PAULO ROBERTO PADILHA CURRÍCULO - Instituto Paulo Freire
PAULO ROBERTO PADILHA CURRÍCULO - Instituto Paulo Freire
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<strong>PAULO</strong> <strong>ROBERTO</strong> <strong>PADILHA</strong><br />
<strong>CURRÍCULO</strong> INTERTRANSCULTURAL<br />
Por uma escola curiosa, prazerosa e aprendente<br />
Tese apresentada como exigência parcial para a obtenção do Grau<br />
de DOUTOR EM EDUCAÇÃO (Cultura, Organização e Educação),<br />
à Comissão Examinadora da Faculdade de Educação<br />
São <strong>Paulo</strong><br />
FE-USP<br />
2003<br />
da Universidade de São <strong>Paulo</strong><br />
Orientador: Prof. Dr. Moacir Gadotti
RESUMO<br />
Partindo de algumas vivências negativas de sua própria escolaridade e<br />
buscando elementos para superá-las, o autor retoma a experiência da Escola<br />
Pública Popular freiriana, resgata o conceito de “Círculo de Cultura” como<br />
espaço privilegiado do currículo da escola e atualiza os eixos temáticos<br />
curriculares da Escola Cidadã. Analisa as principais teorias de currículo,<br />
confrontando-as com as abordagens atuais do multiculturalismo, da<br />
interculturalidade e da transculturalidade. Caracteriza os elementos<br />
constitutivos do “currículo intertranscultural” como proposta de superação do<br />
discurso e da lógica binária monoculturalismo versus multiculturalismo e<br />
particularismos versus universalismos. Concluindo, apresenta as suas<br />
principais contribuições para uma educação cidadã inclusiva, emancipadora e<br />
humanizadora, por uma escola mais curiosa, prazerosa e aprendente.<br />
2
ABSTRACT<br />
Beginning with his own personal negative school experience, while<br />
searching at the same time for elements and ways to overcome them, the<br />
author returns to the experience of the <strong>Freire</strong>an Popular Public School. From<br />
where he rescues the concept of ”Cultural Circle”, regarded as a privileged<br />
space of the school curricula, in order to renew and update the thematic axis in<br />
the curriculum of the ”Escola Cidadã” (roughly translated as Citizenship<br />
Schools). The main theories dealing with the general theme of school<br />
curriculum are then analized and confronted with the recent theoretical<br />
approaches known as multiculturalism, interculturalism and transculturalism.<br />
The constitutive elements of the ”intertranscultural curriculum” are then<br />
characterized, proposing this later perspective as a way to overcome the<br />
discourse and binary logics of monoculturalism versus multiculturalism – and<br />
of particularism versus universalism. This study concludes by presenting its<br />
main contributions to the construction of an inclusive citizenship education,<br />
intended as emancipatory and humanizing. Which is geared towards a school<br />
inviting curiosity, a school which is pleasurable and fosters learning.<br />
3
O fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos,<br />
é dialógica, aberta e curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou enquanto ouve.<br />
O que importa é que professores e alunos se assumam epistemologicamente curiosos. (...)<br />
O exercício da curiosidade convoca a imaginação, a intuição, as emoções, a capacidade de<br />
conjecturar, de comparar, na busca da perfilização do objeto ou do achado de sua razão de ser.<br />
Um ruído, por exemplo, pode provocar minha curiosidade.<br />
(<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, 1997:96).<br />
Respeitai a infância e não vos apresseis em julgá-la bem ou mal. Deixai as exceções se assinalarem,<br />
se comprovarem, se confirmarem muito tempo antes de adotardes para eles os métodos particulares.<br />
Deixai a natureza agir durante muito tempo antes de preocupardes agir em lugar dela, a fim de não<br />
contrariardes suas operações. Direis que conheceis o valor do tempo e não quereis perdê-lo. Não<br />
vedes que é perdê-lo muito mais empregando-o mal do que nada fazendo, e que uma criança mal<br />
instruída se encontra mais longe da sabedoria do que aquela que não recebeu nenhuma instrução.<br />
Vós vos preocupais com a ver gastar seus primeiros anos em não fazer nada. Como! Ser feliz será<br />
não fazer nada? Não será nada pular, correr, brincar o dia inteiro? Em toda a sua existência não<br />
andará mais ocupada. Platão, em sua República, que acreditam tão austera, só educava as crianças<br />
com as festas, jogos, canções, passatempos: parece que fez tudo ensinando-lhes a se divertirem. E<br />
Sêneca diz, falando da antiga juventude romana: estava sempre em pé e nada se lhe ensinava que<br />
devesse aprender sentada. E valia ela menos ao alcançar a idade viril? Não vos alarmeis demasiado,<br />
portanto, ante essa pretensa ociosidade. Que diríeis: de um homem que para tirar proveito total da<br />
vida jamais quisesse dormir?<br />
(Jean-Jacques Rousseau, Emílio ou da educação, São <strong>Paulo</strong>, Difel, 1968, p. 97).<br />
4
Dedico<br />
Aos meus pais Benedito Padilha (in memoriam) e Maria da Costa Padilha,<br />
com quem aprendi tantas lições e ainda aprendo.<br />
Aos meus filhos Igor Arrais Padilha e Isis Arrais Padilha,<br />
Que amo mais do que tudo na vida<br />
e que renovam a minha esperança de viver o presente, inventando o futuro<br />
Agradeço<br />
Ao meu orientador professor Moacir Gadotti<br />
que sempre me surpreende por sua sabedoria, humildade, bondade e energia.<br />
À professora Ângela Antunes<br />
a quem palavras de agradecimento por sua ajuda, solidariedade,<br />
carinho e qualidade humana jamais bastariam.<br />
Ao professor Reinaldo Matias Fleuri por tão bem aliar competência intelectual<br />
com sensibilidade humana e pelo imenso apoio na construção deste trabalho.<br />
Aos professores Celso de Rui Beisiegel e José Eustáquio Romão,<br />
por suas excelentes contribuições no processo de minha qualificação.<br />
Aos meus professores da Faculdade de Educação da USP, Celso de Rui Beisiegel,<br />
Maria Cecília Sanches Teixeira, Maria do Rosário Silveira Porto, Roseli Fischmann,<br />
Afrânio Mendes Catani, Marcos Ferreira Santos, Helenir Suano,<br />
Helena Coharik Chamlian e Leny Magalhães Mrech,<br />
Por seus exemplos de dialogicidade, seriedade e compromisso,<br />
com que organizam os seus cursos.<br />
Aos professores da Faculdade de Educação da USP Cláudia Pereira Vianna e<br />
Moacir Gadotti, com quem tive a honra e o prazer de estagiar, colaborar e aprender.<br />
Às companheiras e aos companheiros do <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, Azril Bacal (por seu<br />
acolhimento solidário, por suas “aulas” sobre cultura e por suas traduções),<br />
Deucélia Nunes de Lima (pela ajuda na organização da bibliografia),<br />
Salete Valesan Camba e Sônia Couto S. Feitosa, pelo incentivo e carinho de<br />
sempre, à Valdete A. Melo, por ser tão prestativa e solidária, e aos demais<br />
companheiros/as Adriano Nogueira, Alexandro Fernando da Silva (Naiman),<br />
Ana do Vale, Antônio J. Mânfio, Carlos Alberto Torres, Edson Martins,<br />
Edilson Fernandes, Francisco Gutiérrez, Cruz Prado, Genoino Bordighon,<br />
Gustavo Cherubine, Jason Mafra, Júlio Wainer, Luiz C. de Oliveira (Luizinho),<br />
5
Luiza Christov, Lutgardes C. <strong>Freire</strong>, Maria Alice de P. Santos, Margarita V. Gomez,<br />
Maria de Lourdes M. Prais (Dedê), Maria R. Avanzi (Ritinha), Paulina Christov,<br />
Ramón Moncada, Sidney N. de Oliveira, Walter Esteves Garcia, além de Dulce,<br />
Lourdes e Maria, pelo exercício permanente de solidariedade<br />
e de continuidade e atualização do legado de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>.<br />
A Gaudêncio Frigotto, José Xavier Cortez, José Clóvis de Azevedo, Andréa Krug,<br />
Jaime José Zitkosky, Elvira de Souza Lima, Antônio Joaquim Severino, Pedro Demo,<br />
Sílvio Rocha, Licínio C. Lima, Maria Stela S. Graciani, Stephen R. Stoer<br />
Alfredo Sérgio R. dos Santos, José Rubens Jardilino, Sandra Molla,<br />
Waldir Rossino, Tânia da Costa Fernandes e a Ana Maria M. S. Battaglin,<br />
pelos pequenos-grandes gestos de apoio e contribuições específicas<br />
durante a construção desta tese.<br />
Aos educadores e às educadoras (pais/mães/alunos/as/professores/as/secretários<br />
de educação/membros dos colegiados escolares dos diversos municípios<br />
brasileiros), em especial, Várzea Grande, São <strong>Paulo</strong>, Osasco, Porto Alegre,<br />
Alvorada, Erexim, Uberaba, Rio de Janeiro... a todos/as os meus professores/as e<br />
alunos/as com quem temos partilhado o sonho de construir a Escola Cidadã e<br />
muito temos aprendido sobre princípios de convivência,<br />
gestão democrática, currículo e avaliação.<br />
Ao companheiro Joselito (in memoriam),<br />
que nos deixou recentemente, mas que continua conosco, a escrever essa história.<br />
A <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> (in memoriam), mestre e inspirador de todas as horas.<br />
E agradeço aos meus familiares<br />
Pai e mãe, filho e filha, sempre, e tanto.<br />
À minha irmã Neusa Padilha Cupertino, ao meu sobrinho Felipe Padilha Cupertino e<br />
ao meu cunhado Jubal S. V. Cupertino,<br />
por suas presenças bonitas e marcantes em minha vida.<br />
A todos/as os/as Arrais<br />
por conservarem a alegria do encontro e da solidariedade em todas as horas.<br />
Ao cunhado Jorge (in memoriam) que se foi tão cedo, deixando tanta saudade.<br />
A Aparecida Arrais (Cidinha), pelo exercício permanente da maternidade,<br />
do diálogo, do conflito, do amor e da amizade.<br />
E a toda gente querida de minha convivência pessoal e profissional<br />
Quanta gente... quantas culturas!<br />
6
SUMÁRIO<br />
Apresentação pessoal - Com o pé na estrada, enfrentando a<br />
desigualdade e a exclusão ............................................................................. 8<br />
Introdução - Caminhando contra o vento ....................................................... 29<br />
Capítulo 1 – Escola Pública Popular, Escola Cidadã: uma outra<br />
educação é possível ................................................................... 43<br />
Capítulo 2 – O currículo como centro do debate de uma outra<br />
educação possível .................................................................... 112<br />
Capítulo 3 – O “Círculo de Cultura” e o debate atual sobre currículo .......... 154<br />
Capítulo 4 –Interculturalidade e currículo: um debate inconcluso................ 176<br />
Capítulo 5 – Para além do monoculturalismo e do multiculturalismo .......... 237<br />
Capítulo 6 – Por uma escola curiosa, prazerosa e aprendente ................... 276<br />
Conclusão pessoal – Realização de um sonho possível ............................. 308<br />
Bibliografia ................................................................................................... 321<br />
7
Apresentação pessoal<br />
Com o pé na estrada,<br />
enfrentando a desigualdade e a<br />
exclusão<br />
8
Noite de 20 de julho de 1999. Às 23h15min, ao interromper a escrita do<br />
meu projeto de doutorado para colocar meu filho Igor, então com 8 anos, para<br />
dormir, e diante da insônia passageira dele, travamos um breve diálogo:<br />
- Fique quietinho meu amor. Papai está muito cansado e precisa dormir.<br />
- Por que você está cansado, papai?<br />
- Porque trabalhei muito hoje.<br />
- O que você fez, papai?<br />
- O papai participou de uma reunião muito longa, por quase quatro horas.<br />
- E o que você fez na reunião, papai?<br />
- Ah... filho... o papai, junto com outras pessoas, ficou preparando um curso.<br />
Preparando um curso para adultos analfabetos. Para pessoas que não puderam<br />
estudar quando crianças, pessoas pobrezinhas que não tiveram condições de<br />
estudar quando pequenas. E que não aprenderam a ler nem escrever.<br />
- Então eu sou rico papai?<br />
- Não, meu filho... nós também somos pobres, mas somos mais ou menos<br />
pobres e não pobres assim, tão pobres. Na verdade somos pobres médios ou<br />
melhor, classe média, classe média pobre. Felizmente, conseguimos entrar na<br />
escola, continuar estudando, coisa que outras pessoas, mais pobrezinhas que nós,<br />
com maiores dificuldades que eu e você, não conseguiram fazer. Muitas pessoas<br />
nem puderam entrar na escola, outras foram excluídas dela, outras não puderam<br />
nem freqüentá-la.<br />
- Ah... então somos PMs<br />
- O quê?<br />
9
- Pobres médios, né papai?<br />
- Não filho... bem... pode-se dizer que sim... é melhor dizer classe média...<br />
classe média (pobre?). (risos!!!). Que confusão hein filho?! Mas vamos dormir...<br />
Depois de algum tempo de silêncio, meu filho retornou:<br />
- Papai, porque você ficou preparando o curso para aquelas pessoas pobres?<br />
- Para que elas possam, agora, depois de adultas, estudar. Para que tenham<br />
a oportunidade que eu e você já tivemos e continuamos a ter.<br />
- Ah...papai... então eu já sei o que você ficou fazendo, porque você ficou<br />
trabalhando tanto hoje.<br />
- Por quê, meu filho?<br />
Foi, então, que meu filho me emocionou. Erguendo os braços, num gesto de<br />
vitória, ele disse:<br />
- Porque, papai, você quer um mundo melhor para aquelas pessoas!<br />
- É isso mesmo, meu filho. É isso mesmo.<br />
E me calei. Ele dormiu e eu fiquei emocionado e chorando por um bom<br />
tempo. Continuei refletindo sobre aquela conversa, ainda emocionado, e pensando<br />
na vida, na minha vida, na vida dos “esfarrapados do mundo”, nos fenômenos da<br />
desigualdade e da exclusão, que contrariam uma vida digna e a justiça social que<br />
tanto almejamos.<br />
Segundo os professores Stephen R. Stoer e Luiza Cortesão, referindo-se a<br />
um artigo escrito pelo professor Boaventura Souza Santos (Santos, 1995), as<br />
situações de desigualdade e de exclusão têm em comum o fato de serem ambos<br />
“sistemas de hierarquização social” (Stoer & Cortesão, 1999:15). No entanto,<br />
existem entre elas diferentes características a serem apontadas: enquanto a<br />
desigualdade, que tem como o seu grande teórico Karl Marx, é predominantemente<br />
um fenômeno sócio-econômico e se caracteriza pela “integração subordinada”, os<br />
processos e as situações de exclusão, teorizados por Foucault, acontecem quando<br />
há decisões de afastamento, de expulsão e de eliminação dos grupos minoritários,<br />
sendo “freqüentemente informada por características sócio-culturais” (id.).<br />
Por outro lado, enquanto a desigualdade integra e submete, pois<br />
10
os seus mecanismos permitem a coexistência do dominante com o grupo submetido no<br />
mesmo espaço/tempo, desde que este último seja dócil e silencioso (...) a exclusão vai<br />
sendo construída através do estabelecimento de limites e de regras que não poderão ser<br />
transgredidas e a partir das quais, arbitrariamente, será estabelecido o que é normal e o<br />
que é aceitável e também o que é desviante, portanto proibido (...) Assim será eliminado<br />
quem não se situa dentro do estabelecido como sendo normal, e quem transgride os<br />
limites do aceitável (Stoer & Cortesão, 1999:15).<br />
Estas reflexões me fizeram, enquanto pai e educador, também pensar no<br />
futuro do meu filho e no das tantas crianças que, como ele, terão de enfrentar: um<br />
mundo muito diferente daquele mundo que encontrei logo no início da segunda<br />
metade do século XX: clonagem, internet, celulares, transgênicos, mapeamento do<br />
DNA, teleconferências.<br />
E continuei com a minha emoção, com as minhas divagações, com as minhas<br />
reflexões e preocupações de pai e de educador que se entende, como afirma Mário<br />
Sérgio Cortella, um “partejador de futuro”, ou seja, “um educador que procura<br />
realizar as possibilidades que a Educação tem de colaborar na conquista de uma<br />
realidade social superadora das desigualdades”. (1998:158). Depois de um dia<br />
atribulado, em meio ao excesso de trabalho, ao trânsito louco de São <strong>Paulo</strong>, em<br />
meio à confusão da própria vida – confusão emocional, profissional, financeira,<br />
matrimonial... Diante da dificuldade para mostrar ao meu Igor que um futuro melhor<br />
seria possível e dos problemas que eu acompanhava no meu cotidiano educacional,<br />
eu começava a delimitar o meu projeto de pesquisa para o doutoramento, cuja<br />
temática se referia ao currículo da escola. Foi o tempo suficiente para me emocionar<br />
e relembrar o passado de uma criança que freqüentou a escola e que dela quase<br />
nada se recorda. A não ser, com maior clareza, de algumas situações de<br />
desigualdade e de exclusão.<br />
A partir do comentário do meu filho Igor comecei a pensar sobre a minha<br />
própria história de vida, que deve ser parecida com outras histórias de vida de outras<br />
pessoas neste Brasil e mesmo na América Latina e todos os países cujas<br />
características se assemelham: injustiça social, má distribuição da renda, políticas<br />
públicas sem compromisso efetivo com o social, com o seu povo. E ao fazê-lo,<br />
11
pensava por que a escola nunca havia resgatado esta minha história e também por<br />
que nem eu mesmo havia me perguntado, de forma mais objetiva ou sistemática, até<br />
então, sobre a importância da minha própria história para o meu desenvolvimento<br />
pessoal, profissional, intelectual, humano, enfim. Melhor dizendo, eu nunca me<br />
perguntara conscientemente sobre como cheguei a ser o que sou hoje, ou sobre os<br />
porquês de pensar de uma ou de outra forma sobre as diferentes vivências pelas<br />
quais passo cotidianamente. Ou, ainda, pouco me ocorrera, até então, perguntar-me<br />
sobre como se constróem idéias que nós fazemos das coisas (Bateson, 1986).<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> afirma que educar é impregnar de sentido a vida cotidiana. Fiquei me<br />
perguntando sobre a educação que realizamos. Em que medida ela nos insere<br />
criticamente no contexto em que vivemos? Como se inserir neste processo?<br />
Deflagrei, em mim, um processo consciente que contribuiu para que eu<br />
encontrasse algumas respostas para perguntas que me acompanhavam desde há<br />
muito tempo. Preocupações que, embora eu não soubesse nomeá-las claramente,<br />
elas já se faziam presentes desde e adolescência. Fui me dando conta da<br />
necessidade de superar uma visão fragmentada dos fenômenos, da própria vida, da<br />
realidade. Sempre fui uma criança curiosa. Inquieta. Alguns temas me incomodavam<br />
profundamente, principalmente a exclusão, a injustiça, a indiferença com a pobreza,<br />
com o sofrimento humano, com a desigualdade, com a exclusão social e<br />
educacional, como já mencionei anteriormente – questões para as quais eu buscava<br />
respostas. Essa busca contribuiu para a conformação da pessoa que sou hoje e do<br />
conjunto de idéias que compõem o meu “estar sendo no mundo” (<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>).<br />
Ao iniciar este trabalho, cujo tema central é o currículo na perspectiva da<br />
intertransculturalidade, opto por fazê-lo a partir do relato de fragmentos de minha<br />
biografia, entendendo que “a história de vida de cada sujeito é o espaço e o tempo<br />
onde tal aprendizagem e sensibilização (inter e multicultural) se processem ou não”<br />
(Vieira, 1999:153). Nesse sentido, ao recordar alguns fatos, ao “relembrar” e<br />
resgatar a minha memória, estou dando mais significado ao próprio conteúdo de<br />
minha tese, esta, que já constitui, como a minha própria história pregressa, parte do<br />
meu curriculum vitae (Damásio, 1994; Lima, 1997).<br />
Lembro-me da primeira escola em que estudei mas, principalmente, de alguns<br />
momentos muito tristes, de humilhação, de me sentir perdido, envergonhado,<br />
12
calado, com muitas dúvidas sobre os conteúdos transmitidos por meus professores<br />
e com medo de perguntar.<br />
Não entendia os motivos, mas, quando criança, eu tinha um sentimento de<br />
inferioridade e hoje constato isso era resultado de algum tipo de violência sofrida<br />
junto aos meus colegas de classe e também imposta por alguns professores.<br />
Recordo-me também das intermináveis filas, do frio na barriga no meu primeiro dia<br />
de grupo escolar, da alegria que foi entrar na escola, fazer as primeiras lições de<br />
casa e do orgulho que tive ao identificar, nos cartazes das ruas, as primeiras<br />
palavras e frases. Contudo, muito marcantes foram as humilhações sofridas, que me<br />
faziam sentir ao mesmo tempo uma criança “menor” (até no tamanho, o que<br />
efetivamente era verdade), “desigual” (não apenas por ser pobre, mas por ser filho<br />
de um pai que não tinha as próprias pernas, o filho do ‘aleijado’) e excluída (uma<br />
criança que, por pouco, não saiu da escola, não desistiu de estudar, pois as escolas<br />
que freqüentei pouco favoreciam o interesse do aluno. Era evidente o<br />
distanciamento entre alunos e professores e quase nada se fazia para resgatar os<br />
saberes discentes e para mostrar aos estudantes o quanto eles eram importantes no<br />
mundo em que viviam. Tal situação criava em mim, mesmo resistindo, um<br />
sentimento negativo em relação à permanência na escola, isso sem considerar as<br />
dificuldades econômicas pelas quais sempre passei, que colocavam obstáculos<br />
imensos, só hoje percebidos, para que eu conseguisse continuar os estudos. E,<br />
além disso, eu sentia, a cada ano, que a maioria dos conteúdos escolares que era<br />
obrigado a aprender no ano anterior, esquecia no ano seguinte.<br />
Mas antes de entrar no “grupo escolar”, como chamávamos naquela época,<br />
também tive minha “pré-escola”. Foi em casa. Eu era, ainda, menino de 5 ou 6 anos.<br />
Meu professor era o meu pai, grande homem, pessoa sensível, sofrida, semi-<br />
analfabeta, que faleceu em março de 2000 – neto de espanhóis por parte de pai e<br />
de portugueses e indígenas por parte de mãe, lavrador no interior de São <strong>Paulo</strong> e<br />
operário braçal na Capital do Estado, nunca freqüentou escola. Aprendeu a ler e a<br />
escrever na roça, quase um autodidata, utilizando, como caderno, folhas de<br />
bananeira e o próprio chão, riscado com gravetos. Aos 38 anos, perdeu as pernas<br />
num acidente ferroviário, quando eu tinha menos de dois anos de idade. Ele me<br />
ensinou as primeiras letras, os primeiros rabiscos 1 .<br />
1 Meu pai perdeu ambas as pernas num acidente ferroviário, quando eu tinha um ano e meio de<br />
idade, justamente porque ao tomar um trem lotado, foi empurrado pela multidão. O maquinista do<br />
13
Recordo-me dos exercícios de caligrafia que meu pai solicitava que eu fizesse<br />
– traços verticais e horizontais, linhas curvas, riscos, vogais, consoantes, todas<br />
escritas a lápis. Eu, canhoto, sendo obrigado a escrever com a mão direita, porque o<br />
certo era escrever com essa mão. Quando ele saía de perto, eu passava o lápis<br />
para a mão esquerda e corria com a lição. Quando ele chegava perto, fazia com que<br />
eu escrevesse com a mão que se cansava rapidamente, que não se ajustava bem<br />
ao lápis nem ao caderno. Em se tratando de meu pai, este equívoco pedagógico era<br />
compreensível, pois ele não tinha formação para ensinar. Só tinha formação para<br />
amar o seu filho e para se preocupar em iniciá-lo no mundo das letras. Era um pai<br />
bem intencionado e amoroso. O que eu não compreendia era o fato de minha<br />
primeira professora – cujo nome não me lembro – ter cometido o mesmo erro. Ela<br />
tinha formação pedagógica, ou deveria ter. De qualquer forma, com base da<br />
“pedagogia da época”, também me obrigou a escrever com a mão direita. Resultado:<br />
até hoje sinto dificuldade em escrever com esta mão e minha letra sempre foi<br />
considerada “feia” e ilegível. Mas acabei extraindo desta experiência algo de<br />
positivo: depois que me tornei professor, ao sentir o mesmo desconforto ao escrever<br />
na lousa com a mão direita, passei a exercitar a outra mão e, depois de mais de<br />
doze anos, já posso dizer que minha caligrafia é menos incompreensível. Minhas<br />
alunas e meus alunos, certamente, ajudaram muito neste avanço, principalmente<br />
quando me perguntavam, e ainda perguntam, o que está ou estava escrito “ali”.<br />
Hoje escrevo na lousa com a mão esquerda e, no papel, com a mão direita.<br />
Sou, então, ambidestro em espaços diferentes. Mas com outra desvantagem: em<br />
ambas as situações a escrita resultante é ilegível, uma letra considerada “horrível”, o<br />
que já me incomodou muito e, hoje, incomoda bem menos. Mas incomoda. Tanto é<br />
que as sínteses ou os roteiros das minhas aulas são preparados, geralmente,<br />
utilizando o teclado do computador. Eu diria mesmo que, nesse sentido, minha<br />
caligrafia tem piorado ainda mais, pois, com o desuso, a mão, para este fim, tem,<br />
praticamente, “atrofiado”. Talvez, por isso, tenha me tornado um exímio datilógrafo<br />
e, hoje, um ágil digitador.<br />
Minha primeira experiência na escola pública estadual de São <strong>Paulo</strong>, na<br />
mesma rede onde me tornei professor concursado e efetivo, anos depois, também<br />
trem, antes de parar na plataforma da estação de Itaquera, bairro onde nasci e onde morávamos,<br />
abriu as portas da composição – como era prática para “ganhar tempo”. Assim, aumentou o risco, a<br />
confusão e provocou o empurra-empurra que contribuiu para o acidente que mudou a vida de meu pai<br />
e, certamente, a história de toda minha família.<br />
14
foi muito marcante. No primeiro dia de aula, apesar da alegria, da ansiedade e do<br />
novo desafio, precisei de minha garra infantil para enfrentar a fila, aquela multidão<br />
de crianças, e de muita coragem diante do sentimento de abandono de minha mãe –<br />
sentimento comum a tantas crianças.<br />
Minha estatura física, hoje, é mediana, mas, quando criança, sempre fui o<br />
menor entre os pequenos. No entanto, no meu primeiro dia de aula, sentia-me<br />
grande, orgulhoso, encorajado por meus pais para não chorar diante da nova<br />
experiência, aos 7 anos completos.<br />
O que ficou desse dia? Apenas a lembrança do “tchau” encorajador de minha<br />
mãe, a vontade de ficar, o peito batendo forte, o nó na garganta querendo chorar, a<br />
vontade de ficar e, ao mesmo tempo, de voltar correndo para casa e, o mais<br />
importante: a lembrança da fila, das inúmeras filas, do cheiro de cera da sala de<br />
aula, das carteiras enormes que deixaram minhas pernas balançando, da postura<br />
firme em minha carteira, enquanto outras crianças choravam desesperadas,<br />
buscando, inutilmente, suas mães.<br />
Ao nos dirigirmos para a classe, percebia-se certo pânico no ambiente. Minha<br />
fila, de chorões escandalosos, gritando pelas mães, fazia-me tremer. Mas eu fiquei<br />
firme, disposto a enfrentar o imprevisível, o novo, o desconhecido, a professora meio<br />
indiferente mas, se posso dizer, até que um pouco atenciosa comigo – pois<br />
freqüentara ou freqüentava a mesma igreja (protestante) que minha mãe – o que me<br />
deu alguma segurança.<br />
Nó na garganta sim, mas lágrimas não. Ao contrário de meu primo, meu<br />
grande amigo de então. Ele que tinha a mesma idade que eu, desistiu “de cara” e só<br />
começou o primeiro ano da então escola primária no ano subseqüente. Havia no ar,<br />
entre a família, a idéia de que ele era um pouco “retardado” em virtude de uma certa<br />
demora e dificuldade para nascer, aquelas coisas de parto difícil. Por isso, seria<br />
natural que ele se comportasse daquela maneira, com muito medo, lágrimas, choro,<br />
escândalo. Foi natural, inclusive para a escola que tinha poucas vagas, que aquela<br />
criança voltasse para casa e constasse da lista dos evadidos nos primeiros dias de<br />
aula, por culpa dela, ou do seu nascimento, ou do seu pequeno desenvolvimento<br />
físico e mental, argumentos todos sem a mínima precisão científica, sem o mínimo<br />
diagnóstico sobre os verdadeiros porquês daquela evasão. Quando conseguiu<br />
15
efetivamente entrar na escola, foi reprovado sucessivamente por vários anos, não<br />
“tomou gosto” pelos estudos e conseguiu, no máximo, concluir o então ensino<br />
primário – o que hoje se refere às quatro séries iniciais do ensino fundamental,<br />
conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educacional vigente – LDB 9394/96. Após<br />
várias repetências e evasões, humilhações e tentativas escolares, o garoto que era<br />
um excelente jogador de futebol nas nossas ‘peladas’ infantis e que, nas<br />
brincadeiras, era sempre esperto e exercia até mesmo liderança junto às demais<br />
crianças, não seguiu os seus estudos, até porque se considerava “burro” e se sentia<br />
deslocado nas salas de aula que precisaria freqüentar em função de sua avançada<br />
idade em relação ao início do ginásio. Tornou-se um excelente operário numa<br />
grande indústria de malhas na capital de São <strong>Paulo</strong>, onde eu também trabalhava<br />
como auxiliar de escritório e consegui vaga para ele. Lá permaneceu por vários<br />
anos. Mas, aos poucos, sem estudar, só trabalhando excessivamente, sem lazer,<br />
ganhando um salário sempre baixo, aproximou-se das drogas, começando a<br />
consumir álcool, maconha e outras drogas mais pesadas, o que contribuiu, segundo<br />
ele, seus familiares e seus chefes, para que ganhasse o desemprego. Depois de<br />
vinte e poucos anos, como resultado de todo este processo de “vida”, sempre<br />
desempregado, ganhou as ruas, foi preso por vadiagem por inúmeras vezes, foi<br />
hospitalizado várias vezes por agressões sofridas nas ruas (por parte da polícia, dos<br />
seus colegas de rua ou de ladrões, segundo pude ouvir dele próprio, por algumas<br />
vezes). Os esforços da família – inclusive os meus – não foram suficientes para<br />
ajudá-lo mais. Hoje ele “vive” como mendigo, abandonado no mundo, por si mesmo,<br />
pela família, por mim, pela sociedade. Pura coincidência?<br />
Voltando à minha experiência escolar, nenhuma lembrança tenho das lições<br />
ou do que aconteceu naquele primeiro dia de aula. Inesquecíveis foram as filas do<br />
primeiro ano, do segundo, do terceiro, do quarto ano primário. E também das demais<br />
séries.<br />
Considerava-me privilegiado por ter conseguido uma vaga na escola pública,<br />
e sonhava em “passar” de ano. Era o que eu sempre pensava: passar para a série<br />
seguinte. Eu ficava imaginando como eu seria estando no segundo ano? No<br />
terceiro? No quarto... puxa... eu seria grande. E seria “alguém na vida”, como todos<br />
diziam, mesmo que eu não conseguisse entender muito bem o que significava “ser<br />
alguém na vida”. Na verdade, sabia sim: associava o “ser alguém” à possibilidade de<br />
16
ganhar muito dinheiro e deixar de ser pobre. Falo, neste particular, dos anos 60.<br />
Entrei na escola em 1966.<br />
Tenho algumas recordações daquela escola onde cursei as primeiras quatro<br />
séries do ensino primário, a mesma na qual, muitos anos depois, dei aulas de<br />
Educação Artística para a pior quinta série que já “enfrentei” na vida – uma quinta<br />
série “F” – aquela, considerada pelos professores a pior de todas, de meninos e<br />
meninas “vândalos”, desacreditados por todos. Ficaram em mim as recordações<br />
tristes. Momentos alegres? Foram poucos. Lembro-me de um: o boletim de<br />
“aprovado” na quarta série primária, depois de um suspense “maquiavélico” por<br />
parte da professora. Ao ver alguns coleguinhas saírem chorando por terem sido<br />
reprovados eu sentia uma angústia enorme no peito. Como meu nome começa com<br />
a letra “P”, demorou muito para saber o meu resultado: aprovado! Que alegria!<br />
Porém, antes de mim, muitos reprovados. E até mesmo um maldoso sentimento de<br />
felicidade da minha parte ao ver reprovado um menino com quem eu havia brigado<br />
na rua. Foi uma mistura de felicidade e vingança, um sentimento de superioridade<br />
de quem havia perdido na briga, mas vencido na escola. Afinal, eu havia vencido a<br />
competição naquele ano e ele saía chorando, tendo que estudar tudo novamente, no<br />
próximo ano. Nunca mais vi aquela criança.<br />
Recordo-me também da minha vontade de comer a merenda escolar, que<br />
quase nunca era servida na escola em que eu estudava. Isso só aconteceu quando<br />
eu estava na terceira série primária. O cheiro bom da merenda, principalmente no<br />
início, ganhava o pátio da escola. Formava-se uma fila imensa para receber a<br />
merenda das mãos daquelas senhoras – as merendeiras – que geralmente, eu<br />
notava, serviam a comida com certa brutalidade. Era servido um prato de sopa, ou<br />
um ovo cozido – de que eu não gostava – ou, então, um copo de leite engrossado<br />
com aveia ou algum tipo de mingau desconhecido. O gosto nem sempre era bom,<br />
mas esquentava a barriga daquelas crianças que, como eu, estavam sedentas por<br />
um prato de algum alimento antes de retornar, sem escovar os dentes, para as<br />
demais aulas do período. Aquela merenda era uma emoção e uma satisfação,<br />
descontando, naturalmente, o mau humor das funcionárias da cozinha, quase<br />
sempre gritando, impacientes com a gritaria que as crianças faziam durante o<br />
“recreio”.<br />
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Outra imagem que ficou guardada em mim, profundamente: cantar o hino<br />
nacional com a mão no peito, olhando para a nuca da criança da frente e evitando<br />
olhar para as crianças das demais filas, das séries seguintes. Eu geralmente<br />
cantava, mas desviando o pensamento para o meu futuro. Procurava observar<br />
disfarçadamente as demais filas, das demais turmas, das séries seguintes, sempre<br />
pensando que no próximo ano eu estaria na outra fila, que no outro ano estaria na<br />
outra e na outra fila. Mas, por vezes, mesmo sem parar de cantar, era interrompido<br />
bruscamente pela professora, que me percebia sonhando enquanto cantava: e isso<br />
parecia ser proibido.<br />
Em outros momentos, também na fila, a professora, como se fosse o<br />
Sargento, o Capitão ou o Presidente da República passando a tropa em revista,<br />
corrigia, sem muito carinho, a minha postura na fila, reclamando que eu carregava<br />
uma mochila nas costas, cheia de cadernos, o que me deixava corcunda. Cadernos<br />
que ela mesma exigia fossem trazidos para a escola todos os dias. Aquela<br />
professora me colocava numa posição desconfortável, ereto, empurrando minha<br />
barriga para trás e meu peito para a frente – tipo “peito para fora! Barriga para<br />
dentro! Marcha!.” Lá íamos para a sala de aula. Mesmo assim, confesso que sentia<br />
um certo prazer com aquele contato da professora que, por alguns momentos,<br />
parecia-me uma forma de preocupação comigo, uma forma de carinho.<br />
Apenas uma vez tive dinheiro para tirar fotos na escola, daquelas com uma<br />
caneta na mão, braços cruzados sobre a mesa, mapa do Brasil (ou de São <strong>Paulo</strong>, ou<br />
de algum lugar) ao fundo, um chapéu de formatura na cabeça (de cartolina preta).<br />
Mesmo assim, eu não gostava daquela foto, que desapareceu há anos, pois, no dia<br />
que foi tirada, eu estava com um problema nos lábios, que chamávamos, em casa,<br />
de “boqueira”. Na foto parecia uma mancha enorme no canto da boca e,<br />
principalmente, no lábios inferior.<br />
Minhas pernas dependuradas na carteira de madeira pesada, carteiras<br />
enfileiradas na sala de aula, daquelas em que o assento do colega da frente é<br />
conjunto da “mesa” ou da carteira em que o colega de trás se apóia ou escreve.<br />
Carteira, ao mesmo tempo, grande para o meu tamanho e acanhada para guardar o<br />
material...numa sala com cheiro de cera, cheiro bom para criança pobre,<br />
acostumada a cheiro de chão sem cera, a chão de terra, cheiro que não sinto faz<br />
tempo. Cheiro bom que eu não sabia.<br />
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Na sala de aula, eu tinha medo de fazer perguntas, vergonha dos colegas,<br />
timidez. E a professora não era mesmo de ficar respondendo às perguntas.<br />
Resultado: eu não abria a boca na sala de aula. Nem para conversar com os<br />
colegas, pois havia o risco de castigos ridículos: sair da sala e ir para a diretoria,<br />
ficar ajoelhado perto do cesto de lixo, ficar sentado junto à professora ou de pé junto<br />
à porta da sala de aula. Além desses, ser chamado à atenção de forma dura,<br />
áspera, vergonhosa e vexatória. A disciplina era, pois, muito rígida.<br />
Outra lembrança: a briga com o lápis porque a professora exigia qu eu o<br />
segurasse de uma maneira que, para mim, era a mais desconfortável, e essa mão<br />
com a qual eu não conseguia escrever. A postura era definida pela professora e não<br />
de acordo com o tamanho do lápis ou da minha mão. Caso não cumprisse a ordem,<br />
havia uma régua, da professora, insistindo em bater em minha mão e “refrescando a<br />
minha memória”.<br />
Recordo-me, por outro lado, da vontade de começar logo a escrever com<br />
caneta tinteiro e usar “mata-borrão”, como minha única irmã já usava em casa. Mas<br />
quando chegou a minha vez de usar mata-borrão, surgiram as canetas<br />
esferográficas e lá se foi a minha esperança de ter e de aprender a utilizar, na<br />
escola caneta, canetas “de pena” e o mata-borrão.<br />
Não me recordo de nenhuma atividade lúdica desse tempo das quatro séries<br />
iniciais do meu curso primário, o que equivale hoje às quatro primeiras séries do<br />
ensino fundamental. Mas outra recordação também ficou marcada em mim: a<br />
obrigação de não tirar férias nas férias. Acabei me acostumando a quase nunca tirar<br />
férias, pelo que considerava, até pouco tempo, uma certa predestinação. E penso<br />
mesmo que me acostumei a isso, até porque fui sempre educado para isso.<br />
Terminadas as aulas, a pior coisa era o período de férias. Quando elas chegavam,<br />
principalmente em julho, as professoras passavam um caderno inteiro de lições a<br />
serem feitas – praticamente uma lição para cada um dos dias das férias. E como<br />
férias eram férias, tempo para descansar, lembro-me que a angústia de não fazer<br />
logo a lição ia se avolumando desde o primeiro dia de “descanso”. Eu queria brincar,<br />
por isso ia adiando as tarefas. Quanto mais eu adiava, mais ia ficando a angústia. A<br />
obrigação de fazer as lições e o medo da “bronca” da professora caso não fizesse<br />
todas tomavam conta do meu ser e não me deixavam tranqüilo durante todo o<br />
período de férias. Nos últimos dias de descanso, lembro-me bem, eu corria com as<br />
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lições e quase nunca conseguia terminá-las. E o mais interessante: apesar do meu<br />
medo, da minha angústia, da ansiedade que tantas lições criava, parece que quase<br />
nenhum colega fazia a lição e que, apesar disso, nada acontecia a ninguém. Quer<br />
dizer, era uma angústia gratuita, sem motivo, mas que aprisionava, que estragava as<br />
férias. Malditas lições; eu as odiava e nunca conseguia compreender para que<br />
serviam se eram apenas recolhidas no primeiro dia de retorno das aulas, geralmente<br />
por uma outra professora, sem que tivéssemos qualquer retorno da mesma. Pelo<br />
menos foi esta a lembrança que ficou. Meus educadores certamente desconheciam<br />
que as férias significam “por excelência o momento em que se afirma a existência do<br />
presente, da alegria do presente” (Snyders, 1988:31).<br />
Outra experiência marcante para mim, agora relacionada ao antigo ginásio –<br />
hoje quinta a oitava séries do ensino fundamental – era a falta de escola e a<br />
experiência da bolsa do juizado de menores.<br />
Minha única irmã, mais velha do que eu 5 anos, foi obrigada a ficar sem<br />
estudar durante um ano, porque foi reprovada no então exame de admissão para o<br />
antigo ginásio, prestado numa escola pública. Recordo-me que isso causou a ela<br />
grande sofrimento, porque ela era uma ótima aluna e não entendíamos o porquê de<br />
ficar sem uma vaga. Para evitar que eu corresse o mesmo risco anos depois, e<br />
considerando a escassez de vagas nas escolas públicas – e lembro-me que isso nos<br />
causava um verdadeiro “pânico” – meus pais fizeram um esforço extra e pagaram<br />
para mim um exame de admissão numa escola privada, mesmo sem saber se<br />
poderiam pagar os meus estudos. Este exame de admissão aconteceu no período<br />
de férias de final de ano. Mas, para prestá-lo, era necessário pagar uma<br />
mensalidade e freqüentar algumas aulas preparatórias para o mesmo, que serviam<br />
também para medir os conhecimentos dos novos alunos. Passei no exame de<br />
admissão, na escola onde viria também, anos depois, a lecionar. Mas como pagar a<br />
mensalidade? A “sorte” foi que uma vizinha, mais pobre que nós, conseguira uma<br />
bolsa de estudos do Juizado de Menores para o seu filho “rebelde”, que não quis<br />
estudar, conforme se dizia. A “Dona Ana”, hoje já falecida, deu a dica: “vá ao bairro<br />
da Penha ou à cidade, leve um certificado de pobreza que vocês conseguem a vaga<br />
para o menino, pois o seu menino é esforçado – o meu não quer nada com nada.”<br />
Este filho da vizinha era um pouco mais novo que eu, porém mais forte, que brigava<br />
e batia em quase todo mundo contra quem “lutava”, era “bom de bola”, e quase<br />
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sempre jogava no “meu time”. Fazíamos “peladas” inesquecíveis, de muitos gols, e<br />
quase sempre vencíamos. Quando isso não acontecia, ele ficava bravo, boquejava,<br />
brigava com os meninos do outro time e também comigo e com os seus<br />
companheiros de time. Ele era uma liderança sempre brava, gênio forte, explosivo.<br />
Mas, apesar de meio violento, era um bom amigo, sempre presente e sempre muito<br />
intenso em relação às coisas que queria. Impressionante que não queria estudar e<br />
como a escola, ao invés de ajudá-lo, o que mais fazia era adverti-lo, suspendê-lo e<br />
até mesmo expulsá-lo, como aconteceu algumas vezes, mandando-o para outra<br />
escola, e outra, até que, depois de tantas transferências e exclusões, ele próprio se<br />
cansou de tentar, a família se cansou, todos se cansaram. Ele, como diziam, não<br />
levava mesmo jeito para estudar.<br />
Com o tempo, aquele menino se tornou um rapaz fisicamente forte, uma<br />
pessoa sempre calada, aparentemente de mal com o mundo. Sempre brigão,<br />
violento, sem trabalhar, começou a freqüentar os bares do bairro, e notícias davam<br />
conta de que ele praticava pequenos furtos e com a aprendizagem de “vida”, como<br />
diziam, mais um “bandido” solto na sociedade. Depois de aproximadamente dez<br />
anos, acabou morto pela polícia. Foi preso diversas vezes e passou alguns anos na<br />
famosa petinenciária do Carandiru. Lembro-me dele, depois de ter saído da<br />
penitenciária, sempre quieto, mal encarado, cabisbaixo e ameaçador, pois quando<br />
olhava para alguém, olhava feio, com jeito de quem estava deprimido ou revoltado.<br />
Praticamente não nos reconhecíamos, ou melhor, não havia entre nós, depois de<br />
tantos anos, nenhum contato, nenhuma comunicação, nenhuma amizade, pois<br />
seguíramos caminhos totalmente opostos. Na vizinhança, ouvia-se que ele ajudara a<br />
matar um policial, por isso foi condenado à prisão. “Mas, como desde menino ele era<br />
violento e roubava pequenas coisas, era de se esperar que tivesse esse fim.” Era o<br />
comentário à época de sua morte. Chegou a freqüentar a escola e conseguiu ficar<br />
até a terceira série primária, não sem muitas brigas e reprovações. Era alfabetizado.<br />
Na verdade, a morte dele foi um alívio para a vizinhança. Todos concordavam,<br />
calados, pois ele causava medo, tornara-se um rapaz assustador e ameaçador.<br />
Tive dificuldades para conseguir o atestado de pobreza para o Juizado de<br />
Menores, mas conseguimos. Vivíamos um salário mínimo por mês – aposentadoria<br />
de meu pai inválido – e minha mãe era doméstica diarista, sem registro profissional<br />
em carteira de trabalho, logo, sem nenhum direito trabalhista que lhe oferecesse<br />
21
alguma segurança legal. Mas foi uma peregrinação. Lembro de minha mãe indo,<br />
voltando e indo de novo, comigo a tiracolo, ao Juizado de Menores do Bairro da<br />
Penha ou, então, à sede central do mesmo Juizado de Menores, que ficava bem no<br />
Centro da capital paulista, próxima à Catedral da Sé e da Praça Dr. João Mendes.<br />
Eu considerava um passeio e uma diversão extra andar pela cidade, olhando os<br />
imensos prédios, coisa que raramente via. Depois, com a ajuda pessoal da vizinha,<br />
também conhecida por ser a boa de briga, a “dona do pedaço”, a “encrenqueira da<br />
vizinhança”, conseguimos a bolsa de estudos.<br />
Eu ficava pensando na generosidade do juizado de menores, admirado<br />
mesmo com aquela possibilidade, com aquela “bondade do governo” que me<br />
garantia anualmente doze cadernos, alguns lápis, borrachas e apontadores, material<br />
que, a cada ano, diminuía em qualidade e em quantidade. Eu já percebia isso. Mas<br />
era uma alegria ganhar aquele “monte” de material escolar, apesar da humilhação<br />
que eu sentia. Lembro-me do compromisso anual: nunca repetir de ano e, a cada<br />
início de novo ano, até a oitava série, nova fila no juizado para renovar o atestado de<br />
pobreza, levar o boletim de aprovação e pegar novos cadernos. Essa parte era uma<br />
emoção. A outra parte era uma humilhação junto aos meus colegas da escola<br />
particular, filhos de classe média, com quem convivi até a oitava série, sentindo na<br />
pele o preconceito por ser um dos mais pobres da sala e o único bolsista do Juizado<br />
de Menores.<br />
Nessa época, meu pai costurava e confeccionava minhas camisas brancas,<br />
exigidas como uniforme da escola. Tenho até hoje uma foto com uma dessas<br />
camisas: colarinho redondo, esquisito, tecido grosso, também esquisito, motivo de<br />
chacota dos meus colegas. Camisa horrível, que eu não gostava de usar, mas a<br />
única que eu tinha para vestir. Até que me acostumei a ela e às brincadeiras.<br />
Quando não há outro jeito, a gente se acostuma, pensava eu.<br />
Outro motivo de vergonha, na época, era o fato de que era meu pai quem<br />
também cortava meu cabelo, estilo “tigela” – arredondado. Todos diziam que meus<br />
pais colocavam uma tigela em minha cabeça e cortavam as pontas. No fundo era<br />
quase isso. Eu ficava parecido com um indiozinho, o que não era, naquela escola<br />
particular, nenhum motivo de orgulho – um preconceito nítido com os indígenas.<br />
Mais chacotas de meus colegas. E eu continuava sempre mais franzino que os<br />
demais, por isso nem podia reagir fisicamente. Mas não gostava de brigas e<br />
22
procurava cultivar algumas amizades mais fiéis, até porque começava a ser um bom<br />
conversador.<br />
Sofri quando eu e meu grupo, enfileirados de frente para toda a classe,<br />
apanhei“na cara” (no meu caso, levei um “pé-d’ouvido” cujo estampido ouço até<br />
hoje), porque, segundo meu professor de Português, cujo nome nunca esqueci, não<br />
fizemos um trabalho bem feito. Vergonha e dor no ouvido, um zumbido inesquecível<br />
que, por medo, não contei em casa.<br />
Experiência também difícil foi a diante do professor de Geografia. Por<br />
coincidência, corriam rumores de que tanto o docente de Português como o de<br />
Geografia eram alcoólatras. O que, com o tempo, segundo as “más línguas”, era<br />
informação confirmada.<br />
O professor de Geografia fazia brincadeiras em relação ao meu corte de<br />
cabelo, humilhando-me diante de meus colegas e achando que, para mim, tratava-<br />
se de uma brincadeira sem maldade. Eu o considerava um “enrolador” de aulas.<br />
Certa vez ele me ouviu comentar com um colega que ele “enrolara” a aula daquele<br />
dia. O tempo todo o mesmo se limitou a ficar sentado sobre a sua mesa sem nada<br />
fazer. Não explicou matéria, não revisou conteúdos e apenas conversou<br />
informalmente com um pequeno grupo de alunos mais próximos a ele. Os demais<br />
alunos, entre os quais eu me incluía, ficaram à deriva, sem nenhuma atividade ou<br />
estudos a realizar até que o sinal ensurdecedor tocasse anunciando o término da<br />
aula. Ao entrar na sala, na semana seguinte, falou à classe, olhando em minha<br />
direção, que na sala “havia gente que, quando morresse, o corpo seria enterrado<br />
nunca caixa de fósforo, mas a língua seria enterrada no caixão”. Todos deram muita<br />
risada e olharam para mim. O professor olhou feio, com tom ameaçador. Depois<br />
disso, aquela aula se transformou, para mim, num exercício de resistência a<br />
permanecer ou a sair da escola. E, de fato, quase fui reprovado. Eu não gostava do<br />
professor e me desinteressava mais, a cada semana, pela disciplina de Geografia.<br />
Por conta disso, por muitos anos, continuei afastado, o mais que podia, de qualquer<br />
estudo relacionado àquela disciplina.<br />
Aquele professor, depois de muito tempo, percebeu o meu abatimento.<br />
Especialmente ao me interrogar sobre algum tipo de lição, constrangendo-me diante<br />
dos colegas e me fazendo chorar após “brincar” novamente com o meu corte de<br />
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cabelo. Preocupando-se com a minha reação, numa outra oportunidade, em<br />
particular, num dos corredores da escola, veio ao meu encontro procurando saber o<br />
que se passava comigo. Foi quando lhe disse que me sentia desanimado e<br />
humilhado por ele, principalmente, diante de suas brincadeiras relacionadas ao meu<br />
corte de cabelo. Expliquei-lhe que eu cortava o cabelo daquela forma por falta de<br />
dinheiro para pagar um “barbeiro”, razão pela qual o corte era feito por meu pai, em<br />
casa. Por mais que meu pai se esforçasse, o corte ficava mesmo parecido com uma<br />
“tigela”. Depois desse dia o professor de Geografia nunca mais brincou comigo<br />
daquele jeito e começou a ser mais atencioso. Mesmo assim, manifestando certo<br />
desprezo e mantendo uma distância sempre considerável, pelo menos foi o que eu<br />
continuei sentindo.<br />
O professor de Matemática – um “magricela” jovem, ainda estudante, mas<br />
que já dava aulas naquele colégio – que mal explicava a “matéria” e não conseguia<br />
esclarecer uma dúvida de alguém. Respondia rispidamente, com desinteresse, às<br />
perguntas que lhe dirigiam. E eu, com a minha timidez, não me arriscava a<br />
manifestar qualquer dúvida, apesar de serem infindáveis. Resultado: detestava<br />
também Matemática e só conseguia “fechar” as minhas notas com muita dificuldade.<br />
Tenho a lembrança de que este professor facilitava a cola pois, mesmo eu, que<br />
nunca fazia isso nas demais matérias, acabava colando dos colegas, do caderno,<br />
enfim, dando um “jeito” de passar de ano.<br />
Aulas de francês: dois anos inúteis. O professor, um militar, sargento do<br />
exército, que às vezes dava aula fardado. Isso precisamente nos anos de 1968-<br />
1969, auge da Ditadura Militar – e eu nem sabia disso naquela época. Ele ministrava<br />
também a disciplina que ficou marcada em minha mente pelos vários livros didáticos<br />
daquela época, todos bem coloridos: bandeiras dos estados brasileiros, bandeiras<br />
de todas as fases da História do Brasil, fotos dos generais e presidentes do país.<br />
Biografia dos presidentes, brasões da República. A disciplina era Educação Moral e<br />
Cívica. Éramos obrigados a decorar o nome de todos os presidentes. Anos em que<br />
cantávamos todos os dias, antes de entrar na sala de aula, todos os hinos do país.<br />
Dois por dia. Passei a gostar daquilo, pois, pelo menos, demorávamos para entrar<br />
na sala de aula. Foi bom também porque acabei gostando de cantar, o que faço até<br />
hoje. Também por influência de meus pais, cantores em corais religiosos de igrejas<br />
protestantes que freqüentaram.<br />
24
Nunca acompanhei sequer uma excursão daquela escola particular. Lembro-<br />
me do “Holliday-on-ice”. Todos os anos havia passeio. Também para o litoral<br />
santista, com o acompanhamento de professores. Mas eu nunca pude ir. Eu me<br />
conformava, pensando que era mesmo bobagem ver o festival no gelo no Ibirapuera<br />
ou então ver o mar, participar destas excursões à praia que eu não conhecia. Eu<br />
acabava achando melhor também não ir, pois, conforme os professores me<br />
explicavam “era muito perigoso”. O piso do mar “afundava” rapidamente, de<br />
surpresa, com o que poderíamos correr risco de afogamento. Era necessário muito<br />
cuidado! Terrorismo puro com os alunos mais pobres. A mesma situação com o<br />
zoológico e outros passeios. Eram perigosos. Os bichos podiam se soltar e ferir<br />
alguém.<br />
Na escola, havia uma piscina. Eu comecei a freqüentar e não parei mais. Mas<br />
como não sabia nadar direito, nadava parecido a uma lancha desgovernada,<br />
espalhando água para todos os lados. E era lento. Lembro-me de minha admiração<br />
pelo estilo de nadar de alguns colegas, que participavam das competições de<br />
natação. Nadavam com estilo, utilizando acessórios como “pés-de-pato”, que eu não<br />
havia experimentado, e eu os admirava por isso. Eu jamais participei de uma<br />
competição; uma, por não ser mesmo classificado ou escolhido para isso; outra,<br />
para não ser o último e para não me afogar, pois eu nadava do meu jeito,<br />
espalhafatoso, espumoso, pois aprendera a nadar nos rios sujos do bairro,<br />
escondido de meus pais. E, na escola, também não participava bem das aulas de<br />
educação física, pois, na quadra eu era “ruim de bola”. Mas, por incrível que pareça,<br />
no campinho de futebol, improvisado num terreno baldio, ao lado de minha casa, eu<br />
era o melhor ou um dos melhores jogadores da minha turminha de amigos (entre os<br />
quais o meu amigo, sempre violento também no futebol e o meu primo, com quem<br />
fazia uma excelente dupla de atacantes). E eu não compreendia o que acontecia na<br />
escola, o porquê de, lá, minha timidez e, noutros espaços, a excelente performance<br />
futebolística. Por isso, evitava praticar esportes na escola e lá ficava quase sempre<br />
calado. E meus pais sequer desconfiavam desses meus sentimentos de<br />
inferioridade.<br />
Fora estas recordações do antigo ginásio, lembro alguns bons livros, alguns<br />
romances que fui obrigado a ler e que, de alguma forma, marcaram a minha vida. Li,<br />
com dificuldade, mas com certo prazer, apenas uns dois ou três livros: “Ubirajara”,<br />
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“A mão e a luva” e “A luneta mágica”... mas o horrível era fazer o fichamento<br />
naquelas fichas da editora, com linhas finas, com perguntas prontas, com cópias das<br />
respostas, com biografia dos autores. Eu odiava preencher aquelas fichas. E não<br />
entendia a utilidade daquelas cópias; poucas vezes discutíamos, na sala, as leituras<br />
que fazíamos. Todo o prazer da leitura se diluía com a obrigação do preenchimento<br />
daquelas fichas.<br />
Duas lembranças bonitas guardo daquele tempo. A primeira, quando meu pai<br />
escreveu uma carta para o professor de Português, com todos os erros possíveis a<br />
uma pessoa com seu grau de instrução, ao mesmo professor que tempos atrás me<br />
batera no rosto (sem que meu pai soubesse disso). Meu pai explicava que nem ele,<br />
inválido, poderia participar da reunião de pais, nem minha mãe, doméstica, que no<br />
dia marcado, não teria como faltar ao trabalho. Mas que, mesmo assim, procuravam<br />
acompanhar a vida escolar do filho e tinham muito interesse por ela. Lembro-me de<br />
que o professor elogiou a carta de meu pai em voz alta, para todos. E recordo<br />
também de uma vez que minha mãe foi à reunião de pais naquela escola particular.<br />
Preocupada com uma nota quatro ou cinco que eu havia tirado em alguma<br />
disciplina, aguardou até o último momento para perguntar à professora sobre os<br />
motivos que me teriam levado a tirar nota tão baixa. Diante da pergunta – por que<br />
meu filho tirou quarenta ou cinqüenta? – e não quatro ou cinco – eu, intimamente,<br />
fiquei todo encabulado com a simplicidade de minha mãe. Mas, naquele mesmo<br />
momento, percebi e senti, na humildade dela, o seu interesse pelo meu aprendizado.<br />
Emocionado, percebi que eu sabia me expressar melhor do ela. Tive a percepção,<br />
pela primeira vez, de que ela, que tanto havia batalhado e que ainda tanto<br />
trabalhava para que eu pudesse continuar estudando, interessava-se por meus<br />
resultados escolares. E isso foi fundamental para que eu, comigo mesmo,<br />
assumisse maior compromisso com o meu desempenho escolar. Esta é, eu diria,<br />
uma lembrança bonita que carrego desde menino, criança que poucas vezes<br />
contava com a presença da mãe acompanhando os seus estudos mas que, a partir<br />
daí, além da presença maior do seu pai, percebeu-se fortalecido, nos seus estudos,<br />
também por sua mãe.<br />
Hoje, diante deste estudo e do meu filho, fico pensando: o que eu quero na<br />
educação, da educação? O Igor respondeu: eu quero um mundo melhor para as<br />
pessoas.<br />
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Eu quero uma educação melhor, mais justa com todas as crianças, jovens e<br />
adultos. Quero uma educação respeitosa com os alunos e com os professores. Com<br />
todas as crianças e jovens que, como eu, e muito mais do que eu, sofrem, ainda<br />
hoje, a indiferença de alguns (ou de muitos) professores, o preconceito dos colegas,<br />
a desatenção da escola para com as condições e com a experiência de vida dos<br />
alunos e a falta de responsabilidade das autoridades públicas e de toda a sociedade<br />
com a educação das atuais e futuras gerações. Não só com a educação, mas com a<br />
garantia dos direitos básicos ao ser humano. O descaso não é, nem era só na<br />
educação. Recordo-me da falta de estrutura, por exemplo, da saúde pública e da<br />
imensa precariedade do transporte público com que nós, da periferia da Zona Leste<br />
da capital de São <strong>Paulo</strong>, sempre fomos vítimas.<br />
Saindo do transporte e voltando à escola e à educação: analisávamos a falta<br />
de preparo dos docentes que obrigam seus alunos ao acúmulo de conhecimentos<br />
que serão esquecidos, ou daqueles professores e daquelas professoras que ainda,<br />
infelizmente, ainda hoje, argumentam e se sentem obrigados pelas respectivas<br />
redes de ensino em que atuam, a ministrar um ensino “de qualquer jeito”, pois as<br />
condições que têm para trabalhar são cada vez mais precárias. 2<br />
Eu desejo que essas crianças sejam respeitadas, valorizadas em suas<br />
infâncias, em sua meninice, e que tenham uma educação significativa às suas vidas,<br />
garantindo a continuidade delas nos diversos níveis de escolaridade, de forma<br />
respeitosa, que lhes permita a voz, o voto e que ajude a criar espaço para uma<br />
participação ativa. Uma escola que escute, que enxergue, que apalpe, que sinta o<br />
cheiro e o gosto e o jeito de ser dos seus alunos e da sua comunidade. Enfim, uma<br />
escola que respeite a vida e a cultura do aluno.<br />
Esta é a escola dos nossos sonhos. Uma escola que leve em conta as<br />
dificuldades mas, principalmente, o potencial que suas crianças, jovens e adultos<br />
trazem de casa; que as humanize e, assim, passe a se humanizar. Uma escola<br />
2 Ao retomar estas passagens de minha vida escolar, percebo que, à época, sempre me interrogava,<br />
sem respostas, sobre o porquê de a escola tratar assim a nós, alunos. Por que nos ensinava “coisas”<br />
tão desinteressantes, tão “chatas” de se estudar, tão distantes da vida de todos nós. E por que os<br />
professores, sequer, muitas vezes, nos percebiam ou nos olhavam? Gregory Bateson, referindo-se às<br />
escolas e aos professores, apresenta-nos um questionamento parecido: “Por que as escolas não<br />
ensinam quase nada sobre o padrão que liga?” (1986:16). Este “padrão que liga” é o que nos ajudaria<br />
a fazer as ligações, as conexões e interconexões relacionadas às nossas diferentes aprendizagens.<br />
Uma abordagem transcultural se esforçará nessa direção, buscando, por exemplo, resgatar o caráter<br />
universalizante do conhecimento ou, em outras palavras, tentando recuperar a totalidade do mesmo.<br />
27
coerente em seus discursos e em suas práticas, uma universidade que supere o<br />
cientifismo, que assuma a sua quota de obrigação junto à sociedade e que contribua<br />
mais com a formação permanente dos professores.<br />
Eu estou na educação – dizia ao meu filho - para denunciar, para anunciar e<br />
para lutar contra a privatização do Estado, que não investe na justiça social, que não<br />
valoriza a educação das futuras gerações, que não paga o salário justo aos<br />
professores e que não garante a formação permanente e continuada dos mesmos.<br />
Estou para enfrentar o desafio de superar um modelo de escola, de educação e de<br />
sociedade que comete os mesmos erros que acima enumerei, entre tantos erros que<br />
continuam a ser cometidos. Por isso, é necessário muito trabalho, pesquisa, reflexão<br />
sobre o que fazemos na escola e na sala de aula, sobre os nossos acertos e sobre<br />
os nossos desacertos. É este o caminho que estou tentando seguir e é esta a<br />
trajetória que estou tentando construir.<br />
28
Introdução<br />
CAMINHANDO CONTRA O VENTO<br />
29
Esta pesquisa consiste em buscar princípios e orientações teórico-práticas<br />
para o entendimento e a vivência de um currículo escolar que vise à construção de<br />
uma escola curiosa, prazerosa e aprendente. Um currículo que supere a dicotomia<br />
