns dos outros: ele aparece assim desde a base como uma concentracao acabada. O aspecto predominante é certamente o militar. As relages afetivas que estreitamente associam (identificam) 0 lider ao membro do partido (tais como ja foram descritas) so andlogas, a principio, as que unem © chefe a seus soldados. A pessoa imperativa do lider tem 0 alcance de uma negacao do aspecto revolucionario fundamental da efervescéncia drenada por ele: a revolugdo afirmada como um fundamento é ao mesmo tempo fundamentalmente negada a partir da dominagao interna exercida militarmente sobre as milicias. Mas essa dominaco interna ndo esta diretamente subordinada a atos de guerra reais ou possiveis: ela se impée em esséncia como meio termo de uma dominacao externa sobre a sociedade e o Estado, como meio termo de um valor imperativo total. Assim ficam simultaneamente implicadas as qualidades préprias de ambas as dominacées (interna e externa, militar e religiosa): qualidades * O Estado moderno italiano é, alias, em grande medida, criagao do fascismo. Remate de Males, Campinas-SP, v.41, 14, pp. 238-267, jan./jun. 2022 ~ 258 dependentes da homogeneidade introjetada, tais como dever, disciplina e ordem assumidos, e qualidades dependentes da heterogeneidade essencial, violéncia imperativa e posicao da pessoa do chefe como objeto transcendente da afetividade coletiva. Mas o valor religioso do chefe é realmente o valor fundamental (se nao formal) do fascismo, que da a atividade dos milicianos sua tonalidade efetiva propria, distinta daquela do soldado em geral. De fato, o chefe enquanto tal ¢ apenas a emanacao de um principio que nao é outro seno a existéncia gloriosa de uma patria elevada ao valor de forca divina (a qual, superior a qualquer outra consideracao concebivel, exige, nao somente a paixao, mas o éxtase de sets participantes). Encarnada na pessoa do chefe (na Alemanha, o termo propriamente religioso de profeta foi algumas vezes empregado), a patria cumpre assim o mesmo papel que, parao Isla, Ald encarnado na pessoa de Maomé ou do Califa.* O fascismo aparece portanto, antes de tudo, como concentra¢ao e, porassim dizer, condensagio do poder® (significacao indicada, com efeito, no valor etimolégico do termo). Essa significagao geral deve, ademais, ser aceita em varias direcdes. No alto efetua-se a reuniao completa das forcas imperativas, mas 0 processo nao deixa nenhuma fracao social inativa. Em oposicao fundamental ao socialismo, o fascismo caracteriza- -se como reunifo de classes. Nao que classes conscientes de sua unidade tenham aderido ao regime, mas porque elementos expressivos de cada classe foram representados em movimentos de adeséo profundos que conseguiram tomar o poder. O tipo especifico da reuniao aqui foi, alias, emprestado a afetividade propriamente militar, quer dizer, os elementos representativos das classes exploradas foram compreendidos no conjunto do processo afetivo somente pela negac4o de sua natureza propria (da mesma maneira, a natureza social de um recruta é negada por meio dos uniformes e dos desfiles). Esse processo, que abrange de cima abaixo as diferentes formacées sociais, deve ser compreendido como um processo fundamental, cujo esquema é necessariamente dado na formacao mesma do chefe, o qual tira seu profundo valor significativo do fato de que viveu = Califa significa, em sentido etimolégico do termo, lugar-tenente (aquele que tem 0 lugar); 0 titulo por completo é lugar-tenente do enviado de Deus ®Condensagio de superioridade, evidentemente em relacaoaum complexo de inferioridade latente; tal complexo tem ligagées igualmente profundas na Italia ¢ na Alemanha: é por isso que, mesmo que o fascismo se desenvolva ulteriormente em regides que tenham alcancado uma soberania completa ea consciéncia desta soberania, no é concebivel que ele tenha alguma vez podido ser o produto autoctone e especifico de tais paises. Remate de Males, Campinas-SP, 1, 1a, pp. 238-267, jan. /jun. 2021 ~ 250 oestado de abandono e de miséria do proletariado. Mas, do mesmo modo que no caso da organizacao militar, o valor afetivo, proprio a existéncia miserdvel, é apenas deslocado e transformado em seu contrario; ¢ é seu alcance desmesurado que confere ao chefe e ao conjunto da formagao 0 acento devioléncia sem o qual nenhum exército, nenhum fascismo seriam possiveis. XI - O Estado fascista As telacdes estreitas do fascismo com as classes miseraveis distinguem profundamente essa formacao da sociedade régia classica, caracterizada por uma perda de contato