entre monoculturalismo e multiculturalismo. Para isso, partiremos da análise e<br />
reflexão de algumas experiências localizadas no contexto educacional brasileiro,<br />
principalmente, da última década do século 20, identificando os principais eixos<br />
curriculares que apontam para o que chamamos aqui de currículo<br />
intertranscultural.<br />
Para atingir o objetivo acima, recuperaremos elementos da concepção<br />
popular da educação, da Escola Pública Popular e do Movimento da Escola Cidadã 3 .<br />
Escola que, segundo palavras do professor Moacir Gadotti,<br />
vem sendo construída, desde o início da década de 90, no contexto de um movimento de<br />
renovação educacional e de práticas concretas de educação para e pela cidadania,<br />
sobretudo em municipalidades que se destacaram por governos que realmente<br />
priorizaram em suas políticas a escola pública, oferecendo uma resposta concreta à<br />
deterioração do ensino (Gadotti, 2000c:291).<br />
Os estudos teóricos que faremos permitirão refletir sobre os elementos<br />
curriculares daquelas experiências, ajudando-nos a avançar na direção dos objetivos<br />
aqui propostos. Ao tratarmos dos conceitos de Currículo e de Cultura, partimos da<br />
conceituação mais simples de currículo – “ato de correr, atalho, corte (...) matérias<br />
constantes de um curso” (Ferreira, 1999:596), passando por autores que<br />
3 A Escola Cidadã já mereceu ser objeto de duas teses de doutoramento: Rosilda Baron Martins,<br />
Escola Cidadã do Paraná: análise de seus avanços e retrocessos (FE-UNICAMP, 1997), e José<br />
Eustáquio Romão, Dialética da diferença: o Projeto da Escola Cidadã frente ao projeto pedagógico<br />
neoliberal (FE-USP, 1997d). Ver também as dissertações de mestrado de Alice Akemi Yamasaki,<br />
Autonomia pedagógica no pensamento educacional brasileiro (1982-1996) (FE-USP, 1998) e de<br />
Ângela Antunes Ciseski, Aceita um conselho? Teoria e prática da gestão participativa na escola<br />
pública (FE-USP, 1997).<br />
30
pesquisaram as diversas teorias e concepções de currículo, (Apple, Silva, Sacristán,<br />
entre outros), chegando à adjetivação particular pretendida nesta tese, quando<br />
associamos currículo à palavra “intertranscultural”. Ao estudarmos o currículo, a<br />
partir de experiências concretas, mostramos que “o enfoque da prática, devidamente<br />
teorizada, possibilita a descoberta de desacertos arraigados encobertos pela rotina”<br />
(Demo, 2000a:134).<br />
Trataremos do tema de nossa pesquisa, buscando relacionar cultura e<br />
educação, sem dicotomizá-las; abordando-as numa perspectiva transformadora,<br />
libertadora. Esta é uma tarefa que nos exige abertura ao novo e disposição para<br />
trabalhar com o conflito e com as contradições. Nesse sentido, trabalharemos com<br />
visões de mundo, de natureza humana e de conhecimento, de ciência e de cultura<br />
como constelações e sistemas abertos. (Bateson, 1972, 1979; <strong>Freire</strong>, 1995, 1997,<br />
2000; Morin, 1996, 2000; Santos, 2001, 2002; Fleuri, 1998, 1999).<br />
Reconhecemos ao mesmo tempo a pertinência do conhecimento, as suas<br />
incertezas e consideramos que “a educação deve mostrar que não há conhecimento<br />
que não esteja, em algum grau, ameaçado pelo erro e pela ilusão” (Morin, 2000:19).<br />
Na mesma direção, <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> já afirmava que<br />
não apenas temos sido inacabados, mas nos tornamos capazes de nos saber<br />
inacabados. Aí se abre para nós a possibilidade de inserção numa busca permanente.<br />
Uma das raízes da educação, e que a faz especificidade humana, se acha da<br />
radicalidade da inconclusão que se percebe como tal. (<strong>Freire</strong>, 1995a:75)<br />
Para melhor compreender o tema “Currículo intertranscultural: por uma escola<br />
curiosa, prazerosa e aprendente”, queremos mostrar que “necessitamos civilizar<br />
nossas teorias, ou seja, desenvolver nova geração de teorias abertas, racionais,<br />
críticas, reflexivas, autocríticas, aptas a se auto-reformar” (Morin, 2000:32).<br />
Este estudo nasce de um contexto pessoal, de uma história de vida concreta,<br />
que é, ao mesmo tempo, uma experiência coletiva. Buscamos respostas a<br />
inquietações particulares, que se fazem presentes também nas experiências<br />
estudadas a partir de uma investigação documental e bibliográfica que nos revelou o<br />
que já foi produzido em relação ao desafio da construção de um currículo<br />
intertranscultural.<br />
31
Para nós, tem importância desde já, o conceito de “contexto”. De acordo com<br />
Gregory Bateson, as nossas palavras, as nossas ações, só ganham significado se<br />
estiverem associadas a um contexto, se corresponderem a um determinado<br />
processo relacional.<br />
Segundo suas próprias palavras,<br />
contexto está ligado a outra noção indefinida chamada ‘significado’. Sem contexto,<br />
palavras e ações não têm qualquer significado. Isso é verdade não somente para a<br />
comunicação humana através de palavras, mas também para todos os tipos de<br />
comunicação, de todo processo mental, de toda mente, inclusive daquela que diz à<br />
anêmoda-do-mar como crescer e à ameba o que fazer a seguir. (Bateson, 1986:23).<br />
Conforme afirma o filósofo Karel Kosik, contemporâneo de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> e que<br />
muito o influenciou,<br />
se a primeira premissa fundamental da história é que ela é criada pelo homem, a<br />
segunda premissa igualmente fundamental é a necessidade de que nesta criação exista<br />
uma continuidade. A história só é possível quando o homem não começa sempre de<br />
novo e do princípio, mas se liga ao trabalho e aos resultados obtidos pelas gerações<br />
precedentes (Kosik, 1976:218).<br />
Na esteira da afirmação acima, é que se justifica, inclusive, a metodologia de<br />
nossa investigação enquanto parte, movimento e continuidade da história da<br />
educação na qual nos incluímos. Não partimos do nada, nem agora nem antes, pois<br />
aprendemos e ensinamos com as nossas experiências e com as experiências de<br />
outros homens e mulheres e, portanto, de outras culturas. E, nesse processo,<br />
procuramos somar nossas vivências e nossas reflexões sobre elas às vivências e<br />
reflexões de outras pessoas, dando nova cor e alimentando a continuidade da<br />
história.<br />
A interna conexão da práxis objetivando e objetivada da humanidade,<br />
denominada substância, espírito coletivo, cultura ou civilização, e interpretada na teoria<br />
materialista como histórica unidade das forças produtivas e das condições de produção,<br />
cria a ‘razão’ das sociedade, que se pode realizar historicamente, é independente de<br />
32
cada indivíduo em particular e, por conseguinte, é superindividual, mas existe realmente<br />
apenas através da atividade e da razão dos indivíduos (...) Os homens ingressam na<br />
situação dada independentemente da sua consciência e vontade, mas, tão logo ‘se<br />
acham’ dentro da situação, a transformam. A situação dada não existe sem os homens,<br />
nem os homens sem a situação. Só nesta base se pode desenvolver a dialética entre a<br />
situação – que é dada para cada indivíduo, cada geração, cada época e classe – e a<br />
ação que se desenvolve com base em pressupostos que são dados, já prontos e<br />
acabados (Kosik, 1976:218-19).<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> nos dá um outro exemplo da importância e do alcance de<br />
levarmos em consideração em nosso trabalho e em nossa vida o “contexto”. Suas<br />
palavras, profundamente poéticas, sintetizam o sentido, o caráter, o caminho que<br />
procuramos seguir para desenvolver as nossas reflexões nesta tese.<br />
Quando digo “sou brasileiro’, sinto que sou algo mais do que quando digo “sou<br />
recifence”. Mas sei também que não poderia me sentir tão intensamente brasileiro se<br />
não tivesse o Recife, meu marco original, em que se gera minha brasilidade. Por isso,<br />
permita-se a obviedade, minha terra não é apenas o contorno geográfico que tenho claro<br />
na memória e posso reproduzir de olhos fechados, mas é sobretudo um espaço<br />
temporalizado, geografia, história, cultura. Minha terra é dor, fome, miséria, é esperança,<br />
também de milhões, igualmente famintos de justiça.<br />
Minha terra é coexistência dramática de tempos díspares, confundindo-se no<br />
mesmo espaço geográfico – atraso, miséria, pobreza, fome, tradicionalismo, consciência<br />
mágica, autoritarismo, democracia, modernidadde e pós-modernidade (...) Por tudo isso,<br />
a minha terra envolve o meu sonho de liberdade. (...) A Terra da gente é sua geografia,<br />
sua ecologia, sua topografia e biologia; mas é também o que mulheres e homens<br />
fizemos dela. Ela é como organizamos sua produção, fazemos sua História, sua<br />
educação, sua cultura, sua comida e ao gosto dela nos fixamos. A Terra da gente<br />
envolve luta por sonhos diferentes, às vezes antagônicos, como os de suas classes<br />
sociais. Minha Terra não é, afinal, uma abstração (<strong>Freire</strong>, 1995a:26-8) 4 .<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, ganha também contornos bastante amplos. Até, por isso, ele utiliza a<br />
palavra terra em dois sentidos: a terra onde ele nasceu, onde ele experimentou<br />
pobreza e riqueza, bonitezas e perversidades, as suas objetividades e as suas<br />
4 Este livro de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, intitulado À sombra desta mangueira (1995a), é, talvez, o mais poético de<br />
toda a sua obra e nos oferece inúmeros elementos para a compreensão de uma Pedagogia do<br />
Encontro e de um currículo intertranscutural.<br />
33
subjetividades, sonhos, utopias; mas, também, a Terra, o seu planeta, espaço e<br />
contexto complexo, onde se travam as relações de poder, as contradições, a<br />
política.<br />
Hoje, o nosso contexto é intrapessoal ao mesmo tempo em que é planetário.<br />
Vivemos no contexto da globalização e, conhecer este contexto pressupõe uma<br />
“leitura do mundo” 5 , uma nova maneira de educar, que contribua para que as<br />
pessoas possam analisar melhor a realidade vivida e sejam capazes de agir sobre<br />
essa realidade, transformando-a.<br />
Questionado sobre a sua concepção de pesquisa, Karl Marx fez uma<br />
importante discussão metodológica no posfácio à segunda edição de O Capital<br />
(Marx, 1983:20), distinguindo o “Método de Investigação” do “Método de Exposição”.<br />
Nosso método de investigação conforma-se pela captação detalhada da matéria, ou<br />
seja, pela coleta de dados junto às experiências municipais já citadas. A estes<br />
dados, soma-se a nossa experiência pessoal enquanto educador e palestrante sobre<br />
o tema aqui tratado, sobre o qual temos pesquisado e trabalhado enquanto membro<br />
do <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> e Coordenador do Movimento da Escola Cidadã há pelo<br />
menos cinco anos. Além disso, consideramos, ainda, o resultado dos nossos<br />
escritos, notas sobre a problemática da tese e outras publicações de nossa autoria<br />
(Padilha, 2001).<br />
Enquanto “Método de Exposição”, o que faremos é “expor adequadamente o<br />
movimento real” (Marx, 1983:20), isto é, organizar o que foi levantado, os temas<br />
pesquisados, e sistematizar as diferentes contribuições teóricas e práticas reunidas,<br />
comprovando a nossa tese a partir da documentação e bibliografia sobre os temas e<br />
os objetos investigados.<br />
Por método de pesquisa Marx entende uma apropriação em pormenor da<br />
realidade estudada: é a análise que colocará em evidência as relações internas, cada<br />
elemento em si. Cada objeto de análise requer uma maneira específica de abordagem<br />
determinada pelo próprio objeto; cada período histórico possui suas próprias leis. Por<br />
5 Para aprofundar o estudo sobre o significado de “leitura de mundo” em <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, além de suas<br />
obras originais constantes da bibliografia deste trabalho, recomendamos a leitura da tese de<br />
doutoramento intitulada Leitura do mundo no contexto da planetarização: por uma Pedagogia da<br />
Sustentabilidade (Antunes, 2002). Como vemos, nesta tese, ao invés do termo “globalização”, a<br />
autora utiliza “planetarização”, diferenciando esta do processo de globalização capitalista, excludente,<br />
associada à ideologia neoliberal. A planetarização é a globalização numa perspectiva emancipadora.<br />
É a interconexão planetária que aproxima. A planetarização é a globalização cooperativa, solidária,<br />
de baixo-para-cima, contra-hegemônica, fundada em valores éticos e na espiritualidade humana e<br />
não nas cegas leis do mercado.<br />
34
isso a análise que se faz em filosofia não se empregará automaticamente a todas as<br />
outras ciências. A análise detalhada de uma coisa ou fenômeno evidenciará as leis<br />
particulares que regem o início, o desenvolvimento e o término de cada coisa ou<br />
fenômeno. Por método de exposição, Marx entende a reconstituição, a síntese do objeto<br />
ou fenômeno, de tal forma que o leitor imagina que o autor o construiu a priori. Na<br />
exposição o objeto revela-se gradativamente, segundo suas próprias peculiaridades (...).<br />
Por meio do método dialético o fenômeno apresenta-se ao leitor de tal forma que ele o<br />
apreende em sua totalidade. Para isso são necessárias aproximações sucessivas e cada<br />
vez mais abrangentes. Isso o tornará acessível (Gadotti, 1995:110-111).<br />
Esclarecemos também que esta pesquisa dá continuidade à nossa<br />
dissertação de mestrado intitulada Planejamento Educacional: a visão do Plano<br />
Decenal de Educação para Todos: 1993 – 2003 (Padilha, 1998), na qual<br />
destacamos o Planejamento Socializado Ascendente 6 como sendo uma visão de<br />
planejamento educacional que tenta inverter a maneira tradicional de pensar e de<br />
realizar o planejamento na escola e na educação em geral.<br />
Naquela oportunidade falamos em “visão de planejamento” enquanto um<br />
ponto de vista ou categorização geral do mesmo a partir de várias peculiaridades<br />
que ele assume e das concepções ou tradições sobre as quais fundamenta-se.<br />
Dessa forma, definimos a atividade de planejar, em sentido amplo, como sendo um<br />
processo que visa a dar respostas a um problema, através do estabelecimento de fins e<br />
meios que apontem para a sua superação, para atingir objetivos antes previstos,<br />
pensando e prevendo necessariamente o futuro, mas sem desconsiderar as condições<br />
do presente e as experiências do passado, levando-se em conta o contexto e os<br />
pressupostos filosófico, cultural e político de quem planeja e para quem se planeja (Id.,<br />
Ib., 1998:115).<br />
O termo socializado, associado à idéia do planejamento, considera que todos<br />
os sujeitos devem participar das decisões sobre os destinos da escola e procura<br />
resgatar a dimensão pedagógica do planejamento como uma atividade que propicia<br />
a aglutinação em torno da unidade escolar dos diferentes segmentos escolares e<br />
6 Em artigo intitulado “Planejamento Socializado Ascendente na escola”, escrito em co-autoria com o<br />
Prof. Dr. José Eustáquio Romão (Romão & Padilha, 1997b:75-90), explicitamos os fundamentos<br />
básicos, uma metodologia de elaboração e alguns parâmetros para a realização deste planejamento<br />
no nível da unidade escolar.<br />
35
extra-escolares. Por outro lado, a característica ascendente desta visão de<br />
planejamento refere-se à eliminação das hierarquias burocráticas naquele processo<br />
e propõe a construção de um movimento dialético-interativo e comunicativo no ato<br />
de planejar, a partir do qual prevê que as consolidações das decisões, no nível<br />
escolar, possam influenciar os níveis de decisão de instâncias mais amplas da<br />
educação.<br />
Naquela oportunidade, devido à própria delimitação da pesquisa, não foi<br />
possível aprofundar o nosso estudo no que se refere à problemática da construção<br />
do currículo como verdadeiro corpo e alma do projeto político-pedagógico da escola,<br />
nem tampouco entender que aspectos relacionados à cultura dos alunos e dos<br />
demais sujeitos e segmentos escolares poderiam contribuir para uma participação<br />
mais ativa dos mesmos na própria dinâmica escolar e, por conseguinte, nos<br />
processos de formulação do currículo numa perspectiva mais democrática.<br />
Também não aprofundamos naquele momento a discussão sobre como<br />
garantir um movimento efetivamente dialético-interativo e comunicativo na unidade<br />
escolar se, dentre as limitações e obstáculos à instauração de um processo<br />
democrático da escola,<br />
carregamos conosco e em nós a inexperiência democrática, às vezes vigorosa, que nos<br />
marca desde os tempos da colônia, de que são contradição expressões novas ou<br />
impulsos novos de democracia. Marcas coloniais que perduram até hoje (<strong>Freire</strong>,<br />
1994a:216).<br />
A inexperiência democrática do povo brasileiro, tão bem salientada por <strong>Paulo</strong><br />
<strong>Freire</strong>, resulta no fato de que a participação, ao contrário do que se poderia supor,<br />
não é algo dado. Ou seja, ela “longe de ser uma realidade reprimida à espera de<br />
liberação, é um alvo a ser atingido mediante um caminho, nem sempre fácil” (Silva,<br />
1996:91). A dificuldade não apenas de explicar e de analisar a problemática da<br />
participação mas, sobretudo, de viabilizar e de colocar em prática processos mais<br />
interativos no âmbito da escola e da educação, principalmente relacionados à<br />
construção do seu currículo, tem sido uma inquietação permanente em nossa<br />
experiência docente.<br />
36
O mesmo problema enfrentamos recentemente (1997-1998), quando atuamos<br />
em assessoria educacional junto a supervisores de ensino, diretores de escola,<br />
assistentes técnico-pedagógicos e professores coordenadores pedagógicos da rede<br />
estadual de ensino de São <strong>Paulo</strong>, no Programa de Educação Continuada (PEC-<br />
SEE/SP). Naquela oportunidade, desenvolvermos pesquisa baseada em bibliografia<br />
ampla e atualizada e elaboramos, coletivamente, os Cadernos da Escola Cidadã 7 ,<br />
que foram utilizados na formação continuada dos referidos segmentos. O trabalho<br />
desenvolvido consistiu em atividades teórico-práticas sobre temáticas relacionadas à<br />
gestão democrática da escola, à elaboração coletiva do projeto político-pedagógico,<br />
da proposta pedagógica e do plano de gestão da mesma, com base na visão do<br />
planejamento socializado ascendente. Também aí não avançamos no que se refere<br />
à reflexão do significado mais ampliado de currículo da escola ou da sua construção<br />
relacionada ao projeto escolar. Desafio a que nos propusemos agora.<br />
É certo que aquela experiência tratou de elementos fundamentais para a<br />
constituição do currículo da escola. Trabalhou-se, por exemplo, a elaboração legal e<br />
legítima do regimento da unidade escolar, com a participação dos vários sujeitos que<br />
atuam direta ou indiretamente na instituição de ensino. Questionou-se o eventual<br />
estabelecimento de um currículo que levasse em conta apenas uma base nacional<br />
comum e uma parte diversificada – conforme disposto nos Parâmetros Curriculares<br />
Nacionais – PCNs (BRASIL, 1997), aprovados e divulgados em todo Brasil pelo<br />
MEC. Introduzimos uma discussão sobre as peculiaridades locais e a diversidade<br />
cultural dos alunos, dos professores, da comunidade que fica no entorno da escola,<br />
do contexto local, nacional e internacional em que a unidade escolar está inserida e<br />
a necessidade de resgatarmos, sistematizarmos, registrarmos, interpretarmos e<br />
valorizarmos as experiências acumuladas (instituídas) pelas escolas e pelas<br />
pessoas que delas participam.<br />
Considerados os limites daquela intervenção, enquanto assessoria<br />
pedagógica que ocupava um espaço político e brechas numa estrutura educacional<br />
que efetivamente não favorecia maiores mudanças, continuamos com aquele<br />
desafio a ser superado. E tais questionamentos se somaram, mais recentemente, a<br />
alguns outros, fruto de nossa reflexão permanente sobre essa problemática.<br />
7 Oito cadernos produzidos em 1997 e 1998 pela equipe técnica do <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> para o PEC-<br />
SEE/SP, conforme consta de nossa bibliografia.<br />
37
Perguntamo-nos, agora, sobre como a escola poderia trabalhar o seu<br />
currículo, na atualidade e no futuro, enfocando o problema cada vez mais presente<br />
do encontro das diferentes culturas, no contexto do mundo globalizado, em que são<br />
constantes as ondas migratórias e maior a mobilização das pessoas, acentuando, no<br />
campo da educação, a heterogeneidade da população escolar, além do fato de as<br />
novas tecnologias da comunicação e informação criarem a possibilidade de os<br />
educandos interagirem com espaços e mundos cada vez mais ampliados.<br />
Diante das questões levantadas, analisaremos como será possível trabalhar<br />
na perspectiva de uma educação intercultural e sobre como viabilizar a construção<br />
de um currículo intertranscultural, visando a uma escola curiosa, prazerosa e<br />
aprendente. Procuraremos também explicitar os fundamentos do currículo na<br />
perspectiva da interculturalidade.<br />
Ao analisar, relacionar e associar temas como currículo, participação, gestão<br />
democrática, cultura, multiculturalismo, interculturalidade e transculturalidade,<br />
consideramos fundamental estabelecer desde já um quadro de referência que dê<br />
conta desta discussão e que parta do conceito de ser humano como ser de relações.<br />
Nesse sentido, encontramo-nos principalmente com a pedagogia e com a filosofia de<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, que tem sido a nossa mais importante referência e interlocução, desde<br />
o período em que com ele convivemos (Padilha, 1997), além de outros autores,<br />
sobretudo modernos e contemporâneos, que nos ajudarão a sustentar os nossos<br />
argumentos.<br />
Para <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>,<br />
o homem está no mundo e com o mundo. Se apenas estivesse no mundo não haveria<br />
transcendência nem se objetivaria a si mesmo. Mas como pode objetivar-se, pode<br />
também distinguir entre um eu e um não-eu. Isso o torna um ser capaz de relacionar-se;<br />
de sair de si; de projetar-se nos outros; de transcender. Pode distinguir órbitas<br />
existenciais distintas de si mesmo. Estas relações não se dão apenas com os outros,<br />
mas se dão no mundo, com o mundo e pelo mundo (nisto se apoiaria o problema da<br />
religião). O animal não é um ser de relações, mas de contatos. Está no mundo e não<br />
com o mundo. (<strong>Freire</strong>, 1997a:30)<br />
38
Ao falarmos dos temas mencionados, precisamos partir da possibilidade da<br />
relação enquanto reflexão sobre o nosso próprio ato em face à realidade em que<br />
vivemos. Esta característica relacional do homem, que se apresenta em toda a obra<br />
de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> e também no pensamento de Habermas em sua “Teoria da Ação<br />
Comunicativa” (1992), mostra-nos que estes autores “convergem para uma posição<br />
clara em defesa de transformação/reconstrução cultural com base no potencial<br />
criativo da existência humana” (Zitkoski, 2000:149). Concordamos com o Prof. Jaime<br />
José Zitkoski quando ele afirma que <strong>Freire</strong> e Habermas consideram que<br />
é pelo diálogo e pela troca de saberes, sentidos e valores que a humanidade sempre<br />
será capaz de refazer seus caminhos e reconstruir a história que permanece aberta ao<br />
futuro, inacabada e inconclusa em seus horizontes de afirmação de novos projetos de<br />
sociedade. (ib.: 153).<br />
Esta dimensão da relação, do diálogo, permite-nos caminhar na direção da<br />
construção de uma pedagogia do encontro, já que o mundo da relação, e diríamos, o<br />
mundo do encontro, realiza-se nas esferas da vida com a natureza, da vida dos<br />
homens com os homens e também da vida com os seres espirituais. (Buber, 1974).<br />
Fundamentamos este trabalho principalmente nas idéias e no universo de<br />
princípios político-pedagógicos desenvolvidos pelos educadores brasileiros <strong>Paulo</strong><br />
<strong>Freire</strong> e Moacir Gadotti, considerando que<br />
o referencial teórico de um pesquisador é um filtro pelo qual ele enxerga a realidade,<br />
sugerindo perguntas e indicando possibilidades (...) e que as decisões metodológicas<br />
são pura decorrência do problema formulado e este só se aplica devidamente em<br />
relação ao referencial teórico que deu origem a ele (Luna, In: Fazenda, 1994:32),<br />
Além de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> e Moacir Gadotti, temos ainda como principais<br />
interlocutores Stephen R. Stoer, Luiza Cortesão, Carlos Alberto Torres, Michael W.<br />
Apple, Edgar Morin, J. Gimeno Sacristán e Reinaldo Mathias Fleuri, e outros autores<br />
que dão sustentação ao nosso pensamento como, por exemplo, Mário Sérgio<br />
Cortella, Boaventura Souza Santos, Elvira Souza Lima, Georges Snyders, Gregory<br />
Bateson, entre outros.<br />
39
Pelo próprio caráter desta tese, que discute uma perspectiva intertranscultural<br />
de currículo e que considera a pedagogia como arte e ciência do encontro e da<br />
educação, recorremos a diferentes teorias e concepções de conhecimento, de<br />
ciência, de arte, de educação, que, às vezes, podem nos apresentar conflitos<br />
aparentemente insuperáveis e mesmo alguns “paradoxos” (Fleuri, 2001:117) que<br />
nos colocam em xeque e nos desafiam ao exercício permanente da reflexão aberta<br />
ao diálogo crítico. Aceitamos o desafio e os riscos de trabalhar com categorias<br />
críticas e quadros referenciais que, até bem pouco tempo, não poderiam se<br />
aproximar. Pensamos que é esta uma das responsabilidades de quem, hoje e no<br />
futuro, propõe-se a “fazer ciência”.<br />
Nesse sentido, enfrentaremos nesta tese<br />
a simultaneidade, no discurso, de preocupações, por um lado, com a diferença, com a<br />
rejeição das grandes narrativas, com a relativização da verdade, com a descrença em<br />
um sujeito centrado e, por outro, com a totalidade, com a utopia, com a emancipação,<br />
com a conscientização (...) categorias críticas modernas e pós-modernas, em um<br />
diálogo reconhecidamente difícil e nem sempre produtivo. (Moreira, 1999b:91).<br />
Problematizar esta dificuldade e esta “improdutividade” será também a nossa<br />
pretensão no estudo aqui desenvolvido.<br />
A reflexão que ora apresentamos constitui-se de seis capítulos, assim<br />
desenvolvidos: no primeiro, abordaremos elementos da concepção popular da<br />
educação, da Escola Pública Popular, buscando identificar se existem e quais os<br />
possíveis elementos básicos que apontam para um currículo intertranscultural.<br />
Apresentaremos também as características mais marcantes de outras experiências<br />
e propostas educacionais mais recentes, ainda em processo, que estão relacionadas<br />
com o “Movimento da Escola Cidadã” e que nos trazem, igualmente, contribuições<br />
para que possamos localizar a originalidade delas em relação à evolução do próprio<br />
conceito de currículo que estamos discutindo. Este capítulo nos oferecerá também<br />
uma visão ampla de princípios educacionais que têm origem no Movimento pela<br />
Carta da Terra e no Movimento pela Ecopedagogia que, igualmente, contribuem<br />
para que estejamos consolidando os próprios princípios do currículo<br />
40
intertranscultural. Concluiremos esse capítulo com a apresentação dos quatro eixos<br />
temáticos que orientam as experiências curriculares da Escola Cidadã.<br />
No capítulo segundo, intitulado O currículo como centro do debate de uma<br />
outra educação possível, estudaremos as diferentes teorias sobre currículo, dando<br />
especial ênfase à teoria da complexidade.<br />
No capítulo terceiro destacaremos a experiência freiriana dos “Círculos de<br />
Cultura” e sua relação com o debate atual sobre o currículo da escola. Com isso,<br />
pretendemos, ao mesmo tempo, resgatar uma página da história da educação<br />
brasileira, destacando a importância da criação de espaços que possam ressignificar<br />
as relações pedagógicas e sobretudo humanas, com vistas à criação de um novo<br />
currículo.<br />
Considerado a relação entre interculturalidade e currículo como um debate<br />
inconcluso, no capítulo quarto abordaremos, inicialmente, as concepções de<br />
cultura, multiculturalismo e interculturalidade, buscando explicitar os seus diferentes<br />
significados e características. O objetivo deste capítulo será apresentar e listar os<br />
principais pressupostos e condicionantes de uma “educação intercultural” e, por<br />
conseguinte, de um currículo intercultural, conforme estudos existentes sobre o<br />
mesmo.<br />
Já no capítulo quinto, estaremos nos aprofundando no problema central da<br />
nossa tese e discutindo o significado de transculturalidade, bem como identificando<br />
os elementos constitutivos do currículo intertranscultural. Para tanto, analisaremos o<br />
sentido desta revisão paradigmática que poderá implicar em significativas mudanças<br />
na organização do trabalho das escolas e na própria compreensão desta nova<br />
perspectiva, que supere o limite das escolhas binárias monoculturalismo versus<br />
multiculturalismo e particularismos versus universalismos.<br />
Finalmente, no último capítulo, como uma síntese das principais<br />
contribuições desta tese, apresentaremos alguns indicadores teórico-práticos sobre<br />
como construir uma escola mais curiosa, prazerosa e aprendente, que colabore para<br />
a emancipação social, numa perspectiva humanizadora, com base na construção do<br />
currículo intertranscultural,<br />
A nossa conclusão pessoal se explica enquanto processo que revela as<br />
dificuldades pelas quais são submetidos alunos e alunas diante de uma educação<br />
41
que continua reforçando processos de exclusão e de desigualdade social. Para<br />
superarmos este limite, consideramos o currículo intertranscultural como o caminho<br />
possível para a promoção de uma educação cidadã, que concretize os nossos<br />
sonhos e possa estar sempre a serviço da emancipação humana.<br />
42
Capítulo 1<br />
ESCOLA PUBLICA POPULAR,<br />
ESCOLA CIDADÃ:<br />
uma outra educação é possível<br />
43
Como já esclarecemos anteriormente, resgataremos algumas preocupações<br />
centrais da Educação Popular, da Escola Pública Popular, construída na gestão de<br />
1989-1992, a partir do Movimento de Reorientação Curricular do Município de São<br />
<strong>Paulo</strong>, que influenciou as experiências da Escola Cidadã, que se seguiram a ela.<br />
Analisaremos, em seguida, os dois “decálogos da Escola Cidadã”. O primeiro,<br />
resultado de uma síntese de vários anos de experiência com o trabalho da escola<br />
pública popular, foi apresentado pelo Prof. Moacir Gadotti, em 1992, no seu livro<br />
intitulado Escola Cidadã (1992), o que contribuiu para a sistematização de práticas<br />
orientadoras de novas experiências. O segundo, escrito 10 anos depois, foi também<br />
uma sistematização elaborada por Gadotti (2002) para que educadores e<br />
educadoras de todo país pudessem refletir sobre a atualização do próprio<br />
Movimento da Escola Cidadã, que continua em curso.<br />
Na seqüência, destacaremos algumas experiências brasileiras recentes<br />
relacionadas ao “Movimento da Escola Cidadã”, além de abordar os princípios dos<br />
Movimentos pela “Carta da Terra” e também da “Ecopedagogia”, pois eles têm<br />
influenciado fortemente o movimento da Escola Cidadã e, por conseguinte, trazem<br />
contribuições para o currículo intertranscultural.<br />
Na conclusão deste capítulo, a partir dos avanços observados nos últimos dez<br />
anos do Movimento da Escola Cidadã, apresentaremos, para fins didáticos, cada um<br />
dos eixos do currículo da Escola Cidadã que servirão ao currículo intertranscultural e<br />
à concretização do direito à cidadania, que aponta para uma educação do futuro e<br />
para uma escola mais curiosa, prazerosa e aprendente.<br />
A Escola Cidadã nasceu e se fundamentou a partir do que a recente história<br />
da educação brasileira registrou como Escola Pública Popular.<br />
Em entrevista realizada com <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> sobre a educação neste fim de<br />
século, registrada no livro A Educação na cidade (<strong>Freire</strong>, 1999b), o Prof. Moacir<br />
44
Gadotti se refere rapidamente à escola pública popular como “uma escola para<br />
todos, com uma gestão popular e com uma nova qualidade” (Gadotti, in.: <strong>Freire</strong>,<br />
1999b:94). Na verdade, a origem da escola pública nos remete ao pensamento<br />
socialista em educação que, segundo o mesmo Prof. Gadotti, “por não atender aos<br />
interesses dominantes, tem sido muitas vezes esquecido ou relegado a um plano<br />
inferior” (ib.). Para Gadotti, “a concepção socialista de educação pública, desde as<br />
suas origens, está voltada para a superação da concepção classista burguesa da<br />
educação e para a realização de uma educação igual para todos” (Gadotti,<br />
1990:143) 8 .<br />
Os objetivos de uma escola pública popular seriam, segundo o autor (id.,<br />
1990:179), os seguintes:<br />
1. desenvolver uma gestão democrática e, onde for possível, a autogestão;<br />
2. construir a sua própria autonomia para garantir uma qualidade de ensino;<br />
3. inserir-se numa gestão descentralizada, articulada a um plano mais amplo;<br />
4. estar aberta à promoção de mudanças, contando com o fortalecimento da<br />
sociedade civil, mas evitando a pulverização da escola pública;<br />
5. ser de tempo integral para alunos e professores;<br />
6. ser uma escola do trabalho e do lazer;<br />
7. ser uma escola democrática;<br />
8. ser local de um sadio pluralismo de idéias, uma escola moderna;<br />
9. ser alegre, competente, científica, séria, democrática, crítica e<br />
comprometida com a mudança;<br />
10.ser mobilizadora, centro irradiador da cultura popular;<br />
11.estar à disposição de toda a comunidade, não para consumi-la, mas para<br />
recriá-la.<br />
8 Neste livro, intitulado Uma só escola para todos: caminhos da autonomia escolar (1990), Moacir<br />
Gadotti discute, em seu capítulo V, as concepções de Escola Pública, desde a escola pública<br />
socialista, até chegar na escola que ele chama de “transformadora”. Já no Capítulo VI o autor<br />
defende um sistema único, nacional e popular de educação pública. Único que não seja uniformizador<br />
e nacional que não ignore os contextos regionais.<br />
45
Por outro lado, esta escola pública popular deveria obedecer a quatro<br />
princípios básicos:<br />
1. objetivos e metas educacionais claramente estabelecidos entre escola e<br />
governo visando à democratização do acesso e da gestão e à construção de uma<br />
nova qualidade de ensino;<br />
2. comunicação direta entre governo e escola, eliminando burocracias<br />
intermediárias;<br />
3. possibilidade de cada escola escolher seu projeto, sua direção e executar<br />
as políticas traçadas conjuntamente;<br />
4. avaliação permanente do desenvolvimento escolar tanto pelo Estado<br />
quando pela Sociedade.<br />
A escola que trabalha na perspectiva da educação popular deve ser local de<br />
pluralismo de idéias e centro irradiador da cultura popular. Podemos traduzir tal<br />
característica por educação multicultural ou por educação intercultural, se<br />
atualizarmos as terminologias. Mesmo assim, é necessário esclarecer um pouco<br />
mais esta questão.<br />
Segundo o prof. Celso de Rui Beisiegel, em artigo intitulado “Cultura do povo<br />
e educação popular” (Beisiegel, 1988:41),<br />
o adjetivo ‘popular’ enquanto instrumento de qualificação de uma certa cultura ou de um<br />
particular processo educativo é reconhecidamente problemático, pois também não é<br />
possível, na atualidade, distinguir facilmente o que significaria ‘cultura do povo’, se<br />
pensarmos no mundo contemporâneo diante da sociedade industrial, onde as<br />
concepções e modos de vida dos grupos dominantes e das maiorias subalternas já não<br />
ficam tão claras como no passado.<br />
Beisiegel reitera que o termo “popular” é impreciso, bem como o é o próprio<br />
conceito genérico de educação. Por isso, resgata, na história do Brasil,<br />
características que marcaram os diferentes processos de criação e de<br />
transformação dos vários tipos de ensino no país, desde 1945, no Estado de São<br />
<strong>Paulo</strong>, para que possamos perceber a evolução do conceito de Educação Popular.<br />
46
O estudo do Prof. Beisiegel faz referência às influências recebidas, na<br />
educação brasileira, das doutrinas liberais, desde a época dos movimentos sociais<br />
voltados para a independência do país, bem como dos primeiros anos do Império,<br />
que já se deparavam com as idéias européias das elites coloniais dominantes. Como<br />
não pretendemos nos alongar neste resgate histórico, tão bem realizado pelo “jovem<br />
sociólogo brasileiro” – como <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> se referiu ao Prof. Celso de Rui Beisiegel,<br />
em 1964, no livro Educação como prática da liberdade (<strong>Freire</strong>,1983:111), faremos<br />
apenas alguns destaques que nos ajudam a elucidar o significado de Educação<br />
Popular. Segundo o referido sociólogo e professor (Beisiegel, 1988: 55-56):<br />
1. Tais práticas têm sido estudadas, na história brasileira, sob diferentes pontos de vista:<br />
dos seus resultados pedagógicos, de suas possíveis repercussões na economia, dos<br />
métodos pedagógicos etc.<br />
2. É no campo da política que as suas determinações mais significativas se esclarecem.<br />
3. Os diferentes movimentos de educação 9 só ganham pleno sentido no âmbito das<br />
ideologias em que se exprimem as orientações dos grupos no poder.<br />
4. A expressão “educação do povo” também só explicita os seus conteúdos mais profundos<br />
quando é analisado sob essa perspectiva.<br />
5. O termo “popular” tem seu campo específico de significações nas iniciativas e nos<br />
contextos teóricos concernentes às estruturas de dominação.<br />
6. Na fase final do Programa Nacional de Alfabetização, as atividades de pelo menos alguns<br />
dos grupos envolvidos na “educação popular” – como foi o caso de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> –<br />
adquirem significados mais definidos, na medida em que se orientam com vistas a<br />
explicitar junto a segmentos ‘populares’ da coletividade a sua condição de classe e as<br />
potencialidades transformadoras inerentes a essa condição.<br />
Os movimentos da história da educação brasileira nos indicam como se deu a<br />
evolução e a melhor compreensão do significado da educação popular: aí “estão<br />
envolvidos numerosos educadores, movimentos sociais e populares e o próprio<br />
Estado. Ela está ligada a todo um movimento, de um lado, pela extensão da<br />
9 Programas de dimensões profissionalizantes da década de 1920, Campanha de Educação de<br />
Adultos promovida pelo Ministério da Educação e Saúde a partir de 1947, Educação de Base,<br />
Programa Nacional de Alfabetização – MOBRAL, a partir de 1964, Programa de Alfabetização de<br />
Adultos utilizando o Método <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>.<br />
47
educação formal para todos e, de outro, pela formação social, política e profissional<br />
sobretudo de jovens e adultos” (Gadotti, 2000a:268).<br />
Para os nossos propósitos, é muito ilustrativa a citação e o destaque feitos<br />
pelo Professor Moacir Gadotti (ib.: 275) às três orientações da educação popular no<br />
Brasil, que podem ser encontradas em outros países da América Latina. Segundo<br />
Gadotti, trata-se de uma síntese feita pelo Prof. Luiz Eduardo Wanderley, que foi<br />
publicada no livro intitulado Perspectivas e dilemas na educação popular, (Paiva,<br />
1984):<br />
1. A educação popular com a orientação de integração, uma<br />
educação instrumental, entendida como popularização da educação oficial sob a<br />
hegemonia das classes dominantes, com o objetivo de consolidar o capitalismo<br />
dependente, integrando, principalmente, o campesinato.<br />
2. A educação popular com a orientação nacional-<br />
desenvolvimentista, visando à implantação de um capitalismo autônomo, nacional e<br />
popular. Seria uma versão brasileira da “educação funcional” (UNESCO). Pretendia-se<br />
distribuir os benefícios do progresso social e econômico sem questionar, contudo, a<br />
legitimidade social do modelo capitalista dependente.<br />
3. A educação popular com a orientação de libertação com o<br />
objetivo de estimular as potencialidades do povo através da conscientização, da<br />
capacitação e de ampla participação social. A partir dessa orientação, certos grupos<br />
problematizaram e criticaram a ordem capitalista e começaram e exigir mudanças<br />
estruturais profundas.<br />
Aí estão as características básicas da educação popular, como ficou<br />
conhecida no Brasil e na América Latina. Certamente, a orientação libertadora acima<br />
destacada é a que nasceu e se fortaleceu na experiência dos Movimentos de<br />
Cultura Popular (MCPs), dos quais participaram os educadores que sempre fizeram<br />
a crítica à ordem capitalista. Entre seus expoentes estava <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, que acabou<br />
trazendo para a Secretaria Municipal de Educação de São <strong>Paulo</strong>, em 1989, a Escola<br />
Pública Popular.<br />
A educação popular tem sido, nos últimos anos, objeto de grande debate<br />
acadêmico. Por exemplo, a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em<br />
Educação (ANPEd), fundada em 1976, realiza reuniões desde 1978. Desde 1981,<br />
48
“propôs-se a estruturar-se em Grupos de Trabalhos (GT). Entre estes, foi criado o<br />
GT Educação Popular, que se reuniu pela primeira vez em 1982” (Fleuri & Costa,<br />
2001:9-10) 10 .<br />
O termo “Escola pública popular”, enquanto expressão da educação<br />
popular, foi criado em 1986 pelo Prof. Moacir Gadotti. Assim ele nos dá conta deste<br />
fato e de suas principais características:<br />
A expressão “escola pública popular” foi por mim cunhada, em 1986, preparando<br />
um curso para a Pontifícia Universidade Católica de São <strong>Paulo</strong> sobre as lutas populares<br />
por educação pública de qualidade para todos. Tratava-se de estudar a concepção de<br />
uma escola emergente, resultante da participação popular em diferentes níveis e formas<br />
(...) Ao nosso ver, a escola pública popular deve caracterizar-se pela sua autonomia e<br />
capacidade de definir o seu projeto. Depois de 1986, a evolução concreta das práticas<br />
político-pedagógicas de construção da escola pública popular levou-nos a utilizar<br />
diversas expressões para designar esse movimento, dentre elas escola pública popular<br />
autônoma e escola cidadã (Gadotti, 2000a:277-278).<br />
Moacir Gadotti identifica no país duas grandes forças que, até o final da<br />
década de 80, lutaram por uma educação para todos, democrática e de boa<br />
qualidade, a partir das quais o movimento pela construção da escola popular<br />
democrática se fortalece. Trata-se do movimento em defesa da educação pública e<br />
do movimento por uma educação popular, “o primeiro mais concentrado na<br />
educação escolar formal, o segundo, predominantemente no setor da educação<br />
informal e na educação de jovens e adultos” (Gadotti, 1990:179).<br />
Ao fazer o resgate da história da Escola Pública Popular no Brasil, o autor<br />
destaca o conflito entre o ensino público e o ensino privado no país, sendo que o<br />
primeiro era defendido por liberais como Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, e o<br />
segundo, defendido pelas Igrejas, em particular a católica, e pelos novos<br />
empresários da educação “que encontravam na Igreja uma justificação para o seu<br />
comércio” (ib., 1990:181).<br />
10 Ver, por exemplo, o livro intitulado Travessia: questões e perspectivas emergentes na pesquisa em<br />
educação popular (Fleuri & Costa, 2000b), que faz, entre outras questões, um balanço dos debates<br />
do GT educação popular na década de 90 e distute, por exemplo, a legitimidade dos saberes<br />
acadêmicos em relação aos saberes populares. Ver também artigo do Prof. Reinaldo Matias Fleuri<br />
intitulado “Educação popular e complexidade: novos olhares, novas questões” (1998).<br />
49
Gadotti destaca que<br />
nos dois blocos encontramos hoje defensores da escola pública. Não a escola pública<br />
burguesa, mas uma escola com caráter popular e com uma nova função social. Nessa<br />
nova concepção da educação, o papel específico da escola não é a apropriação<br />
individual do conhecimento, mas a geração de uma nova qualidade do conhecimento<br />
ligada a uma nova qualidade de vida, pela formação da solidariedade de classe. Essa<br />
união de forças desembocaria no que chamamos de Escola Pública Popular, rompendo<br />
com a atual dicotomia entre o ensino público e o privado (id.).<br />
A discussão entre ensino público e privado já foi bastante alimentada e<br />
explorada. As novas políticas públicas educacionais no país, nos últimos vinte anos,<br />
demonstram que as experiências da escola pública popular se constituíram, na<br />
verdade, numa radicalização necessária desse movimento, buscando uma escola<br />
pública de qualidade que fizesse frente e que fosse alternativa à escola privada,<br />
burguesa. Foi neste contexto que surgiu a Escola Pública Popular e, consolidando-a,<br />
a Escola Cidadã. Enquanto as políticas educacionais em nível nacional, promovidas<br />
pelo MEC nas décadas de oitenta e noventa, sobretudo para o ensino médio e<br />
superior, tenderam para a privatização do ensino – o que também aconteceu com a<br />
grande maioria dos Estados, salvo honrosas exceções – as políticas voltadas para o<br />
ensino fundamental, constitucionalmente sob a responsabilidade prioritária dos<br />
municípios, portanto locais, mantiveram um caráter mais público.<br />
Sobretudo a partir da promulgação da “Constituição Cidadã”, em 1988, alguns<br />
municípios brasileiros, principalmente os que foram governados por partidos<br />
políticos que propõem uma administração pública democrática e popular, a partir da<br />
eleição de governos de esquerda ou de centro-esquerda, pôde-se registrar um<br />
crescimento das políticas educacionais que visam ao atendimento das necessidades<br />
dos segmentos populares da sociedade.<br />
Assim que <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> assumiu, em janeiro de 1989, a Secretaria de<br />
Educação do Município de São <strong>Paulo</strong>, onde ficou até 27 de maio de 1991 – quando<br />
optou por retornar às suas atividades acadêmicas – convidou Moacir Gadotti, então<br />
professor da Faculdade de Educação da USP, para a Chefia de Gabinete. Ambos<br />
montaram uma equipe que trazia, toda ela, uma história de vida ligada, em sua<br />
50
maioria, a uma luta pela educação pública e popular. O grande mote orientador da<br />
política educacional daquele governo foi “por uma Escola Pública Popular e<br />
Democrática”. 11<br />
De 1989 a 1992, durante os quatro anos da gestão pública, popular e<br />
democrática da educação, numa administração socialista que teve à frente da<br />
Prefeitura Municipal Luiza Erundina de Souza, foram desenvolvidas “mudanças<br />
radicais no ensino municipal, incluindo uma ampla reforma curricular no primeiro<br />
grau (da primeira à oitava séries), novos modelos de gerenciamento escolar, por<br />
meio da implementação de Conselhos de Escola (...) e o lançamento de um<br />
Movimento de Alfabetização (MOVA-São <strong>Paulo</strong>), com base no planejamento e na<br />
prática participativos” (Torres, 1997:54-55).<br />
Conforme também escrevem os professores Carlos Alberto Torres, Maria del<br />
Pilar O’Cadiz e Pia Lindquist Wong, em pesquisa sobre a práxis de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> à<br />
frente da Secretaria da Educação do Município de São <strong>Paulo</strong>, a conceitualização de<br />
uma Escola Pública Popular<br />
surgiu de um intenso debate teórico que demorou várias décadas e cuja linha<br />
fundamental de pesquisa era o seguinte: o que ensinamos e como ensinamos os pobres,<br />
os filhos dos analfabetos, dos oprimidos e dos que têm menor poder numa sociedade em<br />
que as desigualdaes são terríveis e constituem obstáculos praticamente intransponíveis<br />
à mobilidade social através da educação? (Torres et al. 2002: 102).<br />
Tentando dar respostas à preocupação acima, todo o trabalho desenvolvido<br />
naquela gestão pautou-se em três grandes princípios orientadores: a participação, a<br />
descentralização e a autonomia e nas seguintes diretrizes da política educacional:<br />
Democratização da Gestão, Democratização do Acesso, Nova Qualidade de Ensino<br />
e Política de Educação de Jovens e Adultos.<br />
Esta experiência tem sido objeto de alguns estudos e pesquisas acadêmicas,<br />
entre os quais podemos destacar os trabalhos de Pedro Jacobi (1996), Pedro<br />
11 Quando <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> se afastou da pasta, assumiu o seu lugar o prof. Mário Sérgio Cortella,<br />
professor de filosofia e teologia da PUC de São <strong>Paulo</strong>, que completou o mandado à frente da<br />
Secretaria, até o final do ano de 1992, dando continuidade à política anteriormente traçada, com a<br />
qual também havia contribuído. Para uma visão do momento em que <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> assumiu a<br />
Secretaria Municipal de Educação, ver: Cortella, Mário Sérgio. “A reconstrução da escola: a educação<br />
municipal em São <strong>Paulo</strong> de 1989 a 1991. Brasília, INEP, Em Aberto, ano 11, n. 53, p. 54-63, jan./mar.<br />
1992.<br />
51
Pontual (1995) e de Ângela Antunes Ciseski (1997). 12 , além de outras publicações e<br />
estudos.<br />
Todo o Movimento de Reorientação Curricular no Município de São<br />
<strong>Paulo</strong>, construído e colocado em prática no período de 1989 a 1992, contou com “a<br />
problematização da escola e levantou também a necessidade de elaborar e discutir<br />
a concepção das áreas do conhecimento subjacente ao trabalho das diferentes<br />
escolas” (Saul, 1998:164). Ao resgatarmos os documentos do referido processo,<br />
observamos que houve um amplo trabalho de discussão sobre o currículo em toda a<br />
rede municipal, iniciado logo no segundo semestre de 1989, tendo como<br />
coordenadora do Movimento a professora Ana Maria Saul, da PUC/SP.<br />
Foi realizado um trabalho junto à Rede Municipal de Ensino de São <strong>Paulo</strong> que<br />
demonstrou, através de uma prática pedagógica nova, a possibilidade de construção<br />
do currículo em processo. Conforme palavras da Professora Ana Maria Saul,<br />
foi na perspectiva de construção e vivência de um novo paradigma curricular que<br />
trabalhou a Secretaria Municipal de Educação de São <strong>Paulo</strong>, na gestão de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>,<br />
como Secretário da Educação. Isso implicou em ‘pensar currículo, ler currículo, fazer<br />
currículo e sentir currículo’, tomando por empréstimo essas expressões de Domingues,<br />
de outra forma. Buscou-se uma reorientação curricular presidida pela racionalidade<br />
emancipatória apoiada na ‘teoria crítica’ (Horkheimer, Adorno, Marcuse, Habermas).<br />
A racionalidade emancipatória toma como centrais os princípios de crítica e<br />
ação. O seu objetivo é criticar aquilo que é restritivo e opressor, dando atenção, ao<br />
mesmo tempo, às questões de liberdade e bem-estar. Essa racionalidade dá destaque à<br />
capacidade de pensar criticament6e e refletir sobre a sua gênese histórica, ou seja,<br />
pensar sobre o seu próprio pensamento (Saul, 1998:154).<br />
O currículo da escola não se limitou à “grade curricular”. Pelo contrário;<br />
procurou-se estabelecer, desde o início das discussões sobre currículo da rede<br />
municipal de educação, a contextualização do significado de currículo de acordo<br />
12 Jacobi, Pedro Roberto. Ampliação da cidadania e participação – desafios na democratização da<br />
relação poder público/sociedade civil no Brasil. Tese apresentada à Faculdade de Educação da<br />
Universidade de São <strong>Paulo</strong> para a obtenção do título de Livre Docente. São <strong>Paulo</strong>, 1996; Pontual, ,<br />
Pedro de Carvalho. Desafios Pedagógicos na construção de uma relação de parceria entre<br />
Movimentos Populares e o Governo Municipal da Cidade de São <strong>Paulo</strong> na gestão Luiza Erundina. A<br />
experiência do MOVA-SP 1989-1992. Dissertação de mestrado PUC-SP, 1995; Ciseski, Ângela<br />
Antunes. (1997). Aceita um conselho: teoria e prática da gestão participativa na escola pública. São<br />
<strong>Paulo</strong>, FE-USP, Dissertação de mestrado.<br />
52
com aquele momento sócio-político, levando-se em conta as interconexões entre<br />
cultura, poder e transformação.<br />
Ao fundamentar o Movimento de Reorientação Curricular, explicitou-se de<br />
onde se estava partindo e aonde se queria chegar. O objetivo era efetivamente<br />
trabalhar na perspectiva da racionalidade emancipatória, o que implicava<br />
estabelecer uma “relação dialéctica entre o contexto histórico-social-político e<br />
cultural e o currículo, como um todo (...) concebendo o currículo como um processo<br />
em constante construção, que se faz e se refaz.” (ib.: 154-155). E, para que essa<br />
construção fosse possível, diversos sujeitos foram requeridos nesse processo. O<br />
que efetivamente se deu na rede municipal de ensino.<br />
A proposta de reorientação curricular da rede municipal de ensino de São<br />
<strong>Paulo</strong>, na gestão de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> e de Mário Sérgio Cortella (1989-1992), pressupôs<br />
uma concepção de currículo “como uma teoria crítica, objetivando a uma construção<br />
no processo, (que) desmonta mitos das pedagogias neutras” (São <strong>Paulo</strong>, 1990:8-9).<br />
Nesse sentido, procurou reconhecer e trabalhar as relações pessoais e<br />
interpessoais que se estabeleciam quando da construção do currículo da escola.<br />
Além disso, buscava resgatar a identidade do próprio educador, investindo na sua<br />
formação e desafiando-o a assumir-se como agente de sua própria prática.<br />
O projeto interdisciplinar era central nesse processo, mas a partir da<br />
investigação da realidade local como força presente e necessária à construção desse<br />
novo currículo para a escola. A presença das relações sociais na vida da escola, como<br />
objeto de reflexão e conhecimento, levará a mudanças, num primeiro instante, na<br />
realidade local da própria escola e, num momento posterior, num contexto mais amplo.<br />
Politicamente, essa postura possibilitará a organização dos educadores em um todo<br />
coletivo. Coletivo este que não anula cada indivíduo, mas que o reconhece como<br />
produtor crítico de conhecimento e não o concebe mais como um sujeito isolado, mas<br />
como alguém que junto com o outro constrói uma nova prática. Essa nova prática levará<br />
a escola a rever sua estrutura criando novos espaços, eventos e instâncias de decisão<br />
atenuando a força que a estrutura burocrática hoje assume, muitas vezes impedindo a<br />
viabilização de novas propostas (PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO <strong>PAULO</strong>, 1990, 10-<br />
12).<br />
53
A experiência da inovação curricular no Município de São <strong>Paulo</strong>, denominada<br />
de “Projeto Interdisciplinar” 13 , partia de quatro princípios bem delimitados:<br />
1. Reconceitualização do processo de produção do conhecimento;<br />
2. Redefinição das áreas de conteúdo cobertas pelo currículo escolar;<br />
3. Reorientação da compreensão e utilização do currículo escolar;<br />
4. Transformação das relações entre educadores e educandos;<br />
5. Alteração do papel desempenhado pelas escolas nas vidas de alunos. 14<br />
Nas palavras do professor Mário Sérgio Cortella (1992:58), então Secretário<br />
Municipal de Educação de São <strong>Paulo</strong>, após assumir o lugar deixado por <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong><br />
em maio de 1992,<br />
o quadro de referência teórico-medotológico norteador da política pedagógica privilegiou<br />
a valorização da relação teoria/prática, a introdução da interdisciplinaridade, a concepção<br />
da relação dialógica para a qual o resgate da realidade social e cultural dos educandos é<br />
indispensável e o desenvolvimento das programações das escolas a partir do estudo da<br />
realidade local.<br />
O Movimento de Reorientação Curricular e Formação Permanente dos<br />
educadores envolveu o coletivo das unidades escolares e a comunidade em um<br />
trabalho de reflexão conjunta, desde a problemática da realidade até a elaboração<br />
de propostas pedagógicas. Para tanto, resgatou-se as experiências dos movimentos<br />
sociais e culturais dos anos 60, partindo-se do que <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> chamava, nos<br />
Círculos de Cultura, de “leitura do mundo” 15 , contextualizando a construção do<br />
13 Esta organização do projeto interdisciplinar da política municipal de Educação de São <strong>Paulo</strong>, que foi<br />
a base da proposta de reorientação curricular daquela gestão, pode também ser observada em outros<br />
trabalhos, a partir das respostas dadas por <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> a duas entrevistas que ele concedeu em<br />
março 1989, quando iniciava a sua gestão, constantes das páginas 41 a 55 do seu livro intitulado A<br />
educação na cidade (<strong>Freire</strong>, 1999b).<br />
14 SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO, 1991, p. 2.<br />
15 <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> considera necessário sempre “ler o mundo” antes da “leitura da palavra”. Ele afirma<br />
que “como educador preciso de ir ‘lendo’ cada vez melhor a leitura do mundo que os grupos<br />
populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do maior de que o seu é parte. O que<br />
quero dizer é o seguinte: não posso de maneira alguma, nas minhas relações político-pedagógicas<br />
com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua explicação do mundo de<br />
que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo”. (<strong>Freire</strong>, 1997b:90). Sobre este<br />
conceito, consultar tese de doutorado da Professora Ângela Antunes (2002), intitulada Leitura do<br />
Mundo no contexto da planetarização: por uma Pedagogia da Sustentabilidade.<br />
54
currículo a partir das relações estabelecidas pela escola com a sua comunidade,<br />
com o seu bairro. Ao fazê-lo, abriam-se condições para que a dimensão cultural<br />
ganhasse espaço na escola, porque a partir do processo do conhecimento da<br />
realidade via coleta de dados junto à comunidade, procedia-se à definição do tema<br />
gerador, ou seja,<br />
o caminho para atingir o saber, compreender e intervir criticamente numa determinada<br />
realidade estudada... Pressupõe uma metodologia que acredita no crescimento do<br />
indivíduo através do trabalho coletivo, da discussão, da problematização, da<br />
interrogação, do conflito e da participação na apropriação, construção e reconstrução do<br />
saber... É o ponto de encontro interdisciplinar para todas as áreas do conhecimento<br />
(SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO, 1991:9).<br />
Como vemos, ao se trabalhar com o projeto interdisciplinar, dava-se ênfase à<br />
integração das disciplinas, mas a partir da tentativa de desenvolver um currículo que<br />
“de forma sistemática, tornasse a realidade e a cultura do aluno a base a partir da<br />
qual evoluíssem as experiências educativas criadas no contexto da sala de aula<br />
(Torres et ali, 2002:114). Não havia referência ao conceito de “Currículo<br />
Intertranscultural”, mas, na idéia de Círculo de Cultura e no projeto interdisciplinar,<br />
como estamos verificando, já estava pressuposta a abertura do currículo da escola<br />
levando em conta a dimensão cultural e, por conseguinte, os saberes que os alunos<br />
traziam para a escola. Nesse sentido, conforme escrevem Torres, O’Cadiz e Wong<br />
(ib: 115),<br />
o levantamento preliminar ou estudo da realidade [é realizado] para encontrar as<br />
‘situações significativas’, isto é, circunstâncias sociais, culturais, políticas da vida diária<br />
dos alunos que constituem a sua experiência de vida.<br />
Todo o trabalho da reorientação curricular da Escola Pública Popular que<br />
estamos destacando, fixava as bases da construção de uma escola mais curiosa,<br />
mais prazerosa e aprendente. Contra uma educação “bancária”, denunciada desde<br />
Pedagogia do Oprimido (1987), <strong>Freire</strong> fala da curiosidade como oposição à posição<br />
dócil e paciente, passiva ou apassivada do aluno. Segundo ele, “o conhecimento<br />
55
não se transfere; se sabe, se conhece, se cria, se recria, curiosamente,<br />
arriscadamente” (<strong>Freire</strong> & Guimarães, 1982: 79).<br />
Em Pedagogia da Autonomia (1997b), <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> nos fala um pouco mais<br />
sobre a exigência da curiosidade no ato de aprender, e que não se admite, por<br />
exemplo, a negação da curiosidade do outro, porque a “curiosidade que silencia a<br />
outra se nega a si mesma também” (ib.:95). Na seqüência desta mesma reflexão,<br />
<strong>Freire</strong> sugere uma aula que não canse o aluno, que não o faça dormir, ou seja, falar<br />
ao professor de uma aula que desafie os alunos ao invés de ser uma “canção de<br />
ninar” (ib.:96). Trata-se de incentivar a curiosidade crítica que, por sua vez, remete a<br />
outras curiosidades. Se assim acontece, o aluno estaria diante do prazer de<br />
aprender porque, conforme entendemos, curiosidade satisfeita leva ao sentimento<br />
do prazer, entendido aqui como o alcance de um desejo, um desejo satisfeito porque<br />
saciada a curiosidade.<br />
Mas para realizar um trabalho com esta característica de incentivo à<br />
curiosidade, torna-se necessário um exercício permanente de criatividade. Esta,<br />
segundo Gianni Rodari,<br />
é sinônimo de ‘pensamento livre’, isto é, de capacidade de romper cotidianamente os<br />
esquemas da experiência. É ‘criativa’ uma mente que trabalha, que faz perguntas, que<br />
descobre problemas onde os outros encontram respostas satisfatórias (na comodidade<br />
das situações onde se deve farejar o perigo), que é capaz de juízos autônomos e<br />
independentes (do pai, do professor e da sociedade), (...) que remanuseia objetos e<br />
conceitos sem se deixar inibir pelo conformismo. (1982:140).<br />
O currículo, na perspectiva abrangente pensada e executada na experiência<br />
da SME/SP, 1989-1992, considerava a participação dos professores como<br />
fundamental para permitir o incentivo à curiosidade do aluno, dando especial<br />
atenção aos docentes e valorizando a participação dos demais segmentos escolares<br />
no processo, por exemplo, da definição do “tema gerador”. Tratava-se de um diálogo<br />
que acontecia entre professores e demais segmentos escolares, como forma de<br />
enriquecer a experiência da própria comunidade escolar.<br />
Segundo as palavras de Ana Maria Saul,<br />
56
esse diálogo envolvente permite trazer para a discussão curricular os assuntos e<br />
as noções de mundo, de região, da comunidade que circunda a escola. Ou seja, nessa<br />
visão de currículo você pode ter pessoas que estão se escolarizando e, ao mesmo<br />
tempo, estão em processos de cidadania. A escola ganha, então, um lugar dentro do<br />
projeto político que você vive em cidade. Essa educação, assim praticada, é formadora<br />
de uma cultura pedagógica ‘politizada’. E essa escola perde, então, aquele tradicional<br />
lugar de servir ‘inocentemente’ ao projeto político implícito dentro dos diários oficiais;<br />
sim... parecem não ter, mas os diários oficiais cumprem um papel e um projeto político<br />
(Saul, 1990:55-56).<br />
Em relação à questão da avaliação do processo de ensino e de<br />
aprendizagem, uma das dimensões do currículo escolar e aspecto muito caro à<br />
reflexão que realizamos permanentemente no Movimento da Escola Cidadã, assim<br />
se manifestou o próprio <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>:<br />
Se nós mantemos tanta reprovação é porque algo ocorre com a relação entre<br />
esses meninos e a cultura com cujo trato eles são reprovados. O que ocorre aí é uma<br />
elaboração elitista das formas e dos usos da cultura. E nós dizemos: ‘clarear’, isso<br />
porque não posso, enquanto Secretário, e tu não podes, enquanto coordenadora, obter<br />
por decreto que as pessoas (professoras) passem a ver como nós vemos. Devemos<br />
respeitar muita coisa. E devemos, também, propor como norma dessa gestão que iremos<br />
respeitar o perfil dessa cultura popular; vale dizer o seguinte: esses meninos serão<br />
respeitados em sua organização e sabedoria cultural. Com isso estaremos<br />
respeitosos ante um perfil de classe social. Isso – justamente isso – tem sido difícil para<br />
a educação burguesa na medida em que ela se diz universal e igual para todos (<strong>Freire</strong>,<br />
in: Saul, 1990:57). (Grifos nossos).<br />
Pensamos que o Movimento da Escola Cidadã é resultado também deste<br />
processo histórico e desta concepção de educação.<br />
De acordo com as palavras de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, a Escola Cidadã é aquela que<br />
se assume como um centro de direitos, como um centro de deveres. O que a caracteriza<br />
é a formação para a cidadania. A Escola Cidadã, então, é a escola que viabiliza a<br />
cidadania de quem está nela e de quem vem a ela. Ela não pode ser uma escola cidadã<br />
57
em si e para si. Ela é cidadã na medida em que se exercita na construção de quem usa o<br />
seu espaço. A Escola a Cidadã é uma escola coerente com a liberdade, que, brigando<br />
para ser ela mesma, viabiliza ou luta para que os educandos e educadores também<br />
sejam eles mesmos. E como ninguém pode ser só, a Escola Cidadã é uma escola de<br />
comunidade, de companheirismo. É uma escola que não pode ser jamais licenciosas<br />
nem jamais autoritária. É uma escola que vive a experiência tensa da democracia<br />
(Gadotti & Romão, 1997d: Quarta capa).<br />
Segundo Moacir Gadotti,<br />
o Projeto da Escola Cidadã nasceu do inconformismo de muitos educadores e não<br />
educadores com a deterioração do ensino público e da ousadia em enfrentar o discurso<br />
e a proposta hegemônicas neoliberais, confrontando-lhes uma alternativa, a partir de<br />
uma concepção democrática de educação e com base em experiências concretas de<br />
renovação de ensino (Gadotti, 2000a:278).<br />
Temos acompanhado muito de perto a experiência da Escola Cidadã. E<br />
muito antes de nos envolvermos neste movimento, já tínhamos notícias da<br />
existência desta nova perspectiva e proposta de escola pública popular, através do<br />
livro do mesmo autor, intitulado Escola cidadã (1993a), em que Gadotti, depois de<br />
fazer um breve histórico sobre a problemática da autonomia escola, sob vários<br />
aspectos, oferece ao leitor o que ele chama de “Decálogo da Escola Cidadã”<br />
(Gadotti, 1993a:54-60). Vejamos, na íntegra, este decálogo, versão escrita em 1992,<br />
publicada no livro Pedagogia da Práxis (Gadotti, 2001:266-67).<br />
1. A escola pública autônoma é, antes de mais nada, democrática – para todos<br />
– democrática na sua gestão, democrática quanto ao acesso e permanência de todos. É,<br />
além disso, popular, isto é, tem um caráter social comunitário, espaço do público para<br />
elaboração da sua cultura.<br />
2. Para ser autônoma não pode ser dependente de órgãos intermediários que<br />
elaboram políticas das quais ela é mera executora. Por isso, no sistema único e<br />
descentralizado, os técnicos dos órgãos centrais devem prestar serviços nas próprias<br />
escolas. Uma escola poderia ter mais de um prédio ou campus como as universidades.<br />
Portanto, todos nas escolas.<br />
58
3. A escola cidadã deve valorizar o contrato de dedicação exclusiva do<br />
professor. O máximo de quatro horas diárias de aula e quatro horas de outras atividades<br />
na escola ou em casa e substituições (equipe interdisciplinar). Valorizar a escola significa<br />
não levar trabalhos para casa a não ser que na escola não haja lugar adequado. Neste<br />
caso, ele deve utilizar em casa o horário que deveria prestar na escola até que a escola<br />
ofereça acomodações adequadas para o trabalho docente extraclasse. Fim do professor-<br />
bico e profissionalização.<br />
4. Ação direta. Valorizar as iniciativas pessoais e os projetos das escolas. O<br />
problema não está na crise da escola mas na crise do sistema, na rotina que ele produz<br />
na escola, pelo seu excessivo controle. A crise do sistema aprisiona a escola à<br />
padronização sob o pretexto da democratização das oportunidades.<br />
5. A escola autônoma cultiva a curiosidade, a paixão pelo estudo, o gosto pela<br />
leitura e pela produção de textos, escritos ou não. Aprendizagem criativa e não<br />
mecânica. Propõe a espontaneidade e o inconformismo.<br />
6. É uma escola disciplinada. A disciplina que vem do papel específico da<br />
escola: o sistemático e o progressivo.<br />
7. A escola não é mais um espaço fechado. Sua ligação com o mundo se dá<br />
com o trabalho. A escola autônoma procura unir-se ao mundo exterior pelos espaços<br />
sociais do trabalho, das profissões, das múltiplas atividades humanas. Ela é um<br />
laboratório do mundo que a penetra.<br />
8. A transformação da escola não se dá sem conflitos. Ela se dá lentamente.<br />
Pequenas ações, mas continuadas, são melhores no processo de mudança que eventos<br />
espetaculares, mas passageiros. Só a ação direta de cada professor, de cada classe, de<br />
cada escola, pode tornar a educação um processo enriquecedor.<br />
9. Não há duas escolas iguais. Cada escola é fruto do desenvolvimento de<br />
suas contradições.<br />
10. Cada escola deveria ser suficientemente autônoma para poder organizar o<br />
seu trabalho da forma que quisesse, inclusive contratando e exonerando, a critério do<br />
conselho de escola.<br />
Observamos neste primeiro decálogo, uma preocupação de Moacir Gadotti<br />
em estabelecer e fortalecer os princípios da Escola Cidadã, reforçando, por<br />
exemplo, a gestão democrática da escola, a sua necessária autonomia, a<br />
construção do projeto pelas escolas e a luta contra a padronização das atividades,<br />
destacando, de forma muito clara, a importância dos professores neste processo,<br />
enfatizando a sua profissionalização, a abertura da escola como espaço público. O<br />
59
autor centra suas reflexões, principalmente, na sua gestão enquanto unidade<br />
autônoma.<br />
Por outro lado, notamos a preocupação com o currículo escolar, que deveria,<br />
com base na sua autonomia, estimular a curiosidade, a paixão e a aprendizagem<br />
criativa, fatores que se referem mais a uma dimensão relacionada à construção de<br />
um referencial curricular para a Escola Cidadã, uma escola que, acima de tudo,<br />
deveria ser rigorosa em sua sistematização e progressividade. Tratava-se de deixar<br />
claro que, embora fosse uma escola que trabalharia com dimensões até então<br />
pouco desenvolvidas numa pedagogia mais conservadora ou tradicional, não<br />
deixava de ser rigorosa – portanto científica e politicamente comprometida – com a<br />
formação dos seus alunos.<br />
No segundo decálogo da Escola Cidadã, documento que o Prof. Moacir<br />
Gadotti chamou de “Teses sobre a Escola Pública: novo decálogo da Escola<br />
Cidadã”, o autor apresenta novas teses (Gadotti, 2000c. In: Rattner, 2000: 303-07),<br />
como forma de estimular a permanente reflexão crítica sobre o próprio Movimento<br />
da Escola Cidadã, sobretudo, nos encontros nacionais e internacionais que têm sido<br />
organizados em torno deste movimento.<br />
1 ª - Mudar é possível. Devemos recusar a tese fatalista de que a escola pública<br />
brasileira não tem mais remédio. Podemos sim mudar a escola pública. As recentes<br />
experiências, fundadas na concepção cidadã de educação, representam uma alternativa<br />
viável ao projeto neoliberal capitalista de escola pública. Elas comprovaram que a escola<br />
pública pode ser competente, participativa e democrática.<br />
2 ª - Que escola? A escola pública é a escola da maioria, das periferias, dos<br />
cidadãos que só podem contar com ela. Nenhum país do mundo se desenvolveu sem<br />
uma boa escola pública. Nenhuma sociedade se desenvolveu sem incorporar a grande<br />
maioria dos seus cidadãos ao bem viver. A escola pública do futuro, numa visão cidadã<br />
freiriana, tem por objetivo oferecer possibilidades concretas de libertação para todos.<br />
3 ª - Escola e empresa. Só o Estado pode dar conta do nosso atraso<br />
educacional. As empresas e as escolas particulares podem ajudar apenas parcialmente<br />
a resolver esse problema, desde que seja para o benefício do aluno e sob o controle da<br />
escola e do sistema de ensino; desde que tenham um grande compromisso com o<br />
ensino público, lutando por mais recursos públicos para ele. Em geral, os interesses da<br />
escola pública colidem com os da escola privada, pois, se a primeira tiver um ótimo<br />
desempenho a segunda poderá perder sua clientela.<br />
60
4 ª - Escola e Estado. Não há mudanças na escola sem uma concepção de<br />
Estado. É a própria escola que deve mudar, por dentro, a partir dela mesma. Mas ela,<br />
sozinha, não muda, sem uma concepção de Estado e de educação. Historicamente o<br />
Estado brasileiro tem sido monopólio das elites econômicas. A escola estatal não é<br />
necessariamente pública. Para ser pública ela precisa ser democratizada, isto é,<br />
possibilitar a participação da comunidade escolar, interna e externa, em todos os seus<br />
níveis de decisão e ação político-pedagógicas.<br />
5 ª - Escola e Sociedade. Para mudar, a escola precisa apoiar-se na sociedade,<br />
através da criação de uma esfera pública de decisão não estatal, como o emblemático<br />
“orçamento participativo” e a “constituinte escolar”. Para mudar, não basta que a análise<br />
dos governantes e as soluções apontadas estejam corretas. É preciso que elas sejam<br />
legitimadas pela discussão coletiva. Quem opera a mudança é o coletivo.<br />
6 ª - Redes e movimentos. A escola pública não pode mudar sozinha. A escola<br />
pública de qualidade para todos precisa ser uma escola em rede de colaboração<br />
solidária em todos os níveis – local, regional e mundial – buscando a construção<br />
democrática radical como alternativa pós-capitalista. As redes em educação se<br />
constituem em espaços abertos que se auto-reproduzem e assim se fortalecem,<br />
constituindo-se em movimentos em permanente mudança.<br />
7 ª - Era da informação. A escola precisa passar de uma concepção de<br />
educação como produção em série – seriação – e de repetição de saberes da sociedade<br />
industrial, da parcelarização do conhecimento, para uma concepção transdisciplinar da<br />
educação, da era da informação pós-industrial e da nova economia, onde predominam a<br />
autonomia e a aprendizagem colaborativa, onde todos podem “dizer a sua palavra”<br />
(<strong>Freire</strong>). Na era da informação, a escola precisa deixar de ser lecionadora, para ser<br />
gestora do conhecimento. Só o conhecimento compartilhado é conhecimento válido. A<br />
educação é mais um ato de produção do que um ato de transmissão e de assimilação de<br />
conhecimentos.<br />
8 ª - Cultura e estrutura. O desafio da mudança da escola pública é, ao mesmo<br />
tempo, cultural e estrutural. Sem mexer nas estruturas não se muda a escola. Mas<br />
também é preciso mexer nas relações sociais e humanas e numa cultura escolar que<br />
valoriza um certo saber e despreza outro. A escola é um espaço de relações sócio-<br />
culturais. A reestruturação física da escola deve associar-se a uma reestruturação<br />
espiritual e cultural.<br />
9 ª - Currículo e avaliação. A mudança curricular não pode limitar-se aos<br />
conteúdos disciplinares, mas deve atingir também os conteúdos atitudinais. A avaliação<br />
que classifica, seleciona e pune, ratifica a exclusão social. Avaliar, numa concepção<br />
cidadã, é um ato de conhecimento que implica uma predisposição de acolher um ser<br />
humano em sua totalidade e não apenas um aprendiz deste ou daquele saber.<br />
61
10 ª - Professor. O professor é um profissional do sentido e mediador do<br />
conhecimento. Sozinho, contudo, ele não dá conta de todas as tarefas da escola. É<br />
necessária a contribuição dos pais e dos profissionais não-docentes na elaboração do<br />
projeto eco-político-pedagógico da escola e na sua gestão. O professor conhece o seu<br />
aluno também através de conhecimentos fornecidos pelos pais sobre o contexto em que<br />
ele vive. 16<br />
Observamos, inicialmente, que enquanto o primeiro decálogo não apresenta<br />
títulos no início de cada um dos itens, isso acontece no segundo, o que orienta mais<br />
o leitor sobre a ênfase pretendida. Mas os itens, mesmo não tendo relação direta um<br />
com o outro, em termos de vinculação da ordem em que são apresentados,<br />
guardam certa relação no que se refere aos princípios que defendem e aos seus<br />
conteúdos mais gerais. Este é o caso, por exemplo, do item 1 de ambos os<br />
decálogos. No primeiro documento, neste item, é enfatizado o caráter público,<br />
democrático, comunitário e social da Escola Cidadã, reforçando a idéia da<br />
autonomia escolar. No segundo documento, a ênfase é para a possibilidade da<br />
mudança da escola pública, como que num esforço para mostrar que, apesar dos<br />
limites e dificuldades, houve, em dez anos, significativos avanços da Escola Cidadã,<br />
que se colocaria como uma alternativa viável ao projeto neoliberal e capitalista de<br />
escola pública. Como vemos, o segundo documento é bem mais radical na crítica ao<br />
projeto educacional neoliberal, que introduz a mercantilização da escola, o que se<br />
confirma na tese quarta do novo decálogo. Neste, para que a escola mude, torna-se<br />
necessária uma concepção de Estado e de Educação que não esteja subordinada<br />
aos interesses da lógica do mercado, a qual, hoje, invade também a escola pública.<br />
No primeiro decálogo, em relação à autonomia, defendia-se a possibilidade<br />
de a escola mesma promover, por exemplo, a contratação e a exoneração de<br />
servidores, cabendo ao Conselho da Escola a responsabilidade por esta tarefa. No<br />
segundo decálogo, aparece o conceito de autonomia com maior clareza e<br />
consistência. Ela é apresentada não apenas como sendo parte da própria natureza<br />
da educação, mas como uma estratégia da escola para se inserir, com projeto<br />
16 Estas teses, escritas pelo prof. Moacir Gadottil, foram publicadas no seu artigo intitulado “Educação<br />
para e pela cidadania” (Gadotti, 2000c:289-307. In: Rattner, 2000.). Este artigo apresenta, em<br />
detalhes, toda a trajetória do Movimento da Escola Cidadã nos últimos dez anos, culminando<br />
justamente com as teses do novo decálogo que aqui analisamos. Este novo decálogo foi também<br />
divulgado amplamente antes e durante o I Encontro Nacional das Escolas Cidadãs, em 2001, com<br />
caráter totalmente aberto, ou seja, passível de ser atualizado e modificado pelos participantes<br />
daquele Encontro. O documento foi lido pelos participantes do encontro, mas não chegou a ser<br />
discutido em plenário. Portanto, não sofreu destaques nem mesmo qualquer alteração formalmente<br />
apresentada ao <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> e ao próprio Prof. Moacir Gadotti.<br />
62
próprio, num conjunto maior de escolas. Daí a necessidade de uma concepção de<br />
Estado. Nos anos 90, os conceitos de autonomia e cidadania ganharam grandes<br />
espaços nos debates educacionais. O novo decálogo beneficiou-se desses debates.<br />
Isso explica, em parte, a radicalização do discurso anti-neoliberal da segunda<br />
versão. Por outro, há também um deslocamento do eixo da gestão democrática para<br />
o eixo do currículo, além de maior ênfase à educação em rede e ao seu<br />
fortalecimento com outras esferas, mais ampliadas, da sociedade, para ajudar na<br />
democratização da escola, bem como à ampliação do conceito de currículo, que não<br />
se restringe a conteúdos escolares, mas, também, aos conteúdos atitudinais, à<br />
avaliação e, principalmente, à cultura da escola e às relações sociais e humanas<br />
que ali se estabelecem. Este decálogo, diferentemente do primeiro, destaca a<br />
dimensão cultural e intercultural para a construção do currículo.<br />
Segundo Sandra Corazza (2002), podemos constatar uma proximidade dos<br />
discursos oficiais e alternativos, na década de 90, confundindo muitas vezes as<br />
políticas públicas de gestões governamentais de “esquerda” e de “direita”. Segundo<br />
ela analisa,<br />
hoje, nestes tempos da nova ordem mundial, de capitalismo tardio em escala global, de<br />
neoliberalismo governamental e de soberania do mercado transnacional, não há mais um<br />
centro fixo, seja ele de poder, de produção e trabalho, de capital e cultura, de formação<br />
dos sujeitos. (...) Este é um tempo de reciclagem de ideologias, conhecimentos,<br />
comunicação. (...) Tempo de reconfiguração e abolição de fronteiras entre ciência e<br />
ficção, público e privado, material e imaterial, humano e sobre-humano, natural e<br />
sobrenatural. (...) Porque somos sujeitos desta época e de nenhuma outra, não<br />
conseguimos experimentar mais a Educação e a Pedagogia do mesmo jeito que antes.<br />
Por isso, as praticamos, enquanto os novos seres híbridos que somos. Seres que, dentre<br />
outras características, possuem, em seus fazeres, pensares e dizeres, uma porção de<br />
currículo ‘oficial’ e outra porção de currículo ‘alternativo’. Ao perdermos os fatores<br />
distintivos, entre ‘oficial’ e ‘alternativo’, nossos currículos passam a ser representados<br />
pelo traço de união que liga, agora, as duas palavras (Corazza, 2001:101-102).<br />
A advertência de Corazza causa surpresa nela própria e também,<br />
possivelmente, nos seus leitores. Ela apresenta o resultado de uma análise<br />
comparativa que fez, buscando – e encontrando – grandes “similaridades<br />
63
discursivas entre o currículo nacional, expresso nos PCNs, e o Movimento<br />
Constituinte Escolar, Movimento de construção da Escola Democrática e Popular” do<br />
governo petista do Rio Grande do Sul (ib.:104), estudo sobre o qual nos voltaremos<br />
oportunamente.<br />
Reconhecemos o trabalho da autora e os riscos, nos dias atuais, desta<br />
confusão terminológica e discursiva, o que evidencia a presença de um hibridismo<br />
que não é apenas resultado de uma mistura semântica. Significa, sim, a (con) fusão<br />
concreta de idéias, políticas e ideologias, tão favorecidas na contemporaneidade,<br />
por exemplo, pelas novas tecnologias, pelas novas mídias e, muitas vezes, pela falta<br />
de cuidado no ato de se propor políticas públicas educacionais ou relacionadas a<br />
outras áreas.<br />
Não consideramos, como isso, a inexistência das posições político-<br />
ideológicas diferentes, nem muito menos das diferenças marcantes do caráter das<br />
políticas sociais que governos mais progressitas (de esquerda ou de centro<br />
esquerda) têm apresentado nos últimos 20 anos no Brasil, se comparadas com as<br />
forças políticas conservadoras no país, com o que Corazza também concorda.<br />
Houve, por exemplo, na proposta da gestão popular e democrática de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>,<br />
à frente da Secretaria Municipal de São <strong>Paulo</strong>,<br />
uma aposta política clara de colocar o ensino público ao serviço das comunidades de<br />
pobres e trabalhadores. Ao fazê-lo, as reformas do Partido dos Trabalhadores fizeram<br />
com que todos os que estavam envolvidos examinassem de forma mais crítica as suas<br />
vidas em relação à educação das crianças brasileiras e, em particular, das crianças<br />
pobres (Torres et al, 2002:101).<br />
No entanto, como analisa a professora Corazza, ao contrário do que se<br />
passava há trinta anos e, também, conforme entendemos, à época daquela gestão<br />
de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, as diferenças entre os discursos “oficiais” e “alternativos” estão<br />
cada vez mais difíceis de serem notadas, tanto nas propostas de políticas, quanto no<br />
processo mesmo da operacionalização dessas políticas. Devemos reconhecer<br />
coerência na análise da autora, por exemplo, se observarmos que, em parte, este<br />
problema se deve à descontinuidade administrativa governamental e ao<br />
revezamento no poder de forças políticas e ideológicas contrárias nos últimos anos,<br />
64
o que demonstra que essa confusão é real, sobretudo por parte da população que<br />
sente diariamente o resultado dessas políticas e que, ao final de cada gestão, tenta,<br />
através do voto mais ou menos consciente – esta seria outra longa discussão que<br />
não faremos aqui – “acertar novamente”. No entanto, não podemos deixar de<br />
registrar, resguardando-nos dos eventuais exageros de confusões ideológicas que<br />
se confundam com possíveis hibridismos culturais que há, por outro lado, conforme<br />
destaca o Prof. José Eustáquio Romão (2000), uma forte apropriação que a “direita”<br />
faz das bandeiras da “esquerda”, descarcterizando-as, ressignificando-as e<br />
utilizando-as conforme seus interesses político-ideológicos. (Romão, 2000).<br />
Ora, se não tem havido clareza nos discursos, se não há purismo nas<br />
propostas ideológico-políticas – se os pactos são cada vez maiores e,<br />
aparentemente necessários – e, se por outro lado, há todo um processo de absorção<br />
e mistura da linguagem e dos discursos oficiais ou alternativos – até mesmo porque<br />
dependendo do lugar político que se ocupa em determinado momento – fica confuso<br />
para a população saber qual discurso é oficial ou alternativo.<br />
São várias as possibilidades de, hoje, adotarmos discursos e mesmo práticas<br />
híbridas, o que não é, de antemão, sob o aspecto cultural, por exemplo, algo<br />
negativo. O que queremos enfatizar, neste caso, é o cuidado com a coerência<br />
político-ideológica e programática que se exige hoje de todos os setores da<br />
sociedade e, sobretudo, dos educadores. Por esta razão, entendemos a radicalidade<br />
democrática e o discurso afirmativo do novo decálogo da Escola Cidadã, anti-<br />
neoliberal explícito, como uma forma encontrada de demarcar claramente uma<br />
posição e de não deixar dúvidas sobre o caráter ideológico-político desta proposta,<br />
no quadro geral da globalização capitalista. Dentro desta perspectiva, é que a<br />
Escola Cidadã se apresenta, de acordo com as palavras do professor José Clóvis de<br />
Azevedo, Secretário de Educação do Município da Porto Alegre de 1997 a 2000,<br />
como<br />
um desafio permanente às ‘velhas’ e às ‘novas’ práticas; seus avanços denunciam<br />
superações e inconcretudes, cada passo anuncia ‘o novo’, desafia o ‘velho’ que,<br />
dialeticamente, compõe o processo irreversível da historicidade que o confronto do<br />
contraditório produz nas experiências e práticas cotidianas. Por ser um processo político<br />
e coletivo, a Escola Cidadã é irreversivelmente fertilizada pela crítica e autocrítica de<br />
65
seus sujeitos, cujas autorias denunciam as especificidades das trajetórias, o singularismo<br />
da experiências, as diferenças e as nuanças de concepções. Essa diversidade, contudo,<br />
articula-se no processo democrático e participativo, produzindo, renovando e fecundando<br />
a sua caminhada. Mas a sua dialogicidade não é apenas endógena. A interação<br />
permanente com a cidade, com os usuários, com os meios acadêmicos, com outras<br />
experiências educacionais possibilitam o estabelecimento de referências para a<br />
percepção das suas contradições e de seus avanços. (AZEVEDO, 2000:23).<br />
De toda forma, podemos observar nos documentos e nos discursos<br />
proclamados, que eles também apresentam o caráter híbrido, conforme nos falou a<br />
professora Sandra Corazza (2002). Se formos compará-los a outros documentos e<br />
discursos oficiais que defendem, por exemplo, uma escola disciplinada, a<br />
valorização das iniciativas pessoais e os projetos das escolas e as mudanças<br />
sempre necessárias à educação – um discurso, reconheçamos, que pode ser<br />
facilmente utilizado por qualquer corrente política, como podemos constatar.<br />
A radicalização no discurso da Escola Cidadã surge também como uma<br />
resposta ao acirramento das políticas públicas de caráter neoliberal, que ganharam<br />
as reformas internacionais e nacional de educação, sobretudo a partir da segunda<br />
metade dos ano 90. Tais reformas – muitas delas voltadas principalmente para o<br />
currículo das escolas, tiveram reflexos diretos na educação brasileira e nas políticas<br />
públicas representadas pelas alterações promovidas a partir da Lei de Diretrizes e<br />
Bases da Educação Nacional – LDB 9394/96, abrindo espaço para uma proposta<br />
curricular que tendeu a nacionalizar o currículo das escolas, justamente num<br />
momento em que os currículos locais ganhavam força (Silva, 1998; Macedo, 1999;<br />
Arroyo, 1999, entre outros).<br />
As teses do decálogo da escola cidadã apresentadas em 2000, dão muito<br />
maior ênfase, portanto, ao currículo, à avaliação, à mudança estrutural e cultural<br />
das escolas e das relações sociais e humanas que nela se estabelecem. Por outro<br />
lado, na mesma direção, o decálogo de 1992 fala de escola autônoma que cultiva a<br />
curiosidade, a paixão pelo estudo e a aprendizagem criativa. O que, certamente,<br />
prepara o terreno e reforça a ênfase curricular do segundo documento. E, além<br />
disso, o novo decálogo, ao tratar do papel do professor, preocupa-se muito mais<br />
com a sua aproximação dos demais segmentos escolares, contando com os<br />
conhecimentos advindos do contexto escolar, do que propriamente com as suas<br />
66
condições de trabalho, como fazia anteriormente, reforçando, assim, o coletivo<br />
escolar em vez de dar maior importância apenas a um segmento.<br />
Para Moacir Gadotti, em princípio, toda escola pode ser cidadã, na medida<br />
em que realizar uma concepção de educação orientada para:<br />
a) a formação para a cidadania ativa;<br />
b) a educação para o desenvolvimento.<br />
Por outro lado, para ser Cidadã, a escola necessita seguir alguns princípios,<br />
que também foram se consolidando a partir da experiência da escola pública popular<br />
e democrática. Estes princípios são os seguintes:<br />
1º - Estatal quanto ao financiamento;<br />
2º - Comunitária e democrática quanto à gestão; e,<br />
3º - Pública quanto à destinação.<br />
A Escola Cidadã propõe uma educação para a cidadania. Nesse sentido,<br />
cidadania é essencialmente consciência de direitos e deveres e exercício de<br />
democracia. Não há cidadania sem democracia. A democracia, por sua vez,<br />
conforme Moacir Gadotti tem escrito repetidas vezes (1997a; 1997d), fundamenta-se<br />
em três direitos:<br />
etc;<br />
1º - direitos civis – como segurança e locomoção etc;<br />
2º - direitos sociais – como trabalho, salário justo, saúde, educação, habitação<br />
3º - direitos políticos – como liberdade de expressão, de voto, de participação<br />
em partidos políticos e sindicatos etc.<br />
Como podemos acompanhar, o Movimento da Escola Cidadã objetiva<br />
construir uma escola e um processo educacional voltados para a formação plena da<br />
cidadania. Visa a mobilizar a sociedade para a conquista dos direitos acima<br />
mencionados, cuja garantia cabe ao Estado, ao contrário do que propõe a<br />
concepção consumista, liberal e neoliberal de cidadania (Gadotti & Romão, 1997d).<br />
A Escola Cidadã é também caracterizada pelo seu espírito de mudança, de<br />
inovação educacional, que tem a ver com a construção de uma escola de melhor<br />
qualidade, que encare o ato de ensinar e de aprender como um ato prazeroso.<br />
67
Trata-se de uma escola que tem como traços principais a alegria, a solidariedade de<br />
classes, a amorosidade, a responsabilidade e a curiosidade na apropriação e na<br />
recriação dos conhecimentos, voltada para a transformação social, cuja boniteza se<br />
manifeste na possibilidade da formação plena da pessoa, antes de qualquer coisa<br />
um sujeito 17 também social e emancipado.<br />
A Escola Cidadã é uma instituição de ensino e de aprendizagem que valoriza<br />
o diálogo, a participação ativa, portanto, a democracia participativa. Traduz-se numa<br />
organização democrática que inclui nos processos decisórios de sua gestão<br />
administrativa, pedagógica, financeira e comunitária, todos os segmentos escolares.<br />
É uma escola em cuja proposta não se admite quaisquer formas de discriminação ou<br />
preconceito, seja na hora de planejar ou de projetar as suas atividades, seja nos<br />
momentos de executar o que foi coletivamente planejado e de avaliar o processo de<br />
ensino e de aprendizagem dos alunos. Seja, ainda, nos momentos em que constrói<br />
os instrumentos e os critérios da sua própria auto-avaliação.<br />
Esta escola trabalha na perspectiva de um “planejamento dialógico” (Padilha,<br />
2001) e de um processo de “avaliação dialógica continuada (Romão, 1998; Padilha,<br />
2000b), visando a que se possa, a partir da escola e da comunidade, de forma<br />
socializada e ascendente, influenciar dinamicamente as políticas públicas<br />
educacionais. E que, ao definir o seu currículo intertranscultural, como veremos,<br />
tenha por referência um processo rico e participativo de “leitura do mundo”. Deste<br />
processo, resulta a definição dos conhecimentos significativos para o aluno, que<br />
valoriza a ciência e também as experiências e o contexto sócio-econômico-cultural<br />
em que ele vive, respeitando o seu ritmo pessoal, sem perder de vista a dimensão<br />
de totalidade do conhecimento e das experiências acumuladas pela humanidade –<br />
ou seja, o conhecimento que é, ao mesmo tempo, tomado e recriado numa<br />
dimensão local e global, isto é, numa dimensão “glocal”.<br />
Acentuando a importância que <strong>Freire</strong> atribui à cultura na definição do<br />
currículo, destacamos que o mesmo insistia a que professores/as pudessem<br />
construir ciência, mas de forma humanizada e sempre relacionando a educação com<br />
17 Adotamos aqui a compreensão de “sujeito” que nos é oferecida por Alain Touraine (1997:141-142).<br />
Ele chama de “sujeito” ao “esforço do indivíduo para se construir a si próprio como um indivíduo, em<br />
vez de se construir como o subordinado de uma lógica de ordem, qualquer que seja a natureza dessa<br />
ordem”. O professor Stephen Stoer, também citando Touraine, completa: “isto é, o sujeito é concebido<br />
como uma subjectividade (Stoer, 2001:260) “e não como um agente na implementação de uma<br />
necessidade histórica (Touraine, 1997:142).<br />
68
a experiência acumulada pelas pessoas na cidade em que moravam pois, assim,<br />
estaríamos valorizando o reconhecimento da “sabedoria de classe da cultura<br />
popular, estaremos re-conhecendo a linguagem dessa cultura em seu papel<br />
fundamental de conhecimento-de-si desses seres humanos.” (<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, in: Saul,<br />
1990:57).<br />
É por isso que, hoje, entendemos Escola Cidadã no contexto de um<br />
movimento que busca, sobretudo, a construção de um currículo consubstanciado na<br />
cultura “que vá para além de uma abordagem enciclopédica da organização do<br />
conhecimento como genérico e especializado, divorciado das formações sociais<br />
humanas, da história e da cultura, para uma que facilite a interpretação<br />
interdisciplinar da realidade”. (Torres et al, 2002:118). Diríamos mais: hoje, busca-<br />
se, no contexto do Movimento da Escola Cidadã, a construção de um currículo que<br />
trabalhe para além, inclusive, da própria concepção interdisciplinar pois, desta<br />
maneira, a ênfase deixará de ser a disciplina ou a sua interação, para passar a ser<br />
relacionada à cultura, às relações, interações e diferentes trocas intertransculturais.<br />
É esta perspectiva que estamos trabalhando ao realizarmos o presente resgate de<br />
experiências relacionadas com o currículo da escola.<br />
O Movimento da Escola Cidadã reorienta novas possibilidades educacionais e<br />
a sua referência é a experiência da escola pública popular. A Escola Cidadã se<br />
consolida e se caracteriza por visar à formação para a cidadania. Essas<br />
experiências, quase invariavelmente, apresentam os seguintes eixos centrais – que,<br />
desde já, consideramos como sendo os principais eixos do currículo da Escola<br />
Cidadã: 1. Princípios de Convivência e aprendizagem em rede; 2. Gestão<br />
democrática; 3. Currículo; Ciclos e Avaliação. A Escola Cidadã pressupõe uma nova<br />
qualidade de ensino para a escola pública, geralmente ressignificando o currículo<br />
com base numa postura dialógica, que valoriza todos os conhecimentos<br />
historicamente acumulados pela humanidade, ao mesmo tempo que incentiva a<br />
construção de novos conhecimentos, respeitando justamente essa cultura<br />
acumulada, mas superando a antiga dicotomia universalismos versus<br />
particularismos. E como são, em sua maioria, experiências em processo,<br />
apresentam diferentes configurações, diferentes “identidades”, apesar de ter<br />
princípios comuns.<br />
69
A partir do ano de 2001, o <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, instituição não<br />
governamental fundada há 10 anos para dar continuidade ao legado de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>,<br />
tem promovido e organizado os encontros da Escola Cidadã, dentro do Fórum<br />
Mundial de Educação.<br />
O Fórum Mundial de Educação, realizado de 24 a 27 de outubro de 2001,<br />
em Porto Alegre, reuniu cerca de 15.000 pessoas. Dentre os objetivos deste Fórum,<br />
aconteceram diversas conferências, debates temáticos e especiais, que procuraram<br />
contemplar diferentes concepções educacionais que têm fundamentado diferentes<br />
práticas político-pedagógicas implementadas em todo mundo. Cerca de 800<br />
trabalhos foram apresentados durante este Fórum, além de 29 eventos simultâneos<br />
sobre os mais variados assuntos, modalidades e níveis de ensino, desde a<br />
educação infantil ao ensino superior, arte-educação, inclusão social, discriminação,<br />
mundo acadêmico, entre outros, sempre pensando alternativas ao modelo neoliberal<br />
de Educação e apresentando práticas concretas que comprovam o aumento da<br />
participação na busca de soluções para os problemas do mundo atual. Nele, tivemos<br />
conhecimento de experiências de políticas públicas educacionais que visaram à<br />
construção de uma escola para todos, porque pública e popular. 18<br />
Participamos do Fórum Mundial de Educação e, especialmente, da<br />
coordenação, no dia 26 de outubro de 2001, do I Encontro Nacional das Escolas<br />
Cidadãs (I ENEC), um encontro que visou a fortalecer o Movimento da Escola<br />
Cidadã como ação propositiva de gestão de política pública educacional, que seja ao<br />
mesmo tempo alternativa à proposta de educação neoliberal e que tenha por<br />
referência os princípios da Escola Cidadã.<br />
Dentre os objetivos do I ENEC, enfatizamos o de discutir uma reconversão<br />
cultural frente à cultura neoliberal da mercoescola 19 , discutir a identidade e o sentido<br />
sócio-cultural, político e pedagógico da Escola Cidadã. Para tanto, foram convidadas<br />
a participar deste Encontro várias práticas e experiências das “Escolas Cidadãs” de<br />
todo o Brasil. Entre as experiências relacionadas, destacamos as dos Municípios de<br />
Constantina-RS (especialmente a atenção dada ao diálogo, o respeito às diferenças<br />
e ao trabalho coletivo); Barão de Cotegipe-RS (registro de aprendizagens complexas<br />
18 Ver: Jornal do Fórum Mundial de Educação. Porto Alegre, 24 a 27 de outubro de 2001.<br />
Programação www.forummundialdeeducacao.com.br<br />
19 A mercoescola, segundo José Clóvis de Azevedo, procura “organizar-se dentro da lógica<br />
empresarial voltada às necessidades de mercado (...) onde o currículo é visto como uma estratégia<br />
para integrar as novas gerações às demandas do mercado”. (1995:30).<br />
70
voltadas para a realidade dos sujeitos e para a reestruturação curricular a partir do<br />
trabalho por Tema Gerador); Goiânia-GO (ênfase à problemática da identidade<br />
cultural e compreensão do conhecimento como construção conjunta dos educadores<br />
e dos educandos); Cachoeirinha-RS (atenção especial à construção de uma<br />
educação intercultural, com respeito à identidade e à diversidade cultural dos<br />
participantes de todo o complexo escolar e comunitário); Porto Alegre-RS (afirmação<br />
do currículo escolar e do Projeto político-pedagógico da escola a partir de um<br />
trabalho interdisciplinar que transcenda o espaço físico da escola e estabeleça um<br />
intercâmbio com as demais instituições da sociedade, contemplando as<br />
manifestações artísticas e culturais da comunidade escolar e fora dela; um currículo<br />
que acolha a diversidade, que explicite e trabalhe estas diferenças e que garanta a<br />
todos o seu lugar e a valorização de suas especificidades, ao mesmo tempo em que<br />
aproveita o contato com essas diferenças para questionar o seu próprio modo de<br />
ser); Alvorada-RS (resgate da identidade com ações individuais e coletivas na busca<br />
da participação para transformação da realidade/trabalho interdisciplinar com base<br />
nos “Complexos Temáticos” e na valorização da arte, no respeito aos direitos<br />
humanos e à educação para a paz); Caxias do Sul-RS (resgate dos valores<br />
humanos e construção de um currículo que contemple questões atuais, a<br />
interdisciplinaridade, as manifestações culturais da comunidade), Ipatinga-MG<br />
(ênfase ao respeito ao ritmo diferenciado dos educandos, à formação ampla do<br />
desenvolvimento integral, às experiências dos alunos, respeito ao grupo e à<br />
diversidade cultural dos sujeitos). 20<br />
Todas as práticas citadas fazem parte do Movimento da Escola Cidadã que,<br />
no seu conjunto, apresenta as características marcantes de um fazer em processo.<br />
Reiteramos que os objetivos específicos tanto dos Fóruns realizados em<br />
Porto Alegre-RS, como também do próprio movimento são, entre outros, levantar e<br />
reunir experiências das “Escolas Cidadãs” no Brasil, identificadas com os princípios<br />
acima definidos e com o “Novo Decálogo da Escola Cidadã”, ampliar a rede de<br />
comunicação das Escolas Cidadãs no país e fora dele, bem como constituir um<br />
20 Inscreveram-se no I Encontro Nacional das Escolas Cidadãs, em 26.10.2001, os seguintes<br />
Municípios: Campinas-SP, Bagé-RS, Constantina-RS, Barão de Cotegipe-RS, Goiânia-GO,<br />
Cachoeirinha-RS, Porto Alegre-RS, Blumenau-SC, Medianeira-PR, Cachoeiro de Itapemirim-ES,<br />
Dionísio Cerqueira-RS, Ipatinga-MG, Coelho Neto-MA, Anchieta-RS, Uberaba-MG, Marabá-PA,<br />
Osasco-SP, Chapecó-RS, Minas Gerais-MG, além de relatos de experiências individuais, incluindo<br />
pesquisas acadêmicas que vêm sendo realizadas.<br />
71
Comitê Executivo das Escolas Cidadãs para a realização de outros encontros,<br />
criando possivelmente um Fórum Nacional Permanente das Escolas Cidadãs, que<br />
conta com a coordenação nacional e internacional do <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>/São<br />
<strong>Paulo</strong>, do qual somos membros.<br />
Partimos do processo de reorientação curricular do município de São <strong>Paulo</strong><br />
(1989-1992), com o objetivo de estabelecer indicadores concretos que nos ajudem a<br />
sistematizar e a refletir sobre a prática do currículo da Escola Cidadã. Diversas<br />
experiências da Escola Cidadã já têm obtido êxitos em diferentes municípios e<br />
cenários educacionais no nosso país (Gadotti, 2000c).<br />
No II Fórum Mundial da Educação, foi selado o compromisso mundial por uma<br />
Escola Cidadã, consignado na Declaração de Porto Alegre, de 22 de janeiro de<br />
2003. O compromisso I desta Declaração, estabelece<br />
como utopia pedagógica, a Escola Cidadã, dever do Estado, sob controle social,<br />
construída por todos e todas, constituindo-se de um currículo intermulticultural –<br />
portanto, não indiferente às diferenças – potencializadora de vivências democráticas,<br />
com processos de avaliação emancipadora e produtora de conhecimentos que preparem<br />
todos os seres humanos para o protagonismo ativo, nos contextos específicos de seus<br />
respectivos processos civilizatórios. Fazem parte desta utopia o desenvolvimento e o<br />
apoio a todas as formas de movimentos pela Educação Popular – propulsora do<br />
processo de transformação política, econômica e cultural da sociedade.<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> considera que “uma das primordiais tarefas da pedagogia crítica<br />
radical libertadora é trabalhar a legitimidade do sonho ético-político da superação da<br />
realidade injusta” (id., 2000:43). Se considerarmos a possibilidade da presença de<br />
qualquer tipo de violência na escola ou na sala de aula, estaremos diante de um<br />
problema que pressupõe algum grau de injustiça e que, portanto, precisa ser<br />
enfrentado, analisado, estudado e superado como parte do currículo da escola.<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> nos ensina a lutar pelos direitos humanos quando fala que a sua justa<br />
ira se fundamenta na “negação do direito de ‘ser mais’ inscrito na natureza dos seres<br />
humanos” (ib.: 2000:79). Ou quando afirma: “não junto a minha voz à dos que,<br />
falando em paz, pedem aos oprimidos, aos esfarrapados do mundo, a sua<br />
resignação. Minha voz tem outra semântica, tem outra música. Falo da resistência,<br />
da indignação, da ‘justa ira’ dos traídos e dos enganados. Do seu direito e do seu<br />
72
dever de rebelar-se contra as transgressões éticas de que são vítimas cada vez<br />
mais sofridas.” (<strong>Freire</strong>, 1997b: 113-14). Certamente, a “justa ira” jamais poderia ser<br />
confundida, em <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, com a violência, porque esta questiona justamente<br />
qualquer transgressão ao direito e à ética. E rebelar-se contra tais transgressões<br />
não significa agredir. Por isso, a violência, que não é característica inata, mas uma<br />
criação cultural da humanidade, jamais pode ser compreendida como algo natural ou<br />
equivalente ao desejo de justiça.<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, convida-nos a lutar contra a impunidade, contra qualquer tipo de<br />
violência, “contra a mentira e o desrespeito à coisa pública” (id., 2000:61), ou contra<br />
a falta de escola, de casa, de teto, de terra, de hospitais, de transporte, de<br />
segurança ou, ainda, contra a falta de esperança plantada pela ideologia neoliberal.<br />
Desafia-nos a enfrentar a insensatez dos poderosos, que tentam a todo custo, todos<br />
os dias, em todos os espaços da sociedade, desde a família à utilização dos mais<br />
modernos recursos tecnológicos, naturalizar a miséria, a pobreza, e,<br />
disfarçadamente, impedir “a briga em favor dos direitos humanos, onde .quer que ela<br />
se trave. Do direito de ir e vir, do direito de comer, de vestir, de dizer a palavra, de<br />
amar, de escolher, de estudar, de trabalhar. Do direito de crer e de não crer, do<br />
direito à segurança e à paz” (<strong>Freire</strong>, 2000:130). E completaríamos... do direito ao<br />
emprego digno, à sobrevivência digna, ao trabalho, à escola e à sociedade, que<br />
respeitem plenamente a pessoa humana e que não se conformam em conviver com<br />
a banalização e com a naturalização da violência.<br />
Em seu último livro, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática<br />
educativa (1997b), <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> nos oferece uma espécie de síntese de suas<br />
reflexões ao longo de sua andarilhagem pelo mundo. Recordamo-nos que, em sua<br />
casa, ao recebermos o texto original desta obra, para que a mesma fosse<br />
organizada em capítulos pela equipe do <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, ele nos falava de sua<br />
vontade de que Pedagogia da autonomia pudesse ser lido pelo maior número<br />
possível de pessoas, principalmente no Brasil. Daí o seu interesse específico que<br />
fosse feita uma “edição de bolso”, a preços bem populares. Ele pretendia que<br />
educadoras e educadores, alunas e alunos e todas as pessoas interessadas<br />
pudessem ter acesso às suas idéias e às reflexões que, durante anos, vinham sendo<br />
por ele e por outras pessoas semeadas, regadas, cultivadas, vivenciadas,<br />
apreendidas, transformadas e atualizadas.<br />
73
O “pequeno grande livro” confirmou o anunciado caráter de síntese. Nele<br />
encontramos inúmeras categorias-chave do pensamento e da obra de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>,<br />
das quais ele nos falava com muita humildade, desejoso de poder contribuir ainda<br />
mais com a educação dos excluídos e de todas as pessoas que, como ele,<br />
enxergam o “futuro como problema e não como inexorabilidade e o saber da História<br />
como possibilidade e não como determinação” (<strong>Freire</strong>, 1997b:85). Como <strong>Freire</strong>,<br />
acreditamos que “mudar é possível” e que a tradução dos direitos humanos em<br />
conquistas concretas e efetivas, de grande alcance social, é um desafio de toda a<br />
sociedade que, certamente, passa também pela educação formal e não formal, em<br />
todos os seus níveis.<br />
No livro Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do<br />
oprimido (1994a), confirma-se também a preocupação do autor com a educação de<br />
toda a classe trabalhadora:<br />
A formação da classe trabalhadora, na perspectiva progressistamente pós-<br />
moderna, democrática, em que me ponho, lhe reconhece o direito de saber como<br />
funciona sua sociedade, de conhecer seus direitos, seus deveres; de conhecer a história<br />
da classe operária; o papel dos movimentos populares na refeitura mais democrática da<br />
sociedade (<strong>Freire</strong>, 1994b: 133).<br />
Ao falar das exigências do ensinar e do aprender, <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> se preocupa<br />
não apenas com conteúdos, nem tampouco somente com a metodologia de ensino.<br />
Pare ele, “o diálogo pedagógico implica tanto o conteúdo ou objeto cognoscível em<br />
torno de que gira quanto a exposição sobre ele feita pelo educador ou educadora<br />
para os educandos” (<strong>Freire</strong>, 1994b:118). Utilizando como exemplo o próprio livro<br />
Pedagogia da Autonomia, o autor nos mostra a necessidade de superação dessas<br />
dicotomias, falando-nos da rigorosidade metódica da prática educativa e da relação<br />
dialética e dialógica entre ensino e pesquisa, “que-fazeres (que) se encontram um<br />
no corpo do outro” (id., 1997:32). Isso, para nós, aponta para a existência de um<br />
currículo na perspectiva da intertransculturalidade.<br />
Não cabe ao objetivo deste estudo uma análise de cada um dos saberes<br />
necessários à prática educativa sugeridos por <strong>Freire</strong> em Pedagogia da autonomia.<br />
Interessa-nos destacar aqui a relação direta que alguns desses saberes têm com<br />
74
uma educação que trabalha e contempla, no seu cotidiano, os Direitos Humanos, a<br />
relação cultural, a necessidade do respeito à diferença e à diversidade cultural das<br />
pessoas e entre os grupos de pessoas. Estes saberes, entre outros, são fundantes<br />
no pensamento freiriano e têm sido referência na ação educadora daqueles e<br />
daquelas que pretendem continuar e reinventar <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, responsabilidade de<br />
todos nós, por uma educação que antes de tudo exige que queiramos bem aos<br />
nossos educandos e que os respeitemos, tanto na relação entre pessoas, como na<br />
relação específica entre educador e educando, que se estabelece necessariamente<br />
durante o processo de ensino e de aprendizagem.<br />
A concepção de educação proposta por <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, ou seja, uma educação<br />
libertadora e transformadora, experimentada e comprovada na sua práxis como<br />
educador e homem público, dá-nos condições de pensar sobre quais os tipos de<br />
conteúdos e metodologias que o autor propõe em suas pedagogias (do oprimido, da<br />
esperança, da autonomia, da indignação) e, por conseguinte, que ele entendia a<br />
educação como direito entre outros direitos.<br />
Querer bem ao educando significa que o educador, “permanecendo e<br />
amorosamente cumprindo o seu dever, não deixe de lutar politicamente, por seus<br />
direitos e pelo respeito à dignidade de sua tarefa, assim como pelo zelo devido ao<br />
espaço pedagógico em que atua com seus alunos” (<strong>Freire</strong>, 1997b:161).<br />
Perguntaríamos: como alguém que não se respeita, que não respeita os seus<br />
próprios direitos, que às vezes nem os conhece e que não luta por eles, poderia<br />
ensinar outro alguém sobre o exercício de algum direito ou sobre qualquer outro<br />
conteúdo de forma crítica e emancipadora? Ou, como alguém desacostumado a<br />
lutar, pode conhecer o sabor da luta ou da possível vitória? Ou, ainda, como um<br />
professor que se deixa vencer pela rotina, por mais dura que ela possa ser, pode<br />
contribuir para a formação de sujeitos que exerçam plenamente a sua cidadania e<br />
saibam lutar e defender os seus direitos civis, sociais e políticos?<br />
Outros saberes mencionados por <strong>Freire</strong> que também nos servem como<br />
indicadores de uma educação que nos ensina a lutar pelos nossos direitos e a tornar<br />
o processo educativo mais plenamente humano – enquanto criação cultural – são,<br />
por exemplo, a criticidade, a estética, a ética, o respeito aos saberes dos educandos,<br />
a consciência do inacabamento da pessoa humana, a alegria, o diálogo, a<br />
esperança, a dinâmica entre liberdade e autoridade, o significado da compreensão<br />
75
da educação enquanto intervenção humana, entre outras categorias e idéias-chave<br />
que por tantos anos estiveram presentes em sua práxis, entendida enquanto ação<br />
transformadora.<br />
Este olhar sobre alguns dos ensinamentos de <strong>Freire</strong> não pode prescindir do<br />
reconhecimento, na sociedade e nos espaços onde a educação acontece, da<br />
presença da multiculturalidade. Esta, segundo ele,<br />
não se constitui na justaposição de culturas, muito menos no poder exacerbado de uma<br />
sobre as outras, mas na liberdade conquistada, no direito assegurado de mover-se cada<br />
cultura no respeito uma da outra, correndo risco livremente de ser diferente, sem medo<br />
de ser diferente, de ser cada uma ‘para si’, somente como se faz possível crescerem<br />
juntas e não na experiência da tensão permanente, provocada pelo todo-poderosismo de<br />
uma sobre as demais, proibidas de ser (<strong>Freire</strong>, 1994b:156).<br />
A multiculturalidade é criação histórica e, como tal, exige de todos nós o<br />
estabelecimento democrático e coletivo de fins comuns para uma convivência ética.<br />
Nesse sentido, a educação é instância propícia e espaço privilegiado para a<br />
realização da convivência e das trocas entre as diferentes culturas, o que se torna<br />
possível com a criação de espaços interculturais onde a multiculturalidade se fará<br />
presente e, por conseguinte, estabelecerá, num primeiro momento, o que <strong>Freire</strong><br />
chama de “unidade na diversidade” (<strong>Freire</strong>, 1994: 157) e, num segundo instante, a<br />
luta pela construção de uma sociedade que fale de paz mas que, para tanto, antes<br />
dela e mesmo como seu pressuposto, faça justiça. Este movimento nos direciona à<br />
construção de um currículo intertranscultural, como forma de melhor compreender,<br />
organizar e ampliar esta dinâmica. Isto porque se pensarmos, por exemplo, nas<br />
dimensões didático-metodológicas deste currículo, estaremos combinando<br />
diferentes propostas de ação, ênfases curriculares, abordagens e situações<br />
diferenciadas de encontros, nos Círculos de Cultura – que ampliem a nossa própria<br />
visão de conhecimento e de aprendizagem, superando as simples combinações de<br />
estratégias disciplinares diferenciadas, ou ênfases a estas ou a outras perspectivas<br />
de olhares sobre a própria cultura dos alunos. Estaremos pensando sempre na<br />
perspectiva de uma possibilidade “e” outra e não mais de uma “ou” outra.<br />
76
Importa enfatizar o nosso olhar atento à globalização atual que, nas palavras<br />
do Professor João Francisco de Souza,<br />
provocadora das diversas transculturalizações que vêm se verificando nos últimos<br />
quinhentos anos, especialmente ao longo dos últimos 50, não provoca uma unidade na<br />
diversidade de culturas, mas configura uma diversidade cultural ou pluriculturalidade que<br />
tende, predominantemente, à fragmentação cultural como tem sido identificada por<br />
vários pesquisadores, entre eles Wallerstein (1996), Weviorka (1999), Ianni (2000) e o<br />
próprio <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> (1992, 1996). Os diferentes movimentos sociais têm denunciado<br />
permanentemente essa problemática, como, por exemplo, os protestos por ocasião de<br />
diferentes reuniões internacionais. (Souza, 2002:139-140).<br />
Moacir Gadotti em seu livro intitulado Um legado de esperança (2001:78-81),<br />
afirma que a “validade universal de teoria e da práxis de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> estaria ligada<br />
sobretudo a quatro intuições originais”:<br />
1ª - Ênfase nas condições gnosiológicas da prática educativa – em que<br />
educar é conhecer, ler o mundo, para poder transformá-lo.<br />
2ª - Defesa da educação como ato dialógico – em que se defende uma<br />
educação ao mesmo tempo rigorosa, intuitiva, imaginativa, afetiva e, portanto,<br />
comunicativa.<br />
3ª - A noção de ciência aberta às necessidades populares – e por<br />
conseguinte uma educação voltada às questões sociais e muito concretas tais como<br />
trabalho, emprego, pobreza, fome, doença etc.<br />
4ª - O planejamento comunitário, participativo, a gestão democrática e a<br />
pesquisa participante – que se traduz nas experiências educacionais atuais, que têm<br />
tido grande impacto em diferentes localidades e comunidades brasileiras, como é o<br />
caso do Movimento da Escola Cidadã.<br />
Estas quatro “intuições originais” de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, tão bem captadas pelo<br />
Professor Gadotti a partir de sua convivência, não apenas com a obra e com o<br />
pensamento de <strong>Freire</strong>, mas também de uma relação pessoal e profissional, muito<br />
próxima, por mais de 20 anos, oferecem-nos indicadores importantes para que<br />
possamos discutir e aprender com uma práxis, sempre coerente. E esta experiência-<br />
77
convivência-relação nos ensina, ainda, a valorizar princípios que considerem a<br />
pessoa “um ser da intervenção no mundo (...) e, por isso mesmo, (alguém) que deve<br />
deixar suas marcas de sujeito e não pegadas de puro objeto” (<strong>Freire</strong>, 2000:119).<br />
Com base nesses pressupostos, podemos inferir que o estabelecimento das<br />
relações humanas nas escolas acontece, sobretudo, a partir da sala de aula, mas a<br />
ela não se limita. Até porque o exercício da aprendizagem da solidariedade<br />
emancipadora, o desejo e a luta pela justiça e pelo respeito aos direitos das<br />
pessoas, se (re) constrói no cotidiano das relações humanas na unidade escolar e<br />
fora dela. Ao pensarmos no currículo da escola, estes aspectos significam uma<br />
importante dimensão a ser considerada e, certamente, aprofundada no contato e<br />
nas relações de aprendizagem e de ensino que ali são estabelecidas, e nos<br />
diferentes espaços e tempos político-pedagógicos do processo educacional.<br />
Souza,<br />
Conforme também nos lembra e muito bem observa o Prof. João Francisco de<br />
a pedagogia do oprimido, do saber, da esperança, da autonomia, ou seja, a obra de<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> propõe uma compreensão integral do ser humano e de sua cultura, da<br />
sociedade e da história, como possibilidades e não fatalidades, que engloba as ações, as<br />
idéias, as emoções de todos os homens e mulheres em todas as idades e condições,<br />
inclusive a luta pela construção da humanidade do ser humano na sua integralidade,<br />
individual e coletiva, econômica, política e gnosiológica. (2002:201). Grifos nossos.<br />
A Pedagogia de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, que hoje se traduz em inúmeras outras<br />
pedagogias, tem sido lembrada não apenas como grande inspiradora de novas<br />
ações e projetos, mas como um corpo de conhecimentos, como uma filosofia e uma<br />
práxis que nos convidam permanentemente a reinventá-la e a nos reinventarmos<br />
durante e ao final de cada novo encontro, de cada nova experiência. Ela sugere que<br />
se possa continuar sonhando e pensando o planeta como uma única comunidade,<br />
como <strong>Freire</strong> escreveu em suas últimas obras, na década de 90.<br />
O alcance das observações do professor João Francisco sobre a obra de<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> é de extrema importância, na medida em que nos mostra que a práxis<br />
freiriana, como “ação transformadora”, procura sempre uma coerência que<br />
transcende os limites da razão ou da emoção. Nesse sentido, compreender<br />
78
integralmente a pessoa, o ser humano, incentiva a busca da construção de uma<br />
educação também plena, sobretudo voltada para a emancipação social, política,<br />
cultural e econômica de todas as pessoas, sem distinção. E, nesse processo, a<br />
educação e a escola, em particular, têm uma importância incomparável e<br />
inquestionável. E, por conseguinte, o currículo que estaremos construindo nesta<br />
instituição e em todos os espaços educacionais da sociedade.<br />
Novamente recorrendo a Moacir Gadotti, responsável mais direto, ao lado de<br />
José Eustáquio Romão, pela articulação e ampliação da Escola Cidadã em nível<br />
nacional e internacional, esta escola, bem como a ecopedagogia – esta pedagogia<br />