mais ou menos clara da instancia soberana com as classes inferiores. Mas ao fazer-se, ao opor-se a reuniao régia estabelecida (cujas formas dominam a sociedade de muito alto), a reuniao fascista nao é apenas reuniao de poderes de diferentes origens e reunio simbélica de classes: é ainda reunido completa de elementos heterogéneos com os elementos homogéneos, da soberania propriamente dita com o Estado. Enquanto reuniao, o fascismo, alids, nao se opde menos ao Isla do que a monarquia tradicional. Com efeito, o Isla criou ja em agao, em todos os sentidos, e é por isso que uma forma tal como 0 Estado, que sé pode serum. longo resultado historico, ndo cumpriu qualquer papel em sua constituigao imediata: pelo contrario, o Estado existente serviu desde o inicio de quadro ao conjunto do processo fascista de arregimentacao organica. Esse aspecto caracteristico do fascismo permitiu a Mussolini escrever que “tudo esta no Estado”, que “nada de humano nem de espiritual existe e a fortiori tem valor fora do Estado” (MUSSOLINI, 1933, p. 23). Mas isso nao implica necessariamente a confusao do Estado e da forca imperativa que domina a sociedade em seu conjunto. O mesmo Mussolini, inclinado a uma espécie de divinizacao hegeliana do Estado, reconhece em termos intencionalmente obscuros um principio de soberania distinto que ele designa a um sé tempo como povo, nacao e personalidade superior, mas que deve ser identificado com a propria formagao fascista e seu chefe: povo, escreve ele, [...] 40 menos se 0 povo [...] significa a ideia [..] que se encarna no povo como vontade de um pequeno numero ou até de um s6 [...] Nao se trata nem de raga nem de regiao geografica determinada, mas de um agrupamento que se perpetua historicamente, de uma multidao unificada por uma ideia que Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jun. 2021 ~ 260 é uma vontade de existéncia e de poder: é consciéncia de si, personalidade (MUSSOLINI, 1933, p. 23) O termo personalidade deve ser entendido como individualizagéo, processo que termina na pessoa mesma de Mussolini, e quando ele acrescenta “esta personalidade superior é a nagdo enquanto Estado. Nao é a nacao que cria o Estado [...]” (MUSSOLINI, 1933, p. 23), € preciso compreender que ele: 1° substitui o velho principio democratico de soberania da nagao pelo principio de soberania da formagao fascista individualizada; 2° coloca as bases de uma interpenetracao completa da instancia soberana e do Estado. A Alemanha nacional-socialista - que nao adotou, como a Italia fascista 0 fez oficialmente (sob o patrocinio de Gentile), o hegelianismo ea teoria do Estado-alma do mundo ~ nio foi atingida, por sua parte, pelas dificuldades teéricas resultantes da necessidade de enunciar oficialmente um principio de autoridade: a ideia mistica da raga afirmou- -se imediatamente como o fim imperativo da nova sociedade fascista; ao mesmo tempo ela aparecia encarnada na pessoa do Fiihrer ¢ dos seus. Embora & concepcao da raca falte uma base objetiva, ela nao esta por isso menos enraizada subjetivamente, e a necessidade de manter o valor racial acima de qualquer outro afastou qualquer teoria que fizesse do Estado 0 principio de todo valor. O exemplo alemio mostra, assi aconfusdo estabelecida por Mussolini entre o Estado e a forma soberana do valor nao é necessaria a uma teoria do fascismo. O fato de que Mussolini nao tenha formalmente distinguido a instancia heterogénea, cuja a¢ao fez penetrar no interior do Estado, pode ser interpretado tanto no sentido de uma apropriacao absoluta do Estado como no sentido reciproco de uma adaptacdo estendida da instancia soberana as necessidades de um regime de producio homogéneo. Foi no desenvolvimento desses dois processos reciprocos que fascismo ¢ razao de Estado puderam parecer idénticos. Entretanto, as formas da vida conservam em seu rigor uma oposico fundamental quando elas mantém na pessoa mesma do detentor do poder uma dualidade radical de principios: o presidente de conselho italiano ou o chanceler alemao representam formas de atividade distintas, muito bem demarcadas em relagdo ao Duce ou ao Fithrer. Deve-se acrescentar que esses dois personagens detém seu poder fundamental nao de sua funcio oficial no Estado, como os outros primeiros-ministros, mas da existéncia de um partido fascista e de sua situagao pessoal a frente deste partido. que Remate de Males, Campinas-SP, v.41, 1.1, pp. 238-267, jan./jun. 2021 ~ 261 Essa evidéncia da raiz. profunda do poder mantém, precisamente com a dualidade