ética, estética, voltada para a construção de uma sociedade sustentável –<br />
“sustentam-se no princípio de que todos, desde crianças, temos um direito<br />
fundamental de sonhar, de fazer projetos, de inventar, como pensavam Marx e<br />
<strong>Freire</strong>” (Gadotti, 2001:100). Participamos intensamente deste movimento e desta<br />
reconstrução. Esta “esperança sem espera” tem inspirado o trabalho de várias<br />
gerações de educadores/as, entre os quais nos colocamos, com a perspectiva de<br />
superar os desafios que a escola pública tem nos apresentado a cada dia e de<br />
contribuir para que elas assumam o compromisso e o desafio da construção do seu<br />
currículo intertranscultural e, assim, viabilizando a organização da escola pública<br />
mais popular, democrática e aberta – uma verdadeira escola cidadã.<br />
A Escola Cidadã, cujas raízes estão no movimento de educação popular,<br />
como vimos, e na experiência da gestão de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> à frente da Secretaria<br />
Municipal de São <strong>Paulo</strong>, onde pôde ser vivenciada em suas possibilidades e em<br />
seus problemas, enquanto movimento continua aperfeiçoando os seus pressupostos<br />
e as suas práticas.<br />
A Escola Cidadã caracteriza-se também pelo uso das novas tecnologias em<br />
educação, aproveitando esses recursos numa perspectiva dialógica e<br />
transformadora. Revela, em suas práticas e reflexões, a preocupação com a<br />
educação sustentável para a sobrevivência do planeta e defende a ecopedagogia<br />
como alternativa para uma educação ética que promove a vida e a solidariedade<br />
planetária. Nesse sentido, é projeto de vida, mais do que um projeto de uma escola.<br />
Ele valoriza e respeita as pessoas em sua autonomia individual, com base na qual<br />
se constrói a autonomia coletiva. Além de projeto institucional, o movimento da<br />
Escola Cidadã é projeto pessoal articulado aos projetos da coletividade e da<br />
79
construção de uma Sociedade Cidadã. Daí, talvez, a sua força e o seu crescimento<br />
nos últimos dez anos.<br />
A Escola Cidadã defende a educação permanente de todas as pessoas –<br />
durante a vida inteira – e a educação continuada aos diversos segmentos<br />
escolares, conforme a necessidade do projeto que constróem. Sempre visando à<br />
formação de pessoas-profissionais-educadores/as autônomos/as, que assumam<br />
plenamente os projetos de suas escolas e de suas comunidades. Por isso é que<br />
cada Escola Cidadã tem as suas próprias características, de acordo com a sua<br />
realidade local: ela respeita as características histórico-culturais, os ritmos e as<br />
conjunturas específicas de cada comunidade, sem perder de vista a dimensão global<br />
do mundo em que vivemos – ou seja, a sua dimensão “glocal” 21 . A Escola Cidadã,<br />
ainda que possua eixos, princípios e diretrizes, não é uniforme. Em cada lugar,<br />
possui uma “cara”, uma “identidade” específica, de acordo com a sua realidade local.<br />
Se pensarmos, a partir do termo glocal, especificamente em relação ao<br />
currículo da escola, consideramos que o mesmo deveria incluir não apenas o que<br />
acontece no âmbito mais próximo à escola (dimensão local, intra-muros escolares)<br />
mas, também, tudo o que se passa no entorno escolar e junto à sua comunidade. E,<br />
além disso, o currículo da escola incluiria os saberes e o que se passa no mundo em<br />
que vivemos, ou seja, na dimensão globalizada, planetária. Dessa forma, falaríamos<br />
num currículo aberto, não restrito apenas à perspectiva particularista nem,<br />
tampouco, à dimensão universalista, revelando, assim, o seu caráter híbrido,<br />
conforme discutiremos no capítulo 5.<br />
No cotidiano da Escola Cidadã, o processo de aprendizagem, de ensino e de<br />
formação para o desenvolvimento da pessoa é dinâmico; considera emoção e razão<br />
21 O termo “glocal” representa a junção das palavras “global” com “local”. A este respeito escreve<br />
Moacir Gadotti que “o processo de globalização está mudando a política, a economia, a cultura, a<br />
história etc., portanto, também a educação. É um tema que deve ser enfocado sob vários prismas. A<br />
globalização remete, também, ao poder local e às conseqüências locais da nossa dívida externa<br />
global (e da dívida interna também). O global e o local se fundem numa nova realizade: o glocal. O<br />
estudo dessa categoria nos remete à necessária discussão do papel dos Municípios e do regime de<br />
colaboração nas perspectivas atuais da educação básica. Para pensar a educação do futuro, é<br />
preciso refletir sobre o processo de globalização da economia, da cultura e das comunicações.<br />
(2000:XIV). Encontramos também uma outra explicação para o termo glocal. Trata-se de um<br />
“neologismo para designar a conjunção entre a instância global e local, tanto na educação quanto na<br />
política. Uma síntese feliz é a educação glocal. De fato, não tem mais sentido contrapor as duas<br />
tendências, porque as duas têm elementos de verdade” (Latouche, 1999. In: Nanni & Abbruciati,<br />
1999: 46)<br />
80
como aspectos importantes para a construção dos conhecimentos e formação da<br />
inteligência humana, sem dicotomizá-las nem subordiná-las uma a outra.<br />
O trabalho realizado nessa perspectiva fundamenta-se na experiência feita de<br />
alunos/as, professores/as e de toda a comunidade escolar. Parte dos saberes, dos<br />
valores, dos sentimentos, da visão de mundo e da natureza humana das pessoas<br />
que, coletiva e democraticamente, elaboram, com alegria e com responsabilidade, o<br />
projeto político-pedagógico da escola, dando ênfase à gestão democrática da escola<br />
pública, à proposta pedagógica, ao currículo definido com base na “leitura de<br />
mundo”, num trabalho interdisciplinar e no que chamamos de “transversalidade<br />
cidadã” (Padilha, 2000a). Esse conjunto de ações articuladas nega e combate o<br />
preconceito, o autoritarismo, o descaso com a coisa pública, o riso disfarçado e, às<br />
vezes, irônico, de quem resiste porque teme as mudanças, ou então, porque é<br />
mesmo ideologicamente situado a favor da manutenção do status quo e, por<br />
conseguinte, da injustiça social. Como nos ensinou <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, ou somos a favor<br />
do oprimido – e a ele nos associamos em nossa luta diária – ou somos contra ele.<br />
Como vemos, a Escola Cidadã, em sua coerência e em sua lógica, contrapõe-<br />
se à escola capitalista, esta escola que cria toda uma estrutura burocrática e<br />
hierarquizada para manter e ampliar a exclusão não só educacional mas,<br />
principalmente, social. Ao contrário da perspectiva capitalista, infelizmente ainda<br />
hegemônica, as experiências já acumuladas pela Escola Cidadã ou pelas escolas<br />
progressistas que têm por referência o mesmo universo de princípios filosóficos,<br />
políticos e pedagógicos, trabalham para e pela inclusão, formando as pessoas, ao<br />
invés de “enformá-las” ou de “formatá-las”.<br />
Com base na nossa experiência acompanhando as propostas de Escola<br />
Cidadã por vários municípios brasileiros e também nos registros que temos feito<br />
durante os encontros nacionais e internacionais da Escola Cidadã, é possível<br />
destacar algumas características e resultados deste processo: uma escola mais<br />
alegre e mais feliz; redução substantiva da evasão escolar; diminuição dos índices<br />
de repetência; um processo didático-pedagógico que estabelece uma nova relação<br />
entre alunos e professores, e a melhoria da qualidade do ensino, da aprendizagem e<br />
da formação humana, seja nos aspectos dos conhecimentos apreendidos e<br />
produzidos, seja no que se refere ao exercício pleno da cidadania ou, ainda, no que<br />
81
se refere ao estabelecimento de relações humanas solidárias, éticas, voltadas para<br />
o uma educação da cultura da paz e da sustentabilidade.<br />
O Movimento da Escola Cidadã pressupõe a formação de cidadãs e de<br />
cidadãos no cotidiano escolar, num clima de respeito e de diálogo, em que todos<br />
aprendem e ensinam em comunhão (em comunidade). Este processo acaba<br />
rejuvenescendo a própria escola e os seus professores, pois, quando respeitamos<br />
os ritmos diferenciados dos/as alunos/as, o contexto em que vivem, bem como a<br />
diversidade e a multiculturalidade presentes na sala de aula ou no “círculo de<br />
cultura”, acabamos por criar espaços para novas aprendizagens coletivas e para<br />
novas trocas interculturais. Além disso, já temos observado em nossos estudos e<br />
pesquisas que a participação dos segmentos escolares na construção da Escola<br />
Cidadã tem sido sempre maior quanto maior se tornam as trocas às quais nos<br />
referimos acima, porque elas valorizam as diferentes formas de expressão, de<br />
manifestação e de representações simbólicas dos sujeitos envolvidos direta ou<br />
indiretamente com a escola.<br />
Conforme depoimento de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, registrado pelos professores Moacir<br />
Gadotti e José Eustáquio Romão (1997d), a Escola Cidadã vive a experiência tensa<br />
da democracia e defende, no que se refere aos processos participativos<br />
relacionados à gestão escolar (em todas as suas dimensões), a decisão coletiva das<br />
comunidades sobre o destino da escola pública, do bairro, do município, do estado,<br />
do país, do mundo – e portanto da cidade ou da sociedade cidadã com que se<br />
sonha. Por isso, a criação ou a reorganização de colegiados escolares atuantes e<br />
democraticamente comprometidos com a mudança e com a transformação da<br />
escola pública que temos, dá suporte e sustentação democrática ao Projeto da<br />
Escola Cidadã. E isto é um exemplo claro que representa um esforço para construir<br />
parâmetros político-pedagógicos e instrumentos concretos que viabilizem e<br />
contribuam para a universalização do atendimento da educação básica a crianças,<br />
jovens e adultos (democratização do acesso), a permanência na escola com<br />
qualidade de ensino e a democratização da gestão da instituição escolar.<br />
Além da atuação junto à escola formal, este movimento tem avançado, a cada<br />
dia, nos processos não-formais de educação, tentando inclusive quebrar essa<br />
barreira, esta separação, a exemplo de outras experiências já desenvolvidas em<br />
diversas regiões do país pelo movimento de educação popular e comunitária,<br />
82
iniciado na década de 80. Portanto, além dos limites dos muros escolares, a Escola<br />
Cidadã quer contribuir com a busca incessante de uma sociedade justa e solidária,<br />
através do esforço permanente de construção e reconstrução de uma educação de<br />
qualidade, entendida enquanto formadora de cidadãs e cidadãos autônomos,<br />
participativos, felizes e realizados enquanto pessoas e profissionais sensíveis,<br />
criativos, críticos, éticos e comprometidos com a mudança e com a transformação<br />
social nos diversos espaços e tempos do planeta em que vivem.<br />
Pudemos acompanhar até aqui alguns dos princípios fundamentais da<br />
pedagogia freiriana e também da Educação Pública Popular e da Escola Cidadã. Há,<br />
em paralelo, outros movimentos, em nível nacional e internacional, que têm<br />
contribuído em muito para a ampliação dos princípios que servem também a uma<br />
escola pública, popular, democrática e cidadã. Referimo-nos ao Movimento da Carta<br />
da Terra e também à Ecopedagogia. Por isso, vejamos, a seguir, quais as principais<br />
características dos mesmos e quais princípios vêm ao encontro de um currículo da<br />
escola que seja emancipador do ser humano e que reforçará a nossa tentativa da<br />
construção de uma currículo intertranscultural.<br />
A Carta da Terra traduz-se num conjunto de princípios e valores<br />
fundamentais, um código ético planetário que servirá para “sulear” 22 pessoas e<br />
Estados no que se refere à construção de uma cultura da paz e da<br />
sustentabilidade. 23<br />
Gadotti esclarece que<br />
à medida que se desenvolve uma civilização global, podemos escolher edificar um<br />
mundo verdadeiramente democrático, garantindo o cumprimento da lei e os direitos<br />
humanos de todas as mulheres, homens, meninas e meninos. Podemos respeitar a<br />
integridade de diferentes culturas. Podemos tratar a Terra com respeito, rejeitando a<br />
idéia de que a natureza é somente um conjunto de recursos a serem utilizados.<br />
Podemos perceber que nossos problemas sociais, econômicos, ambientais e espirituais<br />
encontram-se interligados e cooperar no desenvolvimento de estratégias integradas para<br />
22 <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> utilizava esta palavra para substituir “nortear”. Ele dizia que ao invés de orientar o<br />
nosso olhar para o Norte, deveríamos olhar mais para o Sul. Como isso, queria demonstrar o quando<br />
ideológica é a linguagem.<br />
23 Além do livro Pedagogia da Terra (Gadotti, 2000b), encontramos o histórico do movimento da Carta<br />
da Terra num documento intitulado “Projeto da Carta da Terra: Ética, cultura da sustentabilidade e da<br />
não-violência”, publicado, em 1999, pelo <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, no formato de um pequeno caderno, e<br />
que apresenta também os passos de uma possível metodologia do Movimento pela Carta da Terra e<br />
a sua Minuta de Referência, com base na Rio+5, realizada em 1997.<br />
83
solucioná-los. Podemos decidir equilibrar e harmonizar os interesses individuais com o<br />
bem comum, a liberdade com a responsabilidade, a diversidade com a unidade, os<br />
objetivos a curto prazo com as metas a longo prazo, o progresso econômico com o<br />
florescimento dos sistemas ecológicos. Para realizar estas aspirações, devemos<br />
reconhecer que o desenvolvimento humano não se trata unicamente de Ter mais, senão<br />
também de ser mais (ib.:203-04).<br />
A Carta da Terra sintetiza seus princípios e valores em quatro grandes eixos:<br />
a vida, a Terra, a justiça e a democracia. Cada eixo contém quatro princípios, como<br />
segue:<br />
pacíficas.<br />
I. RESPEITAR E CUIDAR DA COMUNIDADE DA VIDA<br />
1. Respeitar a Terra e a vida em toda sua diversidade.<br />
2. Cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor.<br />
3. Construir sociedades democráticas que sejam justas, participativas, sustentáveis e<br />
4. Garantir as dádivas e a beleza da Terra para as atuais e as futuras gerações.<br />
II. INTEGRIDADE ECOLÓGICA<br />
5. Proteger e restaurar a integridade dos sistemas ecológicos da Terra, com especial<br />
preocupação pela diversidade biológica e pelos processos naturais que sustentam a vida.<br />
6. Prevenir o dano ao ambiente como o melhor método de proteção ambiental e, quando o<br />
conhecimento for limitado, assumir uma postura de precaução.<br />
7. Adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam as capacidades<br />
regenerativas da Terra, os direitos humanos e o bem-estar comunitário.<br />
8. Avançar o estudo da sustentabilidade ecológica e promover a troca aberta e a ampla<br />
aplicação do conhecimento adquirido.<br />
III. JUSTIÇA SOCIAL E ECONÔMICA<br />
9. Erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental.<br />
10. Garantir que as atividades e instituições econômicas em todos os níveis promovam o<br />
desenvolvimento humano de forma eqüitativa e sustentável.<br />
11. Afirmar a igualdade e a eqüidade de gênero como pré-requisitos para o desenvolvimento<br />
sustentável e assegurar o acesso universal à educação, assistência desaúde e às oportunidades<br />
econômicas.<br />
84
12. Defender, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a um ambiente natural e<br />
social, capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e o bem-estar espiritual,<br />
concedendo especial atenção aos direitos dos povos indígenas e minorias.<br />
IV.DEMOCRACIA, NÃO VIOLÊNCIA E PAZ<br />
13. Fortalecer as instituições democráticas em todos os níveis e proporcionar-lhes<br />
transparência e prestação de contas no exercício do governo, participação inclusiva na tomada de<br />
decisões, e acesso à justiça.<br />
14. Integrar, na educação formal e na aprendizagem ao longo da vida, os conhecimentos,<br />
valores e habilidades necessárias para um modo de vida sustentável.<br />
15. Tratar todos os seres vivos com respeito e consideração.<br />
16. Promover uma cultura de tolerância, não violência e paz.<br />
A Carta da Terra “deverá se constituir no equivalente à Declaração Universal<br />
dos Direitos Humanos” (Gadotti, In: Gutierrez, 1999:21). Ao destacar o valor de<br />
todos os seres humanos, o respeito à vida e à diferença dos indivíduos e dos grupos<br />
e nações, a busca do compartilhar ações responsáveis e o desafio da ampliação e<br />
melhora da herança natural e cultural das diversas gerações, a Carta da Terra lança<br />
um compromisso social e pessoal com a busca de um novo recomeço para a<br />
humanidade.<br />
Quanto falamos de um currículo que poderá ser alegre e prazeroso,<br />
remetemo-nos ao prazer da convivência com a busca da paz, descobrindo no “com-<br />
viver” a alegria das diferentes aprendizagens diárias com as pessoas que são<br />
também diferentes de nós e que nos ensinam sobre elas e sobre nós mesmos,<br />
permitindo-nos ressignificar a própria vida na escola e fora dela, ampliando o<br />
potencial humanizador da instituição escolar e de toda a sociedade, num movimento<br />
favorável à vida em todas as suas dimensões.<br />
É esta busca que constatamos nos documentos e nas propostas de uma<br />
Escola Cidadã, escola que se define aprendente, por permitir combinar os diferentes<br />
sistemas culturais – produtivo, associativo e simbólico – respectivamente<br />
relacionados aos componentes curriculares das ciências naturais, da ciências<br />
sociais, da comunicação e expressão.<br />
A Carta da Terra oferece importantes contribuições para o currículo<br />
intertranscutural, despertando a necessidade do compromisso com a cultura da<br />
85
sustentabilidade, a intensificação da luta pela justiça e pela paz e a alegre<br />
celebração da vida.<br />
Por outro lado, numa dimensão ainda mais ampla, surge a Ecopedagogia. No<br />
contexto da luta por uma cultura da sustentabilidade, uma pedagogia que promove a<br />
aprendizagem significativa, atribuindo sentido às ações cotidianas. Uma pedagogia<br />
da pergunta, democrática e solidária, que nos convida, educadores/as e educandos/<br />
as, a garantir a sustentabilidade de cada um de nossos atos cotidianos como seres<br />
humanos que compartilham com outros seres a aventura de viver neste planeta. 24<br />
Os princípios, valores e temas destacados em diferentes encontros sobre<br />
ecopedagogia, representam desafios para as futuras ações desse movimento. Entre<br />
eles, destacamos: a ética fundamentada na relação de amor; a solidariedade; a<br />
justiça; a paz e a cultura da paz; a felicidade; a responsabilidade; a dignidade; a<br />
emoção; a intuição como forma de conhecimento; a sensibilidade; a ressignificação<br />
e a recriação do conhecimento; a existência de novos espaços e tempos para a<br />
criação e promoção da vida; a sustentabilidade; a planetaridade; o considerar-se a<br />
ecologia como ciência da sinfonia da vida; o meio ambiente; o saber cuidar; a<br />
identidade; a diversidade cultural; o multiculturalismo e as relações interculturais; a<br />
participação ativa e democrática; os movimentos sociais; a cidadania planetária; a<br />
estética e as diferentes manifestações artísticas e lingüísticas; os valores biológicos;<br />
intelectuais; afetivos; ecológicos e religiosos; a espiritualidade; o reconhecimento de<br />
novos paradigmas científicos e a superação de alguns deles; a auto-organização; a<br />
nova relação entre homem-mulher e entre pessoa humana-natureza; as novas<br />
tecnologias; a educação rural e urbana; a “ecosofia”; a “ecoformação”; a promoção<br />
da aprendizagem; as chaves pedagógicas; os novos referentes ecológico-sociais; os<br />
24 Passamos a falar do Movimento pela Ecopedagogia nascido a partir de uma Carta da<br />
Ecopedagogia que o Prof. Moacir Gadotti organizou, com base no livro “Ecopedagogia e Cidadania<br />
Planetária” de Francisco Gutierrez e Cruz Prado (1999). Conforme Gadotti, esta Carta foi submetida<br />
aos primeiros inscritos do I Encontro Internacional da Carta da Terra na Perspectiva da Educação,<br />
organizado pelo <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> com o apoio do Conselho da Terra e da UNESCO (São <strong>Paulo</strong>,<br />
23 a 26 de agosto de 1999). No ano seguinte, nos dias 24, 25 e 26 de março, realizou-se o I Fórum<br />
Internacional sobre Ecopedagogia, na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da<br />
Universidade do Porto, Portugal. Este Fórum representou a concretização de uma utopia, no sentido<br />
de um sonho que se transformou em realidade. Ele teve por referência a Agenda de Compromissos<br />
firmada por ocasião da Eco-92, no Rio de Janeiro (Agenda 21), pela Rio+5 (1997), pela Conferência<br />
Intercontinental das Américas (Cuiabá, 1998) e pelo I Encontro da Carta da Terra (São <strong>Paulo</strong>, 1999).<br />
O livro Ecopedagogia e cidadania planetária, de Francisco Gutiérrez e Cruz Prado (São <strong>Paulo</strong>,<br />
Cortez/IPF, 1999, Guia da Escola Cidadã; v. 3), pioneiro a apresentar o conceito da Ecopedagogia, foi<br />
também lembrado como um dos marcos e fundamentos para as discussões realizadas.<br />
86
espaços pedagógicos e o reconhecimento de que devemos caminhar com sentido,<br />
construindo a Ecopedagogia ao vivenciá-la e ao experimentá-la a cada dia.<br />
Quais seriam as características de um currículo escolar numa perspectiva<br />
ecopedagógica? A nossa resposta é: um currículo intertranscultural, ao mesmo<br />
tempo e, dependendo do contexto e do meta-contexto em que se realize,<br />
interdisciplinar, multidisciplinar ou transdisciplinar. Ele enfatiza a vivência e a<br />
participação como relação pedagógica intercultural, está consubstanciado numa<br />
educação intercultural, possibilita a formação de cidadãos ativos e justos,<br />
acostumados à com-vivência democrática, ética e estética, bem como à<br />
reconstrução do conhecimento com base nas experiências culturais, individuais e<br />
coletivas das pessoas; ele dá sentido ao estudo do conhecimento histórica e<br />
planetariamente acumulado, que possa ser construído e vivenciado coletivamente,<br />
levando-se em conta todas as manifestações e representações da sensibilidade<br />
humana; tem por referência os princípios da justiça, do amor, da solidariedade, do<br />
respeito a todas as formas de vida na Terra. Ela valoriza e respeita a diferença<br />
cultural, trabalha pela inclusão das/os excluídos/as da Terra, e faz a crítica radical da<br />
desigualdade social, política, cultural e econômica. Trata-se de um currículo vivo,<br />
que busca a construção de uma escola mais curiosa, prazerosa e aprendente. Por<br />
isso mesmo, “feito” por pessoas comprometidas com a transformação e com a<br />
mudança das suas próprias histórias e com a reconstrução de um mundo mais<br />
humano. Nesse sentido, temos aqui registradas as características mais marcantes<br />
do currículo intertranscultural, que tem com base o Movimento da Carta da Terra, o<br />
Movimento pela Ecopedagogia e que se traduz no currículo da Escola Cidadã.<br />
Algumas ações imediatas que podem ser incluídas nas escolas, já no contexto<br />
desse movimento, referem-se a atividades e reflexões permanente e diárias, visando<br />
a atitudes sempre abertas a novas aprendizagens, além da orientação do olhar de<br />
todas as pessoas para um pensar planetário além de local, reeducando os sentidos<br />
pessoais e coletivos, o afeto, o cuidado e a capacidade de alimentação dos próprios<br />
sonhos e utopias.<br />
Como podemos observar, o Movimento pela Ecopedagogia está<br />
diretamente vinculado e relacionado ao Movimento da Escola Cidadã, sem que<br />
haja qualquer subordinação um ao outro mas, sim, uma estreita relação de<br />
complementaridade.<br />
87
Juntar todos estes princípios ou, pelo menos, tentar organizá-los<br />
processualmente, é tarefa fundamental de todos/as aqueles que buscam analisar e<br />
refletir sobre quais são as possibilidades, no atual contexto da globalização, da<br />
educação e, por conseguinte, dos próprios currículos das escolas e de todas as<br />
instituições educacionais que procuram contribuir para a formação humana voltada à<br />
emancipação das pessoas. Princípios não mudam a realidade, mas ajudam a<br />
orientar as ações fincadas em laços e bases comuns.<br />
O currículo intertranscultural, que se constrói em cada contexto de acordo<br />
com as relações neles estabelecidas, ao qual passamos a nos referir como sendo a<br />
perspectiva curricular da Escola Cidadã, será consolidado, melhor compreendido e<br />
organizado, na medida em que os diversos sujeitos escolares possam tomar para si<br />
a responsabilidade desta construção história, social, política e cultural, como já tem<br />
feito em diferentes experiências que, agora, passamos a relatar.<br />
O que desejamos mostrar a seguir é que o currículo da Escola Cidadã não<br />
é um recorte ou uma invenção teórica. Ele é práxis, ou seja, ao mesmo tempo teoria<br />
e prática, vivência e processo, experiencias que vão sendo refletidas coletivamente<br />
no entrecruzamento de diversos saberes e olhares. 25<br />
25 Um exemplo concreto do que acabamos de afirmar foi o I Encontro Internacional das Escolas<br />
Cidadãs (I EINEC), realizado durante o II Fórum Social Mundial em Porto Alegre-RS, no período de<br />
31 de janeiro a 05 de fevereiro de 2002, contou com uma mesa formada por educadores com uma<br />
ampla vivência relacionada à experiência da Escola Cidadã, a quem coube analisar os relatos dos<br />
vários municípios que apresentaram as suas experiências. O objetivo deste encontro foi reunir e<br />
organizar experiências nacionais e internacionais da Escola Cidadã. Este I Encontro Internacional das<br />
Escolas Cidadãs (I EINEC), promovido por iniciativa do <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, realizou-se nos<br />
períodos da manhã e tarde do dia 02.02.2002 e foi coordenado por <strong>Paulo</strong> Roberto Padilha e Ângela<br />
Antunes. Contou, em sua organização, com um Comitê Executivo constituído ao final do I ENEC, no<br />
mês de outubro de 2001, formado pelos seguintes membros de organizações governamentais e nãogovernamentais:<br />
Alexandre Virgínio (Alvorada-RS), Maria Margarida Machado e Marisa C. da Costa<br />
Barbosa (Goiânia-GO), Sergio Rafael do Carmo (Estado de Minas Gerais), Rozeunice Pacífico, Sirlei<br />
Marisa Cavalet, Ana Paula Gecg, Silaine Teresinha Panzenhagen e Maria do Carmo Girardi (Caxias<br />
do Sul–RS), Célia Maria das Graças Pedrosa, Lana Kátia Teixeira, Luzineth Faria Alves e Marília<br />
Louzada Melo e Jussara Custódio Godinho (Ipatinga–MG), Cileda dos S. Sant’Anna Perella (São<br />
<strong>Paulo</strong>–SP), Verenice Lipsch (Erexim–RS), Doralice Maria de Farias, Miriam Dalabona, Maria<br />
Aparecida Neiheus (Blumenau –SC), Maria Clara A. Ferraz de Andrade (Rio de Janeiro-RJ), Ana<br />
Felícia Trindade (Alegrete-RS), Andréa Krug e José Clóvis de Azevedo (Porto Alegre-RS), <strong>Paulo</strong><br />
Roberto Padilha, Ângela Antunes, Moacir Gadotti e Salete Valesan Camba (São <strong>Paulo</strong>-SP), José<br />
Eustáquio Romão (Juiz de Fora-MG) e Maria de Lourdes Melo Prais (Uberaba-MG). O I EINEC<br />
contou, ainda, com a participação dos Professores José Clóvis de Azevedo (Porto Alegre-RS), Elvira<br />
de Souza Lima (São <strong>Paulo</strong>-SP) e Azril Bacal (Suécia), que foram ao mesmo tempo relatores e<br />
debatedores dos trabalhos apresentados durante o Encontro. Foram selecionadas experiências<br />
educacionais dos Municípios de Caxias do Sul-RS (Escola com Cidadania – 1. Ciclos de Formação e<br />
2. Programa Vinculação; Erexim-RS; Ipatinga-MG (Escola Desafio); Colatina-ES (Escola de tempo<br />
integral); Goiânia-GO (Política de inclusãop social); Alvorada-RS (Escola Cidadã: uma utopia<br />
possível); São <strong>Paulo</strong>-SP (Formação para a participação); Osasco-SP (Escola Cidadã e a construção<br />
do projeto político-pedagógico). Participaram também da abertura dos trabalhos deste E ncontro os<br />
Professores Moacir Gadotti (FE-USP e IPF-SP), Eliezer Pacheco (então Secretário de Educação de<br />
88
O currículo da Escola Cidadã pressupõe a formação para e pela cidadania<br />
enquanto uma das tarefas principais e centrais não só da escola, mas também da<br />
cidade como um todo. Nesse sentido, a iniciativa do Orçamento Participativo 26 é<br />
emblemática. O OP já é uma marca dos governos populares em todo o Brasil. Com<br />
base nesta perspectiva de enfrentamento dos problemas educacionais e, de forma<br />
mais ampla, dos problemas de todo o município, toda a sociedade contribui para a<br />
definição e clarificação das prioridades da gestão municipal, influenciando na<br />
decisão sobre a aplicação dos recursos públicos em toda a cidade. Dessa forma, a<br />
proposta da “Cidade Educadora” é igualmente oposta ao pensamento neoliberal<br />
hegemônico e tem por referência o pensamento ético, transparente, de participação<br />
popular e de respeito à cidadania, o que é também um pressuposto da Escola<br />
Cidadã. Como vemos, estas características da Escola Cidadã são também da<br />
Cidade Educadora, em que todos os habitantes usufruem das mesmas<br />
oportunidades de formação, desenvolvimento pessoal e de entretenimento que a<br />
cidade oferece. 27<br />
A possibilidade e a luta permanente pela inclusão social, a busca de um<br />
sentido ético, estético, lúdico e prazeroso na escola, na educação e nas<br />
experiências comunitárias, a formação visando à cidadania de crianças, jovens e<br />
adultos, bem como uma ênfase na oferta de espaços, de equipamentos e de<br />
serviços adequados ao desenvolvimento social, moral e cultural a serem partilhados<br />
e compartilhados com as atuais e futuras gerações, são outras características<br />
sempre incidentes e presentes nas experiências que analisamos, a partir das quais<br />
Porto Alegre-RS), José Clóvis de Azevedo (Ex-Secretário de Educação de Porto Alegre-RS e então<br />
Reitor da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul) e também a Professora Sra. Marilândia<br />
Frazão, representando o então Secretário de Educação de São <strong>Paulo</strong>-SP, Professor Fernando José<br />
de Almeida. A professora Elvira Souza Lima, além de participar como debatedora e relatora dos<br />
trabalhos, foi também a responsável pela palestra de abertura do I EINEC, cujo tema geral foi “O<br />
currículo na perspectiva da Escola Cidadã”.<br />
26 Segundo o Prof. José Clóvis de Azevedo, “O Orçamento Participativo, os Conselhos, a Escola<br />
Constituinte, a Cidade Constituinte caracterizam uma gestão participativa, onde a cidadania constitui<br />
uma esfera pública não estatal, que exerce controle sobre as políticas e as ações da esfera<br />
governamental (prefeitura), possibilitando a cada cidadão ser sujeito político-ativo, capaz de induzir as<br />
ações do Estado na direção dos interesses coletivos. Portanto, a participação popular radicaliza a<br />
democracia, possibilita o gradativo controle social do estado, cria uma esfera pública não estatal,<br />
desenvolve experiências concretas de democracia direta, aprofundando a democratização e a<br />
desprivatização do Estado.” (Azevedo, 1998:311). Na seqüência desta explicação, o professor José<br />
Clóvis dá um exemplo de como podemos visualizar claramente o Orçamento Participativo, no caso do<br />
exemplo da necessidade da construção da escola, desde a decisão sobre onde e quando construir,<br />
até o momento em que a escola recebe o seu corpo diretivo, forma o seu Conselho de Escola e<br />
começa a funcionar.<br />
27 Veja-se o “Manifesto das Cidades Educadoras” aprovado em Barcelona em 1990 e revisto em<br />
Bolonha em 1994.<br />
89
procuramos identificar também indicadores para qualificar e diferenciar o currículo<br />
intertranscultural de outras abordagens curriculares.<br />
Na construção concreta da Escola Cidadã, em diferentes lugares, tem sido<br />
enfatizado a necessidade do encantamento, do aconchego, do sentir-se bem ao<br />
atuar na escola, pois tais práticas e sentimentos criam as condições para os<br />
avanços tão demandados pela educação atual, ao contrário do que se propôs<br />
durante tantos anos, quando a escola ou a própria ciência dispensava, por exemplo,<br />
toda subjetividade das pessoas, todo o sentimento, toda a emoção, enfatizando<br />
apenas o fenômeno objetivo, observável e quantificável. O currículo que estamos<br />
querendo categorizar incorpora essas novas dimensões. O respeito à diversidade,<br />
lição aprendida e discutida principalmente nos últimos 40 anos, é também, diríamos,<br />
uma fundamental característica do currículo intertranscultural e se constitui num<br />
legado dos movimentos sociais a favor de uma globalização que valoriza a cidadania<br />
e a solidariedade.<br />
Outra importante ênfase desta discussão sobre a Escola Cidadã é o fato de a<br />
educação ser entendida como um direito e não como uma mercadoria ou como<br />
um serviço. Este é um dos princípios básicos e comuns da defesa da escola<br />
pública, esta escola que cada vez mais se torna pública quanto ao acesso e que,<br />
para garantir uma permanência do aluno, com qualidade, exige um espaço bonito,<br />
afetivo e carinhoso. Ao discutir uma possível reorientação curricular que incorpore a<br />
infância e a adolescência como sujeitos de direitos, Miguel G. Arroyo propõe que<br />
uma estratégia pode ser ler, estudar, pesquisar e debater em coletivos o quanto a<br />
sociedade vem avançando no reconhecimento da infância e da adolescência como<br />
sujeitos de direitos. (...) O Estatuto da Criança e do Adolescente, sua construção e os<br />
ataques e as defesa refletem que estamos em tempos de repensar o olhar sobre a<br />
criança e o adolescente populares, assumindo que são tempos de direitos plenos<br />
(Arroyo, 2002:9)<br />
Diante desta proposição, Arroyo pergunta se estaríamos, afinal, “colocando<br />
para a pedagogia e para o currículo um momento de deslocamento do lugar onde<br />
colocamos o humano” (id., 10). Ora, <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> sempre colocou o humano em<br />
primeiro lugar. Infelizmente as pedagogias e os currículos clássicos, “oficiais” e<br />
90
mesmo os muitas vezes apenas denominados “alternativos”, acabaram fazendo o<br />
contrário. Certamente, desta perspectiva, a infância e adolescência passam a ser<br />
referências também temporais, porque “tem sua especificidades humanas como<br />
referenciais para repensar saberes, conhecimentos, cultural, valores, linguagens,<br />
competências, didáticas e currículos” (ib.).<br />
Trabalharmos, hoje, na perspectiva de um currículo intertranscultural, significa<br />
buscar uma educação emancipatória, com políticas educacionais construídas desde<br />
as escolas, que fujam dos padrões estatais reguladores que propõem “currículos<br />
alternativos” (Stoer, 2001:253) como forma de controle governamental sobre o<br />
currículo. Trata-se, nesse caso, de superar o modelo da gestão controlada da<br />
exclusão que, equivale ao que Stephen Stoer, Luiza Cortesão e Antônio Magalhães<br />
designam por ‘surfar’ ou ‘pilotar’ a mudança, em vez de ‘geri-la’” (1998). Nesse<br />
sentido, alteram-se as formas da relação entre o Estado e a educação escolar, que<br />
supera a idéia de um “Estado educador que se rege pelo princípio da igualdade de<br />
oportunidades [cuja] meta é a da escola para todos, que visa proporcionar uma<br />
educação meritocrática de pendor democrático (Stoer:2001:250). Nesse caso,<br />
estaremos nos encaminhando para uma educação cidadã,<br />
baseada necessariamente quer no pilar dos direitos e dos deveres do contrato social que<br />
permitiu a concretização de algumas das promessas da modernidade (e que acabou por<br />
pôr em causa outras) (sic), quer num outro pilar, o de um contrato social novo, ainda em<br />
negociação, que veiculará o processo de globalização. (ib.:256).<br />
Como vemos, superar uma “autonomia regulada” pressupõe uma escola<br />
emancipadora, que forme um professor e um aluno também emancipados, para não<br />
caírem nas armadilhas de propostas que, por exemplo, “tendem a basear-se em<br />
preocupações relacionadas com ‘estilos de vida’, com diferenças culturais que não<br />
são articuladas com ‘oportunidades na vida’, isto é, com questões de natureza sócio-<br />
econômica. É nesse sentido que a educação, para nós, é sempre um ato político e<br />
uma questão de poder; daí a necessidade de se estabelecer e colocar em evidência<br />
os direitos e deveres dos alunos e, sobretudo, do ser humano. Por isso, a defesa de<br />
um currículo que contribua, através de uma educação também emancipadora, para<br />
a formação de sujeitos sociais igualmente emancipados.<br />
91
Segundo o professor Stephen Stoer (2001:247-252), há que pensarmos nas<br />
formas da relação do Estado com a Educação escolar que superem tanto os<br />
modelos que ele chama de “estrutura ocupacional e democratização social” –<br />
relação esta que sintetiza a educação proposta ao longo do século XX e que<br />
defendeu a idéia tão propalada entre nós da “escola para todos”, quanto de uma<br />
relação do Estado-educação escolar para a “criação de oportunidades de<br />
emprego/promoção da retomada do crescimento econômico” – que, segundo aquele<br />
professor, reforça a idéia de “uma escola cada vez mais inserida no espaço mundial,<br />
como espaço dominante e enquadrante da orientação educativa” (Stoer, 2001:252).<br />
Reconhecendo os limites destas formas de relação entre Estado-educação escolar,<br />
bem como a “complexidade da relação entre o campo de produção e o campo do<br />
controlo simbólico” (id: 247), Stephen Stoer sugere que possa trabalhar a partir da<br />
‘energia emancipatória’ da Segunda forma de Estado e educação, energia essa que<br />
emerge do conflito central sobre a constituição das subjectividades e a sua articulação<br />
com direitos iguais e igualdade de oportunidades, e ii) a natureza das ‘boas intenções’ do<br />
Estado que, como acima referimos, não chegam a garantir uma cidadania política<br />
inter/multicultural (ib.:258).<br />
Ao nos referirmos a um currículo intertranscultural, fica implícita a<br />
necessidade de discutir o papel do Estado nos destinos dos objetivos da educação<br />
pública e também esta discussão sobre a própria gênese do currículo, o que a<br />
Escola Pública Popular e Escola Cidadã, pelo que até agora percebemos, nunca<br />
deixaram de fazer.<br />
A educação intercultural e, com base nela, o currículo intertranscultural, ao<br />
serem discutidos e praticados na escola, não prescindem da reflexão crítica sobre a<br />
relação entre Estado e educação escolar. Até porque o professor Stoer, como <strong>Paulo</strong><br />
<strong>Freire</strong> e todos os demais autores que compõem o nosso referencial teórico,<br />
concordam que “a educação é um ato político” (<strong>Freire</strong>). E, se é assim, quando<br />
tratamos do currículo da Escola Cidadã, numa perspectiva cultural ou<br />
intertranscultural, sempre o faremos a partir deste pressuposto. Ou seja, não faria<br />
sentido pensar diferentemente disso ou considerar, eventualmente, que quando<br />
pensamos no currículo intertranscultural, estaríamos num movimento “culturalista”<br />
92
que dispensaria demasiada atenção à cultura, em detrimento de outras questões,<br />
tais como à politicidade do educativo, às discussões das relações Estado-educação<br />
escolar etc.<br />
Em conformidade com o que acabamos de explicar, outra permanente<br />
preocupação da Escola Cidadã é não dicotomizar teoria e prática. É ser coerente<br />
com o discurso. E um currículo na perspectiva desta escola, trabalha enfatizando a<br />
promoção da aprendizagem, que é um dos princípios fundamentais da “mediação<br />
pedagógica”. É nesse sentido que Francisco Gutiérrez e Daniel Prieto (1994:4),<br />
consideram a Pedagogia como sendo “o trabalho de promoção da aprendizagem na<br />
vida cotidiana através de todos os recursos colocados em jogo no ato educativo”.<br />
Quando nos referimos neste estudo a uma escola aprendente, queremos enfatizar<br />
justamente esta dimensão, pois, assim, a vida torna-se essencialmente uma<br />
aprendizagem (Theobald, 1972) e, como escrevem Gutierrez e Cruz Prado, a<br />
pedagogia se transforma e pode ser entendida como um “abrir caminhos novos,<br />
dinâmicos, inéditos, irrepetíveis, sentidos e espirituais” (1999:62).<br />
Abrir caminhos novos significa, muitas vezes, reconhecer os espaços que já<br />
encontramos mas que, de repente, ainda não reconhecemos. Quando falamos, por<br />
exemplo, de “Círculos de Cultura”, estaremos retomando o conceito que <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong><br />
desenvolveu nos anos 60 e procurando ressignificá-lo à luz do currículo<br />
intertranscultural. Mesmo não tendo explicitamente se referido a esta dimensão do<br />
currículo, <strong>Freire</strong>, na sua prática nos Círculos de Cultura, já pressupunha a “leitura do<br />
mundo” seguida de uma ação didático-político-pedagógica que tinha por referência<br />
uma noção antropológica de cultura. Já avançava na valorização das relações<br />
pessoais e humanas, no reconhecimento do contexto cultural dos estudantes e dos<br />
educadores, valorizava a criação de novos contextos, bem como estimulava a<br />
curiosidade, e a ênfase na politização do ato educativo, o que é inseparável, para<br />
nós, quando falamos de currículo. Como vemos, o currículo intertranscultural já se<br />
anunciava nos Círculos de Cultura da época de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, o que retomamos<br />
como espaço privilegiado para o fazer intertranscultural.<br />
O nosso conceito de espaço, já que a ele estamos nos referindo, é aqui<br />
tomado em seu mais amplo sentido, conforme nos falam Cruz e Gutiérrez, ou seja,<br />
93
espaço físico e transcurso do tempo; conteúdos temáticos e tratamento pedagógico dos<br />
mesmos. Essencialmente, trata-se de tornar possível o ato educativo sempre e em todo<br />
o lugar ‘no horizonte da participação, da criatividade, da expressividade e da<br />
relacionalidade’(1999:94).<br />
Elvira Souza Lima, numa análise sobre o tema do “Currículo na perspectiva<br />
da Escola Cidadã” 28 , destaca a importância do respeito à capacidade de aprender<br />
da criança, o que é, segundo ela, sua preocupação concreta junto às escolas que<br />
assessora, tanto em nível nacional quanto internacional. Olhar para as crianças com<br />
esta perspectiva significa apostar num movimento de reflexão sobre a estrutura do<br />
processo de ensino e de aprendizagem para que possamos repensar o ser<br />
humano e a sua condição de dignidade. Há que se considerar, no processo de<br />
construção do conhecimento, tanto a dimensão social como a individual da<br />
aprendizagem. Isto porque a construção do conhecimento é coletiva, se dá na<br />
história, é produto da cultura, mas a sua realização, a sua efetivação, é individual.<br />
Na medida em que vamos vivendo, estamos sempre aprendendo.<br />
A autora, na mesma direção de Miguel Arroyo, destaca que a questão do<br />
conhecimento se tornou um direito, um direito de todo ser humano a ter acesso<br />
ao conhecimento produzido pela humanidade.<br />
Na Escola Cidadã se trabalha com o aluno justamente aquilo que possibilita<br />
ao ser humano aprender. E isso significa trabalhar o desenvolvimento da percepção,<br />
da observação, do registro, da comunicação. Para tanto, o que se torna necessário,<br />
principalmente no Brasil, é a criação e, sobretudo, a ampliação dos espaços de<br />
comunicação, de espaços coletivos, que estarão alterando profundamente o “como”<br />
lidamos com o conhecimento, o “para quem” ele se destina e o “como” avaliamos o<br />
conhecimento trabalhado na escola e na educação em geral. Todos esses<br />
elementos fazem parte, necessariamente, da construção de um determinado tipo de<br />
currículo, que inclui, neste caso, todas as faces da ação humana, considerando a<br />
dialética das dimensões individual e social, conforme acima pudemos destacar.<br />
Em síntese, a professora Elvira Souza Lima destaca sete pontos que devem<br />
ser levados em conta na re(construção) do currículo na perspectiva da Escola<br />
Cidadã.<br />
28 Exposição feita durante o I Encontro Internacional da Escola Cidadã, em Porto Alegre-RS.<br />
94
1. Se há diversidade, a nossa questão, do ponto de vista do desenvolvimento<br />
humano, seria como capitalizar essa diversidade para que haja um aprendizado<br />
efetivo, da educação infantil à universidade.<br />
2. Para pesquisar temos que ouvir a criança e, portanto, construir espaços de<br />
escuta na escola.<br />
3. Do ponto de vista do currículo, o importante é o conhecimento do ato de<br />
aprender e não, necessariamente, conhecer diretamente o que será aplicado na vida<br />
cotidiana. Há que se deixar a escolha do uso do conhecimento por conta do próprio<br />
indivíduo, de acordo com as suas próprias necessidades e experiências futuras.<br />
4. A dimensão do currículo deve pensar na formação do indivíduo como um<br />
todo e não de forma fragmentada.<br />
5. A questão da formação do currículo para a Escola Cidadã tem que ser um<br />
currículo que entenda a dialeticidade do individual e do social, pois esta dialeticidade<br />
existe entre a construção do conhecimento e as formas de cultura.<br />
6. Há que se investir no movimento de produzir conhecimento com base na<br />
experiência das próprias redes de ensino, o que já começa a acontecer no Brasil.<br />
Além disso, que se amplie a socialização das metodologias de trabalho e como se<br />
constrói conhecimento nas diferentes experiências, nas diferentes pesquisas que<br />
têm sido desenvolvidas.<br />
7. Torna-se necessário um grande investimento, sobretudo das<br />
universidades, no que se refere à pesquisa na educação fundamental, que é a única<br />
possibilidade de enfrentar, neste país, um trabalho de educação básica que inclua<br />
exatamente os eixos da formação humana da cultura e da dignidade.<br />
Do acompanhamento e da análise de um conjunto de experiências inseridas<br />
no Movimento da Escola Cidadã, há quadro eixos mais recorrentes, conforme<br />
mencionamos anteriormente: 1. Princípios de convivência e aprendizagem em Rede.<br />
2. Gestão democrática. 3. Currículo. 4. Ciclos e Avaliação. A seguir, passaremos a<br />
examinar cada um deles.<br />
O primeiro eixo, princípios de convivência e aprendizagem em rede,<br />
remete-nos a uma preocupação específica, inicialmente, com a melhoria das<br />
relações pessoais e interpessoais no interior da escola e desta com a comunidade<br />
95
escolar, numa abrangência micro e macro, ou seja, pensando na pessoa com e no<br />
seu entorno mais imediato mas, também, numa dimensão planetária. Nesse sentido,<br />
formam-se, por exemplo, redes culturais interativas que, segundo o Professor<br />
Ladislau Dowbor, respondem ao fato do conhecimento ter-se tornado fluído e<br />
instantaneamente transportável. Isso “faz com que ele seja hoje menos uma<br />
matéria-prima que primeiro se aprende, e depois se transmite, para se constituir<br />
numa rede de participantes que dele partilham. À medida que a cultura da<br />
conectividade se generaliza, vão se formando assim redes culturais interativas que o<br />
professor pode ajudar a organizar, a dinamizar”. (Dowbor, 2001:29).<br />
O tema das relações interpessoais e da convivência, recorrente na<br />
estruturação curricular das experiências na perspectiva das Escolas Cidadãs, pode<br />
também ser explicado pelo contexto em que vivemos e, por isso mesmo, o fato de<br />
essa dimensão ser objeto cada vez maior de preocupação das escolas. A<br />
globalização capitalista tem intensificado as desigualdades e exclusões sociais,<br />
aumentado o desrespeito aos direitos humanos, acirrado o individualismo, unificado<br />
costumes e hábitos, gerado várias formas de violência etc., daí a importância de o<br />
currículo contemplar as relações que estamos construindo no espaço escolar,<br />
problematizando e desnaturalizando aquele processo.<br />
Não se trata mais do estabelecimento de normas ou de padrões de condutas<br />
ou mesmo de regimentos escolares estáticos, que objetivam determinar os<br />
comportamentos humanos de forma autoritária e hierarquizada, verticalizada. A<br />
sociedade do conhecimento já não admite esses limites de compreensão. 29 Mas,<br />
antes e para além da comunicação com o mundo, as relações interpessoais incluem,<br />
antes de tudo, o próprio ser humano comunicando-se consigo mesmo, com a suas<br />
“entranhas”, com a sua intrapessoalidade para, a partir desta melhor compreensão,<br />
estimulada pela escola, ela possa se comunicar e travar relações em outras<br />
contextos, com outras pessoas, grupos e instituições.<br />
Destacamos aqui uma experiência de gestão municipal e escolar vivenciada<br />
pelo Município de Uberaba-MG, no período de 1993 a 2000, apresentada pela<br />
29 Por “sociedade do conhecimento” estamos entendendo, segundo o define Ladislau Dowbor, “o<br />
conjunto de transformações que estão afetando o planeta, na empresa, na universidade, nas relações<br />
sociais. De certa maneira, passamos da antiga sociedade agrária, onde o eixo norteador era a<br />
agricultura, para uma sociedade industrial onde o eixo passou a ser a fábrica, e agora estamos<br />
evoluindo para uma sociedade onde a informação e o conhecimento se tornaram os elementos<br />
estruturadores mais significativos.” (Dowbor, 2001:30).<br />
96
secretária de educação que coordenou todo este processo conhecido como “Escola<br />
Cidadã: construção amorosa da cidadania”. Trata-se de uma experiência que durou<br />
oito anos e que, portanto, pôde se desenvolver enquanto uma proposta política<br />
educacional abrangente com os princípios da Escola Cidadã, mas com referência<br />
nos parâmetros do <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> e nos limites da lei, dos recursos<br />
disponíveis e das condições concretas de trabalho. A característica mais específica<br />
desta experiência, pode-se afirmar, é a sua dimensão de “construção amorosa da<br />
cidadania”, pautada pela seriedade, competência, crítica permanente, busca da<br />
criatividade humana, curiosa e também alegre e prazerosa. 30<br />
Desejamos aqui enfatizar alguns aspectos desta experiência, que, por sua<br />
duração e abrangência, contemplou os vários eixos curriculares da Escola Cidadã.<br />
Seus principais fundamentos são: a) o homem como produto e sujeito histórico –<br />
que considera que a natureza humana não é única, estática e definitiva e, portanto,<br />
se faz e varia em função da relação entre os indivíduos e a sociedade; b) a<br />
indissociabilidade entre educação e cultura – pelo que o domínio da cultura promove<br />
a assimilação crítica da realidade com vistas à transformação social; c) o trabalho<br />
entendido como princípio educativo – que entende a educação como via de acesso<br />
do ser humano pleno, criativo, consciente e livre, ao processo produtivo; d) a<br />
omnilateralidade – que considera o desenvolvimento global do potencial humano, o<br />
que pressupõe a superação da dicotomia entre teoria e prática, a universalização da<br />
cultura – garantindo com igualdade real entre os homens e não igualdade formal<br />
própria da sociedade contratual instaurada pela revolução burguesa, entre outros<br />
fundamentos dos quais enfatizamos, ainda, mais especificamente em relação aos<br />
princípios de convivência, a democratização das relações internas da escola –<br />
propiciando a participação de todos os atores da cena escolar nas decisões internas<br />
da escola e, finalmente, o ensino centrado no aprender a aprender, no aprender a<br />
conviver, enfim, no aprender a ser, buscando todas as alternativas de um ensino<br />
qualitativamente prazeroso, criativo, participativo, consistente como condição de<br />
viabilização do sucesso escolar. 31<br />
30 Quem nos oferece a base para este relato é a Secretária de Educação que esteve coordenando<br />
toda a experiência do município de Uberaba-MG, durante os oitos anos de gestão já mencionados,<br />
Professora Maria de Lourdes Melo Prais, hoje assessora educacional do <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>.<br />
31 Para maiores informações sobre esta experiência, remetemos aos seguintes documentos: 1.<br />
PRAIS, Maria de Lourdes Melo e SILVA, Maria Élida. Uberaba: Caderno Escola Cidadã. Ago. 1999,<br />
32p.; 2. PREFEITURA DE UBERABA. Regimento Comum das Escolas Municipais de Uberaba.<br />
Uberaba, 2000.31p.<br />
97
Estes fundamentos, discutidos amplamente no Município durante as duas<br />
gestões, permitiram se chegar ao Regimento Comum das escolas de Uberaba, que<br />
passou a servir como importante referencial para os princípios de convivência nas<br />
escolas do município, sendo respaldados pela comunidade escolar, onde tiveram<br />
origem. Mesmo assim, com a perspectiva da valorização e atualização dos próprios<br />
princípios e valores ali presentes, que davam ênfase aos direitos e deveres dos<br />
alunos, dos professores e dos demais segmentos escolares. Além disso, passou a<br />
orientar também todas as ações relacionadas à gestão escolar, à sua organização<br />
didático-pedagógica, organização curricular e regimes especiais de estudos. Para<br />
que pudessem garantir os resultados esperados desde o início da primeira gestão. 32<br />
Poderíamos incluir neste eixo do currículo da escola cidadã, por exemplo,<br />
elementos de uma cultura matrística (Guetiérrez e Prado, 2001), que enfatizam os<br />
espaços de ternura, ao invés dos espaços da razão, próprios da cultura patriarcal.<br />
Certamente diríamos, para evitar qualquer visão bipolar, enfatizar tais espaços sem<br />
negar o outro espaço. Nesse mesmo sentido, só para registrarmos o significado<br />
mais ampliado da convivência humana consigo mesmo e com o outro, dialogar,<br />
comunicar-se com prazer, com alegria e de forma aprendente, significa, por<br />
exemplo, promover relações significativas e possíveis, “necessariamente sinérgicas<br />
que implicam comportamentos incertos, impredizíveis e complexos” (ib.:74).<br />
Reafirma-se o relacionar-se para uma aprendizagem com sentido, com emoção e<br />
com a razão, desenvolver a capacidade de sonhar, de fantasiar, de sentir e de se<br />
expressar, investindo no abraço, na conectividade, nas experiências relacionais que<br />
estimulem a diferentes manifestações artísticas e formas de expressão e<br />
representações humanas. Valorizando, enfim, a felicidade como princípio e como<br />
direito de crianças e jovens (ib.).<br />
As experiências da Escola Cidadã revelam, no que diz respeito a este eixo, o<br />
aumento da preocupação com o conhecimento do contexto do educando para<br />
entender e conviver melhor. Na convivência escolar, por exemplo, escutar todos os<br />
segmentos escolares sobre como vêem a escola, sobre como gostariam que ela<br />
fosse e também sobre o que pensam a respeito do que se ensina na escola. As<br />
32 . A Revista Fazendo Escola, órgão de comunicação interno da Secretaria Municipal de Educação<br />
de Uberaba (ano 8, n.13), publicada em 2000, procurou prestar contas à comunidade uberabense,<br />
onde são apresentados todos os avanços alcançados naquelas gestões educacionais – de 1993 a<br />
2000.<br />
98
escolas que se propõem a ser cidadãs estão mais abertas a pensar, séria e<br />
permanentemente, a questão da linguagem e da sintaxe popular, respeitando o<br />
mundo social concreto em que se constituem os sujeitos escolares e a considerar a<br />
unidade escolar como parte de uma instância de poder onde estão presentes<br />
diferentes ideologias, que devem ser conhecidas e discutidas continuamente. Nesse<br />
sentido, por exemplo, ao aprenderem o padrão culto da linguagem, percebem que<br />
devem fazê-lo não porque sua linguagem é feia e inferior, mas porque, dominando a<br />
norma culta, instrumentalizam-se para a necessária luta pela reinvenção do mundo.<br />
Nessas experiências, o papel do educador consciente e progressista tem sido<br />
o de testemunhar a seus alunos, constantemente, sua competência, amorosidade,<br />
sua clareza política, a coerência entre o que diz e o que faz, sua tolerância, isto é,<br />
sua capacidade de conviver com os diferentes para lutar com os antagônicos.<br />
Essa escola séria, competente, justa, alegre e curiosa, de acordo com o<br />
caráter mais geral das experiências e dos documentos que temos acompanhado,<br />
tem-se constituído num espaço de relação e de comunicação entre as pessoas. Esta<br />
escola tem procurado criar espaços em que a criança tenha condições de aprender<br />
e de criar, de arriscar-se, de perguntar, de crescer. Assim, ela se permite ser<br />
permanentemente reinventada, reformulando seu currículo a partir da avaliação e da<br />
socialização dos resultados.<br />
Considerando as constatações acima, destacamos a importância de retomar<br />
e atualizar o significado dos Círculos de Cultura como sendo esses espaços<br />
intertransculturais, fundamentais para que os encontros, dentro e fora da sala de<br />
aula e do espaço escolar, ganhem potencialidade ainda maior. Quando pensamos<br />
na comunicação em rede 33 na escola e na ampliação das relações<br />
intertransculturais, referimo-nos a todas as discussões relacionadas a raça, etnia,<br />
gênero, enfim, todas as modalidades reflexivas e concretas que, se estão no âmbito<br />
das discussões da cultura, do multiculturalismo e da intertransculturalidade,<br />
associadas ao conhecimento científico acumulado pela humanidade, deve ser<br />
socializado e transformado no cotidiano das escolas.<br />
Referindo-nos ao eixo da gestão democrática, no contexto aqui analisado,<br />
incluímos as diversas características da práxis que implica a possibilidade de<br />
33 Ver: Warschauer, Cecília. Rodas em rede: oportunidades formativas na escola e fora dela. São<br />
<strong>Paulo</strong>, Paz e Terra, 2001.<br />
99
decisão e de participação efetiva de todos os segmentos nos processos<br />
relacionados à escola e à maior e melhor comunicação e articulação desta com o<br />
seu entorno comunitário mais imediato e mais ampliado.<br />
As experiências de que tivemos conhecimento procuram a melhoria da<br />
comunicação no interior da unidade escolar e entre esta e a comunidade. Além<br />
disso, buscam a garantia de espaços, no interior da escola, como forma de facilitar<br />
aos seus segmentos o exercício da autonomia e da auto-organização 34 , aprendendo<br />
a propor, a acompanhar a execução de propostas, a co-responsabilizar-se por elas,<br />
a avaliar e a reorientar a prática desenvolvida. Trata-se de uma nova forma de<br />
entender a gestão da escola, como um “direito à pronúncia do mundo [que] envolve<br />
a organização como locus de produção de discursos, de regras, de orientações e<br />
ações, em direção à autonomia e à substantividade democrática.” (Lima, 2000:37).<br />
As experiências reconhecem que falar e trabalhar na perspectiva da gestão<br />
democrática pressupõe fazê-lo na dimensão da pedagogia do conflito, formando<br />
seres capazes de lidar com as situações adversas e com opiniões<br />
contrárias/diferentes, aprofundando e aperfeiçoando, assim, o exercício democrático<br />
e resgatando o sentido público da ação escolar, ao garantir à população o poder de<br />
interferir nas definições políticas a partir da escola. Objetivam construir uma escola<br />
pública competente e respeitosa à forma de ser dos seus alunos, uma escola que os<br />
inclua na decisão sobre a sua gestão administrativa, pedagógica e financeiras.<br />
Nesse sentido, gerir democraticamente a escola significa que todos os segmentos<br />
escolares – alunos, professores, direção, pais, funcionários e toda a comunidade<br />
escolar – estarão também decidindo sobre o currículo intertranscultural da escola, a<br />
partir de um trabalho integrado com as instituições e associações comunitárias, às<br />
universidades, às demais organizações governamentais e não-governamentais, com<br />
todas as lideranças populares, como forma de partilhar e democratizar as relações<br />
da gestão escolar, evitando-se, assim, as receitas, os projetos ou os “pacotes”<br />
muitas vezes impostos à escola pelos supostos especialistas em educação. 35<br />
100<br />
34 Ver o livro de Ângela Antunes, intitulado Aceita um Conselho? Como organizar o Colegiado Escolar<br />
(São <strong>Paulo</strong>, Cortez/IPF, 2002). Este trabalho oferece indicadores para a ação organizada e<br />
democrática dos colegiados escolares e apresenta a experiência de gestão do Município de São<br />
<strong>Paulo</strong> (1989-1992).<br />
35 No livro Planejamento dialógico: como construir o projeto político-pedagógico da escola (Padilha,<br />
2001:61-71), tivemos a oportunidade de tratar dos parâmetros da gestão democrática do ensino<br />
público, quais sejam, capacitar todos os segmentos, consultar a comunidade escolar, institucionalizar<br />
a gestão democrática, lisura nos processos de definição da gestão e agilização das informações e<br />
transparência nas negociações.