das formas heterogéneas e homogéneas, a supremacia incondicional da forma heterogénea, do ponto de vista do principio de soberania. XII - As condigées fundamentais do fascismo Como ja foi indicado, 0 conjunto dos assim chamados processos heterogéneos nao pode entrar em jogo, se a homogeneidade fundamental da sociedade (o aparelho de produc3o) nao estiver dissociada por suas contradigées internas. Pode-se dizer, alias, que 0 desenvolvimento das forcas heterogéneas, por mais cegamente que se produza a principio, toma necessariamente o sentido de uma solu¢ao do problema posto pelas contradigdes da homogeneidade. As forcas heterogéneas desenvolvidas, apés terem arrebatado o poder, dispdem dos meios de coergao necessarios para arbitrar as desavencas sobrevindas entre elementos antes inconciliaveis, Mas nao é preciso dizer que, ao cabo de um movimento excludente de toda subversao, o sentido no qual se produz a arbitragem. permanece conforme a direcao geral da homogeneidade existente, quer dizer, de fato, aos interesses do conjunto de capitalistas. A mudanea consiste em que, apés recorrerem a heterogeneidade fascista, esses interesses de um conjunto sdo opostos, desde o periodo de crise, aos das empresas particulares. Com isso se acha profundamente alterada a prépria estrutura do capitalismo que tinha, até entao, por principio uma homogeneidade espontanea da produc3o baseada na concorréncia, uma coincidéncia de fato dos interesses do conjunto dos produtores com a liberdade absoluta de cada empresa. A consciéncia, desenvolvida em alguns capitalistas alemes, do perigo em que essa liberdade individual os colocava em periodos criticos, deve naturalmente ser situada na origem da efervescéncia e do triunfo nacional-socialistas. Porém, é& dente que essa consciéncia ainda nao existia nos capitalistas italianos preocupados apenas, no momento da marcha sobre Roma, com © cardter indissolivel de seus conflitos com os operarios. Parece, assim, que a unidade do fascismo se encontra em sua estrutura psicolégica propria, e nao nas condigdes econdmicas que lhe servem de base. (O que ndo entra em contradic¢ao com o fato de que um desenvolvimento logico geral da economia confira posteriormente aos diferentes fascismos um. sentido econémico comum que partilham, é verdade, com a atividade Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jun. 2022 - 262 politica — absolutamente estrangeira ao fascismo propriamente dito - do governo atual dos Estados Unidos). Seja qual for 0 perigo econémico ao qual o fascismo tenha respondido, a consciéncia desse perigo e a necessidade de obvid-lo nada representam, ademais, além de um vago desejo ainda, dissimulado pelo rigor de um poderoso meio de suporte tal como o dinheiro. A realizacio da forca suscetivel de responder ao desejo e de utilizar a disponibilidade do dinheiro se passa somente na regido heterogénea e stia possibilidade depende claramente da estrutura atual dessa regido: no conjunto, pode-se considerar essa estrutura como variavel, quer se trate de uma sociedade democratica ou monarquica. Asociedade monarquica real (distinta das formas politicas adaptadas ou abastardadas, representadas pela Inglaterra atual ou pela Italia pré-fascista) caracteriza-se pelo fato de que uma instancia soberana, de origem antiga e de forma absoluta, esta ligada a homogeneidade estabelecida. A evolucdo constante dos elementos constitutivos da homogeneidade pode necessitar de mudancas fundamentais, mas a necessidade de mudanga nunca é representada no interior senao por uma minoria advertida: 0 conjunto de elementos homogéneos ¢ 0 principio imediato da homogeneidade permanecem ligados 4 manutencdo das formas juridicas e dos quadros administrativos existentes e garantidos pela autoridade do rei; reciprocamente, a autoridade do rei se confunde coma manutencao dessas formas e desses quadros. Assim, a parte superior da regiao heterogénea é a uma s6 vez imobilizada e imobilizante, e sé a parte inferior, formada pelas classes miserdveis e oprimidas, é suscetivel de entrar em movimento. Mas o fato de entrar em movimento representa para esta ultima parte, passiva e oprimida por definicdo, uma alteracdo profunda de sua natureza: a fim de entrar em luta contra a instancia soberana e a homogeneidade legal que as oprime, as classes inferiores devem passar de tm estado passivo e difutso para uma forma de atividade consciente; em termos marxistas, essas classes devem tomar consciéncia de si mesmas enquanto proletariado revolucionario. O proletariado