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> considera que não se deve fugir ao dever de intervir, de liderar,<br />
de suscitar, agindo sempre com autoridade, mas também com respeito à liberdade<br />
dos outros, à sua dignidade. Os encontros democráticos com toda a comunidade<br />
escolar – especialmente com alunos e seus pais – devem superar as reações<br />
opositoras ou indiferentes às propostas pedagógicas apresentadas à comunidade.<br />
Nessa direção, as assembléias ou plenárias pedagógicas são fundamentais para<br />
uma real participação, em nível profundo, da comunidade de pais e de<br />
representantes de movimentos populares na vida inteira das escolas.<br />
Nas experiências a que tivemos acesso, percebemos a compreensão da<br />
necessária vivência da Gestão Democrática não só na escola, mas também para<br />
além dos seus espaços, daí, por exemplo, a criação dos Conselhos Regionais de<br />
Representantes dos Conselhos de Escola (CRECEs), na gestão de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>,<br />
1989-1992, a instituição da Constituinte Escolar, em Porto Alegre, bem como<br />
Orçamento Participativo, tanto da escola como da cidade, a concepção da Cidade<br />
Educadora.<br />
O terceiro eixo, que denominamos currículo, permite-nos entrar no que<br />
chamamos de a “alma ou espírito do projeto político-pedagógico da escola”. É<br />
quando passamos a tratar mais de perto do resgate da experiência cultural e social<br />
vivida pela comunidade para integrá-la àquele projeto e da dimensão dos<br />
conhecimentos, dos saberes e das aprendizagens que serão reconstruídos e<br />
produzidos na escola.<br />
Estamos no âmbito da discussão da reorientação curricular da escola na<br />
perspectiva da Escola Cidadã, que reconhece que todo conhecimento possui uma<br />
função social e que devemos saber/aprender a lidar com a sua pluralidade e<br />
multidimensionalidade. Nesse processo, as experiências da Escola Cidadã<br />
consideraram tanto a racionalidade como a intuição, a sensibilidade e a afetividade<br />
na construção do currículo da escola.<br />
101<br />
O currículo, nesta perspectiva, considera importantes o conhecimento<br />
popular, os saberes do senso comum e o erudito, colocando-os a serviço dos seres<br />
humanos, contribuindo para construir uma sociedade sustentável social e<br />
ambientalmente. Por isso, quando se fala em ciclos e nas áreas do conhecimento,<br />
procura-se entender as várias dimensões do conhecimento, sempre contextualizado
em relação aos saberes e aprenderes de cada pessoa, conforme os seus diferentes<br />
ritmos.<br />
O trabalho político-pedagógico desenvolvido em sala de aula e nos diversos<br />
espaços da escola e da comunidade fundamenta-se nos aspectos cognitivos,<br />
sensoriais, culturais, político-pedagógicos, técnicos, vivenciais, atitudinais,<br />
comportamentais, enfim, humanizadores. Busca-se não apenas melhorar o<br />
desempenho dos alunos no processo de aprendizagem, diminuindo os índices de<br />
repetência e expulsão dos mesmos da escola, mas principalmente que os<br />
educandos e os educadores possam se reconhecer e se assumir como sujeitos do<br />
processo de construção do conhecimento, portanto, sujeitos de direitos, de deveres,<br />
do seu próprio currículo.<br />
O currículo, nas diversas experiências da Escola Cidadã, procura respeitar os<br />
padrões culturais de classe de seus alunos, bem como seus valores, sua sabedoria,<br />
sua linguagem. Os documentos e publicações oficiais discutem a teoria do<br />
conhecimento, relacionando-o à arte, à ética, à sexualidade, aos direitos humanos,<br />
aos esportes, às classes sociais, à linguagem, à política, à ideologia e à educação.<br />
Conforme palavras da professora Ana Maria Saul (1990:56), nessa visão de<br />
currículo – referindo-se à experiência do Município de São <strong>Paulo</strong>, gestão 1989-1992<br />
– acontece<br />
um diálogo envolvente [que] permite trazer para a discussão curricular os assuntos e as<br />
noções de mundo, de região, da comunidade que circunda a escola. Ou seja, nessa<br />
visão de currículo você pode ter pessoas que estão se escolarizando e, ao mesmo<br />
tempo, estão em processos de cidadania. A escola ganha, então, um lugar dentro do<br />
projeto político que você vive em cidade. Essa educação, assim praticada, é formadora<br />
de uma cultura pedagógica ‘politizada’. (Grifos nossos).<br />
No movimento desta cultura pedagógica politizada, ao invés de se impor o<br />
ponto de vista do professor, ele deve se relacionar com os educandos de forma mais<br />
aberta, mais científica e mais arriscada; o melhor é, antes de tudo, convencer, quase<br />
converter, segundo as palavras de <strong>Freire</strong> (1999).<br />
102
A formação permanente das educadoras 36 ocupa um lugar singular nos<br />
projetos das escolas e das redes de ensino pois, apenas a partir dela, é possível<br />
viabilizar a mudança de uma postura docente capaz de lidar com as várias<br />
dimensões da formação humana e com os diferentes problemas de sua prática, por<br />
exemplo, com a constatação da diferença cultural ou da desigualdade social, como<br />
necessariamente relacionados com o seu trabalho didático-pedagógico, qualquer<br />
que seja a sua área de abrangência científica.<br />
O currículo não só se refere aos componentes curriculares das ciências<br />
naturais, sociais e comunicacionais e expressivos – correspondentes,<br />
respectivamente, aos sistemas culturais produtivo, associativo e simbólico (Romão,<br />
2001c). Ele inclui também estudos relacionados às diferentes dimensões do ser<br />
humano, incluindo-se aí a sua subjetividade e a relação que estabelece com o meio<br />
em que vive, além dos aspectos nem sempre enfrentados pela escola, relacionados,<br />
por exemplo, com a transcendência – aqui entendida como “a capacidade de romper<br />
todos os limites, superar e violar os interditos, projetar-se sempre num mais além”<br />
(Boff, 2000:31). Isto é, ultrapassar todos os limites “até o último horizonte” (ib.),<br />
segundo palavras do próprio Leonardo Boff.<br />
Conforme Alexandre Virgílio, secretário de Educação do município de<br />
Alvorada, não havia a preocupação com a construção da cultura da participação,<br />
antes de sua gestão, iniciada em 1997. Bem ao contrário, havia sim a cultura do<br />
clientelismo, do patrimonialismo e do favoritismo, e isso se refletia no currículo da<br />
escola. O primeiro desafio foi aprofundar o vínculo, a razão de ser da escola em<br />
relação à sociedade, buscando os fundamentos, com base na pedagogia freiriana,<br />
da própria educação e incentivando esta discussão na comunidade. Nesse sentido,<br />
a rede foi chamada a discutir sobre a escola que temos, que queremos e como<br />
chegar a esta segunda opção. A rede não possuía eleição direta para diretor de<br />
escola, nem Conselho Escolar efetivamente participativo, apenas formalmente<br />
instituído. Mesmo assim, o debate foi lançado nessas instâncias e começou-se a<br />
discutir o planejamento participativo por três meses no primeiro ano de sua gestão.<br />
Com este quadro começou o trabalho junto a toda a comunidade escolar,<br />
discutindo-se simultaneamente os quatro eixos da Escola Cidadã, envolvendo pais,<br />
36 Ver: Gutierrez, Cláudio Augusto. Formação de professores na Escola Cidadã. São Leopoldo,<br />
Editora UNISINOS, 2001.<br />
103
alunos, mães, funcionários, não por segmentos, senão juntos, com grupos<br />
temáticos. Foram instituídos também espaços e tempos de diálogo para a reflexão<br />
durante as reuniões pedagógicas semanais, em que funcionários, merendeira,<br />
secretária de escola, vigia da escola, professores e direção da escola participaram<br />
das reuniões pedagógicas.<br />
Significativos avanços já foram observados: o Conselho de Classe já funciona<br />
democraticamente em várias escolas e muitas também trabalham com a<br />
participação de pais e mães junto ao Conselho de Escola. Inclusive em algumas<br />
escolas nas reuniões pedagógicas, das quais antes participavam apenas<br />
professores, agora contam também com a presença regular de mães e pais. Várias<br />
iniciativas curriculares acontecem permanentemente no município, a cada ano. A<br />
relação entre as áreas do conhecimento é incentivada através, por exemplo, de<br />
outros projetos envolvendo a área da saúde, a Secretaria do Meio Ambiente, a pasta<br />
da Cultura etc. A educação considerada como responsabilidade de todos. Esse é um<br />
grande desafio que está colocado para o município: provar que a escola não é só<br />
para as crianças, o adolescente, que a escola é da comunidade, e portanto, torna-se<br />
cada vez mais necessário conversar com o pai, com a mãe do aluno e com o<br />
conjunto da comunidade, trabalhando esta formação permanentemente juntos às<br />
escolas. Nesse processo, são estimulados os espaços formais e não formais de<br />
estudos, potencializando a formação dos diversos segmentos escolares.<br />
O currículo, enquanto conjunto de aprendizagens significativas e vivenciais,<br />
científicas e não científicas, políticas e pedagógicas, organizacionais, racionais e<br />
emocionais, tem feito diferença no Município de Alvorada e permitido a integração<br />
das disciplinas, considerando as experiências vivenciadas pelos sujeitos e a<br />
bagagem cultural da comunidade escolar em que ele está inserido. A base para tais<br />
avanços é o diálogo, a problematização da realidade e a consciência crítica,<br />
levando-se em conta, conforme consta dos documentos divulgados pelo município<br />
em relação à sua experiência, a realidade sócio-econômica dos seus munícipes.<br />
Observa-se uma grande preocupação em conciliar os interesses dos alunos com o<br />
currículo e, nesse sentido, “o currículo deve buscar uma proposta político-<br />
pedagógica progressista efetivando a construção do conhecimento e a relação entre<br />
aprendizagem e desenvolvimento pela comunidade escolar”, conforme consta do<br />
documento intitulado “Princípios da Escola Cidadã” (SME. PM. Alvorada, s.d., 7p.).<br />
104
O quarto e último eixo curricular é o denominado ciclos e avaliação. No que<br />
se refere aos ciclos, há uma “nova” forma de pensar o tempo escolar; os ciclos<br />
remetem à reorganização ou à organização curricular que pensa a prática educativa,<br />
portanto a escola, diretamente relacionada com a questão do tempo, de como usar o<br />
tempo para a aquisição de conhecimento, não apenas na relação educador-<br />
educando, mas na experiência inteira, diária, da criança na escola: “a escola<br />
progressista, séria, não pode estragar o tempo, botar a perder o tempo de a criança<br />
conhecer” (<strong>Freire</strong>, 1999:46).<br />
Na experiência da Escola Cidadã de Porto Alegre-RS, trabalha-se com a idéia<br />
dos “ciclos de formação”. Segundo a professora Andrea Krug, eles<br />
constituem uma nova concepção de escola para o ensino fundamental, na medida em<br />
que encara a aprendizagem como um direito da cidadania, propõe o agrupamento dos<br />
estudantes onde as crianças e adolescentes são reunidos pelas suas fases de formação:<br />
infância (6 a 8 anos); pré-adolescência (9 a 11 anos) e adolescência (12 a 14 anos). (...)<br />
O conteúdo escolar é organizado a partir de uma pesquisa sócio-antropológica realizada<br />
na comunidade, onde são buscadas questões-problemas reveladoras da contradição<br />
entre a realidade vivida e a realidade percebida pela comunidade” (2001:17).<br />
As experiências da Escola Cidadã não dissociam a idéia dos ciclos da<br />
concepção de avaliação adotada na escola. Procuram avaliar o processo de ensino<br />
e de aprendizagem, bem como o próprio projeto político-pedagógico da escola e o<br />
impacto, na sala de aula, do processo de sua construção. A avaliação visa a<br />
qualificar a aprendizagem e o processo de reconstrução e de criação de novos<br />
conhecimentos pelos alunos, pelos professores e por todos os segmentos escolares.<br />
E isso se expande pela troca de experiências com outras escolas, ampliando e<br />
fortalecendo as iniciativas realizadas no interior da unidade escolar. Para tanto, a<br />
escola procura escutar todos os segmentos escolares sobre, por exemplo, como<br />
vêem a escola, o que pensam sobre o que não se ensina na escola e sobre o que<br />
pensam no que se refere a como se ensina na escola, chamamos de “avaliação<br />
dialógica” 37<br />
105<br />
37 É indispensável, para compreendermos o significado de “avaliação dialógica”- uma avaliação que<br />
supere tanto a dimensão classificatória como a diagnóstica – a leitura do livro do Professor José<br />
Eustáquio Romão, intitulado Avaliação dialógica: desafios e perspectivas. São <strong>Paulo</strong>, Cortez/IPF,<br />
1998. Sobre ciclos e avaliação ver KRUG, Andréa. Ciclos de Formação: uma proposta
A recente reflexão do professor Vitor Paro, no seu livro intitulado Reprovação<br />
escolar: renúncia à educação, ajuda-nos a compreender o debate político-<br />
pedagógico que tem sido desenvolvido em todo o país, recentemente, sobre esta<br />
questão. Ele afirma que há, na verdade, por parte dos professores, uma “resistência<br />
à promoção do aluno” (2001:161). Por isso, considera necessário, para contribuir<br />
com a compreensão prática do cotidiano escolar, no que se refere à implantação dos<br />
ciclos de aprendizagem, como ele chama, “estudar a resistência docente à<br />
aprovação de estudantes que se faz presente no cenário educativo dos sistemas em<br />
que se procura instituir a progressão continuada” (ib.:159). Para chegar a tal<br />
conclusão e a este indicador, o professor Paro apresentou uma categorização,<br />
mesmo que provisória, dos determinantes da resistência à aprovação docente, ou<br />
seja, os determinantes socioculturais, psicobiográficos, institucionais e didático-<br />
pedagógicos. Apenas para enfatizar um desses determinantes, que nos interessa<br />
mais particularmente de acordo com a delimitação deste estudo – sem, com isso,<br />
consideramos menos importantes os demais condicionantes – Vitor Paro destaca,<br />
em relação aos determinantes socioculturais,<br />
a importância da socialização primária (Berger & Luckmann, 1973) na introjeção de<br />
concepções e no desenvolvimento de posturas, como a negação da subjetividade do<br />
outro, a competitividade exacerbada, o horror preconceituoso ao fracasso e o<br />
desenvolvimento do autoconceito negativo, como valores que se conjugam para dispor o<br />
indivíduo à aceitação pacífica da reprovação discente como componente da prática<br />
educativa escolar. (Paro, 2001:159-160).<br />
Superar a prática da reprovação enquanto renúncia à educação, dentro dos<br />
limites impostos pelos condicionantes históricos, “necessariamente articulados a<br />
uma organização social autoritária e injusta” (Paro, 2001:160), exigiria uma<br />
transformação radical e democrática da estruturação dessa mesma sociedade,<br />
conforme indica aquele autor. Mas, já que os limites para esta transformação<br />
estrutural existem, o mesmo autor considera que<br />
106<br />
transformadora. Porto Alegre, Mediação, 2001; Rocha, Sílvio (org.). Turmas de progressão: a<br />
Inversão da Lógica da Exclusão. Porto Alegre, SME, 1999 e Paro, Vitor Henrique. Reprovação<br />
Escolar: renúncia à educação. São <strong>Paulo</strong>, Xamã, 2001. No capítulo 5 – “A dimensão pedagógica do<br />
projeto político-pedagógico” – do nosso livro (Padilha, 2001), trabalhamos, introdutoriamente, esta<br />
questão.
as medidas que se podem tomar no âmbito escolar deverão incidir fundamentalmente no<br />
caráter educativo da instituição, ou seja, na valorização da constituição de sujeitos<br />
históricos pela apropriação da cultura, nunca se esquecendo de que é a partir da<br />
apropriação dos avanços culturais alcançados historicamente que se podem criar novos<br />
valores e propor novos desafios. (ib.).<br />
As considerações do professor Vitor Paro vêm ao encontro da formação de<br />
cidadãos autônomos e emancipados, conforme objetivo maior da Escola Cidadã,<br />
sempre incluindo, nesse processo, os diferentes segmentos escolares,<br />
principalmente a família do aluno, conforme as práticas e outras pesquisas sobre as<br />
mesmas já têm mostrado repetidas vezes. 38<br />
107<br />
Na experiência do Município de Caxias do Sul-RS, iniciada em 1998,<br />
intitulada “Escola com Cidadania: ciclos de formação”, observamos a ênfase dada<br />
ao aluno, no que se refere ao respeito ao ritmo diferenciado de cada um. Destacam<br />
a necessidade de se reforçar, na escola, as potencialidades discentes ao invés de<br />
se enfatizar justamente o contrário, as suas dificuldades, como geralmente<br />
acontece. Uma outra característica marcante desta experiência é o pressuposto de<br />
que o ato pedagógico deve ser entendido como um ato político que deve considerar<br />
o coletivo de todos os segmentos escolares, já que cada um deles traz em si<br />
diferentes entendimentos de natureza humana, de visões de mundo, além de uma<br />
grande diversidade de concepções sobre a própria vida, que devem ser resgatadas,<br />
trazidas e debatidas pela escola na construção e elaboração do seu currículo. Estas<br />
características tem sido importantes para que o currículo seja mais significativo para<br />
o aluno, estando, assim, comprometido com a formação integral do ser humano. Daí<br />
que, de acordo com outras experiências relacionadas à Escola Cidadã, a base da<br />
construção deste currículo é a pesquisa na comunidade. Percebemos, contudo,<br />
que esta pesquisa, na referida experiência, fica ainda bastante centrada na figura<br />
dos educadores, limitando-se a dar retorno à comunidade sobre o resultado da<br />
mesma e à definição posterior dos temas geradores que estarão sendo trabalhamos<br />
pela escola. Assim, o ponto de chegada é a transformação da realidade, segundo<br />
pudemos registrar. As escolas organizam, assim, o seu currículo, a partir do que<br />
38 A este respeito, sugerimos a leitura de outro livro de Vitor Paro, intitulado Qualidade do ensino: a<br />
contribuição dos pais. (São <strong>Paulo</strong>, Xamã, 2000).
chamam de “ciclos de vida”, a partir dos quais são organizadas as experiências de<br />
enturmação, de planejamento e de avaliação do processo de ensino e de<br />
aprendizagem, sempre com base na lógica da inclusão, compatível com as filosofia<br />
da Escola Cidadã. Nesse mesmo sentido, atenção especial é dada à formação<br />
permanente de professores.<br />
Alguns aspectos inovadores da experiência de Caxias do Sul se referem, por<br />
exemplo, à criação da figura do professor itinerante, que atua junto com o<br />
professor, ou como professor de educação física ou educação artística, podendo,<br />
ainda, atuar junto às diferentes áreas do conhecimento. Este professor participa das<br />
ações de planejamento do coletivo de professores. Outra figura importante nesse<br />
processo é o “articulador pedagógico”, que acompanha pedagogicamente todas as<br />
ações da escola, desde o planejamento do trabalho coletivo dos professores à<br />
avaliação geral do mesmo.<br />
Outros espaços de atuação são criados nesta experiência, como<br />
laboratórios de aprendizagem onde são realizadas investigações, por um<br />
professor específico, a respeito das eventuais dificuldades de aprendizagem<br />
apresentadas por determinados alunos, mas em horários complementares e<br />
diferentes do horário normal de aula daqueles. Outro espaço importante,<br />
consolidando o que consideramos, nesta experiência, um conjunto de medidas<br />
inovadoras para viabilizar a melhor qualidade do processo de ensino e de<br />
aprendizagem e, portanto, do próprio currículo, são as salas de recursos, que<br />
oferecem condições e formação específica para atuar na educação especial,<br />
confirmando assim a preocupação com a inclusão, além das turmas de progressão,<br />
criadas e utilizadas para garantir o processo de transição das turmas seriadas para<br />
as cicladas, em que um significativo número de alunos encontrava-se em grande<br />
defasagem em relação à idade-série ou idade-ciclo, fruto dos resultados de uma<br />
escola tradicional seriada.<br />
108<br />
Um outro projeto apresentado pelo Município de Caxias do Sul, que merece<br />
destaque, é o programa de “Vinculação”. Consiste também numa ação de inclusão<br />
das crianças com necessidades especiais de aprendizagem. É um serviço que<br />
conta com diferentes profissionais: fonoaudiólogo, psicólogo, assistente social,<br />
pedagogo, professores de artes, de educação física, entre outros que, de forma<br />
“vinculada”, planejam, coordenam, organizam e avaliam as atividades junto àqueles
discentes. O objetivo é justamente criar, na administração da educação pública<br />
popular, uma relação da escola com a sociedade que permita aos indivíduos se<br />
apropriarem dos espaços e serviços públicos que, efetivamente, favoreçam a<br />
inclusão. Nesse sentido, pequenos detalhes se tornam importante neste trabalho: ao<br />
invés de enfatizar a doença e o problema que o aluno possui, neste projeto<br />
descaracteriza esta prática e enfatiza outras formas de aprendizagem, valorizando a<br />
oportunidade da inclusão, a utilização de recursos criativos, o potencial dos alunos,<br />
utilizando formas lúdicas de trabalhar o conhecimento, valorizando as diferentes<br />
expressões artísticas para favorecer o processo de formação plena da criança que<br />
exige e necessita de atenção especializada, o que é feito de forma criteriosa, atenta<br />
e processualmente coletiva.<br />
Como vimos, já temos acumuladas experiências significativas que apostam<br />
na inclusão, no respeito à diversidade cultural, às diferentes características e<br />
específicas necessidades dos alunos. Para nós, tais características nos oferecem<br />
indicadores de uma ação construtora de um currículo mais significativo para o<br />
aluno, que apresenta claramente a preocupação com a dimensão cultural dos<br />
sujeitos. Este é, nesse sentido, um importante diferencial desta experiência, que se<br />
amplia, inclusive, para toda a comunidade escolar, atendendo ao que denominam de<br />
trabalho coletivo, um dos eixos da política municipal de educação – o que, em outras<br />
palavras, significa uma gestão ampliada e democrática da educação e do próprio<br />
município, já que também naquela comunidade se trabalha com o orçamento<br />
participativo.<br />
Observamos, nestes trabalhos, a presença sempre marcante de<br />
diagnósticos mapeadores das experiências escolares, que buscam tornar os<br />
espaços de formação criativos e prazerosos, ampliar os processos de integração e<br />
criação, não como espaços alternativos para a superação dos desafios do cotidiano<br />
escolar e municipal, mas como resultado de uma política educacional ampla, voltada<br />
para toda a rede municipal, que oferece uma certa unicidade de ações, que se<br />
destinam a toda a comunidade escolar e não, especificamente, a esta ou aquela<br />
escola, a este ou àquele determinado grupo.<br />
109<br />
Esta visão ou compreensão de currículo estabelece com as pessoas e com<br />
o próprio conhecimento, uma nova relação, superadora, por exemplo, de ações<br />
fragmentadas, isoladas, que dariam conta apenas de parte dos problemas que vão
sendo verificados no cotidiano de determinadas escolas, superando-os também<br />
fragmentariamente, sem a devida contextualização num nível mais ampliado de<br />
visão de conhecimento ou mesmo de educação.<br />
Outra característica marcante dessas experiências é o enfrentamento dos<br />
desafios que a comunidade apresenta, sobretudo em relação ao desenvolvimento<br />
das crianças com dificuldades de aprendizagem ou com necessidades especiais de<br />
aprendizagem.<br />
Além disso, há um grande investimento em encontros de formação. Encontros<br />
(municipais, nacionais, internacionais), congressos, fóruns mundiais. A vantagem da<br />
troca de experiência reside no fato de que, com este movimento, cria-se uma<br />
experiência mais coletiva, sem recomeçar sempre do “zero”. O que não significa que<br />
os problemas, dependendo do contexto, sejam sempre diferenciados e mereçam<br />
atenção cuidadosa e específica, de acordo com a experiência acumulada de cada<br />
coletivo escolar, de cada município, e conforme a capacidade de criação individual e<br />
coletiva das pessoas pertencentes a esse diferentes espaços.<br />
As experiências por nós observadas comprovam que o caminho está sendo<br />
trilhado, enfrentando todos os desafios do cotidiano escolar e indicando novas<br />
trilhas, por uma educação centrada na humanização das pessoas e na sua<br />
emancipação humana, social, cultural, econômica e política.<br />
Os princípios e eixos das Escolas Cidadãs acima apresentados podem servir<br />
como referência para que estejamos transformando o currículo da escola,<br />
geralmente monocultural como vimos, num currículo mais dinâmico, com vários<br />
olhares, que não se confunde com inexistência de referenciais, de princípios, de<br />
diretrizes nem de indicadores de ações, que aqui estamos chamando de<br />
intertranscultural. Um currículo que não se confunde com parâmetros curriculares<br />
universalistas, que poderiam apontar para a construção de um currículo único, como<br />
se Currículo Intertranscultural significasse mais um tipo de currículo único a ser<br />
seguido ou mais uma forma de dificultar o próprio entendimento do que seja<br />
currículo.<br />
110<br />
O que apresentamos foram elementos curriculares básicos e abertos, de uma<br />
concepção curricular que é dialógica, dialética e complexa. Portanto, trata-se de um<br />
currículo que está, em sua própria gênese, propondo-se enquanto princípios,
diretrizes e indicadores de ações, de relações e de contextos que devem ser<br />
significados e ressignificados de acordo com cada contexto escolar, seja em nível<br />
local, global, seja combinando-os. Servem-nos como um quadro de referência<br />
teórico-metodológico, norteadores de uma possível política pedagógica democrática,<br />
participativa e a favor da emancipação humana.<br />
Os elementos teóricos e práticos que pudemos colher em nossos estudos e<br />
pesquisas comprovam que o Movimento da Escola Cidadã é algo vivo, dinâmico, em<br />
permanente construção, avaliação e ampliação. Nessa mesma direção, o currículo<br />
intertranscultural não será mais uma ‘invenção curricular” ou um estereótipo – ou um<br />
nome – a mais para nos referirmos ao currículo da escola.<br />
Quando pensamos no currículo escolar, várias imagens relacionadas à escola<br />
podem nos chegar de imediato. Conteúdos escolares e grade curricular, talvez,<br />
sejam as primeiras a se apresentar. Conjunto de conhecimentos que devem ser<br />
trabalhados na escola ou de experiências de aprendizagens que vão sendo<br />
vivenciadas nas instituições escolares é uma outra possibilidade; caminho ou recorte<br />
didático-pedagógico a ser seguido no processo de ensino de aprendizagem ou na<br />
construção do conhecimento e experiências permeadas por contradições e conflitos,<br />
vinculadas ou não a processos históricos, dependendo da orientação filosófica e<br />
político-pedagógica que o esteja definindo. Todas essas são possíveis imagens e<br />
explicações iniciais para o significado de currículo escolar.<br />
Poderíamos também nos referir ao currículo escolar como sendo a ampliação,<br />
em diferentes dimensões, do que for consignado no próprio projeto político-<br />
pedagógico da escola, ou seja, neste conjunto de princípios, diretrizes e propostas<br />
orientadoras de toda organização do trabalho escolar, verdadeiro<br />
situar-se num horizonte de possibilidade na caminhada, no cotidiano, imprimindo uma<br />
direção que se deriva a um feixe de indagações tais como: que educação se quer e que<br />
tipo de cidadão se deseja, para que projeto de sociedade? (Romão & Gadotti, 1994:42).<br />
Nesse caso, enfatizaríamos ainda mais o significado e a relevância do<br />
currículo escolar, pois seria a conjunção das diferentes ações e relações advidindas<br />
do processo de reflexão, elaboração, execução e avaliação do projeto da escola.<br />
111
Superando estas imagens iniciais, entre outras que poderiam surgir, quando<br />
pensamos no currículo escolar podemos também refletir, desde logo, sobre como as<br />
políticas educacionais do país têm tratado este tema e, principalmente, como os<br />
educadores têm acompanhado a evolução do conceito de currículo. No primeiro<br />
caso, o artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n.º 9.394,<br />
promulgada em 20 de dezembro de 1996, trata da problemática curricular e<br />
estabelece a obrigatoriedade da existência de sua estruturação mínima nas escolas<br />
de todo o território nacional, estabelecendo, inclusive, algumas disciplinas que<br />
deverão dele constar. O texto legal não deixa nenhuma dúvida. Se não, vejamos:<br />
Art. 26 – Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base<br />
nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento<br />
escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da<br />
sociedade, da cultura, da economia e da clientela.<br />
§ 1º. Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente, o<br />
estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural<br />
e a da realidade social e política, especialmente do Brasil.<br />
§ 2º. O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos<br />
diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos<br />
alunos.<br />
§ 3º. A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é<br />
componente curricular da Educação Básica, ajustando-se às faixas etárias e às<br />
condições da população escolar, sendo facultativa nos cursos noturnos.<br />
§ 4º. O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das<br />
diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das<br />
matrizes indígena, africana e européia.<br />
§ 5º. Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir<br />
da quinta série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha<br />
ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição.<br />
112<br />
Como vemos, a LDB 9394/96, ao se referir aos “currículos” ou a<br />
“componentes curriculares” o faz tratando diretamente de conteúdos escolares para<br />
os diferentes níveis de ensino. Além disso, o artigo 27 da referida Lei trata das<br />
diretrizes que devem ser observadas no estudo de tais conteúdos escolares, que se
voltam principalmente ao tipo de valores que deverão estar presentes nesses<br />
estudos, às condições de escolaridade dos alunos que deverão ser consideradas, à<br />
orientação para o trabalho e, também, à promoção do desporto nacional,<br />
incentivando, neste particular, o apoio às práticas desportivas não-formais (artigo 27<br />
da LDB 9394/96).<br />
Essa legislação estabelece uma lógica disciplinar e uma organização do<br />
conhecimento por componentes curriculares, cuidando, inclusive, nela mesma, e a<br />
partir dela, de determinar o que deve ser estudado na escola, de como os estudos<br />
devem ser organizados, realizados e das condições sobre as quais os conteúdos<br />
devem ser ministrados. Este é o caso, por exemplo, do Inciso II do artigo 28, que<br />
estabelece que a organização da escola, incluindo o calendário escolar, deverá se<br />
adequar e se adaptar às peculiaridades da vida rural e de cada região, e, em<br />
particular, às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas.<br />
⎯ Tudo isso é currículo ou deve ser considerado parte do currículo?<br />
Em segundo lugar, se pensarmos nas educadoras e nos educadores<br />
brasileiros, podemos dizer que um dos indicadores do interesse dos mesmos em<br />
relação à problemática do currículo é o elevado número de publicações recentes<br />
sobre o assunto, como podemos ver na bibliografia desta tese. Mas, antes disso, os<br />
baixos índices de desempenho dos nossos estudantes, que coloca o Brasil, por<br />
exemplo, como o último colocado no PISA (Programa Internacional de Avaliação de<br />
Alunos), conforme matéria jornalística sobre “prova que mediu, pela primeira vez, o<br />
desempenho de estudantes com 15 anos nas redes pública e particular de 32<br />
países” (Suwwan, 2001:c11), revelando o quão problemática tem sido a questão<br />
curricular nas escolas nacionais. E isso se confirma nas tantas avaliações de<br />
rendimento dos estudantes que são hoje aplicadas no país (SARESP, SAEB, ENEM,<br />
“PROVÃO do MEC”). Se isto reflete a situação em que se encontra a escola<br />
brasileira, acaba gerando uma preocupação por parte dos educadores e das<br />
autoridades públicas em relação à problemática do currículo, o que remete à<br />
necessidade de melhor formação continuada dos professores.<br />
113<br />
O Professor Miguel Arroyo, da Faculdade de Educação da UFMG, em artigo<br />
intitulado “Experiências de inovação educativa: o currículo na prática da escola”<br />
(Arroyo, In: Moreira, 1999), contribui para melhor compreendermos esta questão,
quando esclarece que, em nossa cultura política, os Estados, os governos ou os<br />
grupos técnicos – e até mesmo as empresas – para resolver os problemas da<br />
educação nacional, propõem projetos e soluções que chamam de inovadoras.<br />
“Pensam que toda inovação social, cultural ou pedagógica será sempre iniciativa de<br />
um grupo iluminado, modernizante” (Arroyo, In: Moreira, 1999:133). É o caso, por<br />
exemplo, daquelas propostas governamentais que, de cima para baixo, decidem as<br />
mudanças educacionais dos sistemas federal, estadual ou municipal da educação,<br />
sem qualquer consulta ou participação às/das escolas e às/das comunidades locais<br />
ou regionais.<br />
Segundo aquele autor, diante de resultados tão assustadores dos nossos<br />
estudantes, revela-se um estilo de inovação que sempre faz diagnósticos negativos<br />
da sociedade e de suas instituições, considerando suas iniciativas obsoletas,<br />
ultrapassadas. Estamos falando dos argumentos que reconhecem e revelam<br />
repetidamente a crise do fim dos tempos, da sociedade, da educação, da escola,<br />
acentuando o caráter negativo da gestão, do trabalho pedagógico dos professores,<br />
dos conteúdos estudados na escola, a crise na vida das pessoas. E para superar<br />
estas crises, há sempre uma receita inovadora pronta para resolver todos os<br />
problemas. Assim, instala-se um clima de pessimismo que justifica as propostas<br />
iluminadas de inovação. Nesse sentido, legitima-se a inovação oficializada na<br />
educação e, em particular, no currículo.<br />
114<br />
O professor Arroyo analisa que o fato de se considerar como inovação os<br />
programas de requalificação profissional, de capacitação em serviço, como se todos<br />
os professores nunca estivessem preparados, formados ou capacitados para o<br />
exercício de suas funções, acaba justificando altos investimentos nos processos de<br />
formação, quase sempre descontextualizados das reais necessidades desses<br />
profissionais. Isso resultaria no desinteresse dos mesmos pelos cursos, sobretudo<br />
por se tratarem de assessorias técnicas encomendadas, de fora para dentro,<br />
causando inclusive retrocessos e prejuízos pedagógicos para os docentes, bem<br />
como prejuízos financeiros para toda a Nação. Trata-se, neste caso, de uma visão<br />
preconceituosa e elitista em relação aos professores, que também deve ser<br />
superada. Nossa experiência pessoal comprova o argumento do referido professor e<br />
nos faz enfatizar a necessidade de coerência quando do oferecimento de<br />
assessorias técnico-pedagógicas. Quando estas são demandadas apenas pelos
gestores públicos, sem consulta às bases ou, melhor dizendo, sem dialogar<br />
permanentemente com os participantes e maiores interessados nesses processos<br />
de educação ou de formação continuada, o resultado quase sempre é o surgimento<br />
de uma crítica aos próprios pseudo-especialistas em educação, que “caem de pára-<br />
quedas” e, como se fossem os “salvadores da pátria”, oferecem, no alto de sua<br />
arrogância acadêmica, as soluções mágicas para os problemas educacionais que,<br />
efetivamente, nunca são solucionados.<br />
Sem entrarmos em outros detalhes em relação à formação do professor, pelo<br />
menos neste momento, é importante observarmos que um projeto de formação<br />
docente nunca deve ser algo definitivo. Deve, no máximo, ter o significado de “um<br />
catalisador da socialização da discussão sobre os projetos educacionais específicos<br />
e necessários às diversas realidades locais e sociais do país do que um ‘pacote’<br />
homogêneo de receitas” (Romão, 2000:55). A educação continuada dos educadores<br />
é fundamental para a compreensão mais profunda da problemática educacional e,<br />
em particular, do currículo. Não é por acaso que outro traço característico do estilo<br />
oficial de inovação, refere-se à ênfase dada à mudança dos conteúdos e à definição<br />
de novos parâmetros curriculares, como se isso representasse inovação e como se<br />
inovar a escola significasse, necessariamente, ações voltadas para a seleção<br />
centralizada, e por especialistas, de novos conteúdos, de novas competências e de<br />
novas atitudes a serem ensinadas aos alunos. (Arroyo, In: Moreira, 1999).<br />
Quando discutimos sobre currículo, estamos no âmbito das decisões<br />
concernentes a quais conhecimentos devem ser ensinados, o que deve ser<br />
ensinado e por que ensinar este ou aquele conhecimento. Diríamos melhor: mais do<br />
que ensinados, o que deve ser aprendido e por que aprendê-lo. Isso se confirma<br />
quando verificamos, nas palavras de Tomáz Tadeu da Silva, que<br />
o currículo é sempre resultado de uma seleção: de um universo mais amplo de<br />
conhecimentos e saberes; seleciona-se aquela parte que vai constituir, precisamente, o<br />
currículo. As teorias do currículo, tendo decidido quais conhecimentos devem ser<br />
selecionados, buscam justificar por que ‘esses conhecimentos’ e não ‘aqueles’ devem<br />
ser selecionados. (Silva, 1999:15).<br />
115
No seu estudo sobre currículo, o mesmo professor se refere a diferentes<br />
Teorias de Currículo, resumindo-as em grandes categorias, “de acordo com os<br />
conceitos que elas, respectivamente, enfatizam” (Ib.:17). A categorização por ele<br />
apresentada será útil às nossas análises. Contudo, limitamo-nos a listar aqui, de<br />
forma resumida, as características de cada uma dessas teorias. Para um estudo<br />
mais aprofundado dos fundamentos de cada uma delas, remetemos o nosso leitor à<br />
obra citada (Silva, 1999: 21-150), bem como aos autores que têm escrito sobre<br />
currículo, conforme menção feita anteriormente.<br />
As Teorias Tradicionais do currículo seriam caracterizadas pelas ênfases<br />
nos seguintes elementos curriculares: ensino, aprendizagem, avaliação,<br />
metodologia, didática, organização, planejamento, eficiência e objetivos. Se<br />
observarmos estas características, podemos afirmar que estes elementos estão<br />
presentes no currículo praticado nas escolas atuais, o que não é nenhum exagero.<br />
Efetivamente, este tipo de currículo, que se preocupa sobretudo com organização e<br />
método, vem desde a Didatica Magna de Comenius.<br />
O termo curriculum, entretanto, no sentido que hoje lhe damos, só passou a ser<br />
utilizado em países europeus como França, Alemanha, Espanha, Portugal, muito<br />
recentemente, sob influência da literatura educacional americana. (Silva, 1999:21).<br />
Por outro lado, ideologia, reprodução cultural e social, poder, classe social,<br />
capitalismo, relações sociais de produção, conscientização, emancipação e<br />
libertação, currículo oculto e resistência, caracterizam as Teorias Críticas de<br />
currículo (ib.:17). E, finalmente, as Teorias Pós-Críticas têm enfatizado um<br />
currículo que geralmente considera características tais como identidade, alteridade,<br />
diferença, subjetividade, significação e discurso, saber-poder, representação,<br />
cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade e multiculturalismo. (ib.).<br />
O professor Tomáz Tadeu da Silva entende que as teorias de currículo estão,<br />
de uma perspectiva pós-estruturalista, ativamente envolvidas com a garantia do<br />
consenso e com a obtenção da hegemonia. Neste sentido, currículo tem a ver<br />
diretamente com a questão do poder, o que vai, inclusive, separar as teorias<br />
tradicionais das teorias críticas e pós-críticas do currículo.<br />
116
Por um lado, as “Teorias Tradicionais” se apresentam como neutras,<br />
científicas e desinteressadas, já que os saberes dominantes representam a<br />
existência do que ensinar e as técnicas existentes, já definidas cientificamente,<br />
servem justamente para que o ensino se realize. Por isso, resta apenas transmitir o<br />
conhecimento inquestionável, de forma bastante organizada, utilizando-se, para<br />
tanto, das técnicas desenvolvidas pela ciência. É aí que se justificam as ênfases<br />
acima citadas.<br />
As Teorias Críticas e Pós-Críticas não aceitam esses argumentos,<br />
apresentando questionamento sobre o porquê de se trabalhar determinados<br />
conhecimentos e não outros, tentando desvelar a ideologia oculta sob o rótulo da<br />
neutralidade científica e privilegiando outras características, que, segundo elas,<br />
deveriam permear as discussões relacionadas ao currículo escolar.<br />
É importante destacar, ainda, a contribuição do mencionado autor, quando ele<br />
explica, referindo-se às teorias do currículo, que<br />
uma teoria define-se pelos conceitos que utiliza para conceber a realidade. Os conceitos<br />
de uma teoria dirigem nossa atenção para certas coisas que sem eles não as ‘veríamos’.<br />
Os conceitos de uma teoria organizam e estruturam nossa forma de ver a ‘realidade’.<br />
Assim, uma forma útil de distinguirmos as diferentes teorias do currículo é através do<br />
exame dos diferentes conceitos que elas empregam. Neste sentido, as teorias críticas de<br />
currículo, ao deslocar a ênfase dos conceitos simplesmente pedagógicos de ensino e<br />
aprendizagem para os conceitos de ideologia e poder, por exemplo, nos permitiram ver a<br />
educação de uma nova perspectiva. Da mesma forma, ao enfatizarem o conceito de<br />
discurso em vez do conceito de ideologia, as teorias pós-críticas de currículo efetuaram<br />
um outro importante deslocamento na nossa maneira de conceber o currículo (Silva,<br />
1999:17).<br />
Após analisar as diversas Teorias do Currículo, o autor considera que não se<br />
pode mais olhar o currículo com inocência. E afirma que<br />
117<br />
o currículo tem significados que vão muito além daqueles aos quais as teorias<br />
tradicionais nos confinaram. O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação<br />
de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa
vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto,<br />
discurso, documento. O currículo é documento de identidade (ib.: 150).<br />
Diante da amplitude do conceito acima apresentado, poderíamos dizer que<br />
currículo escolar é praticamente tudo o que se passa na escola e, carrega por isso<br />
mesmo, um grau imenso de complexidade, já que significa percurso da escola. Esta<br />
é a conclusão a que chegamos diante das palavras de Tomáz Tadeu da Silva e<br />
também do outro trabalho intitulado “Dilemas e controvérsias no campo do<br />
currículo”, da professora Lucíola Licínio de C. P. Santos (FAE/UFMG). A sua<br />
reflexão destaca o grande número de transformações pelas quais a produção na<br />
área do currículo tem passado nas últimas décadas, que tem a ver, justamente, com<br />
a evolução das teorias às quais acabamos de nos referir.<br />
Segundo aquela autora, os estudos sobre currículo, que antes possuíam um<br />
caráter mais prescritivo, a partir dos trabalhos de autores como (1996), Young<br />
(2000), Giroux (1997; 1999) e Apple (1989; 1997), a existência de uma maior<br />
preocupação voltada para a compreensão do papel do currículo na escola começa a<br />
ficar mais evidente. Na década de 70, por exemplo, não se discutia o porquê<br />
determinados tipos de conhecimentos eram privilegiados em detrimento de outros.<br />
Simplesmente os “especialistas” em currículo faziam a escolha e esta deveria ser<br />
cumprida pelas escolas. O que se observa nos estudos sobre currículo já<br />
desenvolvidos é que os saberes acadêmicos sobre currículo têm maior prestígio na<br />
educação escolar do que os próprios saberes práticos que nascem e que se<br />
consolidam nas unidades escolares.<br />
118<br />
Conforme as palavras da professora Lucíola Santos, os mencionados estudos<br />
mostram também que “a forma como os conhecimentos são selecionados,<br />
organizados e trabalhados nas escolas refletem relações de poder e interesses de<br />
controle social presentes na sociedade.” (Santos, 2001:2). A mesma autora cita<br />
Goodson (1995) e Young (2000) em relação aos estudos que realizaram, no que se<br />
refere à crítica ao “currículo acadêmico” voltado para as classes médias e para a<br />
elite, que corresponde a conhecimentos transmitidos de forma abstrata e<br />
descontextualizada, a estudantes capazes de, por exemplo, compreender um<br />
argumento ou uma cadeia de raciocínios, conforme palavras da autora. Este<br />
“currículo acadêmico”, que na Inglaterra, da década de 40, enfatizava a
comunicação escrita, afastava-se da vida diária; enquanto que um “currículo não<br />
acadêmico”, relacionado a processos ativos e às experiências concretas dos alunos,<br />
destinava-se às classes operárias.<br />
Podemos observar que esta dicotomia curricular se diferencia, em muito, do<br />
significado atribuído ao currículo, conforme nos apresentou o Professor Tomáz<br />
Tadeu da Silva. Realmente, notamos grande mudança nas últimas décadas, de<br />
acordo com a constatação da Professora Lucíola Santos. Mas esta mudança não<br />
tem sido nem fácil nem simples e, como afirmávamos no início deste capítulo, não<br />
se fazem sentir ainda, em grande escala, nas nossas escolas e, principalmente, no<br />
cotidiano das nossas salas de aula.<br />
Estudos mais recentes no campo do currículo estão agora mais voltados ao<br />
problema da exclusão escolar e sobre como a definição do currículo interfere na<br />
mesma. É esta a nossa perspectiva, pois também buscamos a construção de uma<br />
proposta curricular “que torne a escola realmente democrática, pela oferta de um<br />
ensino de qualidade” (Santos, 2001:2).<br />
Quando nos deparamos com dicotomias como as anunciadas, ou então, com<br />
diferentes Teorias do Currículo, como as citadas, observamos que falar em mudança<br />
envolve muitos conflitos, contradições e o confronto de forças, que expõem relações<br />
que, como vimos, é parte da constituição do próprio currículo. Tal discussão nunca<br />
está separada da questão do poder, da politicidade do ato educativo, da correlação<br />
de forças no interior da escola, da própria sociedade, e da reflexão sobre uma outra<br />
maneira de compreendermos o currículo escolar. Isso pressupõe, certamente, a<br />
reflexão sobre a possibilidade, ou não, de superarmos, quando discutirmos as<br />
teorias de currículo, a sua própria visão dicotômica, que tende a tornar menor e a<br />
limitar o alcance da discussão. Ao invés de promover mudanças, colocamo-nos num<br />
lado ou no outro lado do problema, simplificando-o.<br />
119<br />
Reflitamos sobre a palavra mudança. Uma primeira imagem cotidiana que<br />
poderíamos visualizar seria a de uma mudança de residência: móveis sendo<br />
afastados e transportados, objetos encaixotados, louças e utensílios sendo<br />
cuidadosamente separados, livros e enciclopédias empoeiradas sendo empilhados<br />
ou roupas colocadas em armários próprios para transporte, em cabides, ou então,
como é muito comum, sendo amontoadas em caixas e em sacos plásticos<br />
improvisados.<br />
Geralmente, várias pessoas se envolvem nesse processo de organização da<br />
mudança, arrastando coisas daqui, levando coisas para ali, carregando ou<br />
descarregando o caminhão ou outro veículo qualquer que vai transportar a<br />
mudança: é um trabalho quase sempre coletivo.<br />
É, ainda hoje, bastante comum observarmos o caminhão aberto, ou a<br />
caminhonete, ou a carroça passando por nós com toda aquela parafernália de<br />
móveis, de utensílios domésticos, de espelhos, bem como o cãozinho doméstico (o<br />
Bidu, o Totó,) e as pessoas se equilibrando, durante o trajeto, nas respectivas<br />
carrocerias desses veículos, que, na verdade, transportam muito mais que objetos<br />
ou animais ou pessoas: carregam junto com eles os sonhos de uma nova vida, de<br />
um novo lugar, uma nova esperança. Mas que também, muito freqüentemente,<br />
levam consigo as incertezas, o medo, a angústia de quem muda para “pior”, como<br />
alguém que morava em casa própria e se vê, de repente, na condição de<br />
“neofavelado”<br />
120<br />
Mudar é, no mais das vezes, uma atividade difícil, um desafio em vários<br />
sentidos, porque quando nos referimos ao movimento de mudança, isto “implica ir<br />
fundo na busca das raízes” (Rosa, 1994:19). Se considerarmos que tudo está em<br />
movimento – e esta é a nossa compreensão de realidade e de natureza humana,<br />
entendemos que cada ser se constitui na relação (complexa) com os outros. Cada<br />
ser vivo evolui na medida em que consegue manter consciência auto-organizativa no<br />
processo de interação (assimilação, exclusão, composição...) com todos os<br />
elementos que constituem o seu ambiente. 39 Este movimento é complexo porque<br />
nos impele a remover certezas, a alterar o que está posto, a lidar com outros<br />
contextos, com outras responsabilidades, leva-nos a rever e a reler os nossos<br />
39 Estas reflexões, principalmente, estas últimas palavras, são contribuições do Prof. Reinaldo Matias<br />
Fleuri, registradas durante o exame de qualificação desta tese de doutoramento, realizado em<br />
06.03.2002. Em notas deixadas pelo mesmo, no texto do trabalho, o Professor Reinaldo observa que<br />
“a coerência e a repetição constituem uma ‘estabilidade’ nas relações e, portanto, trata-se de um<br />
processo de transformação. Cada ser evolui na medida em que consegue manter (estabilidade)<br />
processos de aprendizagem (mudanças) em vários níveis – mecânico, opções individuais; estrutura<br />
contextual; eco-sistema etc)”. Daí percebemos que todo processo de mudança é carregado e<br />
permeado por inúmeras variantes, que só podem ser explicadas e analisadas no contexto em que se<br />
encontram, em que se dão. Nesse sentido, as diferentes formas de resistência à mudança não se<br />
justificam porque são generalizações simplificadas que, ao nosso ver, podem ser superadas no<br />
processo do diálogo e, portanto, no encontro entre as pessoas.