visto dessa maneira nio pode, alids, limitar-se a si mesmo: ele nada mais é, com efeito, do que um ponto de concentracao para todo elemento social dissociado e rejeitado na heterogeneidade. Pode-se mesmo dizer que tal centro de atragao existe de certo modo anteriormente a formagao do que se deve chamar “proletariado consciente”: a descricao geral da regido heterogénea implica, alias, que ele seja geralmente situado como Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jun. 2022 ~ 263 um elemento constitutivo da estrutura de conjunto, a qual compreende nao somente as formas imperativas e as formas miseraveis, mas também. as formas subversivas. Estas formas subversivas séo as mesmas formas inferiores transformadas em vista da luta contra as formas soberanas. A necessidade propria das formas subversivas exige que o que esta embaixo va para oalto, e que o que esta no alto venha para baixo, e é nessa exigéncia que se exprime a natureza da subversdo. Nesse caso, em que as formas soberanas da sociedade ficam imobilizadase ligadas, os diversos elementos rejeitados na heterogeneidade pela decomposicao social nio podem reunir-se somente as formacées resultantes da entrada em atividade das classes oprimidas: eles sAo necessariamente devotados a subversao. A fracao da burguesia que tomou consciéncia de sua incompatibilidade com os quadros sociais estabelecidos une-se contra a autoridade e confunde- -se com as massas efervescentes revoltadas: ainda no tempo que se segue imediatamente a destruicdo da monarquia, os movimentos sociais continuam a ser comandados pelo comportamento antiautoritario inicial da revolugao. Entretanto, em uma sociedade democratica (pelo menos quando tal sociedade nao esta galvanizada pela necessidade de fazer a guerra) a instancia imperativa heterogénea (nac4o nas formas republicanas, rei nas monarquias constitucionais) é reduzida a uma existéncia atrofiada, e toda mudan¢a possivel j4 nao aparece necessariamente ligada a sua destruigao. Nesse caso, as formas imperativas podem ser mesmo consideradas como um campo livre, aberto a todas as possibilidades de efervescéncia e de movimentos, assim como as formas subversivas na monarquia. E, quando a sociedade homogénea sofre uma desintegracao critica, os elementos dissociados nao entram mais necessariamente na érbita de atracdo subversiva: forma-se, além disso, do alto, wma atracao imperativa que nao destina mais 4 imobilidade aqueles sob seu efeito. A principio, até data recente, essa atracao imperativa exercia-se unicamente no sentido de uma restauragao. Encontrava-se, assim, limitada de antemao pela natureza prévia da soberania desaparecida, que implicava mais frequentemente uma perda de contato proibitiva entre a instancia autoritdria e as classes inferiores (a ttnica restauracao histérica espontanea é a do bonapartismo, que deve ser posta em relacdo comas raizes populares manifestas do poder bonapartista). E certo que na Franca algumas dessas formas constitutivas do fascismo puderam ser elaboradas na formacao - mas sobretudo nas dificuldades de formagao ~ de uma atracao imperativa dirigida no sentido Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jun. 2021 ~ 264 de uma restauragio dindstica. A possibilidade do fascismo nao dependeu menos do fato de que um retorno a formas soberanas desaparecidas estava fora de questo na Italia, onde a monarquia subsistia em estado reduzido. Foi precisamente a insuficiéncia, unindo-se 4 subsisténcia monarquica, que necessitou da formacao, a qual ela deixava ao mesmo tempo o campo livre, de uma atracdo imperativa inteiramente renovada e receptiva a uma base popular. Nessas novas condicées (em relacao as dissociagdes revolucionariasclassicas das sociedades monarquicas), asclassesinferiores deixaram de sofrer exclusivamente a atracdo representada pela subversdo socialistae uma organizacao de tipo militar comecouaarrasta-las em parte para a érbita da soberania. Do mesmo modo, os elementos dissociados (pertencentes as classes médias ou dominantes) encontraram uma nova vazao a sua efervescéncia, e nao surpreende que, a partir do momento em que tiveram a escolha entre solug6es subversivas ou imperativas, eles tenham-se dirigido, em sua maioria, em sentido imperativo. Dessa possivel dualidade da efervescéncia resulta uma situac3o sem precedentes. Uma mesma sociedade vé formar-se concomitantemente, em um mesmo periodo, duas revolucées ao mesmo tempo hostis uma a outra e hostis 4 ordem estabelecida. Ao mesmo tempo desenvolvem-se duas