costumes, os nossos hábitos, ou seja, tira-nos de um equilíbrio muitas vezes<br />
confortável. Em outras palavras, mudar implica a necessidade de adaptação ao novo<br />
sem desconsiderar o velho, e tudo o que é novo muitas vezes assusta, gera<br />
ansiedade, insegurança, incerteza: “muda-se o claro dia em noite escura” (Carvalho,<br />
1919:116). Talvez daí advenham muitas resistências às mudanças.<br />
Se analisarmos a mesma questão por outra ótica e se considerarmos,<br />
conforme <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> (1997b), que a cultura do homem (e da mulher) consiste em<br />
recriar e não em repetir – pois o ser humano não é um ser da adaptação, podemos<br />
explicar a mudança como algo sempre presente em nossa vida, em nossa<br />
existência, mesmo acrescentando que, pós-modernamente, a cultura consiste nas<br />
duas coisas: recriar e repetir.<br />
Mudança e estabilidade resultam ambas da ação, do trabalho que o homem<br />
exerce sobre o mundo. Como um ser de práxis, o homem, ao responder aos desafios<br />
que partem do mundo, cria seu mundo: um mundo histórico-cultural (<strong>Freire</strong>, 1997a:46).<br />
E novamente nos perguntamos por que há resistência à mudança? A partir<br />
da educação podemos nos referir, por exemplo, ao problema da falta de<br />
planejamento nas escolas, que ocasiona ações sempre fragmentadas, práticas<br />
pedagógicas inadequadas, avaliação educacional deficiente e falta de compromisso<br />
de educadores e demais sujeitos envolvidos com a educação; a desorganização da<br />
estrutura e funcionamento das escolas, a desmotivação das equipes técnicas em<br />
todos os níveis do sistema de ensino, altos índices de reprovação, evasão, exclusão<br />
e baixos índices de desempenho escolar – problemas todos relacionados ao<br />
currículo da escola.<br />
121<br />
São muitas as causas de resistências às mudanças ou à instauração de um<br />
processo democrático na escola e, por conseguinte, na educação. Argumentos<br />
comuns, segundo Moacir Gadotti (1997a), são as dificuldades apresentadas por<br />
muitos/as educadores/as: “não temos tempo”, “não temos pessoal qualificado”, “a<br />
burocracia é tanta”... Por sua vez, são também comuns as resistências do tipo “já<br />
fizemos isso e não deu certo”, “sem salário não dá”. Além disso, o comodismo, o<br />
imediatismo e o formalismo são também limites e obstáculos sempre apresentados
para justificar a impossibilidade de mudar, de participar, de contribuir, por exemplo,<br />
para a construção coletiva de um processo decisório na escola.<br />
Acrescentaríamos outros argumentos de resistência à mudança igualmente<br />
presentes e recorrentes, que certamente algum de nós já presenciou: “você é um<br />
jovem educador... daqui a alguns anos você se adapta”; “ninguém faz nada para<br />
mudar. Por que eu vou fazer se o outro não faz?”; “deixe essa conversa prá lá:<br />
escute esta nova piada que você vai morrer de rir”; e mais: “estou vendendo estes<br />
objetos... quer comprar?”; “a culpa é do governo”; “a culpa é do diretor”; “Se Deus<br />
quiser, um dia isso muda”; “já estou me aposentando e já fiz muito pela educação:<br />
eu desisto!”; “quem quiser que faça. Já tentei de todo e já fiz a minha parte”. Por trás<br />
dessas resistências estão razões históricas, sociais, culturais e educacionais, que<br />
justificam as diferentes Teorias do Currículo, que vão sendo construídas no<br />
processo educacional, que vão coexistindo e mostrando que as mudanças<br />
acontecem sempre porque forças contrárias se relacionam ou para conservar ou<br />
para transformar o que está posto.<br />
As resistências às mudanças acontecem, em parte, devido<br />
à nossa pouca experiência democrática, a mentalidade que atribui aos técnicos e apenas<br />
a eles a capacidade de planejar e governar e que considera o povo incapaz de exercer o<br />
governo ou de participar de um planejamento coletivo em todas as suas fases, a própria<br />
estrutura de nosso sistema educacional que é vertical, o autoritarismo que impregnou<br />
nossa prática educacional e o tipo de liderança que tradicionalmente domina nossa<br />
atividade política no campo educacional.(Gadotti, 1997a:36).<br />
Partimos da perspectiva de que mudar é possível. Reconhecemos a<br />
tendência heróica desta posição, como o faz <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> ao utilizar em seus<br />
escritos e em sua prática um discurso mobilizador, agregador, justificador e<br />
doutrinário (...) utópico, contestatório, humanista e inovador” (Teixeira, 1999).<br />
Devemos, contudo, não perder de vista a dimensão sócio-histórica, cultural e política<br />
da utopia freiriana, que considera necessária uma ação responsável e ética no<br />
mundo em que vivemos e que reconhece que “a História é tempo de possibilidade e<br />
não de determinismo, que o futuro é problemático e não inexorável” (<strong>Freire</strong>,<br />
1997b:21).<br />
122
Se levarmos em conta que a diversidade cultural, sempre presente na escola,<br />
deve ser respeitada – sem que esse respeito signifique isolamento na sua própria<br />
cultura, e considerando que os grupos comunitários e sociais têm características<br />
próprias, que as pessoas têm ritmos e peculiaridades individuais, que vivem em<br />
contextos históricos determinados, os quais são, ao mesmo tempo, por elas<br />
determinados e que, além disso, são cidadãs locais e globais – é possível<br />
compreender e justificar esta dimensão heróica e utópica até mesmo como<br />
necessária à continuidade existencial da humanidade. E tal dimensão nos faz crer<br />
que é possível apostar nas nossas possibilidades de promover mudanças e<br />
inovações, mesmo considerando a dificuldade dessa promoção e o caráter mais<br />
radical das primeiras e o mais relativo das segundas.<br />
Segundo o Prof. Moacir Gadotti, “estamos sempre buscando operar<br />
mudanças e inovando. Fala-se muito, hoje, em experiências inovadoras que<br />
propõem mudanças” (Gadotti, 2000a:231). Nesse sentido, inovar tem a ver com<br />
“novo”, a inovação tem sempre a ver com algo mais ‘antigo’ e com um caráter<br />
relativo, enquanto que a mudança é mais radical, pois opera rupturas.<br />
Assim sendo, como já afirmamos em relação à mudança, também não<br />
podemos falar em inovação desconsiderando o que já existe e desprezando as<br />
experiências já concretizadas. Sabemos que, no nível do senso comum, acabamos,<br />
muitas vezes, por associar o conceito de inovação a um caráter de ineditismo, como<br />
se, num insight, conseguíssemos “criar” algo inteiramente novo, que não encarna<br />
em si nada do velho, ou então, a contribuição de algum aspecto da tradição.<br />
123<br />
Na prática educacional e no estudo das teorias do currículo, encontrarmos<br />
análises que negam não só a atualidade mas também a presença de algumas<br />
concepções chamadas “tradicionais”, como se elas, de repente, deixassem de<br />
exercer influência sobre nossa cultura, sobre nossas práticas e experiências. Isso é<br />
um equívoco. Portanto, quando estudamos o significado de currículo, estamos<br />
considerando a inevitável coexistência, positivamente conflituosa, das diferentes<br />
teorias do currículo, que vão aos poucos se transformando e mudando a prática<br />
curricular na escola. Na prática, este conflito se traduz, por exemplo, no embate<br />
entre concepções universalistas e particularistas de conhecimento. Assim, é<br />
importante destacar que qualquer tentativa de inovação educacional deve considerar<br />
que ela exige o conhecimento do instituído, a motivação para a sensibilização e o<br />
reconhecimento das necessidades existentes, a identificação de um referencial
teórico que imprima consistência à proposta, uma comunicação eficiente, um sentido<br />
explícito, objetividade, flexibilidade e exeqüibilidade sobre o que se quer inovar, além<br />
das práticas processuais de avaliação e auto-avaliação sobre as propostas de<br />
inovação que será/está sendo implementada (Gadotti, 2000a).<br />
Diante das reflexões preliminares sobre currículo e dos últimos comentários<br />
sobre mudança e inovação, incluindo nossa apresentação em torno de nossas<br />
experiências pessoais na infância, observamos que o currículo da escola leva em<br />
conta todas essas questões e, por conseguinte, é constituído por todas elas.<br />
Partindo das histórias da vida (Pineau & Le Grand, 1996), acreditamos que ao<br />
estudarmos a problemática escolar devemos, em primeiro lugar, conhecer a<br />
trajetória dos sujeitos envolvidos na definição do currículo. Importa aí, por exemplo,<br />
a contribuição da antropologia, que nos ensina que, por meio do relato etnográfico<br />
da vida cotidiana<br />
é possível detectar as formas de ação humana, usos de linguagem (verbal e não verbal),<br />
relação criança-adulto, existentes em um determinado grupo, e as variações existentes<br />
entre um grupo e outro. É neste aspecto que a antropologia interessa ao educador<br />
porque ela revela o contexto de desenvolvimento e as práticas correntes na comunidade<br />
para ensinar as crianças (Lima, 1997:13).<br />
Nesse sentido, de acordo com o que nos ensinam as Teorias Críticas do<br />
currículo, há uma idealização do aluno a partir da ideologia vigente e predominante<br />
na escola, que tende a desconsiderar, no sistema educativo, as demais<br />
aprendizagens dos discentes.<br />
Muito antes de iniciar o seu trajeto na escola formal, a criança possui um<br />
acúmulo de experiências e de aprendizagens. Ela já traz inúmeros saberes e<br />
acumula conhecimentos práticos que serão mobilizados quando em contato com as<br />
aprendizagens ditas formais (Vieira, 1999). Por isso, concordamos com o Professor<br />
Tomáz Tadeu da Silva quando este se refere ao currículo como “documento de<br />
identidade”, pois esta identidade é forjada durante toda a vida da criança e, portanto,<br />
deve ser considerada e resgatada pela escola.<br />
124<br />
O pensamento de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, que é um “produto existencial e histórico”,<br />
comprovando as teses do filósofo Álvaro Vieira Pinto em sua obra Ciência e
existência (1979), também nos ajuda a compreender melhor o significado de<br />
currículo. Ele forjou seu pensamento de luta na práxis, entendida como “ação mais<br />
reflexão”, definição que ele mesmo formulou. E quando nos referimos à práxis,<br />
devemos logo nos defender contra qualquer conotação pragmática ou utilitária e<br />
entendê-la como “ação transformadora” (Gadotti, 1996a).<br />
Desde Pedagogia do oprimido e em toda a sua obra, encontramos em <strong>Paulo</strong><br />
<strong>Freire</strong> a defesa de uma relação horizontal e da participação dialógica 40 entre<br />
educador e educando. Isso aponta para o desenvolvimento de uma pedagogia<br />
dialógico-dialética, em que, além da necessidade de uma “ação criadora”, o<br />
educador deve aliar-se ao educando em sua atividade prática educativa no cotidiano<br />
da escola, desenvolvendo continuamente o trabalho escolar de forma que os vários<br />
elementos do processo ensino-aprendizagem se relacionam de maneira a que todos<br />
possam ensinar e aprender. E esta relação deve considerar, em primeiro lugar, o<br />
respeito às experiências do aluno, a partir da qual se constrói o currículo escolar.<br />
Mas não só. Conforme as palavras da Professora Elvira Souza Lima,<br />
sabemos, pelo conhecimento acumulado pela antropologia e psicolingüística, que a<br />
aprendizagem depende das práticas culturais e sociais do grupo no qual o indivíduo está<br />
inserido, depende dos instrumentos culturais (incluindo aí o conjunto de técnicas de ação<br />
sobre o meio acumuladas na história da humanidade), depende dos sistemas<br />
expressivos que o indivíduo desenvolve, da mediação de sistemas simbólicos (da escrita<br />
à informática), da vivência concreta com o objeto do conhecimento (LIMA, 1998:17).<br />
125<br />
E todos esses contributos para a aprendizagem devem ser também<br />
considerados na definição do currículo escolar, estimulando assim o<br />
desenvolvimento da expressividade do ser humano e o processo educativo escolar<br />
livre das amarras da doação do conhecimento ou, como falou <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, da<br />
“educação bancária”, que tem por referência as Teorias Clássicas ou Tradicionais de<br />
currículo, de caráter universalista, técnico e burocrático, que tem predominado, que<br />
tem orientado as experiências de educação no país, sempre criticadas por <strong>Freire</strong>.<br />
Neste particular, é oportuno enfatizarmos e termos em mente que uma análise no<br />
40 “O diálogo é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o ‘pronunciam’, isto<br />
é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a humanização de todos”. (<strong>Freire</strong>,<br />
1982a:43).
campo das Teorias Críticas do currículo, dentro de uma tradição teórica no campo<br />
educacional pós-colonial, segundo nos fala o professor Tomáz Tadeu da Silva<br />
(1999). Na mesma direção, observamos a crítica da professora Ana Maria Saul,<br />
quando ela afirma que<br />
a tradição educacional brasileira, em torno do currículo, é presidida pela lógica do<br />
controlo técnico. O currículo tem sido tratado, inspirado no paradigma técnico-linear de<br />
Ralph Tyler (1974), como uma questão de decisão sobre objetivos a serem atingidos,<br />
“grades curriculares” que definem as disciplinas, tópicos de conteúdo, carga horária,<br />
métodos e técnicas de ensino e avaliação de objetivos preestabelecidos. Desse<br />
entendimento, construção e reformulação de currículos têm-se reduzido a um conjunto<br />
de decisões supostamente “neutras”, tomadas, a nível da escola de 1.º e 2.º graus, em<br />
gabinetes das secretarias estaduais e municipais de educação, de acordo com a<br />
legislação vigente, atendidas as regulamentações dos conselhos federais e estaduais de<br />
educação. Tais decisões passam a constituir a “Pedagogia dos Diários Oficiais” e as<br />
respectivas publicações complementares do tipo: “Guias Curriculares”, “Propostas<br />
Curriculares”, “Subsídios para Implementação do Currículo” e outras, chegando à escola<br />
como pacotes que devem ser aplicados pelos professores em suas salas de aula. Na<br />
realidade, esse nível prescritivo do currículo acaba se distanciando em muito daquele de<br />
John Goodlad (1977) denomina currículo operacional, que significa o que acontece “de<br />
facto” na sala de aula” (Saul, 1998:153).<br />
126<br />
Por outro lado, há outros movimentos educacionais que hoje já podem ser<br />
observados em diversas experiências no país que, na definição do currículo,<br />
consideram sob novos olhares as diversas dimensões da formação da pessoa<br />
humana, tanto do discente como do docente e, sobretudo, “uma compreensão maior<br />
do processo em uma perspectiva de não fragmentação” (Lima, 1997:22). O currículo<br />
assim considerado, que confirma as características das Teorias Pós-Críticas, leva<br />
em conta as dimensões objetivas e subjetivas da formação da pessoa e das<br />
relações pessoais e impessoais que elas estabelecem tanto na escola como no<br />
mundo em que vivem, resgatando não apenas as suas experiências pessoais mas<br />
também, sobretudo, estimulando a troca de experiência e a ênfase às dimensões<br />
grupais. Procura-se evitar contrapor a aprendizagem que se dá na escola com a que<br />
ocorre fora da escola como mutuamente excludentes; temos a possibilidade de<br />
pensar a ação pedagógica em dimensões pouco explicadas até o presente
momento. Ou seja, a da formulação de uma pedagogia que seja ao mesmo tempo<br />
culturalmente relevante e que não se afaste do conhecimento formal’ (id., ib.:14).<br />
Daí a importância de continuarmos a refletir sobre o currículo em suas<br />
dimensões teórico-práticas, ou seja, partindo das experiências concretas escolares<br />
que, a cada dia mais, estão se apresentando com novas roupagens, seja<br />
acompanhando a produção teórica relacionada ao tema, que nos ajuda a repensar a<br />
própria prática e a superar velhas dicotomias e análises bipolares entre, por<br />
exemplo, universalismos e particularismos, razão e emoção etc. Teorizar o currículo<br />
deve, antes de mais nada, significar a reflexão sobre as ações educativas<br />
desenvolvidas na escola de forma a avançar em relação aos diferentes e múltiplos<br />
contextos nos quais eles são produzidos.<br />
Também para o Professor J. Gimeno Sacristán (1998), um dos importantes<br />
estudiosos contemporâneos do currículo, que também consideramos presente no<br />
debate, no mínimo, dentro das Tradições Pós-Críticas, não podemos mais reduzir os<br />
problemas relevantes do ensino à problemática da técnica de instrumentalizar o<br />
currículo, pois isso significaria abandonar o desafio de superação e de<br />
enfrentamento dos problemas, dos conflitos, dos interesses, das resistências das<br />
mudanças as contradições presentes na escola, como já nos referimos<br />
anteriormente. Para aquele autor,<br />
os currículos são a expressão do equilíbrio de interesses e forças que gravitam sobre o<br />
sistema educativo num dado momento, enquanto que através deles se realizam os fins<br />
da educação no ensino escolarizado. Por isso, querer reduzir os problemas relevantes<br />
do ensino à problemática técnica de instrumentalizar o currículo supõe uma redução que<br />
desconsidera os conflitos de interesses que estão presentes no mesmo. O currículo, em<br />
seu conteúdo e nas formas através das quais se nos apresenta e se apresenta aos<br />
professores e aos alunos, é uma opção historicamente configurada, que se sedimentou<br />
dentro de uma determinada trama cultural, política, social e escolar; está carregado,<br />
portanto, de valores e pressupostos que é preciso decifrar. Tarefa a cumprir tanto a partir<br />
de um nível de análise político-social quanto a partir do ponto de vista de sua<br />
instrumentação “mais técnica”, descobrindo os mecanismos que operam em seu<br />
desenvolvimento dentro dos campos escolares (Sacristán, 1998:17).<br />
127
A reflexão teórica realizada sobre experiências curriculares ganha importância<br />
na medida em que, processualmente, vamos descortinando o nosso próprio objeto<br />
de pesquisa, com a permanente preocupação de não bipolarizar os nossos próprios<br />
argumentos. E esta é, segundo entendemos, avaliar processualmente a nossa<br />
própria produção, dimensão sempre necessária e presente quando pensamos e<br />
produzimos currículo. Advém, daí, o necessário cuidado em nos reconhecermos<br />
sujeitos históricos, potencialmente construtores do currículo: podemos escrever a<br />
história e, como sujeitos autores e atores, individuais e coletivos que somos,<br />
situamo-nos numa concepção de ciência não asséptica, nunca neutra, como<br />
algumas concepções curriculares querem fazer crer.<br />
Como nos lembra Michael W. Apple (2003), ao falarmos de currículo escolar,<br />
estamos entrando num campo de batalha dos mais freqüentados na última década.<br />
Segundo ele, a intensidade desta discussão tem sido alimentada, em grande parte,<br />
pelas queixas neoliberais a respeito de um saber ‘economicamente inútil’, pelas<br />
lamentações neoconservadoras a respeito de uma suposta perda de disciplina e falta de<br />
‘verdadeiro saber’ e pelos ataques incessantes dos grupos religiosos populistas e<br />
autoritários às escolas por sua suposta perda de valores ‘tradicionais’ revelados por<br />
Deus, as discussões sobre o que deve ser ensinado nas escolas, e de que maneira, são<br />
agora tão acaloradas quanto sempre foram em nossa história (Apple, 2003:246).<br />
Chama-nos a atenção o argumento de Apple sobre a eficiência dos “da<br />
direita” – neoconservadores e liberais – que têm obtido êxito na sua empreitada e na<br />
sua liderança em estimular as atuais discussões e reflexões sobre currículo e,<br />
principalmente, de controlar rigorosamente os currículos escolares conforme a<br />
conexão que fazem entre os mapas da realidade que eles criam, e os<br />
elementos de bom senso que as pessoas têm (e) alterando o próprio significado de<br />
conceitos-chave e das estruturas afetivas que os acompanham para estabelecer os<br />
centros de gravidade de nossas esperanças, temores e sonhos em relação à nossa<br />
sociedade (ib.:241).<br />
128
Apple afirma que, se a direita consegue se articular e “atrair as pessoas para<br />
baixo de seu guarda-chuva ideológico tem muito a nos ensinar” (id.:240-41).<br />
Teremos maiores dificuldades, certamente, até mesmo considerando as diferenças<br />
econômicas e de poder entre as forças que se relacionam na sociedade, de assumir<br />
o protagonismo das políticas educacionais. No entanto, mesmo diante de tais limites,<br />
é possível pensar nas nossas possibilidades de intervenção positiva e prospectiva<br />
ao pensarmos no currículo e num processo educacional progressista, que fuja aos<br />
ditames da ideologia conservadora. Certamente, levando-se em consideração que<br />
esta nossa perspectiva deve ser pensada “com restrições; (pois) essa é a condição<br />
do nosso tempo”( Apple, 2003:246) – conforme palestra inédita de Cameron McCarthy,<br />
durante a International Sociology of Education Conference, University of Sueffield,<br />
Sheffield, Inglaterra, em janeiro de 2000, conforme registra Michael Apple (ib).<br />
Tomando todos estes cuidados, é que pensamos na associação entre<br />
currículo e complexidade, visando à reconstrução de uma proposta alternativa e<br />
propositiva de currículo que, em certa medida, possa vir ao encontro deste<br />
movimento por uma educação realmente favorável à emancipação do ser humano,<br />
em que pensar no currículo se torne uma prática comum entre os diferentes<br />
participantes do processo educacional.<br />
Se este é o lugar de onde falamos, não restam dúvidas de que nos situamos<br />
ideológica e politicamente pela mudança da situação dada, do status quo em que se<br />
encontra a sociedade. Nesse sentido, não se trata de carregar bandeiras ideológico-<br />
políticas, de forma panfletária, no contexto de uma tese, como poderiam sugerir<br />
argumentos de uma ciência mais refratária à mudança ou pouco simpática ao<br />
reconhecimento de que a própria ciência está passando por um processo de<br />
transformação, que está muito além do reconhecimento da não existência de<br />
neutralidade científica. A Ciência da qual falamos, ligada ao pensamento complexo<br />
que integra os diferentes modos de pensar, se opõe, conforme nos lembra a<br />
Professora Izabel Petraglia (2001), aos mecanismos reducionistas. A referida<br />
pesquisadora da obra de Edgar Morin afirma que o mesmo<br />
129<br />
acredita que uma ciência libertadora deve mover o diálogo com a sociedade, a técnica e<br />
a política e que desse diálogo podem surgir reflexões sobre cada um de nós e nossa
participação no universo sociocultural. Afinal, a ciência do homem ainda está nascendo...<br />
(2001:23).<br />
Ao fazermos ciência, passamos a assumir a provisoriedade do conhecimento<br />
científico e, ao mesmo tempo, as suas vinculações ideológico-políticas. E fazê-lo,<br />
como escreve Mário Sérgio Cortella, significa reaprender a dizer a palavra não. A<br />
“Educação e a Escola são os lugares nos quais podemos dizer e exercer mais<br />
fortemente o nosso não. Não à miséria; não à injustiça; não à contradição humano<br />
versus humano; não à Ciência exclusivista; não ao poder opressor” (Cortella,<br />
1998:157). (Grifos nossos). Com isso, ao discutirmos currículo, assumiremos a<br />
presença ostensiva da existência de poder na escola, que se manifesta de diferentes<br />
formas – nas relações pessoais, interpessoais, grupais, comunitárias, da<br />
organização e funcionamento da unidade escolar nos aspectos pedagógicos,<br />
administrativos, financeiros, na capacidade de dizer sim e não. Discutirmos sobre<br />
currículo da escola, no contexto de uma sociedade complexa, implica numa tomada<br />
de posição. Tomada de posição no presente, hoje, para fecundarmos o futuro. Nas<br />
palavras do professor Cortella,<br />
A nova realidade social a ser parida também por nós educadores é mais do que<br />
uma espera (nostalgia do futuro); é um escavar no hoje de nossas práticas à procura<br />
daquilo que hoje pode ser feito. Esse hoje é uma das pontas do nó do futuro a ser<br />
desatado, fruto de situações que não se alteram por si mesmas, nem se resolvem com<br />
um ‘ah! Se eu pudesse...’ ‘ah!, no meu tempo’. ...<br />
Nosso tempo, o dos educadores, é este hoje em que já se, em gestação, o<br />
amanhã. Não um qualquer, mas um amanhã intencional, planejado, provocado agora.<br />
Um amanhã sobre o qual não possuímos certezas, mas sabemos possibilidade. Pode<br />
parecer romântico (até piegas); no entanto, é dessa utopia que não nos podemos<br />
apartar, sob a pena de perdermos o sentido da humanidade” (Cortella, 1998:158-59).<br />
Gestar um amanhã significa pensarmos, hoje, na complexidade da ciência, da<br />
nossa sociedade e da nossa escola, o que, segundo J. Gimeno Sacristán, remete-<br />
nos a decidir sobre o que entendemos quando falamos de currículo, no que se refere<br />
à existência ou não, por exemplo, de uma cultura comum. Segundo aquele autor,<br />
130
para decidi-la será imperativo considerar quais de seus conteúdos servem à igualdade<br />
necessária, naquela competência cultural sobre a qual não se podem fazer distinções, e<br />
decidir que outros métodos não são essenciais, nos quais se possam fazer<br />
diferenciações sem violar o princípio da igualdade básica. O problema é difícil de<br />
resolver e depende de um diálogo profundo na sociedade. (Sacristán, 2002:247).<br />
Entendemos que este posicionamento em relação à ciência vem também ao<br />
encontro do que já nos ensinou <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, quando ele manifestou sua recusa a<br />
uma certa crítica cientifista (1995a), como ele mesmo escreveu, respondendo às<br />
insinuações de que faltava a ele rigor no modo como escrevia seus livros e como<br />
defendia as suas posições políticas e pedagógicas. A crítica à qual <strong>Freire</strong> se refere,<br />
relacionada também à sua linguagem “demasiadamente afetiva”, resultou numa de<br />
suas importantes contribuições, no nosso entender, para o que hoje aceitamos como<br />
fundamentos de uma pedagogia mais aberta às demais ciências e para o<br />
reconhecimento de que ciência não se restringe a um pensamento fragmentado, até<br />
porque desta forma ela já não responde às demandas do mundo globalizado. <strong>Freire</strong><br />
explica que<br />
a paixão com que conheço, falo ou escrevo não diminuem o compromisso com que<br />
denuncio ou anuncio. Sou uma inteireza e não uma dicotomia. Não tenho uma parte<br />
esquemática, meticulosa, racionalista e outra desarticulada, imprecisa, querendo<br />
simplesmente bem ao mundo. Conheço com meu corpo todo, sentimentos, paixão.<br />
Razão também. (<strong>Freire</strong>, 1995a:18).<br />
Fazer ciência é, também para nós, manifestação de paixão. Paixão pelo<br />
exercício da própria ciência, que não dispensa a organização do pensamento e a<br />
argumentação clara, até para que se garanta, metodologicamente, a defesa das<br />
teses propostas. É a<br />
131<br />
paixão pelo humano que habita, de forma convulsiva, a tensão articulada entre o<br />
epistemológico e o político, onde se dá o encontro do sonho de um Conhecimento como
ferramenta da Liberdade e de um Poder como amálgama da convivência igualitária”<br />
(Cortella, 1998:159).<br />
Observamos, no conjunto dos referidos argumentos, contribuições afirmativas<br />
relacionadas a algumas teses do pensamento complexo. Como <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong><br />
também escreveu,<br />
muitos têm sido os pensares em torno deste ou daquele desafio que me instiga, desta ou<br />
daquela dúvida que me inquieta mas também me devolve à incerteza, único lugar de<br />
onde é possível trabalhar de novo necessárias certezas provisórias. Não é que nos seja<br />
impossível estar certos de alguma coisa: impossível é estar absolutamente certos, como<br />
se a certeza de hoje fosse necessariamente a de ontem e continue a ser a de amanhã.<br />
Sendo metódica, a certeza da incerteza não nega a solidez da possibilidade cognitiva. A<br />
certeza fundamental: a de que posso saber. Sei que sei. Assim como sei que não sei o<br />
que me faz saber: primeiro, que posso saber melhor o que já sei; segundo, que posso<br />
saber o que ainda não sei; terceiro, que posso produzir conhecimento ainda não<br />
existente (<strong>Freire</strong>, 1995a:18).<br />
Contribui também para esta nossa reflexão sobre currículo e complexidade, a<br />
obra de Gregory Bateson (1904-1980) 41 , para quem todo conhecimento se insere<br />
num contexto – ou seja, deve ser considerado dentro de um universo que é um<br />
imenso organismo que está em permanente ação e interação. Este autor se<br />
preocupou em desenvolver uma epistemologia que, antes de mais nada, deveria ser<br />
construída a partir dos seres vivos. Daí a sua ênfase na busca de entender como as<br />
idéias são construídas e, por conseguinte, seus estudos relacionados à natureza e à<br />
mente.<br />
132<br />
Bateson, ao fundamentar o seu trabalho na observação e na experimentação,<br />
propõe que todas as nossas idéias a respeito do que observamos passem,<br />
necessariamente, pela atenção à singularidade e à natureza de tudo o que<br />
41 Gregory Bateson foi antropólogo, biólogo, psiquiatra e cibernético. Autor de vários livros voltados,<br />
principalmente, para a temática da comunicação humana, é ainda pouco conhecido e publicado no<br />
Brasil. Plantou o alicerce do que se pode chamar de uma “Antropologia da Comunicação”. Seu único<br />
livro traduzido para o português é Mente e natureza: a unidade necessária. Trad. Claudia Gerpe. Rio<br />
de Janeiro : Francisco Alves, 1986. Tradução de Mind and nature: a necessary unity, 1979. Escreveu,<br />
entre outros, un’ecologia della mente. Trad. Giuseppe Longo : Milano : Adelphi, 1976. Tradução de:<br />
Steps to na ecology of mind, 1972 e, em parceria com Jurgen Ruesch, Communication. The Social<br />
Matrix of Psychiatry, New York, W.W. Norton & Company, 1951 (com reedições em 1968 e 1987.<br />
Versão francesa: Communication et Société, Paris, Seuil, 1988.
observamos. Segundo ele, tal procedimento oferece, em termos comunicacionais,<br />
uma “informação de diferenças”. Mas toda a sua obra,<br />
fica perpassada por uma determinação e uma busca: ‘Procuro a estrutura que liga os<br />
seres vivos’. Bateson dirá: ‘Qual a estrutura que liga o caranguejo do mar à lagosta e a<br />
orquídea à prímola? E o que os liga, eles quatro, a mim? E o que me liga a vocês? E nós<br />
seis à ameba, por um lado, ao esquizofrênico que internamos, por outro lado?<br />
Poderíamos acrescenta: o que liga um professor universitário a uma pessoa<br />
esquizofrênica ou a um vampiro? E o que liga o cego e o cachorro que o guia? Qual a<br />
estrutura que ‘liga’, ‘coliga’ o ‘espírito à natureza’, o mundo dos ‘vivos’ ao mundo dos<br />
“mortos” (...) Gregory Bateson, vejam, propõe-nos e procura despertar dentro de nós um<br />
novo ‘estado do olhar’ sobre uma leitura comunicacional do mundo social (dos seres<br />
vivos). Uma comunicação encarada não mais e apenas como ato individual, e sim como<br />
fato cultural, uma instituição e um sistema social. Uma comunicação refletida não mais e<br />
apenas como uma telegrafia relacional, mas, sim, como uma orquestração ritual,<br />
eminentemente sensível e sensual. (Samain, 2001:10-11)<br />
Ao nos referirmos ao currículo escolar, na perspectiva que aqui estamos<br />
encaminhando, estaremos também buscando entender como “ligar” as diferentes<br />
ações e relações que se estabelecem na escola e na educação, visando à formação<br />
humana plena, em todas as suas dimensões, entre todas as formas de<br />
conhecimento, entre a multiplicidade de saberes, sejam eles científicos, sejam eles<br />
nascidos ou vindos de formas mais complexas do saber e da cultura do ser humano.<br />
Sobretudo porque a escola e, antes dela, a ciência moderna, isolou e fragmentou o<br />
conhecimento de tal forma que hoje se torna difícil recuperar a totalidade do<br />
conhecimento e “juntar os pedaços” da nossa própria realidade e, a partir daí, da<br />
própria representação da realidade de acordo com o que vemos no território e não<br />
apenas no cenário pintado ou traçado pela ciência, da realidade que, efetivamente, é<br />
compartilhada pela natureza humana.<br />
Estamos falando da possibilidade de integrarmos e de articularmos diferentes<br />
contextos educativos, sejam eles objetivos, subjetivos, sociais e culturais, conforme<br />
nos lembra o professor Reinaldo Matias Fleuri (1999). Para ele,<br />
133
o currículo e a programação didática, mais do que um caráter lógico, terão uma função<br />
ecológica, ou seja, sua tarefa não será meramente a de configurar um referencial teórico<br />
e o repasse hierárquico e progressivo de informações, mas terá a tarefa de prever e de<br />
preparar recursos capazes de ativar a elaboração e circulação de informações entre<br />
sujeitos, de modo que se auto-organizem com relação à reciprocidade entre si e com o<br />
próprio ambiente. (Fleuri, 1999:288)<br />
A capacidade de auto organização a que se refere o Professor Fleuri, remete-<br />
nos a outras abordagens de nosso estudo, por exemplo, à análise do significado<br />
antropológico da autoformação (Galvani, 2003), sobre a qual nos debruçaremos<br />
para tentar um levantamento das principais características do que seja a<br />
transculturalidade. De qualquer forma, pensaremos na importância de um processo<br />
de formação do sujeito e também, vinculado a ele, da constituição de um currículo,<br />
que por sua dimensão transcultural possa permitir àquele a assunção de uma<br />
interação da sua pessoa com o meio ambiente físico, social e cultural em que vive.<br />
Sem renunciar à ciência, o que seria, segundo Bateson, uma tolice (cf.<br />
Reinaldo Matias Fleuri citando Conserva, 1998), estamos tentando enfrentar o<br />
desafio de, justamente, numa perspectiva da pedagogia entendida como ciência e<br />
arte da educação, complexa e aberta às demais ciências, promover este encontro da<br />
multidimensionalidade do ser humano consigo mesmo e com o conhecimento.<br />
134<br />
A sociedade atual, o mundo e a escola em que vivemos, apresenta-nos<br />
diariamente problemas tão complexos para os quais a ciência, tal como tem sido<br />
hoje entendida – positiva, fenomenal, objetiva – não têm dado respostas.<br />
Desafiarmo-nos ao enfrentamento dos problemas que surgem no nosso cotidiano,<br />
torna-se uma exigência da práxis de uma educação que se quer transformadora,<br />
radicalmente democrática e libertadora da pessoa. Trata-se de assumir uma posição<br />
ideológico-política diante da realidade e da ciência e não uma atitude panfletária,<br />
como alguém poderia supor. Por isso, enquanto cientistas da educação, o nosso<br />
primeiro desafio é desocultar e reconhecer os problemas da nossa prática<br />
educacional, sem deixá-los de lado porque os julgamos irrelevantes ou de menor<br />
importância para o currículo da escola. Fazer o contrário, isso sim, é engajar-se,<br />
pela ação ou pela omissão, à manutenção de uma ordem científica que se proclama<br />
neutra mas que, na verdade, defende interesses ideológicos e políticos que acabam
por conservar e, mais ainda, por ampliar a desigualdade e a exclusão social. Como<br />
afirma <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> em A importância do ato de ler (1999a:25),<br />
na medida em que compreendemos a educação, de um lado, reproduzindo a ideologia<br />
dominante, mas, de outro, proporcionando, independentemente da intenção de quem o<br />
poder, a negação daquela ideologia (ou o seu desvelamento) pela confrontação entre ela<br />
e a realidade (como de fato está sendo e não como o discurso oficial diz que ela é),<br />
realidade vivida pelos educandos e pelos educadores, percebemos a inviabilidade de<br />
uma educação neutra (...) o que temos então, enquanto educadoras ou educadores, é<br />
aclarar, assumindo a nossa opção, que é política, e sermos coerentes com ela, na<br />
prática.<br />
Ao refletir sobre as implicações pedagógicas da complexidade,<br />
fundamentando-se em Gregory Bateson (1986 99-100), o Professor Reinaldo Matias<br />
Fleuri explica que<br />
ao procurar elaborar uma compreensão dos processos e contextos educativos que<br />
permitem a articulação entre diferentes contextos culturais, assumimos como referência<br />
que o processo educativo se desenvolve como um sistema mental, composto por<br />
múltiplos elementos, cuja interação é acionada por diferenças que, ativadas por energia<br />
colateral, desencadeiam versões codificadas e circulam em cadeias de determinação<br />
complexas, que se articulam em uma hierarquia de tipos lógicos inerente ao próprio<br />
processo de (Fleuri, 1999:287-8).<br />
Nessa perspectiva, caberia ao educador, conforme a conclusão de Fleuri,<br />
uma ação voltada à proposição de estímulos (a energia colateral) para que, a partir<br />
desta estimulação energética, as diferenças entre os sujeitos, tantas vezes<br />
esquecidas ou, pior ainda, escondidas e negligenciadas, fossem fonte das<br />
mudanças que seriam promovidas no próprio sujeito e nos respectivos contextos.<br />
Daí a visão de currículo com outra função, como já temos mencionado, que articule<br />
não se restrinja às dimensões da racionalidade humana.<br />
135<br />
Aqui nos voltamos para outra importante característica que o currículo passa<br />
a ter: ele assume um caráter de processo a partir de diferentes contextos, porque<br />
em construção e construído em diversificados espaços-tempos. Isto favorece a não
dicotomização entre razão e emoção, o que o faz avançar no que se refere às bases<br />
sobre as quais ele se constrói. Nesse sentido, conforme a Professora Elvira Souza<br />
Lima, lembramos que<br />
para Wallon, a emoção é mesmo a base sobre a qual se dá o desenvolvimento da<br />
inteligência. Ou seja, não há dicotomia entre emoção e razão no ser humano, nem há<br />
uma interferência negativa da emoção na racionalidade humana. Na verdade elas são<br />
interdependentes. A formação do ser humano tem como elemento constituinte a emoção<br />
(LIMA, 1998:18).<br />
Por outro lado, observamos também, conforme nos lembra a mesma autora,<br />
que, para Vigotsky, que amplia a discussão sobre a emoção e nos fala da arte como<br />
técnica social da emoção. Ora, é preciso frisar com todas as letras o significado<br />
destas palavras que, no nosso entender, revoluciona o conhecimento em relação à<br />
sua organização enquanto ciência, conforme a situaram Descartes (1596-1650),<br />
Spinoza (1632-1677) e o alemão Leibniz (1646-1716),<br />
para os quais a principal fonte e prova decisiva do conhecimento eram os raciocínios<br />
apoiados em princípios inatos evidentes por si mesmos e sustentados pela exatidão dos<br />
modelos matemáticos”. Ou então, como também defendiam os ingleses Bacon (1561-<br />
1626) e Locke (1632-1704), e o escocês Hume (1711-1776), que defendiam a<br />
importância da percepção sensível o fato de que “todo conhecimento provém da<br />
experiência (e) com ela deve ser provado, à cata da descoberta das leis estáveis da<br />
natureza (Cortella, 1998:96).<br />
136<br />
Observamos, em pleno início do Século XXI, o surgimento de outros<br />
paradigmas de ciência, de outras formas de concepção do conhecimento, que<br />
procuram superar as defesas radicalizadas, por exemplo, de um conhecimento<br />
universalista ou particularista. Parece-nos que, diante de um mundo globalizado,<br />
deparamo-nos com a necessidade do fim das históricas dicotomias, bem como com<br />
a defesa, nas diferentes áreas do conhecimento, da superação de uma visão linear<br />
de ciência, que tanto influenciou os estudos e práticas relacionados ao currículo,<br />
desenvolvendo a tendência de acomodar as coisas, isto é, de se trabalhar apenas<br />
com aquilo que era possível observar, medir, mensurar, quantificar. O currículo da
escola, que antes era apenas um recorte ou então sinônimo de conteúdo escolar,<br />
apresenta-se agora como um processo amplo, complexo, que deve considerar não<br />
apenas o que se deve saber, mas o como e também o para que aprender, por que<br />
aprender e mesmo quem deve aprender este ou aquele conhecimento.<br />
A clareza em relação às respostas a cada uma destas questões é<br />
fundamental para que possamos pensar numa organização curricular coerente com<br />
a educação que queremos e, mais do que ela, com o mundo que queremos<br />
construir. Estamos aqui nos reportando às dimensões filosóficas, sociológicas,<br />
psicopedagógicas, antropológicas da educação, entre outras tantas presentes<br />
naquelas perguntas.<br />
No livro intitulado Educar para quê? Contra o autoritarismo da relação<br />
pedagógica na escola (Fleuri, 2001a), encontramos explicações breves, porém<br />
substantivas e objetivas, para as questões acima: é preciso questionar para quem<br />
educar porque, ao fazê-lo, estaremos discutindo quais sujeitos estarão participando<br />
e tomando decisões de interesse de toda a comunidade escolar.<br />
Quando nos referimos à questão do para quê educar, estamos nos<br />
perguntando sobre a própria distinção dos objetivos do processo educativo, “desde<br />
os mais imediatos da educação (como as habilidades, as atitudes, os conceitos que<br />
se pretende formar), dos objetivos mais amplos e fundamentais (como o tipo de<br />
profissional, de homem, de sociedade que se pretende reforçar” (id., ib.:51).<br />
Todas as questões estão sempre relacionadas. Nesse sentido, o como<br />
educar se refere aos “meios”, às estratégias sobre como alcançar as metas e os<br />
nossos objetivos, todos vinculados aos conhecimentos (o quê) que deverão ser<br />
aprendidos na escola. (Fleuri, 2001a). Diríamos mais: ele se refere também a todos<br />
os tipos de informações, conhecimentos, saberes e aprendizagens relacionados ao<br />
processo educacional, sempre objeto de uma avaliação igualmente processual.<br />
De acordo com o professor Reinaldo Matias Fleuri (2001a), parece que nada<br />
mais admite uma explicação simples ou então uma certeza totalmente<br />
inquestionável. Vejamos um exemplo ilustrativo, na conclusão de um pequeno<br />
ensaio sobre identidades culturais, de Stuart Hall, que confirma o que acabamos de<br />
dizer.<br />
137
O ressurgimento do nacionalismo e de outras formas de particularismos no final<br />
do século XX, ao lado da globalização a ela intimamente ligado, constitui, obviamente,<br />
uma reversão notável, uma virada bastante inesperada dos acontecimentos. Nada nas<br />
perspectivas iluministas modernizantes ou nas ideologias do Ocidente – nem o<br />
liberalismo nem, na verdade, o marxismo, que, apesar de toda sua oposição ao<br />
liberalismo, também viu o capitalismo como o agente involuntário da ‘modernidade’-<br />
previa tal resultado.<br />
Tanto o liberalismo quanto o marxismo, em suas diferentes formas, davam a<br />
entender que o apego ao local e ao particular dariam gradualmente vez a valores e<br />
identidades mais universalistas e cosmopolitas ou internacionais; que o nacionalismo e a<br />
etnia eram formas arcaicas de apego – a espécie de coisa que seria ‘dissolvida’ pela<br />
força revolucionadora da modernidade. De acordo com essas ‘metanarrativas’ da<br />
modernidade, os apegos irracionais ao local e ao particular, à tradição e às raízes, aos<br />
mitos nacionais e às ‘comunidades imaginadas’, seriam gradualmente substituídos por<br />
identidades mais racionais e universalistas. Entretanto, a globalização não parece estar<br />
produzindo nem o triunfo do ‘global’ nem a persistência, em sua velha forma nacionalista,<br />
do ‘local’. Os deslocamentos ou os desvios da globalização mostram-se, afinal, mais<br />
variados e mais contraditórios do que sugerem seus protagonistas ou seus oponentes.<br />
Entretanto, isto também sugere que, embora alimentada, sob muitos aspectos, pelo<br />
Ocidente, a globalização pode acabar sendo parte daquele lento e desigual, mas<br />
continuado, descentramento do Ocidente” (Hall, 1997:105-106).<br />
Na seqüência das nossas reflexões, relacionaremos currículo e<br />
complexidade, visando ao estabelecimento das bases que nos permitirão definir, no<br />
final deste trabalho, os elementos constituintes do currículo intertranscultural.<br />
Segundo Edgard Morin, não é possível apenas pensarmos de forma<br />
contextualizada; é preciso que pensemos também de forma complexa e, por<br />
conseguinte, analisarmos a concretude de uma experiência sob diferentes matizes.<br />
Dessa forma, conforme explica aquele autor,<br />
138<br />
o pensamento contextual busca sempre a relação de inseparabilidade e inter-retroações<br />
entre todo o fenômeno e seu contexto e de todo contexto com o contexto planetário. O<br />
complexo requer um pensamento que capte as relações, interrelações e implicações<br />
mútuas, os fenômenos multidimensionais, as realidades que são simultaneamente<br />
solidárias e conflitivas (como a própria democracia que é o sistema que se nutre de<br />
antagonismos e, que, simultaneamente os regula), que respeite a diversidade, ao mesmo
tempo que a unidade, um pensamento organizador que conceba a relação recíproca de<br />
todas as partes (Morin, s.d.: 14).<br />
A questão que se coloca neste momento, ao iniciarmos nossa reflexão sobre<br />
as relações entre complexidade e currículo, é a de reconhecermos que o real é<br />
complexo, que intervimos permanentemente nos fatos e que os fenômenos variam e<br />
são explicados de acordo com o paradigma que orienta a nossa reflexão.<br />
É fundamental pensarmos o currículo como algo também complexo, que não<br />
se dá com base numa única lógica, que não se estabelece a partir de explicações<br />
simples ou de relações permanentes, que podem ser simplesmente previstas,<br />
planejadas, previsivelmente controladas.<br />
139<br />
Em outro momento (Padilha, 2001) discutimos a necessária realização do<br />
planejamento dialógico e da construção, pelas escolas, dos seus projetos político-<br />
pedagógicos, como forma de melhor prever, organizar e avaliar as ações e relações<br />
que se estabelecem e que são tecidas no âmbito da escola. Procurando, agora,<br />
esclarecer ainda mais o conceito de projeto político-pedagógico, consideramos<br />
que ele pode ser inicialmente entendido como um processo de mudança e de<br />
antecipação do futuro, que estabelece princípios, diretrizes e propostas de ação para<br />
melhor organizar, sistematizar e significar as atividades desenvolvidas pela escola<br />
como um todo. Sua dimensão político-pedagógica caracteriza uma construção ativa<br />
e participativa dos diversos segmentos escolares - alunos e alunas, pais e mães,<br />
professores e professoras, funcionários, direção e toda a comunidade escolar. Ao<br />
desenvolvê-lo, as pessoas ressignificam as suas experiências, reconhecem as suas<br />
diferenças, ultrapassam-nas, conectam-se às outras pessoas e delas se<br />
desconectam, sem jamais voltarem a serem o que eram antes, mesmo conservando<br />
algumas das diferenças anteriores somadas às novas diferenças e às novas<br />
assimilações oriundas do contato contextual com o outro. Além disso, no processo<br />
de (re) construção do projeto político-pedagógico os/as participantes refletem as<br />
suas práticas, resgatam, reafirmam e atualizam os seus valores na troca com os<br />
valores de outras pessoas, explicitam os seus sonhos e utopias, demonstram os<br />
seus saberes, dão sentido aos seus projetos individuais e coletivos, reafirmam as<br />
suas identidades, estabelecem novas relações de convivência e indicam um<br />
horizonte de novos caminhos, possibilidades e propostas de ação. Este movimento
visa à promoção da transformação necessária e desejada pelo coletivo escolar e<br />
comunitário. Nesse sentido, o projeto político-pedagógico é praxis, ou seja, ação<br />
humana transformadora, resultado de um planejamento dialógico, resistência e<br />
alternativa ao projeto de escola e de sociedade burocrático, centralizado e<br />
descendente. Ele é movimento de ação-reflexão-ação, que enfatiza o grau de<br />
influência que as decisões tomadas na escola exercem nos demais níveis<br />
educacionais.<br />
Perguntamo-nos como seria possível discutir currículo, como análise e, ao<br />
mesmo tempo, como síntese de todo este processo, se permanecermos pensando<br />
dicotomicamente, bipolarmente, de forma excludente e, por isso – pior ainda –<br />
pensando pelos outros e não com os outros (<strong>Freire</strong>).<br />
Quando associamos o currículo da escola à complexidade, sobretudo partindo<br />
da análise e da reflexão sobre a formulação de um discurso curricular<br />
governamental, como é o caso de praticamente todas as propostas apresentadas no<br />
primeiro capítulo desta tese, há que se considerar “relação entre contextos que se<br />
tecem juntos, desafiando-nos a trabalhar com a incerteza e com um pensamento<br />
multidimensional” (Fleuri, 2001c:118), ou seja, na perspectiva da complexidade.<br />
Se analisarmos mais de perto a questão, devemos considerar, como faz o<br />
professor Reinaldo Matias Fleuri, que os nossos olhares ainda estão muito<br />
acostumados a uma lógica de oposição, que já não é suficiente para explicar a<br />
realidade que está diante de nós, isto porque “as propostas oficiais não são<br />
explicáveis apenas como negação daquelas alternativas, nem vive-versa” (ib.).<br />
Nesse sentido, quando explicamos um ou vários elementos da realidade que<br />
observamos, o fazemos não apenas pela negação desses elementos mas pela<br />
“afirmação de sua(s) singularidade(s)” (ib.). 42<br />
140<br />
42 Neste mesmo artigo, publicado na Revista Brasileira de Educação – ANPED/Autores Associados<br />
(2001c), o professor Reinaldo Matias Fleuri, de forma muito esclarecedora, mostra-nos que estamos<br />
diante de um problema de caráter epistemológico. Conforme ele escreve, referindo-se à definição de<br />
Bateson (1976, 1986), a ‘Epistemologia, em sentido amplo, significa conjunto de premissas que<br />
sustentam nossos modos de fazer distinções, de segmentar os eventos, de dar sentido ao<br />
mundo’”(ib.). Por outro lado, Fleuri nos ajuda a entender que a realidade complexa nos apresenta<br />
situações que são paradoxais. Nesse sentido, o paradoxo “remete-nos a elaborar uma lógica de<br />
interpretação que permita pensar simultaneamente a multiplicidade de termos e de interações entre<br />
eles. Trata-se de se explicitar a lógica que permite compreender simultaneamente a articulação entre<br />
a unidade do conjunto e a diversidade de elementos que o constituem.” (ib.). Tanto os conceitos de<br />
complexidade como o significado de paradoxo serão muito úteis para nós quando estivermos<br />
apresentando o significado de transculturalidade, bem como o que estaremos chamando de<br />
intertransculturalidade.
Edgar Morin explica que o paradigma clássico do conhecimento dominante<br />
funda-se numa razão fechada. Trata-se do “paradigma da simplificação, (que) não<br />
permite pensar a unidade na diversidade ou a diversidade na unidade, a unitas<br />
multiplex, só “permite ver unidades abstratas ou diversidades também abstractas,<br />
porque não coordenadas”. (id.: 31). Esta visão paradigmática, que orienta e controla<br />
diversos discursos científicos e que tem por base reduzir a complexidade do real ao<br />
simples (recortes da realidade, conforme faz a Ciência Moderna), de acordo com o<br />
que afirmávamos no final do capítulo anterior, procura manter separados sujeito e<br />
objeto, como se separados sempre fossem. Portanto, a Ciência Moderna procura<br />
trabalhar apenas com o que se considera evidente e não contraditório, escolhe<br />
caminhos para formular as explicações, geralmente de caráter generalista.<br />
Em O método IV - As idéias (Morin, 1991:198), o autor enumera alguns traços<br />
característicos da ciência clássica, dentre os quais destacamos o “isolamento do<br />
objeto em relação ao seu observador”, “a eliminação do não mensurável, não<br />
quantificável, não formalizável, redução científica à verdade matemática, a qual será,<br />
ela própria, reduzida à ordem lógica”. E todas essas características têm em comum<br />
um “paradigma de exclusão”, que exclui pura e simplesmente da cientificidade, e por<br />
essa mesma via, da ‘verdadeira’ realidade, todos os ingredientes da complexidade<br />
do real”.<br />
⎯ Aonde queremos chegar com isso?<br />
141<br />
Consideramos que estamos vivendo, mesmo, um momento de mudança, de<br />
quebra de paradigmas, sobretudo do paradigma clássico de ciência. A ordem, a<br />
clareza, as verdades únicas, as certezas inquestionáveis já não têm lugar no mundo<br />
globalizado em que vivemos e, em particular, quando discutimos currículo da escola,<br />
pois ao fazê-lo tratamos também, de forma ampla e complexa, da questão do<br />
conhecimento. Por isso, quando Edgar Morin fala da possibilidade de estarmos<br />
vivendo a grande crise do paradigma do Ocidente, quando percebemos que “o<br />
formalismo mostrou os seus limites e as suas conseqüências e que as palavras-<br />
chave esvaziaram-se e tornaram-se palavras ocas” (Morin, 1991:207-208), vemos o<br />
quanto esta crise está presente em nós, em nossa educação, nos conceitos com os<br />
quais nos acostumamos e nas explicações simplistas que acabamos sempre dando<br />
para as nossas dúvidas. Se aceitarmos como válidas as afirmações e os estudos de<br />
Morin, percebemos o quão limitadas nos parecem, hoje, as explicações que temos
dado e recebido para justificar as nossas ações e as nossas omissões e, no caso<br />
particular deste estudo, o quanto temos restringido, sobretudo a questões dos<br />
conteúdos, a problemática do currículo, deixando de enxergar, por exemplo, que ela<br />
possui diferentes dimensões – pedagógicas, sociológicas, antropológicas,<br />
lingüísticas, políticas, filosóficas psicológicas, entre tantas outras, que as Teorias<br />
Tradicionais do Currículo não nos permitiam ver. E mais uma vez notamos e<br />
ratificamos um movimento científico e cultural, ainda bastante limitado, é verdade,<br />
que não se reduz mais às análises dicotômicas ou então apenas às conotações<br />
instrumentais, pois isso seria também reduzir ao simples o que consideramos<br />
complexo.<br />
Este “paradigma emergente” (Morin, 1999) abre possibilidade para melhor<br />
compreendermos, explicitarmos e apontarmos caminhos para a efetiva participação<br />
dos segmentos escolares e comunitários na vida cotidiana da escola pública, mas<br />
participando, sobretudo, da construção de um currículo não apenas pensando na<br />
decisão relacionada com a tomada do poder quando da construção do<br />
conhecimento e com a gestão da coisa pública mas, também e principalmente,<br />
participar com vistas a repensar o currículo relacionado com a função da escola na<br />
pluralidade de suas possibilidades.<br />
Na verdade, é importante observarmos que quando passamos a pensar na<br />
perspectiva da “complexidade” relacionada ao currículo, esta combinação nos<br />
sugere refletir e problematizar a prática educacional com base nas relações que são<br />
estabelecidas a partir das diferenças que coexistem na escola, sobretudo as<br />
relacionadas à multiplicidade de culturas nela presente. A este respeito, o professor<br />
Tomaz Tadeu da Silva, ao se referir, por exemplo, à atual importância dos Estudos<br />
Culturais no campo das perspectivas sobre currículo, lembra-nos que vivemos<br />
num mundo social e cultural cada vez mais complexo, no qual a característica mais<br />
saliente é a incerteza e a instabilidade, num mundo atravessado pelo conflito e pelo<br />
confronto; num mundo em as questões da diferença e da identidade se tornam tão<br />
centrais (...). (Silva, 1999:136-7).<br />
142<br />
Em texto intitulado “Cultura e complexidade social: perspectiva para a gestão<br />
escolar” (1999), a professora Maria do Rosário Silveira Porto analisa como a visão
complexa e global da sociedade tem ganhado força a partir da década de 60, com o<br />
que podemos, hoje, enfatizar a razão aberta que<br />
postula outra lógica, não binária, a qual articula totalidades e o terceiro dado (tertium<br />
datur) (...) ao considerar o que é rejeitado como ‘resíduos’ irracionais ou não racionais,<br />
elementos que, de acordo com Morin (1980), antes de serem desintegradores, interagem<br />
e reorganizam o sistema, a partir de uma relação recursiva, que se caracteriza por<br />
aceitar o antagonismo, a complexidade e a contraditorialidade. Nesse sentido, permitem<br />
associar, distinguindo-as, noções disjuntas como as de ser, existência e sujeito:<br />
descobrir questões relacionadas à complexidade organizacional ignoradas pelo<br />
pensamento tecnocrático dominante; enfim, entender como e porque a cultura,<br />
enquanto universo das mediações simbólicas, perimetra e organiza os grupos<br />
sociais. Em vez de tentar eliminar a incerteza, a diferença, trabalham com elas. (Porto,<br />
1999:8-9). Grifos nossos.<br />
Esta razão aberta, que, por outro lado, nos remete às dimensões do diálogo,<br />
da relação humana e da comunicação já mencionadas e confirmam, por exemplo, a<br />
necessidade da superação da dicotomia entre razão e emoção, de acordo com as<br />
obras de Wallon (1973) e Vigotsky (1995).<br />
Quando pensamos no currículo escolar numa dimensão dialógica – duas<br />
lógicas – e complexa (Morin; Bateson), o fazemos considerando as experiências que<br />
os diferentes segmentos escolares trazem para a escola, seus saberes e as suas<br />
diferenças, enriquecendo e ressignificando, assim, as vivências escolares. Trata-se<br />
de uma nova qualidade humana e, portanto social, que estamos atribuindo ao<br />
processo educacional, que passa a valorizar, por exemplo, as diferentes<br />
manifestações simbólicas da pessoa e dos grupos sociais que interagem na escola e<br />
na comunidade – numa perspectiva mais ou menos ampliada. Daí advém a<br />
ampliação dos processos comunicativos e dialógicos e a manifestação da<br />
criatividade, da ousadia, da crítica, recriando e reinventando antigas práticas, agora<br />
pensadas com base em novos contextos. Quando olhamos com novos olhos as<br />
nossas próprias ações, mesmo as mais exitosas, criamos e recriamos novos textos<br />
e novos contextos, de forma diferente, o que nos permite reinventar a nós mesmos e<br />
intensificar as nossas próprias experiências e aprendizagens.<br />
143
Exemplificando o que acabamos de afirmar, remetemo-nos ao que escreveu o<br />
Professor Marcos Ferreira Santos, referindo-se a Severino (1992). Ele afirma que<br />
podemos organizar o conhecimento do fazer artístico e sua decorrente experiência<br />
estética, como atividade humana, de acordo com a tridimensionalidade da existência<br />
humana em práticas inter-relacionadas: prática produtiva, prática social e prática<br />
simbolizadora. (Santos, 1999:4).<br />
Por outro lado, pensamos na prática simbólica enquanto manifestação de um<br />
imaginário 43 , através de um sistema sociocultural e suas instituições. E assim<br />
voltamo-nos também para a possibilidade de considerar a manifestação artística<br />
como ponto de partida para o desvelamento deste mesmo imaginário. “Longe de ser<br />
uma paixão vã, o imaginário transforma o mundo segundo o Homem do Desejo: A<br />
poesia é um piloto, Orfeu acompanha Jasão” (Durand, 1989). Na nossa<br />
compreensão, estamos, com estas análises, contribuindo para o delineamento de<br />
novas possibilidades de construção do currículo escolar que vai além de considerar<br />
os aspectos objetivos da realidade com a qual nos deparamos cotidianamente na<br />
escola.<br />
Estamos diante de uma mudança de paradigma científico ou, pelo menos,<br />
como afirma o professor Boaventura Souza Santos, da “Crise do Paradigma<br />
Dominante” que, segundo ele evidencia, nos dá mostras evidentes de que o modelo<br />
de racionalidade científica, constituído a partir da revolução científica do Século XVI<br />
e desenvolvida nos séculos seguintes, está atravessando uma profunda crise. Não<br />
entraremos nos detalhes desta crise e nos limitaremos a destacar seus traços<br />
principais, conforme as palavras do referido autor. Para ele, a crise<br />
144<br />
435 Segundo Maria Cecília Sanchez Teixeira, Gilbert Durand considera o imaginário “como o sendo o<br />
trajeto, no qual a representação do objeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais<br />
do sujeito e, reciprocamente, as representações subjetivas se explicam ‘pelas acomodações<br />
anteriores do sujeito’ ao meio objetivo” (Teixeira, 1990:20). Conforme podemos concluir, o imaginário<br />
alimenta a ação material do homem e se manifesta numa instituição, num grupo, enfim, no cotidiano<br />
das pessoas. Ou seja, a prática simbólica se manifesta no cotidiano, e é justamente aí que podemos<br />
captá-la, localizando o sentido das ações através das imagens, para novamente ressignificarmos e<br />
nos reapropriarmos da própria vida. E a expressividade artística, pela obra de arte, nos permite<br />
realizar esta leitura.
que<br />
é não só profunda como irreversível; que estamos a viver um período de revolução<br />
científica que se iniciou com Einstein e a mecânica quântica e não se sabe ainda quando<br />
acabará; que os sinais nos permitem tão só especular acerca do paradigma que<br />
emergirá deste período revolucionário mas que, desde já, se pode afirmar com<br />
segurança que colapsarão as distinções básicas em que assenta o paradigma<br />
dominante. (Santos,1995:54).<br />
Em obra bem mais recente, o professor Boaventura de Souza Santos afirma<br />
a opção epistemológica mais adequada à fase de transição paradigmática em que nos<br />
encontramos consiste na revalorização e reinvenção de uma das tradições<br />
marginalizadas da modernidade ocidental: o conhecimento-emancipação. Não é fácil<br />
formular uma tal opção e ainda o é menos segui-la. Não devemos esquecer-nos de que,<br />
dada a hegemonia do conhecimento-regulação, a solidariedade é hoje considerada uma<br />
forma de caos e o colonialismo uma forma de ordem. Assim, não podemos prosseguir<br />
senão pela via da negação crítica (id., 2001:81).<br />
Esta discussão tem relação direta com a construção do currículo da escola,<br />
na medida em que nos referimos ao conhecimento e às diferentes formas de como o<br />
mesmo pode ser produzido, aos valores inerentes aos mesmos e às relações que se<br />
estabelecem no processo de sua constituição. Em Pedagogia da Autonomia:<br />
saberes necessários à prática educativa (1997b), <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> se refere à<br />
problemática do conhecimento em vários momentos, ao tentar indicar aos<br />
educadores e às educadoras alguns “aprenderes” que poderiam ajudá-los “pensar<br />
certo’. Dentre os vinte e sete saberes/aprenderes que nos apresenta, <strong>Freire</strong> fala ao<br />
mesmo tempo de incerteza e de inacabamento, o que vem ao encontro da tese que<br />
estamos aqui desenvolvendo sobre os limites do conhecimento científico e,<br />
principalmente, sobre o currículo que construímos na escola.<br />
Sobre a exigência do inacabamento no ato de ensinar, que segundo ele,<br />
pressupõe em si mesmo a ação de aprender, assim se pronuncia o autor:<br />
145<br />
Minha franquia ante os outros e o mundo mesmo é a maneira radical como me<br />
experimento enquanto ser cultural, histórico, inacabado e consciente do inacabamento.
Aqui chegamos ao ponto de que talvez devêssemos ter partido. O do inacabamento do<br />
ser humano. Na verdade, o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da<br />
experiência vital. Onde há vida, há inacabamento. Mas só entre mulheres e homens o<br />
inacabamento se tornou consciente (<strong>Freire</strong>, 1997b:55).<br />
Retomando uma fala que sempre fez questão de reafirmar, <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> diz<br />
que o futuro deve ser problematizado e que ele não é inexorável. Fazemos tal<br />
observação porque estamos vivendo uma época de transição, em que nossas<br />
certezas estão abaladas, o que nos exige cada vez mais buscar respostas visando à<br />
nossa educação diante de um futuro, isso sim, incerto diante da falta de utopia,<br />
diante de um discurso hegemônico que nega o sonho e concebe mulheres e homens<br />
como seres acabados. Quando nos reconhecemos seres inacabados, maiores são<br />
as possibilidades que temos de nos associarmos solidariamente para construirmos o<br />
“conhecimento-emancipação” ao qual se referia Boaventura de Souza Santos.<br />
Falamos com base na perspectiva da racionalidade emancipatória apoiada na “teoria<br />
crítica”, mas com espírito aberto à possibilidade de uma “Razão complexa”,<br />
conforme Morin, que na verdade “é uma Razão Dialético-Dialógica, que tem como<br />
princípio fundante o constante ir-e-vir da realidade para a elaboração teórica e desta<br />
para aquela” (Romão, 2000:31).<br />
Quando nos referimos à incerteza de que nos fala <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, consideramo-<br />
nos seres históricos que, ao produzirmos novos conhecimentos, o fazemos com<br />
base na própria historicidade do mundo.<br />
Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro que antes foi novo e se fez<br />
velho e se ‘dispõe’ a ser ultrapassado por outro amanhã. Daí que seja tão fundamental<br />
conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos à<br />
produção do conhecimento ainda não existente.” (<strong>Freire</strong>, 1997b:31).<br />
146<br />
Estar aberto ao novo: esta talvez a maior necessidade do momento histórico<br />
de travessia que estamos vivendo. Nesse sentido, utilizamos também a referência<br />
de uma pedagogia aberta às demais ciências, de uma pedagogia que vai<br />
efetivamente ao encontro de outras formas de conhecimento, inclusive o científico,<br />
sem negar nenhuma delas. Não basta ir ou simplesmente provocar ou criar um
espaço para o encontro, até porque, mesmo que ele aconteça, a negação do<br />
conhecimento do outro pode permanecer presente. E até mesmo, em virtude do<br />
próprio ato de se encontrar, as diferenças podem aparecer e surgir de maneiras, às<br />
vezes, inesperadas ou violentas, provocando um maior distanciamento e o<br />
surgimento de fissuras que, posteriormente, podem dificultar própria convivência.<br />
Nesse sentido, o encontro exige um processo pedagógico de interação entre as<br />
pessoas, que se reconhecem com o(s) diferente(s), que se conectam umas às<br />
outras e que dialogam com a ciência, com o sentir, com o saber e com o ser do<br />
outro, além da simples convivência 44 . Do contrário, esta convivência pode ser<br />
apenas aparente, silenciosamente respeitosa mas, na verdade, de não-relação,<br />
negadora do saber do outro, formadora de “guetos”, que não consegue conviver com<br />
o conflito ou, por outro lado, que se nega a aceitar a diferença até para certo<br />
distanciamento cômodo, ideológica, econômica, cultural e politicamente situado. Há,<br />
ainda, a possibilidade da não-convivência pela dificuldade de aceitar a própria<br />
contradição ou o “paradoxo”, o que seria algo impensável e, portanto, sequer<br />
admitido enquanto uma categoria que pudesse explicar a realidade ou a relação<br />
entre as pessoas.<br />
Diante destas considerações, entendemos já ser possível falarmos num<br />
currículo consubstanciado nas diversas pedagogias que <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, nos últimos<br />
anos de vida, nos aconselhava a escrever: Pedagogia dialética (Schmied-Kowarzik),<br />
Pedagogia do conflito, da práxis e da Terra (Gadotti), Pedagogia da luta (Torres),<br />
Pedagogia da exclusão (Gentili), Pedagogia do diálogo (Romão), entre outras que<br />
estão sendo permanente escritas sobretudo no cotidiano das escolas: da<br />
participação, do amor, da solidariedade, da liberdade, da sustentabilidade. Como<br />
também da pedadogia do encontro, como estamos, aos poucos, fazendo aqui.<br />
Pedagogia que não trata a educação como idéia abstrata e que a entende como<br />
processo que resulta de um conjunto de relações entre as pessoas, num contexto<br />
social concreto. (Brandão, 1981).<br />
147<br />
Quando consideramos o currículo em relação à teoria da complexidade,<br />
pressupomos o sujeito da criação cultural e, portanto, o sujeito da construção do<br />
conhecimento, que é coletivo, mas que não ignora a dimensão individual do ser<br />
44 Sobre o conceito de relação com o outro, bem como a respeito da possível formação de uma nova<br />
humanidade, marcada pelo entendimento e pela conciliação, ver, respectivamente, Eu e Tu (Buber,<br />
1974) e Um é o outro (Badinter ,1986).
humano, que é a base de qualquer currículo. Este currículo, que se constrói a partir<br />
das necessidades históricas e naturais de homens e mulheres, crianças, jovem,<br />
adultos e idosos, enfim, de toda a humanidade, e que avança buscando respostas<br />
para o “problema epistemológico da complexidade” (Morin; Bateson; Santos), que<br />
não deixa nunca de fazer a crítica dos fatos que estão, muitas vezes, ocultos diante<br />
dos nossos olhos e que, por isso mesmo, é uma construção essencialmente política,<br />
que implica numa ação transformadora que <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> chamou de práxis.<br />
Trata-se de pensar a relação entre os sujeitos que tenham por base novos<br />
referenciais de ação, de contexto, de relação. Esta é uma importante reflexão de<br />
Gregory Bateson,<br />
que contribui para se entender a pesquisa antropológica não mais como um processo de<br />
conhecimento objetivo de outras culturas, mas como o estabelecimento de um contexto<br />
relacional novo entre sujeitos de contextos socioculturais diferentes. Esta perspectiva,<br />
hoje reconhecida no campo da pesquisa antropológica, pode ser muito fecunda para se<br />
redimensionar criticamente a relação educativa. Particularmente quando se estabelecem<br />
conexões interativas com outros sujeitos, inseridos em contextos sociais e culturais<br />
diferentes. (Fleuri, 2001d:60).<br />
O mesmo autor, ao escrever sobre epistemologia e complexidade, observa<br />
que quando nos deparamos com as diferentes práticas culturais que envolvem a<br />
interação e relação de diferentes sujeitos, principalmente nos processos educativos,<br />
como é o caso das nossas reflexões, torna-se importante reconhecer e assumir a<br />
multiplicidade dessas práticas e orientá-las com base numa lógica “capaz de<br />
compreender a relação da unidade do conjunto com a diversidade de elementos que<br />
o constituem” (id., 1999:285).<br />
Por outro lado, refletindo sobre a influência da nova “dialógica” que estamos<br />
discutindo para pensarmos numa outra perspectiva curricular, vemos que, para<br />
Edgar Morin (1999:44), os atuais currículos escolares obedecem, ainda hoje, a uma<br />
lógica fundamentada na Ciência Clássica. E esta lógica, por sua vez, repousa,<br />
segundo aquele autor, em três pilares de certeza, quais sejam:<br />
absoluto;<br />
148<br />
1. a ordem, a regularidade, a constância e sobretudo o determinismo
2. a separabilidade, ou seja, o isolamento conceitual ou experimental do<br />
objeto do conhecimento, extraindo-o de seu meio de origem para examiná-lo num<br />
meio artificial;<br />
3. O valor de prova absoluta fornecida pela indução e pela dedução.<br />
Segundo Morin, defensor do “paradigma da complexidade” 45 , esses três<br />
pilares encontram-se, hoje, em estado de desintegração, não porque a desordem<br />
substituiu a ordem, mas porque começou-se a admitir que lá onde reinava soberana,<br />
no mundo físico, existia na realidade um jogo dialógico entre ordem e desordem<br />
simultaneamente complementar e antagônico (Morin,1999:44). Esses pilares da<br />
ciência moderna encontram-se, segundo este autor, abalados, uma vez que a<br />
ciência clássica, ao contrário do que sempre propagou, nunca deu conta da<br />
realidade e, ainda mais hoje, continua não dando – até porque isso seria impossível.<br />
Para superar este limite, a ciência moderna deixa de lado tudo o que é<br />
“complexo”. Por outro lado, a partir do Século XIX e, principalmente, no decorrer do<br />
Século XX, ela cria disciplinas, ou seja, categorias que “organizam o conhecimento<br />
científico e que instituem nesse conhecimento a divisão e a especialização do<br />
trabalho respondendo à diversidade de domínios que as ciências modernas<br />
recobrem” (ib.: 1999:27). Desta forma, de maneira simplificada, as ciências<br />
modernas isolam experimentalmente o que pode ser explicado, levando ao que<br />
conhecemos hoje como a hiperespecialização do investigador e também ao risco da<br />
‘coisificação’ do objeto estudado. Assim, criam-se fronteiras disciplinares e o<br />
isolamento de uma disciplina em relação às outras, já que elas possuem uma<br />
linguagem e um universo de conceitos que lhe são próprios (ib.: 1999).<br />
149<br />
457 Segundo Edgar Morin, “a tradição do pensamento que forma o espírito das escolas elementares<br />
ordena que se reduza o complexo ao simples, quer dizer, que se separe o que está ligado, que se<br />
unifique o que é múltiplo, que se elimine tudo aquilo que traz desordens ou contradições para nosso<br />
entendimento” (ib.:11). É o que, segundo ele, sempre fez o paradigma da ciência moderna. Nessa<br />
mesma direção, “a missão da ciência não é mais expulsar a desordem de suas teorias, mas de levála<br />
em consideração”(ib.: 35). Assim, “um paradigma de complexidade está fundamentado sobre a<br />
distinção, sobre a conjunção e a implicação mútua” (ib.:49). Portanto, “não há corte epistemológico<br />
radical. Não há uma ciência pura, não há um pensamento puro, não há lógica pura (...) É neste<br />
sentido, creio, que podemos colocar-nos o problema da complexidade, isto é, da dificuldade de<br />
permanecermos no interior de conceitos claros, distintos, fáceis, para concebermos a ciência, para<br />
concebermos o conhecimento, para concebermos o mundo em que estamos, para nos concebermos<br />
a nós na relação com este mundo, para nos concebermos a nós na nossa relação com os outros e<br />
para nos concebermos a nós na nossa relação com nós mesmos que é, afinal, a mais difícil de todas”<br />
(Morin, 1996:34). Para melhor compreender os princípios básicos do problema epistemológico da<br />
complexidade, sugiro a leitura, na íntegra, destes dois livros de Edgar Morin, constantes da<br />
bibliografia.
Morin defende, pois, a necessidade da abertura das disciplinas, mas não o fim<br />
delas, o que seria impossível. Para ele, as práticas interdisciplinares, tão importantes<br />
na consolidação do currículo escolar, segundo entendemos – ou seja, o encontro de<br />
diferentes disciplinas para a troca e cooperação entre si, visando a um estudo mais<br />
orgânico – não têm surtido o efeito desejado pela pedagogia moderna, pois, nesse<br />
processo, com raras exceções, acaba acontecendo um diálogo entre surdos.<br />
Nem mesmo a associação de diferentes disciplinas em torno de um projeto ou<br />
de um objeto que lhes é comum, o que caracteriza as práticas polidisciplinares, têm<br />
conseguido superar os limites impostos pelos muros disciplinares estabelecidos<br />
pelas ciências modernas.<br />
Uma possível superação desse limite, já que não é possível por fim às<br />
disciplinas, seria, segundo ele, a combinação de atividades interdisciplinares e<br />
polidisciplinares com práticas transdisciplinares, estas que geralmente se<br />
caracterizam por “esquemas cognitivos que atravessam as disciplinas, às vezes com<br />
uma virulência tal que as coloca em transe” (Morin, 1999:36). Isso porque, para<br />
Morin, foram as “redes complexas de inter, poli e transdisciplinaridade que operaram<br />
e que desempenharam um papel fecundo na história das ciências” (ib.:1999:36), o<br />
que as ciências modernas não reconhecem. Assim, este autor propõe ainda que,<br />
associada a essas redes complexas, devemos "ecologizar" as disciplinas, ou seja,<br />
levar em conta tudo o que lhe é contextual, aí compreendidas as condições culturais<br />
e sociais.<br />
É esta a nossa perspectiva, ao tratarmos do currículo: superar a linearidade<br />
do paradigma clássico de ciência e considerar a ‘união entre a unidade e a<br />
multiplicidade” (Morin, 2000:38), levando em conta, para fins da determinação do<br />
currículo, tudo o que estiver no âmbito da “cultura da escola”, isto é, este<br />
mundo social (que é a escola), que tem suas características de vida próprias, seus ritmos<br />
e seus ritos, sua linguagem, seu imaginário, seus modos próprios de regulação e de<br />
transgressão, seu regime próprio de produção e de gestão de símbolos (Forquin,<br />
1993:167).<br />
150
Além do âmbito da “cultura da escola, que se considere também, na<br />
determinação do currículo, o que estiver no âmbito da “cultura escolar”, que, de<br />
acordo com as análises sociológicas do mesmo autor, corresponde ao<br />
conjunto dos conteúdos cognitivos e simbólicos que, selecionados, organizados,<br />
‘normalizados’, ‘rotinizados’ sob o efeito dos imperativos de didatização, constituem<br />
habitualmente o objeto de uma transmissão deliberada no contexto das escolas (Forquin,<br />
1993:167).<br />
Vivemos numa era planetária 46 e nos deparamos com o desafio de, mais uma<br />
vez, superarmos a polêmica do universalismo versus particularismos no fazer<br />
científico, que influencia diretamente a construção do currículo. Sem nos perdermos<br />
nos limites destas discussão, desejamos avançar também em relação a essa<br />
problemática. Por isso, consideramos necessário pensarmos no currículo a partir<br />
dos espaços dos quais disponibilizamos nos dias atuais e, ao fazê-lo estaremos<br />
considerando tanto a dimensão local como uma visão mais global e multidimensional<br />
do trabalho político-pedagógico que é pensar e fazer o currículo.<br />
Nesse sentido, consideramos, para a construção do currículo, a necessidade<br />
de ampliarmos a reflexão sobre ele a partir do resgate dos “Círculos de Cultura” 47 ,<br />
como também de outras possibilidades comunicacionais, que favorecem o<br />
estabelecimento de relações humanas e pedagógicas, como é o caso da utilização<br />
das novas tecnologias para a criação de redes de comunicação. É o que veremos<br />
no próximo capítulo.<br />
Na conclusão do livro Planejamento dialógico: como construir o projeto<br />
político-pedagógico da escola, que publicamos como resultado da nossa dissertação<br />
468 A este respeito ver Gutiérrez e Prado (1999), que, ao tratarem também das novas categorias<br />
interpretativas da ciência, defendem uma cidadania ambiental e planetária que, na escola, se<br />
manifesta pedagogicamente no que eles chamam de Ecopedagogia. Ver também o livro do Professor<br />
Moacir Gadotti, intitulado Pedagogia da Terra (2000a), no qual o autor trata do conceito de<br />
‘planetaridade’, contrapondo-se ao conceito de globalização capitalista, relembra que o estatuto<br />
científico só se legitima como organização da reflexão sobre uma prática concreta (pedagogia da<br />
práxis), além de analisar alguns conceitos hoje muito utilizados na educação tais como “sociedade<br />
sustentável”, “educação sustentável”, “consciência planetária” e “civilização planetária”. No capítulo 7<br />
do livro, Moacir Gadotti oferece ao leitor o significado do “Movimento pela Ecopedagogia” e conclui<br />
analisando “A terra como Paradigma”.<br />
479 A seguir, resgataremos este significativo conceito construído por <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> no final da década de<br />
50.<br />
151
de mestrado e também a partir da experiência como educador e assessor<br />
educacional, um trabalho teórico-prático que procura contribuir com educadores e<br />
educadoras sobre os detalhes relacionados à elaboração coletiva e democrática<br />
pelos diferentes segmentos escolares do projeto da escola, resgatamos o conceito<br />
de “Círculo de Cultura” apresentando-o como “espaço privilegiado do planejamento<br />
dialógico” 48 (Padilha, 2001:137).<br />
Naquela oportunidade, já nos preocupávamos, ao falarmos de projeto político-<br />
pedagógico da escola, com a construção do currículo da escola, que deveria nascer<br />
do contexto da sala de aula, local privilegiado, mas certamente não único, onde<br />
geralmente acontece o desenrolar do processo de ensino e de aprendizagem.<br />
Discutíamos, no entanto, os limites do que têm sido as aulas no espaço escolar,<br />
partindo na análise das nossas experiências pessoais e também com base numa<br />
reflexão do Professor Pedro Demo, que se referia à mitologia da aula e à sua<br />
banalização, criticando o fato de que “qualquer exposição diante de um público<br />
obrigado a escutar é aula, assim como qualquer conversa fiada de alguém que se<br />
diz professor é aula” (Demo, 1997:88).<br />
Para resolver o problema então levantado, propusemos a retomada dos<br />
“Círculos de Cultura” como possibilidade de ressignificação do próprio espaço da<br />
sala de aula, visando a “diversificar, enriquecer as atividades e as relações<br />
pedagógicas na escola, trabalhando-as com base na participação dos alunos nos<br />
diferentes tempos e espaços didático-pedagógicos” (Padilha, 2001:140). Sugerimos<br />
que, a partir dos círculos, a escola se organizasse para construir coletivamente o<br />
seu projeto político-pedagógico, incentivando, assim, a realização de encontros de<br />
trabalho, de ensino e de aprendizagem.<br />
152<br />
Retomar esta discussão é pertinente e necessário nesta pesquisa porque, em<br />
nenhum momento, consideramos que devemos dissociar a construção do currículo<br />
da escola da decisão sobre os princípios e diretrizes que deverão organizar a<br />
concretização do mesmo, traduzidos no projeto político-pedagógico da unidade<br />
escolar. A sala de aula é um espaço privilegiado, mas não único, onde o currículo é<br />
48 O planejamento dialógico é, na verdade, uma forma de resistência e representa uma alternativa<br />
ao planejamento autoritário, burocrático, centralizado e descendente, que ganhou as estruturas dos<br />
nossos sistemas educacionais e das nossas redes escolares. É resistência porque não aceita a<br />
continuidade de um modelo estático de planejamento, que não permite, em suas “estratégias”, a<br />
participação de todas as pessoas envolvidas no processo educativo na definição das políticas<br />
públicas educacionais, frustrando as iniciativas histórias das escolas e das suas comunidades.<br />
(Padilha, 2001: 25).
construído e vivenciado cotidianamente, mesmo que às vezes este fato não seja<br />
reconhecido pela maioria dos participantes do processo, em função da falta de<br />
clareza sobre a Teoria de Currículo que estaria fundamentando suas práticas.<br />
Entendemos que nas salas de aula possam ser desenvolvidas ações<br />
didádico-pedagógicas organizadas a partir da perspectiva dos “Círculos de<br />
Cultura” 49 , como veremos a seguir. Desta forma, as atividades desenvolvidas<br />
naqueles e nos diversos espaços pedagógicos da escola ou da comunidade,<br />
poderão contribuir efetivamente para a ampliação de processos dialógicos e<br />
democráticos, portanto em nível local, que estejam, de fato, contribuindo,<br />
influenciando, orientando e definindo as políticas públicas educacionais. Trata-se, pois,<br />
de uma escola em que todos podem pesquisar, pensar, praticar, refletir, sentir, deliberar,<br />
ser, plantar, agir, cultivar, avaliar sobre o que fizeram e recomeçar novamente este ciclo,<br />
discutindo e debatendo sobre as possibilidades de superarmos, juntos, as dificuldades e<br />
os problemas surgidos na escola e na educação, no seu sentido mais amplo (Padilha,<br />
2001:141).<br />
Os objetivos e os fazeres da escola aos quais nos referimos representam<br />
parcela significativa da construção do seu currículo. Também não se restringem a<br />
algum tipo de ação realizada ou por especialistas, que estariam, por exemplo,<br />
estabelecendo uma “grade curricular” a ser cumprida pelas escolas, nem se limita ao<br />
trabalho de um grupo de professores e de alunos que, restritos aos limites da sala<br />
de aula e de algum livro didático, dedicam horas de trabalho para memorizar algum<br />
conteúdo programático selecionado dentre os conhecimentos historicamente<br />
acumulados pela humanidade, para ser, depois, avaliado em prova objetiva para<br />
aprovar ou reprovar os discentes.<br />
153<br />
Nosso objetivo não é transportar um conceito que foi utilizado pela primeira<br />
vez, no início dos anos 60 para a escola de hoje, início do terceiro milênio, como<br />
solução para os problemas da organização curricular. Por isso, torna-se necessário,<br />
preliminarmente, contextualizar o significado e a importância histórica dos Círculos<br />
de Cultura criados por <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, para depois justificar a sua importância para a<br />
49 Estamos escrevendo “Círculos de Cultura” com letras maiúsculas por se tratar de termo específico,<br />
assim também grafado originalmente por <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>. A partir daqui, dispensaremos as aspas<br />
quando a eles nos referirmos.
educação nos dias atuais e, em particular, para os estudos relacionados ao<br />
currículo.<br />
Do final dos anos 50 para o início da década seguinte, fatos importantes<br />
aconteceram, repercutindo nos planos internacional, nacional e local. No caso do Recife,<br />
conduziram a uma das mais envolventes e ricas experiências de participação popular, na<br />
construção crítica e reconstrução da cultura. Viver aquele tempo no Recife foi um<br />
privilégio (Rosas, <strong>Paulo</strong>, 1981. In: <strong>Freire</strong>, 2001: LXIV).<br />
No depoimento do Professor <strong>Paulo</strong> Rosas, psicólogo e educador que viveu<br />
intensamente os anos 50 e 60, na mesma Recife de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, percebemos já um<br />
breve delineamento do “clima” de mobilização popular em Pernambuco e em todo o<br />
país. O professor <strong>Paulo</strong> Rosas, neste depoimento intitulado Recife: cultura e<br />
participação (1950-64), oferece-nos uma contextualização histórica dessa época,<br />
sobretudo em Recife, resgatada e inserida na recém publicação do livro Educação e<br />
Atualidade Brasileira (<strong>Freire</strong>, 2001a) 50 , cuja organização e contextualização histórica<br />
geral coube ao Prof. José Eustáquio Romão. Vivia-se um clima de intensa<br />
mobilização popular, mas certamente, nos limites da denominada República<br />
Populista (1950-64) no Brasil, “cenário no qual podemos situar a gênese das<br />
principais concepções, idéias e categorias que influenciaram <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> e por ele<br />
foram desenvolvidas no livro Educação e atualidade brasileira” 51 (<strong>Freire</strong>, 2001a.),<br />
como lembram os prefaciadores deste livro, os fundadores do <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>,<br />
profs. Carlos Alberto Torres, Francisco Gutierrez, José Eustáquio Romão, Moacir<br />
Gadotti e Walter Esteves Garcia.<br />
154<br />
Convém observar que estamos nos referindo ao primeiro livro de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>,<br />
até agora praticamente inédito, que se trata de sua tese de concurso para a cadeira<br />
50 No prefácio deste livro, uma publicação da Editora Cortez e do <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, os diretores<br />
desse <strong>Instituto</strong> justificam que <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> relutava um pouco em publicar este seu primeiro trabalho,<br />
argumentando sobre a necessidade de sua contextualização. Por isso esta preocupação cuidadosa<br />
neste lançamento, que recupera a ambiência politico-social do Brasil e particularmente do Nordeste,<br />
num trabalho excelente do Prof. José Eustáquio Romão, no primeiro caso, e do Professor <strong>Paulo</strong><br />
Rosa, no segundo.<br />
51 Tivemos acesso e estudamos os originais deste livro de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> (<strong>Freire</strong>, Educação e<br />
atualidade brasileira. Recife, Edição do autor, 1959.), durante e após o curso sobre “Política e<br />
Educação Popular”, que fizemos com o Prof. Beisiegel, na Faculdade de Educação da USP, em 1999.<br />
No entanto, para facilitar o trabalho e o acesso do leitor à referida obra, quando citarmos este livro o<br />
faremos a partir da sua publicação atual (<strong>Freire</strong>, <strong>Paulo</strong>. Educação e atualidade brasileira. São <strong>Paulo</strong>,<br />
Cortez/IPF, 2001a).
de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas- Artes de Pernambuco,<br />
publicado apenas originalmente pelo próprio autor em Recife, no ano de 1959.<br />
Esclarecemos, ainda, que o Prof. Celso de Rui Beisiesel (1992) foi o pioneiro na<br />
análise pormenorizada deste livro de <strong>Freire</strong>, oferecendo-nos detalhes sobre as obras<br />
e autores que influenciaram <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> no livro. Sobre as categorias e principais<br />
idéias por ele desenvolvidas, é leitura obrigatória para os que pretendem conhecer a<br />
gênese do pensamento de <strong>Freire</strong>.<br />
Em seu primeiro livro, <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> sistematiza algumas reflexões para que<br />
possamos dimensionar a importância que ele atribui à cultura – tanto é que ele se<br />
refere a Círculos de Cultura e não a “Círculos de Educação”, como poderia,<br />
eventualmente, ter sido o caso.<br />
Assim escreveu <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>:<br />
A possibilidade humana de existir – forma acrescida de ser – mais do que viver,<br />
faz do homem um ser eminentemente relacional. Estando nele, pode também sair dele.<br />
Projetar-se. Discernir. Conhecer. É um ser aberto. Distingue o ontem do hoje. O aqui do<br />
ali. Essa transitividade 52 do homem faz dele um ser diferente. Um ser histórico. Faz dele<br />
um criador de cultura. A posição que ocupa na sua ‘circunstância’ é uma posição<br />
dinâmica. Trava relações com ambas as faces de seu mundo – a natural, para o<br />
aproveitamento de cujos entes o homem não contribui mas a que ‘confere uma<br />
significação que varia ao longo da história’ (Corbisier, 1956:190) e a cultural, cujos<br />
objetos são criação sua (<strong>Freire</strong>, 2001:10)<br />
155<br />
Portanto, estamos diante de uma visão que considera o homem um ser<br />
relacional, criador de cultura. <strong>Freire</strong>, referindo-se à obra do sociólogo Luis<br />
52 Ao explicar em nota de rodapé (número 14) que o “problema da consciência ingênua e da<br />
consciência crítica vem sendo debatido por um grupo de professores brasileiros – Professor Vieira<br />
Pinto, Guerreiro Ramos, Roland Corbisier, entre outros”, representantes máximos do <strong>Instituto</strong><br />
Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), criado por decreto do Governo de João Café Filho em<br />
14.07.1955 – para o qual convergiram as teses fundamentais do nacional-desenvolvimentismo neste<br />
país e que certamente o influenciam, <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> (2001:32-39) define o que ele chama de<br />
consciência intranstiva (falta de historicidade, interesse dos homens por formas mais vegetativas de<br />
vida); consciência transitiva (uma segunda posição, em que há uma forte dose de espiritualidade e de<br />
historicidade nas preocupações do homem); transtivididade ingênua (primeiro estágio da consciência<br />
transitiva, caracterizada ainda pela desconfiança do que é novo, pela fragilidade de argumentação,<br />
pela tendência às explicações mágicas e ao conformismo etc) e transitividade crítica (que se<br />
caracteriza pela profundidade na interpretação dos problemas e pela superação dos limites da<br />
transitividade ingênua. Há maior dose de racionalidade e apreensão do novo. O capítulo I do livro do<br />
Prof. Celso Beisiegel (1992) analisa profundamente esta questão.
Recasens 53 , revela a crença no diálogo e o incentivo a que se estude o<br />
comportamento do homem e a sua capacidade de aprender, levando-se<br />
necessariamente em conta o ambiente do aprendente e, por conseguinte,<br />
a sua inserção participante nos dois mundos sem, todavia, a sua redução a nenhum<br />
deles. A sua inserção no mundo da natureza, pelas suas características biológicas. A<br />
sua colocação no mundo cultural, de que é criador, sem a sua redução a um objeto de<br />
cultura (<strong>Freire</strong>, 2001:10).<br />
Há também aqui a crença de que o conhecimento só se constrói no diálogo,<br />
necessário a uma prática pedagógica democrática, que “tinha de se fundar no<br />
diálogo, uma das matrizes em que nasce a própria democracia” (id., 2001:15) 54 .<br />
Conforme também afirma o professor Celso de Rui Beisiegel, que, como já<br />
dissemos, investigou a origem e as influências recebidas pelo pensamento de <strong>Freire</strong>,<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> viera investigando e pondo em prática procedimentos sempre orientados<br />
para a promoção do diálogo, da participação e do respeito ao outro no processo<br />
educativo. Ao mesmo tempo que repeliam o autoritarismo em quaisquer de suas<br />
manifestações, no assistencialismo, na doação, no paternalismo e na própria coerção<br />
sem disfarces, esses objetivos de sua atividade solicitavam, naturalmente, a realização<br />
de trabalhos em grupo, uma condição para o florescimento do diálogo. E estas atividades<br />
vieram sendo desenvolvidas junto aos segmentos desfavorecidos da população, no<br />
âmbito daquilo que um católico progressista então designava como o ‘compromisso com<br />
os pobres e com a sua realidade’ (Beisiegel, 1992:39).<br />
156<br />
E é também o professor Beisiegel que nos oferece uma indicação precisa que<br />
nos revela onde nasceram, na prática de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, as primeiras experiências<br />
com os Círculos de Cultura 55 , que concretizavam o que mais tarde <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong><br />
53 Cf. Recasens Siches,1956: 110 ss.<br />
54 <strong>Freire</strong> fundamenta sua análise na obra de Zevedei Barbu: The essence of democracy is human<br />
dialogue. (Barbu, 1956:9).<br />
55 É oportuno esclarecer que, conforme relata o professor Venício Artur de Lima em seu livro<br />
Comunicação e cultura: as idéias de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> (1981), capítulo III, nota 28, à página 113, que “por<br />
volta de 1969, <strong>Freire</strong> passou a identificar o círculo de cultura com o ‘contexto teórico’, em oposição ao<br />
‘contexto concreto’. Aqui fica bem clara a influência da obra de Karel Kosik, Dialética do concreto. À<br />
época, o livro de Kosik já havia sido traduzido para o português e o espanhol, e <strong>Freire</strong> o considerou<br />
uma ‘obra extraordinária’”. Eu mesmo, numa conversa pessoal com <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, ouvi dele, em sua
sistematizou teoricamente e continuou aplicando nos cursos de alfabetização de<br />
adultos. Em entrevista concedida ao autor, por <strong>Freire</strong>, em 30 de março de 1980,<br />
<strong>Freire</strong> relatou a sua experiência como Diretor do SESI de Recife no período de 1947<br />
a 1954, e Superintendente do mesmo, de 1954 a 1957.<br />
A minha prática no SESI, pelo contato com os trabalhadores, com grupos de<br />
trabalhadores no que então chamávamos Núcleos de Serviço Social (...) Quando eu<br />
começo a trabalhar nos círculos de pais com a escola, aí então eu tenho um aprendizado<br />
enorme com o povo e esse diálogo com o povo foi o elemento mais fundamental na<br />
minha formação (...). (<strong>Freire</strong>, in.: Beisiegel, 1992:36).<br />
O professor <strong>Paulo</strong> Rosas também resgata esta história, quando relata<br />
brevemente que <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, após dez anos como professor da Universidade do<br />
Recife, na condição de professor interino “em tese, convencional, apesar de seu<br />
discurso inovador ser cada vez mais provocativo por seu conteúdo crítico e<br />
profético” (Rosas, in.: In: <strong>Freire</strong>, 2001:LXVII), passa a ser um outro <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>. Isso<br />
em decorrência da tese Educação e atualidade brasileira, que o obrigou a repensar<br />
a sua prática e organizar as suas idéias para concorrer à cátedra de História e<br />
Filosofia da Educação, na Escola de Belas-Artes daquela universidade. Conforme<br />
comenta <strong>Paulo</strong> Rosas, testado no Sesi, nos círculos e encontros com pais da rua<br />
Rita de Souza e de outras ruas da cidade do Recife, na Paróquia de Casa Amarela.<br />
Agora passava a Universidade (do Recife) a contar com o <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> do SEC e da<br />
Rádio Universidade do Recife.<br />
157<br />
Portanto, a partir da sua passagem pelo SESI e também de docência de<br />
cerca de 10 anos junto à Universidade do Recife, e com a sua participação como<br />
coordenador do Movimento de Cultura Popular (MCP), fundado em 1960, pelo<br />
casa, no início de 1997, que ele lera o livro de Kosik mais de dez vezes. Esta explicação amplia ainda<br />
mais, para nós, o sentido praxiológico do conceito de Círculo de Cultura.
prefeito eleito da cidade do Recife, Miguel Arrais, nascia o Método <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> 56 e<br />
os chamados Círculos de Cultura.<br />
Vale o esforço de concluirmos esta breve revisão histórica sobre o surgimento<br />
dos Círculos de Cultura, a partir das palavras do próprio <strong>Freire</strong>, em diferentes<br />
momentos de sua obra. Com isso pretendemos, ao mesmo tempo em que<br />
resgatamos a dimensão história, levantar as características dos referidos círculos,<br />
para que tenhamos condições de adequá-los ao contexto da educação brasileira<br />
atual.<br />
No livro intitulado Essa escola chamada vida (<strong>Freire</strong> & Betto, 1985), em que<br />
os autores são entrevistados pelo repórter Ricardo Kotscho, encontramos um longo<br />
depoimento que comprova os argumentos que até aqui reunimos.<br />
(...) Dentro do MCP, então, aprofundei e sistematizei, em parte, algumas das<br />
perguntas que vinha me fazendo no SESI. Me lembro, por exemplo, que agora já dentro<br />
do MCP coordenava um projeto que se chamava “Círculos de Cultura” e “Centros de<br />
Cultura”.<br />
158<br />
(...) O círculo de cultura era uma experiência em que você trabalhava com duas,<br />
três ou até vinte pessoas, não importava. Aí eu havia aprendido muito com a experiência<br />
do SESI. Os projetos dos círculos de cultura do MCP não tinham uma programação feita<br />
a priori. A programação vinha de uma consulta aos grupos, quer dizer: os temas a serem<br />
debatidos nos círculos de cultura, era o grupo que estabelecia. Cabia a nós, como<br />
educadores, com o grupo, tratar a temática que o grupo propunha. Mas podíamos<br />
acrescentar à temática proposta este ou aquele outro tema que, na Pedagogia do<br />
oprimido, chamei de “temas de dobradiça” – assuntos que se inseriam como<br />
fundamentais no corpo inteiro da temática, para melhor esclarecer ou iluminar a temática<br />
56 No capítulo 4 do livro Educação como prática da liberdade (<strong>Freire</strong>, 1983), intitulado “Educação e<br />
Conscientização’, <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> fala do lançamento do Círculo de Cultura, conforme utilizaremos a<br />
seguir no nosso próprio texto, bem como apresenta as etapas do seu conhecido método de<br />
alfabetização de adultos. Além disso, no mesmo livro, apresenta em apêndice, “as situações<br />
existenciais que possibilitam a apreensão do conceito de cultura, acompanhadas de alguns<br />
comentários. Pareceu-nos igualmente interessante apresentas as 17 palavras geradoras que<br />
constituíram o currículum dos Círculos de Cultura do Estado do Rio e da Guanabara.” (id., 1983:123)<br />
– completa o autor. Sobre o Método <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> ver: Brandão, Carlos Rodrigues. O que é Método<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>. 18ª ed. São <strong>Paulo</strong>, Brasiliense, 1981; Feitosa, Sônia Couto. Dissertação de mestrado,<br />
FE-USP, 1999; Gadotti, Moacir. Um legado de esperança. São <strong>Paulo</strong>, Cortez, 2001. Para<br />
conhecimento da biografia e da bibliografia de <strong>Freire</strong>, ver Gadotti, Moacir (Org.). <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> uma<br />
biobibliografia. São <strong>Paulo</strong>, Cortez/IPF, 1996. Trata-se da mais ampla pesquisa feita até agora sobre a<br />
vida e a obra de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>. Colaboramos nesta obra completando e atualizando a organização das<br />
partes 3 (Escritos de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>) e 4 (Escritos sobre <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>), sob a coordenação do Prof.<br />
Moacir Gadotti, dando continuidade ao levantamento bibliográfico iniciado antes de 1987 pelo<br />
educador Admardo Serafim de Oliveira, falecido em outubro de 1995, a quem o livro foi dedicado.
sugerida pelo grupo popular. Porque acontece o seguinte: é que, indiscutivelmente, há<br />
uma sabedoria popular, um saber popular que se gera na prática social de que o povo<br />
participa, mas, às vezes, o que está faltando é uma compreensão mais solidária dos<br />
temas que compõem o conjunto desse saber.<br />
Uma das tarefas do chamado intelectual que a gente pode ser, uma delas é<br />
exatamente ver que, entre o tema “A” proposto pelo grupo e o tema “B” haveria um tema<br />
“A-B”. Precisaríamos de algo que nos possibilitasse a passagem da fronteira entre o “A”<br />
e o “B”. E isso é um dos trabalhos do intelectual, do educador comprometido. É ele ver<br />
como é possível viabilizar a compreensão mais crítica da temática proposta pelo povo.<br />
Isso era o círculo de cultura (<strong>Freire</strong>, 1985:14-15).<br />
Em diversas outras oportunidades, em sua obra, <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> retoma e<br />
explica o conceito de Círculos de Cultura. Por exemplo, em Cartas a Cristina,<br />
observamos a diferença entre Centros de Cultura e Círculos de Cultura. Os<br />
primeiros<br />
eram espaços amplos que abrigavam em si círculos de cultura, bibliotecas populares,<br />
representações teatrais, atividades recreativas e esportivas. Os Círculos de Cultura eram<br />
espaços em que dialogicamente se ensinava e se aprendia. Em que se conhecia em<br />
lugar de se fazer transferência de conhecimento, Em que se produzia conhecimento em<br />
lugar da justaposição ou da superposição de conhecimento feitas pelo educador a ou<br />
sobre o educando. Em que se construíam novas hipóteses de leitura do mundo (<strong>Freire</strong>,<br />
1994a:155).<br />
159<br />
O autor esclarece ainda que a partir da experiência no Recife, constituiu-se a<br />
primeira série de Círculos de Cultura em zonas populares, formada em associações<br />
beneficentes, clubes de futebol, sociedades de amigos de bairro e igrejas, em que<br />
os educadores ficavam responsáveis pela preparação do terreno para a criação do<br />
círculo. Isto é, faziam as visitar no bairro, anunciavam os objetivos do trabalho<br />
pedagógico que se pretendia fazer e divulgava em todos os espaços comunitários<br />
possíveis a notícia da possível realização dos cursos de alfabetização. A notícia<br />
corria rapidamente e, tão logo criados dois ou três círculos, era feito um<br />
levantamento temático entre os participantes, que era estudado por toda a equipe de<br />
coordenação e de educadores, com o objetivo de tratar dos temas que organizariam
o programa a ser discutido com os participantes do círculo. Havia a preocupação<br />
com os aspectos didático-pedagógicos, incluindo a utilização todos os recursos de<br />
ensino possível, por exemplo, projetor de slides e gravador, o que para a época era<br />
o que de mais avançado havia em termos de recursos que poderiam ser colocados à<br />
disposição da educação (<strong>Freire</strong>, 1994a).<br />
O relato desses cuidados com o contexto permite a percepção da seriedade e<br />
da profundidade educacional com que os trabalhos eram realizados, voltando-se à<br />
construção de um currículo com base na cultura dos participantes.<br />
Talvez, uma das mais completas explicações sobre os Círculos de Cultura<br />
oferecidas por <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, está presente no livro Educação como prática da<br />
liberdade (<strong>Freire</strong>, 1983). Por isso consideramos fundamental também citá-la na<br />
íntegra, oferecendo ao leitor detalhes sobre as implicações de se utilizar aquele<br />
novo conceito no processo de alfabetização, que alterava várias outras dimensões<br />
da organização, diríamos, curricular, do processo de ensino e de aprendizagem.<br />
Assim ele se expressou sobre os mesmos:<br />
Em lugar de escola, que nos parece um conceito, entre nós, demasiado<br />
carregado de passividade, em face de nossa própria formação (mesmo quando se lhe dá<br />
o atributo de ativa), contradizendo a dinâmica fase de transição, lançamos o Círculo de<br />
Cultura. Em lugar do professor, com tradições fortemente “doadoras”, o Coordenador de<br />
Debates. Em lugar de aula discursiva, o diálogo. Em lugar de aluno, com tradições<br />
passivas, o participante de grupo. Em lugar dos “pontos” e de programas alienados,<br />
programação compacta, “reduzida” e “codificada” em unidades de aprendizado (<strong>Freire</strong>,<br />
1983:103).<br />
Refletindo sobre a proposta da participação popular nos Círculos de Cultura e<br />
também na revisão nos diversos conceitos relacionados à educação, conforme<br />
vimos acima, constatamos que mesmo para os dias atuais é avançada. Inserindo-<br />
nos no contexto do início dos anos 60, fica fácil entender a reação das elites<br />
intelectuais e, mais tarde, econômica e política, porque, por mais avançada que se<br />
considerasse, eram contrários, salvo raras exceções, àquelas propostas que<br />
contestavam a manutenção do status quo e incluía o povo no processo de<br />
reconstrução da cultura. Segundo as palavras do Prof. <strong>Paulo</strong> Rosas,<br />
160
tudo isso conduzia a um novo conceito do saber e a um projeto – quase diria,<br />
intermediário – de preparação das camadas populares para compreenderem e se<br />
utilizarem dos instrumentos próprios do modelo de comunicação vigente entre as elites,<br />
a começar pela alfabetização. (Rosas, in: <strong>Freire</strong>, 2001:LII). (Grifos do autor).<br />
Isso era demais para as elites consolidadas e acomodadas no poder desde a<br />
década de 20.<br />
Além de abordarmos o que vem a ser “Círculos de Cultura” em <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>,<br />
este trabalho exige-nos esclarecer a visão de “cultura” que <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>.<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> se refere a um “conceito antropológico de cultura”, segundo suas<br />
próprias palavras. Ele distingue dois mundos: o da natureza e o da cultura, e sua<br />
concepção de ser humano pressupõe o “papel ativo do homem em sua e com sua<br />
realidade. O sentido de mediação que tem a natureza para as relações e<br />
comunicação dos homens” (<strong>Freire</strong>,1983:108-9). Em seguida, apresenta a sua<br />
compreensão de Cultura:<br />
A cultura como o acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez. A<br />
Cultura como o resultado de seu trabalho. Do seu esforço criador e recriador. O sentido<br />
transcendental de suas relações. A dimensão humanista da cultura. A cultura como<br />
aquisição sistemática da experiência humana. Como uma incorporação, por isso crítica e<br />
criadora, e não como uma justaposição de informes ou prescrições “doadas”. A<br />
democratização da cultura – dimensão da democratização fundamental. O aprendizado<br />
da escrita e da leitura como uma chave com que o analfabeto iniciaria a sua introdução<br />
no mundo da comunicação escrita. O homem, afinal, no mundo e com o mundo. O seu<br />
papel de sujeito e não de mero e permanente objeto. (id., ib.: 109).<br />
161<br />
Como podemos observar, o conceito de cultura utilizado por <strong>Freire</strong> pressupõe<br />
uma dimensão altamente crítica dos membros participantes do Círculo de Cultura,<br />
ou seja, de todas as pessoas da sociedade, do povo, enfim, no sentido de que<br />
possuem todo o potencial para superar a “consciência ingênua” e alcançar a<br />
“consciência crítica”, desde que mediado pelo processo educacional. Nessa direção,<br />
percebemos a importância atribuída por <strong>Freire</strong> à escola e, naquele contexto, ao
Círculo de Cultura que, segundo ele propõe, substituiria inclusive o conceito de<br />
escola. Até porque, para <strong>Freire</strong>, a educação não se dá apenas no espaço formal de<br />
uma unidade escolar, numa escola oficial, de ensino regular, dentro de uma<br />
estrutura geralmente rígida que, via de regra, tende mais a conservar e reproduzir<br />
uma determinada cultura dominante ao invés de reconhecer, sem subordinar, as<br />
várias culturas.<br />
No Círculo de Cultura, o processo educacional se amplia de tal forma que,<br />
pelo diálogo, há um crescendo criativo de novas descobertas, individuais e coletivas,<br />
que não educa o sujeito apenas para determinado saber ou fazer. Neste círculo se<br />
prepara para a vida crítica em sociedade e para a redescoberta do próprio ser<br />
humano como tal e como ser social, que vive em permanente contato com os seus<br />
próprios limites e com as suas potencialidades no encontro e no confronto com o<br />
outro. Que com aquele disputa poder mas que, ao mesmo tempo, reconhecendo-se<br />
diferente, ao se relacionar se reconhece melhor no outro e, com a ajuda dele,<br />
enxerga melhor a si mesmo e pode, por conseguinte, intervir critica e radicalmente<br />
no contexto, no mundo em que vive.<br />
Desta forma, podemos concluir a preferência de <strong>Freire</strong> pelo termo Círculo de<br />
Cultura e, não, pelo possível “Círculo de Educação”, de acordo com o que nos<br />
provocamos a refletir. A cultura é mais ampla, transcende e supera a compreensão<br />
do que seja a própria educação, mas com ela se relaciona permanente, sem nunca<br />
dela dissociar-se, a não ser por uma atuação político-pedagógica, diríamos mais,<br />
ideologicamente situada, que vise a separar e dicotomizar cultura e educação – o<br />
que, certamente, veremos com maior amplitude quando discutirmos os diferentes<br />
sentidos e significados de cultura e dos termos a ele correlacionados. Conforme<br />
afirma Ramón Moncada Cardona,<br />
a relação entre cultura e educação define e orienta as políticas educativas, posto que<br />
elas não são unicamente um ato de definição organizativa ou administrativa; são, acima<br />
de tudo, a proposta para desenvolver e consolidar projetos culturais e políticos das<br />
sociedades nas quais se originam e se realizam (2000:321).<br />
162
A educação da pessoa e do ser humano se dá em diferentes espaços. Mas o<br />
espaço do Círculo de Cultura é um desses espaços privilegiados, que não se<br />
resume nem restringe aos limites dos muros escolares.<br />
A partir da sua compreensão de Cultura,<br />
<strong>Freire</strong> se utiliza da relação do homem com a natureza para explicar o tipo de criação que<br />
é exclusivo dos seres humanos. A esta relação do homem com o mundo ele chama de<br />
‘práxis’, usando a palavra ‘contatos’ para identificar as relações ente os animais e o<br />
mundo” (Lima, 1981:61).<br />
A dimensão do conceito de relações, na esfera puramente humana é,<br />
segundo <strong>Freire</strong>, plural, transcendente, crítica, conseqüente e temporal, bem ao<br />
contrário dos contatos entre animal-mundo, que se caracterizariam por serem<br />
acríticos, singulares, inconseqüentes e imanentes (<strong>Freire</strong>, 1983: 43). Ou seja, o<br />
homem é capaz de, a partir do seu contato com a realidade, de “fazer cultura”,<br />
construir o seu mundo, dominar a realidade, humanizá-la e se humanizar ao fazê-lo.<br />
Toda pessoa humana, diríamos nós, são permanentemente desafiados no mundo<br />
em que vive e, na relação com o mundo e com as demais pessoas, é desafiada a<br />
criar, recriar e decidir. “E, na medida em que cria, recria e decide, vão se<br />
conformando as épocas históricas. É também criando, recriando e decidindo que o<br />
homem deve participar destas épocas (id., 1983: 43)<br />
Um primeiro aspecto a salientar refere-se à tomada de consciência do real,<br />
tão enfatizada por <strong>Freire</strong>, no sentido de que, a partir deste processo ou deste<br />
movimento permanente, é possível determinar temas sobre os quais o trabalho<br />
pedagógico será realizado. Isso se explica devido ao fato de que, para <strong>Freire</strong>, a<br />
cultura é inseparável da tomada de consciência, pois aquela se realiza justamente<br />
no processo desta. E, conforme as palavras do autor, “esta conscientização muitas<br />
vezes significa o começo da busca de uma posição de luta” (<strong>Freire</strong>,1983:9).<br />
163<br />
Retomando a nossa provocação ao introduzirmos este item e pensando na<br />
escola e na aula que temos hoje, de acordo com as palavras iniciais do professor<br />
Pedro Demo e também partindo dos dados históricos de nossa experiência como<br />
professor de escolas públicas e privadas, além de responsável por assessorias
educacionais junto a diferentes redes de ensino, observamos que,<br />
predominantemente, o trabalho desenvolvido na sala de aula, ainda hoje, mantém,<br />
na maioria dos casos, um caráter de transmissão de conteúdos. Em conseqüência,<br />
mantém relações autoritárias que, por sua vez, contribuem para a dominação e<br />
conservação da alienação cultural vigente. É certo que o problema da alienação<br />
cultural é muito mais amplo nos dias atuais, pela influência, por exemplo, das<br />
diversas mídias, tão presentes na vida das comunidades, tanto urbanas como rurais,<br />
por maiores que possam ser, por outro lado, os benefícios da modernas tecnologias<br />
e mídias em geral.<br />
Por maior que seja o alcance dos meios de comunicação de massa e das<br />
grandes mídias – principalmente, hoje, a televisão, os jornais escritos e a internet – o<br />
fenômeno de alienação cultural pode ser combatido e minimizado pelas escolas.<br />
Mas, para isso, elas precisam se assumir como pólo irradiador de cultura, de acordo<br />
com <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, quando iniciou a sua gestão na Secretaria Municipal de Educação<br />
de São <strong>Paulo</strong>, em 1989. É, portanto, no espaço das comunidades e das escolas,<br />
que se pode construir uma das possíveis saídas para organizar esta reação não-<br />
alienante, onde o processo de ensino e, principalmente, de aprendizagem, pode<br />
acontecer, sobretudo se resgatarmos e se recriarmos os Círculos de Cultura como<br />
espaços privilegiados para o que estamos chamando de resgate das relações<br />
culturais, interculturais e, mais ainda, intertransculturais. Isso, com base em<br />
experiências que já temos acompanhado e vivenciado, que apresentam, digamos,<br />
não só o embrião mas, além disso, as características e os próprios fundamentos de<br />
práticas criativas e ousadas de alunos, professores e demais membros da<br />
comunidade escolar e de toda a sociedade civil, associadas ao Estado de diferentes<br />
formas e exercendo pressão política e a fiscalização sobre o mesmo, como sempre<br />
defendeu <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>. Estamos no âmbito de uma radicalidade democrática que<br />
visa à eliminação radical da exclusão que se dá em nossa sociedade, também via<br />
educação.<br />
A experiência nos mostra que é possível construir uma prática escolar que se<br />
coloque como alternativa aos modelos educacionais e culturais predominantes, que<br />
propõem o “atrofiamento da capacidade e/ou potencial comunicativo da vida<br />
humana” (Zitkoski, 2000:148), segundo as teses habersianas, a grande causa da<br />
atual alienação cultural.<br />
164
O contexto atual exige de nós criatividade e ousadia, caminhando em direção<br />
à construção de estratégias que nos ajudem a superar a alienação cultural, que se<br />
manifesta cada vez mais nas nossas escolas, mediante a banalização da<br />
mediocridade, conforme denunciou Pedro Demo. Há que se enfrentar, igualmente, a<br />
aparente falta de capacidade de reação dos educadores e das educadoras diante da<br />
aparente inexorabilidade do futuro, da educação e da própria cultura, conforme quer<br />
nos fazer crer o projeto hegemônico neoliberal 57 . Trata-se, nesse sentido, de teorizar<br />
a prática, fundamentando-nos, por exemplo, na radicalidade de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> que,<br />
nos seus últimos trabalhos, fala-nos do resgate da esperança (1994a), da utopia<br />
(1995), da luta pela autonomia (1997b) e da expressão de nossa indignação (2000).<br />
Nesse sentido, resgatar processualmente, nas nossas práticas escolares, quando da<br />
construção do currículo da escola, alguns fundamentos presentes na experiência<br />
dos Círculos de Cultura, visando à superação do que <strong>Freire</strong> chamou de “educação<br />
bancária”. Para tanto há que estarmos abertos às mudanças e aos desafios<br />
propostos no início da segunda metade do Século XX, em pleno início do Século<br />
XXI. Parece exagero mas não é.<br />
Consideramos ser possível ampliar o alcance do conceito de Círculo de<br />
Cultura que, além de todos os elementos já presentes na fala de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>,<br />
incluiria outras dimensões para a sua utilização, no sentido de estimular sempre<br />
mais o diálogo, as relações e a participação em todos os sentidos na escola. A estas<br />
categorias, repetimos, o estímulo à apreensão do novo, o respeito ao outro, o<br />
trabalho de grupo e a retomada de um clima de mobilização popular, a possibilidade<br />
da racionalidade associada à sensibilidade humana, por meio da valorização das<br />
diferentes linguagens artísticas e simbólicas. O estar sensível e aberto à fala do<br />
povo ou, melhor dizendo, de toda a comunidade escolar, desde alunos, pais,<br />
professores, funcionários e instituições comunitárias que certamente, podem<br />
contribuir para a construção do currículo escolar, em que o reconhecimento da<br />
cultura enquanto criação e valorização humanas possibilite sempre o enfrentamento<br />
e a superação de novos desafios.<br />
165<br />
57 Segundo o Prof. Gaudêncio Frigotto, “se para os neoliberais, baseados na tese básica de seu pai<br />
maior Hayek, a igualdade e a democracia levam à servidão e a liberdade do mercado é o valor<br />
essencial, para nós, é fundamental firmar como princípio básico universal a igualdade, a<br />
solidariedade e a democracia efetiva. Igualdade não quer dizer uniformidade, como quer fazer crer o<br />
neoliberalismo. Ao contrário, é a única autêntica diversidade” (Frigotto,1997:13). Sobre neoliberalismo<br />
e educação ver: Frigotto, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. São <strong>Paulo</strong>, Cortez, 1995<br />
e Gentili, Pablo (org)., Pedagogia da Exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação. 6 ed.,<br />
Petrópolis, Vozes, 2000.