fragSes opostas a dissociagSo geral da sociedade homogénea como fator comum, o que explica inumeras conexdes e até uma espécie de cumplicidade profunda. Por outro lado, independentemente de qualquer comunidade de origem, o sucesso de uma das fragdes compromete aquele da frac3o contraria em razio de certo jogo de equilibrio: ele pode ser sua causa (em particular, na medida em que o fascismo ¢ uma resposta imperativa 4 ameaca crescente de um movimento operario) e deve ser considerado, na maior parte dos casos, como seu signo. Mas é evidente que a mera formagao de uma situaco dessa ordem, a menos que seja possivel reestabelecer a homogeneidade vacilante, comanda de antemao set desfecho: a medida que a efervescéncia cresce, a importancia dos elementos dissociados (burgueses e pequeno-burgueses) cresce em relagao Aquela dos elementos que nunca foram integrados (proletariado). Assim, a medida que as possibilidades revolucionarias se afirmam, desaparecem as chances da revolucao operaria, as chances de uma subversao libertadora da sociedade. A principio, parece entao que toda esperanga esteja interditada para os movimentos revolucionarios que se desenvolvem em uma democracia, pelo menos enquanto a lembranca das antigas lutas empreendidas contra Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan./jun. 2022 ~ 265 uma autoridade régia tenha-se atenuado e nao fixe mais necessariamente as reacdes heterogéneas em um sentido contrario as formas imperativas. Com efeito, ¢ evidente que a situacio das principais forgas democraticas, em cujo territorio se lanca a sorte da Revolugao, nao justifica a menor confianea: somente a atitude quase indiferente do proletariado permitiu até aqui que esses paises escapassem a qualquer formagio fascista. Porém, seria pueril a crenca de que 0 mundo se feche assim em um esquema: desde o inicio, a mera consideracao das formacées sociais afetivas revela os imensos recursos, a riqueza inesgotavel de formas, propria a vida afetiva. Nao sé as situaces psicoldgicas das coletividades democraticas sao, como qualquer situacao humana, transitorias, mas é possivel mesmo visualizar, pelo menos, como uma representa¢do ainda imprecisa, forcas de atragao diferentes daquelas que foram ja utilizadas, tao diferentes do comunismo atual ou até do passado quanto o fascismo 0 ¢ das reivindicacées dinasticas. E em vista dessas possibilidades que é necessério desenvolver um sistema de conhecimentos que permita prever as reagées afetivas sociais que percorrem a superestrutura — talvez mesmo, que permita até certo ponto dispor delas. O fato do fascismo, que acaba de pér em questao a propria existéncia do movimento operario, é suficiente para mostrar o que se pode alcangar por meio do recurso oportuno a forcas afetivas renovadas. Nao mais do que nas formas fascistas, no se pode fazer questio hoje, como & época do socialismo utépico, de moral ou de idealismo: um sistema de conhecimentos sobre os movimentos sociais de atracao e de repulsio apresenta-se da maneira mais despojada como uma arma. No momento em que uma vasta convulsdo opée, nao exatamente o fascismo ao comunismo, mas formas imperativas radicais 4 profunda subversao quie seguie em busca da emancipacio das vidas humanas. Traducao de Bruno Reiser Revisao técnica de Adriana Varandas> REFERENCIAS BATAILLE, Georges. La Notion de dépense. Critique Sociale, n. 7, jan. 1933, [sp]. * Doutorando em Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), membro do Grupo de Pesquisa Metafisica e Politica, bolsista CNPq: . » Doutoranda em Teoria Literdria na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC): . Remate de Males, Campinas-SP, v.41, na, pp. 238-267, jan. /jun. 2021 ~ 266 DURKHEIM, Emile. Formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: PUF, 1912. FREUD, Sigmund. Psychologie collective et analyse du “moi”. Trad. fr.1924; republicada em. Essais de psychanalyse. Paris: Payot, 1929. HUBERT, Henri; MAUSS, Marcel. Esquisse d'une théorie générale de la magie. In: Année Sociologique, VII. Paris: [s.n.], 1902-1903. MUSSOLINI, Benito. Enciclopedia italiana. Artigo Fascismo. (Trad. fr. sob 0 titulo Le Fascisme. Doctrine. Institutions]. Paris: [s.n.], 1933- ROBERTSON SMITH, William. Lectures on the Religion of the Semites. First series. The Fundamental Institutions. Edinburgh: [s.n.], 1889. Recebido: 21/2/2021 Aceito: 16/3/2021 Publicado: 22/6/2021 Remate de Males, Campinas-SP, v.41, n4, pp. 238-267, jan./jun. 2022 ~ 267

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