Nossa avaliação é de que a retomada, nas escolas, das atividades dos<br />
Círculos de Cultura, devidamente contextualizadas para a época que estamos<br />
vivendo e, portanto, ressignificadas, pode oferecer importante estratégia de<br />
construção de um currículo que leve em conta as diferentes culturas, cada vez mais<br />
presentes e evidenciadas nas escolas e em toda a sociedade. Esta representaria<br />
uma nova forma de organização das equipes escolares e da escola como um todo,<br />
conforme pudemos mostrar no primeiro capítulo.<br />
Por outro lado, resgatar os Círculos de Cultura e relacioná-los às novas<br />
tecnologias, significa, segundo pensamos, desenvolver a capacidade de pensar<br />
criticamente a própria técnica e submetê-la ao diálogo criativo, solidário e humilde de<br />
uma escola que se organiza internamente, mas aberta à sua comunidade e às<br />
experiências de outras instituições e pessoas. Significa, ainda, submeter à<br />
permanente avaliação da comunidade escolar as ações constantes do currículo da<br />
escola, como forma de renová-las e de aperfeiçoá-las processualmente.<br />
Refletiremos como nos ensina <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>:<br />
O exercício de pensar o tempo, de pensar a técnica, de pensar o<br />
conhecimento enquanto se conhece, de pensar o quê das coisas, o para quê, o<br />
como, o em favor de quê, de quem, o contra quê, o contra quem são exigências<br />
fundamentais de uma educação democrática à altura dos desafios do nosso tempo.<br />
(<strong>Freire</strong>, 2000:102).<br />
166<br />
A importância das perguntas aqui apresentadas por <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, que dão<br />
conta de sedimentar e esclarecer o sentido filosófico, político e pedagógico da<br />
educação e também do currículo que estaremos construindo na escola. Discuti-las<br />
significa, sem dúvida, discutir relações de poder, de mando, de subordinação.<br />
Significa abrir e criar espaços comunicativos para que o currículo da escola seja,<br />
efetivamente, parte do cotidiano de todos/as, para que ele resulte da interação<br />
contextual entre os mesmos. Para que esta interação possa acontecer, defendemos<br />
que os Círculos de Cultura sejam os espaços privilegiados a partir dos quais se dará<br />
a aproximação das pessoas e dos grupos de pessoas, bem como para diminuição<br />
das lacunas existentes entre escola e comunidade. Trata-se, como nos ensina<br />
Freinet, de criar novas alternativas dentro da escola para que haja o encontro entre
as pessoas. Assim, a escola “deverá então adaptar não só as suas dependências,<br />
programas e horários, mas também os seus instrumentos de trabalho e técnicas, às<br />
conquistas essenciais do progresso da nossa época” (1973:29-30).<br />
Estamos pensando, aqui, na inclusão do aluno e dos demais segmentos<br />
escolares, no processo de reconstrução do currículo da escola e também na<br />
transformação das relações de poder que se estabelecem na unidade escolar. Como<br />
vimos, o Círculo de Cultura favorece este trabalho. Trata-se, por exemplo, de<br />
incentivar no currículo da escola o estímulo à utilização e à expressão através das<br />
diferentes formas de linguagem e representação da realidade, já que, conforme<br />
entendemos, a realidade pode ser explicada com base em diferentes níveis, ou,<br />
melhor dizendo, na perspectiva de diferentes olhares, que se traduzem em práticas<br />
vivenciais e contextuais. O teatro, a música, a dança, o desporto, são apenas<br />
algumas possibilidades que temos de exercitar esta multiplicidade de linguagem e<br />
de representações, porque representam expressividades humanas, sobretudo<br />
comunicacionais e sensíveis, que podem se utilizar, nos dias atuais, das novas<br />
tecnologias, como forma de ampliar o seu próprio alcance, seja no nível<br />
intrapessoal, seja no nível das relações entre diferentes sujeitos em diferentes<br />
espaços e dimensões.<br />
Mas estas linguagens e representações, por sua vez, estarão associadas a<br />
cada uma das formas de organização curricular da escola, o que poderá alterar, por<br />
exemplo, “os dispositivos de poder disciplinar que caracterizam a estrutura e o<br />
funcionamento de instituições que tomam corpo a partir do século XII” (Fleuri,<br />
1996:201). Nessa direção, a proposta de Freinet, de acordo com o artigo de<br />
Reinaldo Matias Fleuri, intitulado Freinet: confronto com o poder disciplinar (ib.),<br />
coloca-se contra um modelo funcional de escola que é tradicional e sugere a criação<br />
de oficinas de trabalho<br />
167<br />
simultaneamente comunitário e especializado, que exige uma nova estrutura arquitetural.<br />
Nesta, prioriza-se o meio natural, ao qual se articulam os edifícios. Na escola primária<br />
propõe-se um modelo arquitetural básico compondo uma sala comum, onde as crianças<br />
poderão reunir-se para os trabalhos coletivos, como oficinas internas especializadas e<br />
oficinas externas especializadas (jardim, horta, pomar e a criação de animais. Neste<br />
espaço escolar, o controle das atividades tende a ser assumido pelos grupos de alunos,<br />
em função de seus interesses e planos, subvertendo-se o mecanismo de vigilância
hierárquica. Também o controle disciplinar da atividade, baseado no horário e no<br />
treinamento, é superado (...). (Fleuri, 1996:203-04).<br />
As oficinas de trabalho de Freinet nos servem também como referência para<br />
uma reflexão sobre a metodologia de trabalho e para uma outra possibilidade<br />
espacial para a organização do fazer político-pedagógico na escola, contribuindo<br />
assim para a ressignificação das relações disciplinares na escola e, por conseguinte,<br />
das relações de poder em relação à (re)construção curricular e, no geral, de um<br />
processo educacional mais voltado à emancipação humana, como temos analisado<br />
até agora.<br />
Certamente estes caminhos dependem de um esforço organizativo coletivo. A<br />
sua concretização dependeria da manifestação de diversos sujeitos, no sentido de<br />
atualizar sua práxis e de criar novos espaços-tempos-pedagógicos, o que poderia<br />
contribuir para a mudança da escola que temos hoje, tornando-a mais significativa<br />
na vida das pessoas que a freqüentam e, por conseguinte, para um novo olhar, não<br />
mais dicotômico nem apenas bipolar (ou/ou), sobre toda a problemática e, diríamos,<br />
diante da complexidade inerente à vida humana e, por extensão, à construção<br />
humanizada do currículo da escola.<br />
Por outro lado, consideramos que<br />
O desenvolvimento tecnológico e o processo de globalização da informação<br />
através da imagem modificaram os processos de desenvolvimento cultural por<br />
introduzirem novas formas de mediação. As novas gerações desenvolvem-se com<br />
diferenças importantes em relação às gerações precedentes, por meio, por exemplo, da<br />
interação com a informática, com as imagens presentes no meio urbano (várias formas<br />
de propaganda, como cartazes, outdoors móveis etc). O mesmo acontece com crianças<br />
dos meios rurais (...) indígenas que passam a ter o processo de escolarização e,<br />
também, em vários casos a presença de novos instrumentos culturais como o rádio, a<br />
TV, câmeras de vídeo, fotografia etc. O desenvolvimento do cérebro, sendo função da<br />
cultura e dos objetos culturais existentes em um determinado período histórico, será<br />
afetado por novos instrumentos culturais como, por exemplo, o computador, que<br />
promove o desenvolvimento especial com complexidade maior (Lima, 1998:22-23).<br />
168
Os nossos estudos apontam na direção de que a revolução científica e<br />
cultural não se limite a uns poucos privilegiados da sociedade. Melhor esclarecendo,<br />
observamos que as novas tecnologias são uma conquista da humanidade e, como<br />
tal, devem ser acessadas por todas as pessoas, beneficiando-as. Sabemos que este<br />
processo não é simples. Nem temos a ilusão de que as camadas populares terão<br />
rapidamente acesso aos meios de comunicação nas escolas nem mesmo fora delas.<br />
Exemplo disso é que “os gastos públicos por aluno nos ensinos pré-primário,<br />
primário e secundário, em 1990, foram de 2.419 dólares por ano nos países ricos,<br />
contra 263 dólares nos países do Terceiro Mundo” (Dowbor, 2001:30). Esta é uma<br />
das questões éticas já referidas por <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, quando ele se reporta às novas<br />
tecnologias, defendendo o acesso a todas as pessoas.<br />
É justamente a organização da escola e a mobilização organizada das<br />
camadas populares, também a partir da escola, que poderão construir uma luta<br />
organizada, para superar esta injustiça mundial e requerer para si,<br />
permanentemente, os mesmos direitos dos países desenvolvidos. Estamos falando<br />
de universos bastante diferenciados, mas cada vez mais próximos até mesmo em<br />
função das novas tecnologias. Ou seja, certamente que também nos países<br />
subdesenvolvidos, como o Brasil por exemplo,<br />
não é preciso ser nenhum deslumbrado da eletrônica para constatar que o movimento<br />
transformador que atinge hoje a informação, a comunicação e a própria educação<br />
constitui uma profunda revolução tecnológica. Este potencial pode ser visto como fator<br />
de desequilíbrios, reforçando as ilhas de excelência destinadas a grupos privilegiados,<br />
ou pode constituir uma poderosa alavanca de promoção e resgate da cidadania de uma<br />
grande massa de marginalizados, criando no país uma base ampla de conhecimento,<br />
uma autêntica revolução científica e cultural (Dowbor, 2001:29).<br />
169<br />
Esta constatação e esta advertência do Prof. Ladislau Dowbor 58 comprova<br />
nossa tese sobre a necessidade de a escola aceitar os desafios que nos são<br />
apresentados pelas novas tecnologias, respeitados os limites éticos aos quais já nos<br />
58 O Professor Ladislau Dowbor, polonês naturalizado brasileiro, é mestre e doutor em Ciências<br />
Econômicas, trabalhou na Universidade de Coimbra e foi coordenador técnico do ministério do<br />
planejamento da Guiné-Bissau. Atualmente leciona Economia e Administração na PUC/SP e no<br />
mestrado da Universidade Metodista de São <strong>Paulo</strong>. Trabalhou na Prefeitura de São <strong>Paulo</strong>, na Gestão<br />
Erundina (1989-1992), na mesma época em que <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> e Mário Sérgio Cortella foram<br />
Secretários de Educação.
eferimos. Mostram também a necessidade de uma formação técnica e científica<br />
que supere o simples treinamento e confirma para nós que os Círculos de Cultura<br />
podem mobilizar, sobretudo pelo diálogo, o trabalho coletivo na escola com base na<br />
“síntese cultural” a que se refere <strong>Freire</strong> em Pedagogia do oprimido (1987:178). O<br />
que vale, neste sentido, nesta perspectiva da “síntese cultural”, é o fato de não se<br />
limitar a investigação temática a especialistas, é a possibilidade de se resgatar na<br />
escola – e aos poucos, possivelmente com o tempo em toda a sociedade – o clima<br />
cultural propício ao trabalho pedagógico transformador, ousado, criativo e lúdico,<br />
politizando o ato educativo, as ações e as relações sociais, se quisermos resgatar a<br />
bela imagem do clima que se “respirava” no Recife dos anos 50-60, conforme<br />
lembrou <strong>Paulo</strong> Rosas.<br />
Resgatar os Círculos de Cultura, conforme estamos propondo, significa<br />
considerá-lo espaço cultural do currículo. Um espaço privilegiado que, por suas<br />
próprias características de funcionamento aberto e integrador, crítico, criativo e<br />
problematizador, favorecerá a organização do encontro entre as pessoas para o<br />
resgate, troca, conhecimento, reconhecimento, convivência, conexão, superação e<br />
respeito da diferença cultural, sobretudo daquelas dimensões que não justifiquem o<br />
isolamento e a negação etnocêntrica do outro. Esta nova dinâmica curricular da<br />
escola estará, nos Círculos de Cultura, tecendo a complexa teia que, via diálogo,<br />
contribuirá para a potencialização das mudanças demandadas por alunos,<br />
professores e toda a comunidade, visando à conquista de novos espaços políticos,<br />
econômicos e culturais.<br />
A perspectiva descrita permitiria expandir os Círculos de Cultura aos demais<br />
níveis educacionais, de forma que eles pudessem se multiplicar, mas com<br />
abrangência ampliada, porém sempre dialeticamente articulada, num processo<br />
socializado e ascendente (Padilha, 2001).<br />
Estamos diante da possibilidade efetiva de organizar a prática curricular nas<br />
escolas de forma a que os autores e os atores, “fazendo da realidade objeto de sua<br />
análise crítica, jamais dicotomizada da ação, se vão inserindo no processo histórico,<br />
como sujeitos” (<strong>Freire</strong>, 1987:181). Com isso, visamos à ampliação da participação<br />
democrática na definição do currículo da escola, sem perder de vista as dimensões<br />
local e global do conhecimento e da ação pedagógica (Teixeira, 2001).<br />
170
O Círculo de Cultura poderá contribuir para a ressignificação do próprio<br />
currículo e das próprias relações disciplinares e relações de poder que se<br />
estabelecem na escola, transformando-se, aos poucos, em referência para as trocas<br />
intertranscuturais.<br />
Buscaremos, a partir de agora, desenvolver as nossas reflexões visando ao<br />
estabelecimento de um referencial praxiológico que contribua para a construção do<br />
currículo numa nova perspectiva, a perspectiva da intertransculturalidade: um<br />
currículo que, ao mesmo tempo, respeite o saber local, o saber global, planetário e,<br />
portanto, a cultura em todas as suas possíveis dimensões, bem como o<br />
multiculturalismo próprio do nosso tempo e a criação de espaços interculturais nas<br />
escolas e em outros espaços de formação da comunidade, formais e não formais,<br />
isto porque a educação não acontece só na escola formal; um currículo aberto às<br />
diferenças culturais, à multiculturalidade, às trocas, conexões e relações profundas e<br />
criativas entre as culturas, nos diferentes “entre-lugares”. Para ser construído, esta<br />
perspectiva de currículo partirá também do pressuposto de que<br />
nesta rearticulação da sociedade, hoje urbanizada e coexistindo em “vizinhança”, e<br />
frente ao novo papel do conhecimento em nosso cotidiano, as estruturas de ensino<br />
poderiam evoluir, por exemplo, para um papel muito mais organizador de espaços<br />
culturais e científicos do que propriamente de “lecionador” no sentido tradicional. De toda<br />
forma o espaço urbano abre possibilidades para a organização de redes culturais<br />
interativas que colocam novos desafios ao próprio conceito de educação (Dowbor,<br />
2001:29). (Grifos do autor).<br />
São estes os nossos objetivos, que, se alcançados, contribuirão não apenas<br />
para a manutenção e ampliação do legado de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> mas, também, para<br />
indicar novos referenciais para a busca de um escola mais mais emancipadora do<br />
ser humano.<br />
171<br />
A escola pode ser um espaço que favorece não apenas a socialização das<br />
informações e de instrumentos culturais, mas também de relações humanas críticas<br />
e solidárias, considerando sempre, nos métodos e na sua forma de organização, o<br />
desenvolvimento humano, cultural e biológico, nas suas diferentes fases de<br />
desenvolvimento, conforme nos adverte a professora Elvira Souza Lima. Nesse
sentido, trata-se de “abordar o conhecimento formal, promovendo o desenvolvimento<br />
cultural de todo ser humano.” (Lima, 1998:19).<br />
São estes os caminhos percorridos que associam o currículo da escola a uma<br />
nova visão de ciência, reconhecendo a sua complexidade e a possibilidade de<br />
abrirmos janelas e portas para, processualmente, ressignificarmos socialmente a<br />
construção do currículo da escola.<br />
É difícil encontrarmos uma significação precisa para a palavra cultura, que<br />
nos satisfaça plenamente para os fins aos quais nos dedicamos neste trabalho. Em<br />
diferentes obras literárias ou científicas, encontramos definições variadas que se<br />
referem a contextos múltiplos, de acordo com as épocas em que as concepções<br />
foram pensadas ou conforme a tradição científica a partir da qual foram criadas.<br />
Num mundo em permanente transformação e mudança, que nos coloca<br />
diante de situações que, há poucos anos, só podíamos pensar como ficção – por<br />
exemplo, clonagens, teleconferências com a participação simultânea de pessoas de<br />
diferentes países do planeta, reprodução in vitro, guerras químicas etc – deparamo-<br />
nos com um sentimento geral de incerteza sobre o amanhã e de fragilidade<br />
individual e coletiva sobre o presente. Vivemos num contexto de grandes<br />
desequilíbrios ecológicos e este sentimento ganha também as escolas, o mundo da<br />
educação, apresentando-se também em grande parte dos educadores e das<br />
educadoras, como se não existissem outras saídas, como se as respostas possíveis<br />
para os problemas já tivessem sido dadas, o que aumenta o clima de nossa<br />
impotência e de desânimo.<br />
Pensamos que é justamente neste momento, em que todos/as somos<br />
desafiados/as pelos problemas com os quais convivemos diariamente no início do<br />
século XXI, em todas as dimensões da vida social e, certamente, também no<br />
contexto da educação, que somos impelidos a encontrar possíveis respostas para<br />
eles, visando à sua superação total ou parcial.<br />
172<br />
Queremos evitar a ameaça constante das guerras, o recrudescimento dos<br />
fundamentalismos em todo o mundo, bem como acabar com fome e com a violência<br />
de toda ordem que se espalha no planeta. Desejamos também superar a<br />
naturalização da miséria e da pobreza, na nossa casa e na casa do nosso vizinho e
superar, enfim, toda e qualquer forma de exclusão e de desigualdade social. Por<br />
outro lado,<br />
a complexidade dos conflitos requer uma análise multicausal e a utilização de enfoques<br />
multi-inter-disciplinares, multi-inter-dimensionais e multi-inter-culturais, possibilitando a<br />
descoberta das interações entre a distribuição eqüitativa da riqueza, o interculturalismo<br />
solidário, a salvaguarda dos direitos humanos (civis, políticos, econômicos, sociais e<br />
culturais) e a utilização sustentada do meio ambiente” (Fernandes e Tomaz, 2002:83).<br />
Nesse contexto, ouvimos falar de cultura da paz, de cultura da guerra; ela<br />
assume vários significados: ato de cultivar ou semear, conhecimento transmitido às<br />
atuais e futuras gerações, técnicas de cultivo da terra, em referência aos costumes<br />
de determinados grupos sociais, tradições religiosas, de determinados países e<br />
regiões e, também, relacionada àquilo que se torna tradição, distinto e necessário na<br />
sociedade.<br />
173<br />
Na nossa vida cotidiana falamos, por exemplo, em cultura do futebol, do<br />
carnaval, cultura popular, cultura de massa, culturas alternativas, cultura do erro e<br />
do acerto, cultura da prova, da avaliação, do planejamento, cultura da preguiça,<br />
cultura da paz e amor, cultura da corrupção e de cultura como erudição. Nesse<br />
sentido, fala-se, por exemplo, de pessoas “cultas” como aquelas que teriam<br />
estudado muito tempo na vida – pessoas intelectualizadas ou mesmo aquelas que<br />
freqüentam ou realizam atividades quase invariavelmente ligadas às artes em geral<br />
– cinema, teatro, música, dança, fotografia, pintura, festas populares ou então<br />
relativo ao folclore. Pessoas cultas seriam, então, aquelas que convivem nesse<br />
“meio”. Ser culto é sinônimo, por exemplo, de saber consumir bem, de saber<br />
combinar as roupas, de escolher este ou aquele prato de comida, que engorda mais<br />
ou menos. Cultura é saber admirar fotografias que retratam a miséria e nos<br />
emocionarmos com as fotos – e não com a miséria – porque isso é coisa dada e<br />
“não tem jeito mesmo”. Nesse sentido, pela política neoliberal, que gera profundas<br />
desigualdades sociais e semeia desesperança em todas as partes do planeta, há um<br />
discurso fatalista que nega a possibilidade de uma outra construção histórica<br />
diferente dessa citada. Enfim, a cultura pode ser até mesmo saber fazer qualquer<br />
tipo de escolha, optar entre diferentes atividades culturais ou de lazer. E isso tudo,
quase sempre, dentro de uma certa hierarquia social, reforçando preconceitos – o<br />
que estabelece a diferença entre as pessoas ou grupos sociais que têm mais ou<br />
menos cultura.<br />
Nessa mesma direção, foram e têm sido criados, por exemplo, na<br />
administração pública, instâncias governamentais em nível nacional, estadual ou<br />
municipal, pastas ou secretarias que se dedicam aos assuntos da “cultura” sem que<br />
haja uma política cultural claramente definida. Por isso, acabam geralmente<br />
realizando investimentos “culturais” mais voltados a uma elite produtora e<br />
consumidora de eventos de lazer “cultural”, deixando a “cultura popular” em segundo<br />
plano, quando não à míngua completa, tratando-a como uma questão menor.<br />
Sem aprofundarmos esta crítica, por não ser o objetivo específico deste<br />
trabalho, esclarecemos, contudo, que esta tese, por outros caminhos, tem a função<br />
de servir ao mesmo tempo ao interesse científico e ao interesse da comunidade e de<br />
toda a sociedade. Do contrário, estaríamos produzindo ou “fazendo ciência” estéril,<br />
neutra, “desinteressada”, que se esgotaria em si mesma pelo simples gosto de<br />
desenvolver um argumento, bem ou mal, para nos convencer deste ou daquele tema<br />
ou hipótese. Certamente não é, para nós, apenas esta a tarefa da ciência e do<br />
cientista.<br />
174<br />
Como veremos, a ciência está, de uma forma ou de outra, sempre<br />
relacionada à cultura. Esta, segundo Immanuel Wallerstein, “é provavelmente, o<br />
mais amplo de todos os conceitos usados nas ciências sociais e históricas. Ele<br />
abrange uma vasta gama de conotações e, com isso, constitui talvez a causa de<br />
muitas dificuldades” (Wallerstein, 1998:41). Nesse sentido, ao invés de falarmos em<br />
cultura, podemos falar em ‘culturas’, pois quando consideramos que cada ‘grupo’<br />
tem a sua ‘cultura’ específica, isso significa, por outro lado, que “cada indivíduo é um<br />
membro de muitos grupos, e, na realidade, de grupos de diferentes espécies –<br />
grupos classificados por sexo, pela raça, pela linguagem, pela classe, pela<br />
nacionalidade etc.” (id., 1998:41-42). Os grupos e as pessoas se relacionam uns<br />
com os outros, integram-se, afirmam-se e divergem entre si. Advém daí o conceito<br />
de diversidade cultural, no sentido de se considerar a existência de diferentes<br />
grupos, etnias, raças, gêneros, religiões, minorias, afirmação das mesmas e,<br />
portanto, afirmação das identidades e dos seus valores. Já dá para perceber, logo<br />
de início, a enorme abrangência de temas que podem ser objeto de estudos
elacionados à cultura. Certamente as culturas são dinâmicas e estão cada dia mais<br />
numa relação de interdependência (Gadotti, 1992) e, diríamos ainda, num contexto<br />
de relações interdependentes e complexas.<br />
Nem sempre os estudiosos da cultura falaram em “culturas, até porque esta<br />
pluralização do conceito é resultado de um discurso antropológico moderno, que<br />
surgiu com os autores evolucionistas 59 tais como Franz Boas, Bronislaw<br />
Malinowski, Émile Durkheim e Marcel Mauss (Cogo, 2000:34), que acabavam por<br />
justificar, biologicamente, a existência de hierarquias sociais e culturais. O<br />
pensamento teórico da antropologia evolucionista<br />
sublinha a existência de uma espécie humana idêntica, mas que se desenvolve, quer<br />
nas suas formas tecno-econômicas e sociais, quer culturais, a um ritmo desigual,<br />
segundo as populações, através das mesmas etapas, até atingir o nível terminal da<br />
‘civilização’. Procura, pois, evidenciar, cientificamente, o encadeamento dos estádios<br />
destas transformações. Consagra-se, assim, ao estudo das populações consideradas as<br />
mais ‘arcaicas’, os aborígenes australianos, ao estudo do parentesco e ao estudo da<br />
religião. (Gonçalves, 1997:40).<br />
O conceito cultura por nós adotado evita as generalizações da ciência que<br />
possam justificar algum tipo de predominância ou superioridade de uma cultura<br />
sobre a outra. Consideramos, por isso, que a cultura é, em primeiro lugar, a busca<br />
de conhecimentos sobre a natureza humana. Dependendo de como encaramos a<br />
cultura, podemos estar a serviço da justificação de determinadas visões de mundo e<br />
de desenvolvimento humano que desconsideram a riqueza e a multiplicidade das<br />
diferenças culturais. Este cuidado se faz necessário, sobretudo, quando falamos em<br />
educação e, mais ainda, quando fazemos educação.<br />
175<br />
A educação, entendida como atualização histórico-cultural, como meio pelo<br />
qual o ser humano se constrói em sua historicidade, e fundada na aceitação do outro<br />
59 Por evolucionismo estamos entendendo a teoria desenvolvida inicialmente por Charles Darwin<br />
(1809-1882), que significa a “idéia de seleção natural que se encontra no cerne da questão da<br />
evolução: os organismos vivos formam populações denominadas espécies e apresentam ‘variações’;<br />
graças a essas variações, certos indivíduos são melhor ‘adaptados’ a seu meio e engendram uma<br />
descendência mais numerosa. A seleção natural designa o conjunto dos mecanismos que fazem a<br />
triagem dos melhores indivíduos; assim, graças à ‘luta pela vida’, as populações evoluem lentamente,<br />
isto é, se transformam e se diversificam produzindo formas cada vez mais complexas. (Japiassu &<br />
Marcondes, 1991: 92).
como legítimo sujeito, como realização da convivência pacífica e cooperativa, que<br />
nega a dominação (Paro, 2002), revela a impossibilidade de se pensar educação<br />
sem relacioná-la à cultura e à política. Nessa perspectiva, o projeto político-<br />
pedagógico e o currículo da escola tornam-se locais de resgate da cultura local,<br />
tornam-se espaço-tempo inseridos num contexto político, econômico e social.<br />
O conceito de cultura, conforme Denise Maria Cogo (2000), compreende as<br />
“diferenças internas às sociedades, aos indivíduos, muito além do que poderiam<br />
imaginar os clássicos da antropologia” (Velho, 1996:180). Mesmo antes da<br />
constituição da antropologia como ciência, a cultura vem sendo objeto de estudos<br />
específicos, que procuram atender, desde o século XVI, a finalidades<br />
administrativas, econômicas e missioneiras. Diante das dificuldades administrativas<br />
dos franceses em relação aos povos ‘conquistados’, o administrador francês Jean<br />
Bodin (1530-1596) se ocupa especialmente em estudar os costumes desses povos”<br />
(Cogo: 2000:26). Se olharmos para a história da humanidade, veremos como a<br />
cultura sempre serviu de referência para a tomada de decisões, sejam elas, por<br />
exemplo, relacionadas ao expansionismo colonialista a partir do Séculos XII, quando<br />
as missões jesuíticas das duas Américas procuravam organizar as suas descrições<br />
dos povos com os quais trabalhavam em suas missões, ou durante a expansão<br />
européia do Século XVIII, quando foram realizados os primeiros “esforços<br />
sistemáticos de formulação de teorias sobre as diferenças culturais” (ib.).<br />
Podemos observar ênfases diferenciadas ao conceito de cultura: umas<br />
defendendo uma noção mais particularista de cultura, que enfatiza culturas locais,<br />
outras valorizando o seu caráter universalista e, por conseguinte, reconhecendo<br />
semelhanças significativas nas diferentes culturas e a existência de uma ordem<br />
histórica capaz de localizar certa estabilidade a diferentes grupos ou tipos humanos.<br />
176<br />
Tentando superar esta dicotomia particularismos versus universalismos, a<br />
concepção relativista de cultura propõe a existência de um “princípio ético que<br />
afirme a dignidade de cada cultura e preconize o respeito e a tolerância em relação<br />
às culturas diferentes” (Cuche, 1996:9-10). Esta concepção de cultural, de acordo<br />
com o antropólogo norteamericano Franz Boas, desenvolve a necessidade da<br />
precisão na descrição dos fatos observados e procura conjugar teoria e prática.<br />
Apesar destas contribuições da concepção relativista de cultural, ela mantém um<br />
modelo positivista no trabalho científico, sendo criticada por isso e também por
“adotar para os fatos culturais o mesmo tratamento científico das ciências naturais”<br />
(Cogo, 2000:37).<br />
Outras correntes antropológicas – difusionismo, funcionalismo, estruturalismo<br />
– apresentam diferentes concepções de cultura. O que queremos enfatizar é que<br />
essas diversas correntes têm, ao longo do tempo, oferecido contribuições<br />
importantes que servem à educação como instrumento de análise da realidade<br />
escolar e comunitária. Interessa à educação e à escola, ao construir o seu currículo,<br />
observar uma série de dimensões e características da realidade e da cultura<br />
humana, que ajudam na tomada de decisões que visam à uma ressignificação<br />
político-pedagógica e curricular. Nesse sentido, conta com a contribuição das<br />
diferentes formas de explicar a própria cultura: a possibilidade de enfatizar os<br />
elementos institucionais sociedade e analisar o seu sistema de crenças<br />
(difusionismo cultural), entender a dinâmica e o funcionamento orgânico da<br />
sociedade como totalidade, onde os diferentes elementos se explicam pela função<br />
que preenchem nas dinâmicas individuais e coletivas, estão a serviço da sociedade<br />
para a solução dos seus problemas (funcionalismo), considerar a equivalência da<br />
espécie humana e, portanto, entre as culturas, deslocando o conceito de raça para o<br />
de cultura e defendendo a coalizão entre as cultura (estruturalismo).<br />
Há ainda outras perspectivas culturais que propõem a desbiologização do<br />
fenômeno cultural e, portanto questiona a existência de qualquer superioridade entre<br />
culturas, sobretudo quando nos deparamos com questões relacionadas ao<br />
etnocentrismo e ao eurocentrismo culturais. A cultura, hoje, volta o seu olhar para a<br />
relação estabelecida entre as diferentes culturas, perspectiva que tem profundo<br />
reflexo nas ciências sociais e humanas na contemporaneidade e vem contribuir para<br />
que estejamos, na educação, pensando na elaboração de um currículo que implica<br />
necessariamente na relação que se estabelecem entre as pessoas e os grupos de<br />
pessoas, entre escola e comunidade. Acepções mais recentes procuram encontrar<br />
no comportamento humano as características que distinguem uma pessoa da outra,<br />
criando, para tanto, tipologias que classificam as pessoas e os grupos observados,<br />
de acordo com os instrumentais e as teorias de apoio vindas da psicologia e da<br />
psicanálise (psico-culturalismo). 60<br />
177<br />
60 Para estudos relacionados a esta perspectiva, ver Durand (1997); Teixeira & Porto (1999) ,<br />
Carvalho et al (1998) e Teixeira, 2000. Os três últimos trabalhos estão diretamente relacionados à<br />
educação.
Na antropologia da segunda metade do século XX, surgem novos<br />
paradigmas 61 de análise que podem contribuir com referenciais de análise<br />
relacionados à cultura, no âmbito da sociedade, da educação e, particularmente,<br />
com os nossos estudos relacionados ao currículo da escola. Por exemplo, a<br />
perspectiva da análise sistêmica pode nos ajuda a estudar as complexidades e<br />
propriedades dinâmicas do sistema sociocultural. Entre essas propriedades e<br />
dinâmicas estão, por exemplo, problemas relacionados a conflitos, desvios,<br />
comportamentos coletivos, poder coercitivo e mudança social. 62 . Nesse caso, todas<br />
as partes do processo dependem umas das outras. É a ênfase ao estudo da<br />
‘organização’, considerada a coluna vertebral do sistema, pois é ela quem exprime o<br />
caráter constitutivo das interações e das interdependências do mesmo. Advém daí a<br />
possibilidade metodológica de uma abordagem interdisciplinar, a par de uma<br />
abordagem histórica, permitindo, assim, introduzir nos modelos de explicação o<br />
‘aleatório’, a ‘desordem’ e o ‘improvável’- expressões de Edgar Morin. Incluem-se na<br />
análise sistêmica as investigações relacionadas aos dinamismos das simbolização<br />
política e do imaginário social.<br />
178<br />
Por outro lado, a análise cultural também nos ajuda ao trabalhar na<br />
perspectiva da ligação entre o sistema social e o cultural e, entre este e o sistema de<br />
personalidade, sistemas autônomos, mas interdependentes. O destaque da análise<br />
cultural fica centrado nas relações de estruturação em que se inscrevem as<br />
experiências, bem como os fatores que determinam socialmente o próprio modelo<br />
cultural. Busda-se, ainda, explicar quais aspectos contribuem para a manutenção ou<br />
superação de determinados estados da realidade, sejam eles instituídos ou<br />
instituintes. Já o interacionismo simbólico, terceiro conceito e abordagem<br />
metodológica dos paradigmas teóricos emergentes, segundo Gonçalves (1977:75-<br />
78), desenvolveu-se, na esteira de Georg Simmel, sobretudo a partir dos trabalhos<br />
de Edgar Morin, Gregory Bateson, Erving Goffmann, entre outros cientistas da<br />
Escola americana de Palo Alto. Suas características mais importantes, para a<br />
análise da cultura referem-se ao fato analisar a comunicação como fundamento da<br />
61 Paradigma aqui entendido, na acepção de Edgar Morin, como o “conjunto de relações fundamentais<br />
de associação e/ou de oposição entre o número restrito de noções básicas, relações essas que vão<br />
comandar e controlar todos os pensamentos, todos os discursos, todas as teorias” (Morin, 1983:173).<br />
62 Observe-se que “conceito de sistema, que exprime a unidade complexa e o carácter fenomenal do<br />
todo, bem como o complexo de relações entre o todo e as partes, é indissociável de outros conceitos<br />
fundamentais como a interdependência, a totalidade, a organização e a complexidade”. (Gonçalves,<br />
1997:65).
cultura e matriz social da vida humana, procurando revelar as diferenças implícitas e<br />
não formuladas das relações interculturais. O seu objetivo está em apreender e<br />
compreender as relações de sentido, constituídas pelos e para os indivíduos, estes,<br />
que estão inscritos num campo social com múltiplas dimensões e determinações.<br />
O interacionismo simbólico analise a expressão significativa através dos<br />
gestos, dos símbolos, da palavra e de todas as formas em geral, o que vem ao<br />
encontro e, portanto, nos serve de importante referência, à nossa concepção de<br />
cultura, quando queremos observar não apenas os aspectos fenomenais e evidentes<br />
da cultura mas, também, o que as diferentes formas de representação da realidade<br />
nos oferece e de que maneira o reconhecimento desses diferentes símbolos e<br />
linguagens contribuem com a interação das pessoas na escola e na comunidade em<br />
torno, por exemplo, do seu currículo. Diante das diferentes possibilidades e<br />
características da cultura, apenas para enfatizarmos a sua dimensão antropológica,<br />
vimos que<br />
a cultura nas suas manifestações é sobredeterminada, não se apresentando de maneira<br />
neutra ou unívoca. Daqui resulta a importância da análise transcultural, cujos conceitos<br />
possam ser utilizados na compreensão das diferenças culturas e sociedades e na<br />
descoberta da dinâmica interna pela qual a cultura surge e das formas exteriores em que<br />
se estrutura. Esta formação e estruturação da cultura desenvolve-se, sobretudo, através<br />
da conjunção complementar de três processos importantes: as relações individuais e<br />
identitárias, as relacões de alteridade com os outros e as relações dos homens com o<br />
meio envolvente e com a sua própria natureza (Gonçalves, 1997: 116). (Grifos nossos).<br />
O conceito antropológico de cultura que, segundo entendemos, serve à<br />
educação e, portanto, à construção do currículo da escola, considera-a como sendo<br />
uma<br />
179<br />
totalidade social mais vasta que a própria sociedade (...) que abrange não só os<br />
sistemas normativos como sistemas de relações sociais, mas também os sistemas de<br />
representações, de expressão e de ação, através dos quais a totalidade social é<br />
apreendida nas características distintivas dos comportamentos individuais e das<br />
produções artesanais, artísticas, econômicas, políticas e religiosas dum grupo ou duma<br />
sociedade”. Nesse sentido, a cultura compreende o conjunto, socialmente significativo,<br />
dos comportamentos, dos saberes, do saber-fazer e do poder-fazer específicos dum
grupo ou duma sociedade, adquiridos por um processo contínuo de assimilação e de<br />
inculturação e transmitidos à comunidade. (Gonçalves, 1997:117-18).<br />
Trata-se de um conceito complexo de cultura, mas que contempla a evolução<br />
do próprio significado de cultura, conforme pudemos acompanhar nos estudos de<br />
Denise Maria Cogo (2000), e na retomada histórica e antropológica realizada pelo<br />
prof. Antônio Custódio Gonçalves, responsável pelo conceito de cultura que<br />
acabamos de enfatizar. Este conceito ampliado e complexo de cultura responde aos<br />
objetivos desta tese, que tem argumentado pela determinação do que chamaremos<br />
de currículo intertranscultural..<br />
A realidade nos apresenta cotidianamente múltiplos, inúmeros contextos<br />
culturais diferentes. Como diz Luiz Carlos Brandão,<br />
ignorar a diversificação das culturas é perder de vista o modo como a lógica e a<br />
realidade cotidiana de um modo de vida podem ser compreensíveis e comunicáveis.<br />
Modos de pensar, saber e criar códigos de orientação da conduta social são socialmente<br />
produzidos em situações concretas, segundo tipos específicos de relações entre<br />
categorias de atores-autores (1985:110).<br />
Ao relacionarmos cultura e educação, há que tomarmos cuidado para não nos<br />
enclausurarmos nos “conceitos enciclopédicos” de cultura, segundo nos ensina<br />
Antônio Gramsci, quando este se refere ao conceito de práxis para apresentar sua<br />
crítica ao conceito afirmativo de cultura.<br />
Para Antônio Gramsci, é preciso nos livrarmos desta visão de cultura como<br />
conhecimento enciclopédico, que considera os homens como mero receptáculos “a<br />
serem preenchidos com fatos empíricos e um amontoado de fatos brutos isolados,<br />
que têm de ser catalogados no cérebro como nas colunas de um dicionário”<br />
(Gramsci, 1977:11-13). Isso nos faz lembrar do conceito de “educação bancária”, de<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, que apresenta a mesma preocupação e denuncia radicalmente esta<br />
prática educacional enciclopédica e conteudista, a ser superada.<br />
180<br />
Para o autor italiano, entendermos cultura de forma enciclopédica significaria<br />
criar elites arrogantes, inexpressivas, aumentando assim a distância entre os
saberes daqueles que se considerariam os grandes intelectuais da sociedade,<br />
colocando-se numa posição de superioridade em relação à maioria da população, ou<br />
seja, a massa de trabalhadores. Conforme completa Vivian Schelling, Gramsci<br />
entendia a cultura como<br />
intimamente ligada à vida social: os movimentos sociais e os conflitos entre classes, que<br />
faziam avançar o desenvolvimento histórico; as instituições da sociedade civil,<br />
particularmente a escola e a igreja, onde em larga medida se formavam a consciência, a<br />
linguagem e a visão do mundo dos indivíduos. (Shelling, 1991:35).<br />
Conforme destaca a própria autora, ainda se referindo a Gramsci – e <strong>Paulo</strong><br />
<strong>Freire</strong> sempre se utilizou também desta perspectiva,<br />
a verdadeira cultura ia além dos ‘fatos brutos isolados’, consistia na consciência crítica<br />
dessas relações, cujo ponto de partida é ‘a consciência do que é realmente, o ‘conhece-<br />
te-a ti mesmo’ como um produto do processo histórico até o presente, que depositou em<br />
você uma infinidade de traços, sem deixar um inventário (Shelling, 1991:35). 63<br />
O conceito antropológico de cultura, segundo Paola Falteri, “introduz um<br />
potencial fortemente crítico no pensamento ocidental, uma vez que reconhece que<br />
cada povo, grupo social ou indivíduo possui esquemas de referência para conhecer,<br />
avaliar, agir e elabora a sua relação com a realidade. (Falteri, 1998: 33). O conceito<br />
atual revela a necessidade, cada vez maior, de a escola perceber as mudanças<br />
pelas quais ela própria e a sociedade estão passando e, por isso, estar atenta<br />
também às diferentes formas de pensar e de compreender-se. Nesse aspecto, a<br />
compreensão do significado da cultura e, mais ainda, das manifestações culturais na<br />
nossa sociedade e nas nossas escolas, ajuda-nos a cuidar para que as diferenças<br />
culturais possam superar, sem negar, os novos conflitos hoje existentes, tão<br />
presentes nos diferentes cenários educacionais: violência, exclusão, injustiça etc.<br />
Podemos afirmar que esta é uma das mais importantes tarefas das escolas na<br />
contemporaneidade.<br />
181<br />
63 Neste particular, Vivian Schelling faz referência ao texto intitulado Selection from the policital<br />
writings, 1910-1920, de Antônio Gramsci (1977).
O mais importante desta nossa reflexão não é tanto o significado da palavra<br />
cultura 64 , mas os usos que dela podem ser feitos ou como a consideramos para os<br />
fins de melhor compreendermos o fenômeno educacional. Falar em cultura para nós,<br />
educadoras e educadores, significa, certamente, pensá-la e compreendê-la a partir<br />
de diferentes ocorrências, saberes, diferenças, textos, contextos, relações e<br />
tradições presentes nos processos educacionais formais e não formais, referidos<br />
desde os limites da sala de aula, do Círculo da Cultura, da escola e da comunidade<br />
escolar, até uma dimensão ampliada, digamos, planetária.<br />
Entendemos que educadores e educadoras, educandos e educandas, ao<br />
estabelecerem relações entre si, realizam trocas culturais e, portanto, se educam em<br />
comunhão, conforme nos ensinou <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>. Portanto, sempre há relações de<br />
troca, de transmissão e de comunicação de conhecimentos, saberes, crença,<br />
valores, hábitos, experiências, práticas. E a escola é um espaço privilegiado, mas<br />
não o único, em que isso acontece. Isso tudo também é cultura.<br />
A educação promove o encontro entre as pessoas e delas com outras<br />
culturas que estão, mesmo que não percebam num primeiro momento, em<br />
permanente contato e relação. Esta não percepção é o que, muitas vezes, acaba<br />
gerando conflitos aparentemente não compreendidos porque sequer reconhecidos.<br />
É o que uma educação, numa perspectiva cultural, intertranscultural, poderia<br />
superar.<br />
182<br />
Embora a integração multiétnica, multirracial e multicultural não seja produto<br />
exclusivo do trabalho escolar, a escola pode tornar-se um espaço privilegiado dessa<br />
integração. Com a internacionalização da economia, com a constantes migrações e com<br />
64 “Apesar da freqüência crescente no discurso pedagógico e psicológico, a utilização do conceito de<br />
cultura na prática pedagógica encontra uma barreira importante originária da pouca clareza do que<br />
seja cultura; em primeiro lugar, do papel que a cultura exerce no complexo processo de<br />
desenvolvimento e aprendizagem do ser humano e de como ela ajuda a definir o tecido social que vai<br />
constituir o meio de desenvolvimento dos indivíduos. Um dos aspectos fundamentais provém do<br />
chamado conhecimento cultural. O conceito de conhecimento cultural, usado em várias áreas do<br />
conhecimento (lingüística, neurociência e antropologia, por exemplo), refere-se ao conjunto<br />
(dinâmico) de conhecimentos que o ser humano acumula a partir do grupo a que pertence e a partir<br />
de suas experiências pessoais, principalmente no que diz respeito ao uso de sistemas simbólicos em<br />
sua vida cotidiana. O conhecimento cultural está na origem das reações que a pessoa apresenta e na<br />
interpretação que faz das informações que recebe. Ele está na base dos processos interacionais e<br />
nas formas de ação espontaneamente elaboradas ou assumidas pelos indivíduos em sua vida<br />
cotidiana. Poderíamos dizer que o conhecimento cultural é o acervo disponível ao sujeito para<br />
elaboração de suas ações e pensamentos e para construção de significados” (LIMA, 1997:16-17).
a globalização das comunicações, o número de referenciais culturais à disposição do<br />
aluno é cada vez maior (Gadotti, 1997b:16).<br />
Num trabalho intitulado Cultura: um conceito antropológico (1997), Roque de<br />
Barros Laraia, professor da Universidade de Brasília, procura também analisar a<br />
cultura sob vários aspectos: desde as teorias do determinismo biológico, passando<br />
pelo determinismo geográfico, analisando os antecedentes históricos, o<br />
desenvolvimento, as idéias sobre a origem e as teorias modernas sobre cultura.<br />
No que diz respeito ao “determinismo biológico”, o professor Laraia mostra<br />
que atribuir capacidades específicas inatas a “raças” ou a outros grupos humanos é<br />
idéia velha e totalmente ultrapassada. Ao contrário, afirma que “os antropólogos<br />
estão totalmente convencidos de que as diferenças genéticas não são<br />
determinantes das diferenças culturais” (Laraia, 1997:17). Nesse sentido, uma<br />
pessoa comportar-se-á de acordo com as suas aprendizagens e com as<br />
características da educação à qual foi submetida e não em função dos seus<br />
hormônios. A esta dependência do comportamento à aprendizagem o citado<br />
professor chama de “endoculturação” (ib.: 1997:20). 65<br />
Combina esta visão de cultura, que muito se acerca da compreensão<br />
antropológica de cultura utilizada por <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> e que, em ambos os casos,<br />
servem-nos de importante referência, o conceito semiótico de cultura, desenvolvido<br />
por Clifford Geertz - porque o significado precisa ser compreendido para além dos<br />
signos verbais, considerando, por exemplo, o que compõe a representação do real:<br />
o som, a cor, a luz, as formas e gestos etc. Pare ele,<br />
a cultura é pública porque o significado o é... ela consiste em estruturas de significado<br />
socialmente estabelecidas... um universo imaginativo onde os atos são signos...<br />
Sistemas entrelaçados de signos interpretáveis, a cultura não é um poder, algo ao qual<br />
podem ser atribuídos casualmente acontecimentos sociais, comportamentos, instituições<br />
ou processos sociais; é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de<br />
maneira inteligível (Geertz,1975:3-30).<br />
183<br />
65 E o professor Laraia continua exemplificando este processo de endoculturação. Diz ele: “Um<br />
menino e uma menina agem diferentemente não em função dos seus hormônios, mas em decorrência<br />
de uma educação diferenciada”. (Laraia, 1997:20).
Ora, as características da educação à qual se referia Laraia, conformam,<br />
justamente, o contexto cultural ao qual se refere Geertz, considerado um dos<br />
maiores antropólogos da segunda metade do século XX. O mesmo Geertz esclarece<br />
que a cultura de um povo “é um conjunto de textos, eles mesmos conjuntos, que o<br />
antropólogo tenta ler por sobre os ombros daqueles a quem pertencem” (1989:321).<br />
Nesse sentido, a compreensão de cultura apresentada por Antônio C. Gonçalves, já<br />
mencionada, permite-nos dialogar e também ultrapassar este enfoque antropológico<br />
e semiótico oferecido por Clifford Geerttz pois, segundo aquele autor, a cultura<br />
implica relação mais complexa, mais interativa e interdependente, criada pelos<br />
diferentes sujeitos que dela participam, eles próprios escrevendo e interpretando os<br />
seus textos. Se considerarmos, por exemplo, as trocas culturais e interculturais<br />
permitidas na atualidade, a partir dos meios de comunicação e das novas<br />
tecnologias da comunicação, nos dirigimos a uma concepção de cultura que analise<br />
a realidade para além dos locais e dos contextos aos quais se referem, analisando,<br />
então, as trocas interculturais e os vários processos de circulação de sentido, numa<br />
perspectiva mais ampla e integradora (Thompson, 1990).<br />
O conceito antropológico de cultura sobre o qual se firmou <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> para<br />
estabelecer, nos Círculos de Cultura, a compreensão de cultura, que serviu para o<br />
desenvolvimento do seu Método de Alfabetização de Adultos, parte de uma visão<br />
ampla de cultura, que separa o mundo da natureza e o mundo da cultura, sendo<br />
este segundo resultado da ação consciente e ativa do homem em sua realidade e<br />
com ela. E isto foi concebido por <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> para que os analfabetos pudessem,<br />
por meio de situações existenciais 66 representadas visualmente, ter diante de si o<br />
que ele chamou de “temas dobradiças” como ponto de partida do próprio processo<br />
de alfabetização. Conforme escreveu o professor Venício Arthur de Lima (1981:90)<br />
“a função que <strong>Freire</strong> atribuía ao conceito antropológico de cultura era a de ‘ajudar o<br />
analfabeto a superar sua compreensão mágica ou ingênua da realidade e<br />
desenvolver um entendimento cada vez mais crítico”.<br />
Vejamos que <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, explicando esta sua compreensão antropológica<br />
de cultura, afirma que<br />
184<br />
66 Eram dez estas situações existenciais: 1ª. “O homem no mundo e com o mundo. Natureza e<br />
cultura”; 2ª. “Diálogo mediado pela natureza”. 3ª, 4ª e 5ª. “Caçador iletrado”, “caçador letrado” e<br />
“caçador gato”; 6ª, 7ª e 8ª. “O homem transforma a matéria da natureza com o seu trabalho”, “jarro,<br />
produto do trabalho do homem sobre a matéria da natureza”, e “poesia”; 9ª. “Padrões de<br />
comportamento” e 10. “Círculo de Cultura funcionando – Síntese das discussões anteriores.
Enquanto o animal existe afogado num tempo totalmente unidimensional – um<br />
hoje constante de que não tem consciência, o homem é capaz de distingüir o ontem, o<br />
hoje e o amanhã. Da natureza, mas superando-a, o homem constrói um segundo mundo,<br />
o mundo da cultura: criando e recriando, integrando-se às condições de seu contexto,<br />
respondendo a seus desafios, auto-objetivando-se, discernindo, transcendendo, lança-se<br />
o homem num domínio que lhe é exclusivo – o da História e o da Cultura. (<strong>Freire</strong>, s.d., p.<br />
6) 67<br />
Observamos no trabalho relacionado ao conceito antropológico de cultura,<br />
realizado por <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, que esta abordagem abre caminhos para outras análises<br />
da própria cultura como, por exemplo, a histórica, a sociológica, a psicológica, a<br />
pedagógica, a lingüística e, sobretudo, a filosófica e política. Ao discutir sobre as<br />
situações existenciais propostas, é iniciada uma reflexão que faz a crítica à ideologia<br />
dominante na sociedade e na própria cultura. Aí está caracterizada a politicidade do<br />
ato educativo em <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> e a abertura às análises culturais – ou aos “estudos<br />
culturais”, como foram chamados após 1964 68 .<br />
Por outro lado, mesmo não tendo escrito especificamente sobre o tema do<br />
currículo, percebemos que <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, ao falar de cultura, o faz teorizando sobre<br />
educação e sobre as implicações políticas do trabalho didático-pedagógico, trazendo<br />
enormes contribuições para as associações que aqui fazemos, quando relacionamos<br />
cultura, educação e currículo. Nesse sentido, observamos que <strong>Freire</strong>, sobretudo nos<br />
trabalhos publicados após 1990, amplia a sua compreensão antropológica de cultura<br />
Ele estimula as nossas reflexões no âmbito de outras dimensões culturais, por<br />
exemplo, relacionadas à filosofia, à ética, estética e à questão dos valores. Vai da<br />
problemática do poder à do saber-poder, às questões de gênero, da alteridade e,<br />
entre outras, ao multiculturalismo. E sempre mantém suas características originais<br />
de pensador crítico, que luta por uma pedagogia da emancipação e pela defesa da<br />
educação libertadora e transformadora. É também sob tais perspectivas que<br />
fazemos as nossas análises sobre cultura.<br />
185<br />
67 <strong>Freire</strong>, <strong>Paulo</strong>. Entrevista com Walter José Evangelista, (documento inédito), s.d., s.l., p, 6.<br />
68 Para informações sobre o campo de teorização e investigação chamado “Estudos Culturais”, ver<br />
Tomáz Tadeu da Silva. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo<br />
Horizonte, Autêntica, 1999.
Reforçando as teses de <strong>Freire</strong> e procurando avançar a nossa reflexão sobre o<br />
tema da cultura de forma também crítica, com uma postura dialógico-dialética e<br />
abertos à complexidade de sentidos da mesma, entendemos que a questão cultural,<br />
mesmo considerada a partir das experiências mais imediatas das pessoas, não pode<br />
estar afastada nem dissociada das ciências e das diferentes manifestações do<br />
saber, do ser e do fazer humanos. Bem ao contrário, quanto mais profunda a nossa<br />
capacidade de perceber de forma ampla o nosso entorno cultural, desde uma<br />
perspectiva local até uma dimensão mais global, maiores serão os entendimentos<br />
que teremos da realidade que nos cerca.<br />
No caso específico da Pedagogia, quanto mais esta estiver próxima e<br />
conectada às demais ciências e sensível às contribuições das outras formas de<br />
conhecimento, como por exemplo, as artes e todas as manifestações criativas e<br />
simbólicas, maiores serão as possibilidades de que consigamos construir um<br />
currículo respeitoso à cultura dos alunos, pois<br />
uma pedagogia culturalmente relevante não é, então, aquela que restringe o<br />
conhecimento formal a ser trabalhado pelo aluno àquele diretamente relacionado à<br />
experiência cultural do educando. Ao contrário, o que ela propõe é o alargamento do<br />
conhecimento formal do indivíduo, apoiando-se na experiência cultural para a elaboração<br />
do currículo e da proposta pedagógica (Lima, 1997:11)<br />
Por este caminho, reafirmamos o nosso entendimento de que devemos<br />
ampliar a concepção de pedagogia como ciência e arte da educação e<br />
“compreendê-la, então, como modo de produção cultural implicado na forma como o<br />
poder e o significado são utilizados a serviço da ampliação da democracia” (Candau,<br />
1997, citada por Moreira, 1999a:87). Ao pensarmos no alargamento dos<br />
conhecimentos dos alunos – e também dos professores – a cultura passa a ser vista<br />
com outro olhar, considerando a sua complexidade de sentidos como uma<br />
característica própria a ser compreendida e enfrentada. Não cabe nenhuma<br />
intimidação diante desta<br />
186<br />
palavra-chave, palavra-guia, palavra-intersecção do vocabulário da educação, este termo<br />
‘cultura’ é também um dos mais equívocos e enganadores. Observamos em seu
espectro semântico uma tensão entre uma faceta individual e uma faceta coletiva, um<br />
pólo normativo e um pólo descritivo, uma ênfase universalista e uma ênfase<br />
diferencialista (Forquin, 1993:11).<br />
Forquin analisa a cultura no sentido objetivo do termo, “enquanto mundo<br />
humanamente construído, mundo das instituições, dos signos no qual, desde a<br />
origem, se banha todo indivíduo humano, tão-somente por ser humano, e que<br />
constitui como que sua segunda matriz” (id.:1993:167-68).<br />
O que estamos fazendo, na escola, na comunidade e na sociedade em que<br />
vivemos, senão nos banhando cotidianamente no mundo que nós mesmos<br />
construímos, envolvidos nas relações que estabelecemos, nos contextos que<br />
criamos e dos quais participamos de forma mais ou menos intensa, mais ou menos<br />
participativa ou omissa? Sempre há riscos a serem assumidos e enfrentados.<br />
A escola, nessa direção, volta-se para a reeducação do seu próprio olhar para<br />
a questão cultural e os sujeitos, autores e atores deste cenário, passam a se<br />
reconhecer mais efetivamente e, diríamos mesmo, mais integral e integradamente,<br />
sujeitos culturais criativos e construtores da sua própria cultura. Estamos pensando<br />
no currículo da escola, já que este, por um aspecto evidenciado pelo Prof. Alfredo<br />
Veiga-Neto,<br />
guarda estreita correspondência com a cultura na qual ele se organizou, de modo que ao<br />
analisarmos um determinado currículo, poderemos inferir não só os conteúdos que,<br />
explícita ou implicitamente, são vistos como importantes naquela cultura, como, também,<br />
de que maneira aquela cultura prioriza alguns conteúdos em detrimento de outros, isso<br />
é, podemos inferir quais foram os critérios de escolha que guiaram os professores,<br />
administradores, curriculistas etc, que montaram aquele currículo. Esse é o motivo pelo<br />
qual o currículo se situa no cruzamento entre a escola e a cultura” (Veiga-Neto, s.d.,:1).<br />
187<br />
Já temos, até aqui, evidenciado o que entendemos por cultura, mas não é<br />
demais organizar, de acordo com as contribuições dos diversos autores com os<br />
quais viemos dialogando, o que estamos considerando mais relevante para os<br />
objetivos da nossa pesquisa. Desta forma, a cultura, em sua dimensão complexa e
no seu sentido mais amplo, combina os seguintes elementos e apresenta as<br />
seguintes características:<br />
• é sobredeterminada nas suas manifestações e não se apresenta de<br />
maneira neutra ou unívoca;<br />
• deve ser objeto de uma análise transcultural para que a possamos melhor<br />
compreender quando aproximamos diferentes pessoas, grupos sociais,<br />
instituições e sociedades;<br />
• desenvolve-se na conjunção complementar das relações individuais e<br />
identitárias, nas relações de alteridade e das relações do homem com o<br />
seu ambiente;<br />
• representa a totalidade social mais vasta da sociedade;<br />
• inclui diferentes sistemas sociais: normativos, relacionais, de<br />
representações, de expressão, de ação através dos quais permite a<br />
apreensão da totalidade social, por meio de diferentes produções<br />
humanas: artesanais, artísticas, econômicas, políticas e religiosas dum<br />
grupo ou duma sociedade;<br />
• compreende o conjunto, socialmente significativo, dos comportamentos,<br />
dos saberes, do saber-fazer e do poder-fazer específicos dum grupo ou<br />
duma sociedade, adquiridos por um processo contínuo de assimilação e<br />
de inculturação que são transmitidos à comunidade;<br />
• caracteriza-se por sua própria mobilidade e fluidez, processo e criação;<br />
• os seus elementos fundamentais, constituídos pelo homem na sua<br />
realidade individual e pessoal, pela comunidade organizada e estruturada,<br />
pela relação mútua entre o homem e o meio ambiente, a sua própria<br />
natureza, o território, o espaço, a técnica e a visão cosmológica, e pela<br />
relação de temporalidade, como elemento estruturante e estruturado da<br />
cultura, interagem em todos os seus sistemas formais e em todas as suas<br />
práticas simbólicas.<br />
• é constituída também pelos fatores de unidade e de diversidade, de<br />
variedade e de variabilidade cultural.<br />
188
• consiste na consciência crítica das relações, dos textos, dos contextos em<br />
que as mesmas se dão;<br />
• consiste também em estruturas de significado socialmente estabelecidas.<br />
É um contexto dentro do qual os signos podem ser descritos de maneira<br />
intelegível;<br />
• é um segundo mundo, criado e recriado pelo homem, que se integra e ao<br />
mesmo tempo responde aos desafios do seu contexto, seu contexto, auto-<br />
objetivando-se, discernindo-se e transcendendo-se ao domínio da história<br />
e da sua própria cultura.<br />
Todas estas caracterizações sobre cultura contribuem na nossa tarefa de<br />
compreender e analisar, por exemplo, quando pensamos o currículo da escola,<br />
sobre como devemos nos posicionar diante da diversidade cultural presente na<br />
sociedade e na própria unidade escolar. O não reconhecimento desta mesma<br />
diversidade é o que tem, inclusive, trazido dificuldades às escolas e à educação<br />
como um todo, no sentido de sua não consideração na construção dos diferentes<br />
currículos escolares que, desta forma, acabam sendo um amontoado de<br />
pressupostos descolados da realidade e do cotidiano das pessoas.<br />
Uma outra questão: a discussão sobre currículo e cultura nos remete à<br />
problemática da identidade. Este termo pode carregar em si mesmo vários<br />
significados, dependendo do referencial científico a partir do qual é pensado. Discutir<br />
a questão da identidade é pertinente porque, como mencionamos no primeiro<br />
capítulo, o currículo é antes de tudo, “uma questão de saber, poder e identidade”<br />
(Silva, 1999:145).<br />
189<br />
Nas palavras do professor Moacir Gadotti, “vivemos hoje numa época de<br />
explosão das diferenças – étnicas, sexuais, culturais, nacionais etc. que nos coloca<br />
a questão do resgate da identidade. Cada vez mais nos perguntamos: quem somos<br />
nós?” (Gadotti, 1992:34). Poderíamos responder, rapidamente, que somos seres<br />
múltiplos, ao mesmo tempo originais, únicos, diferentes uns dos outros e, sob alguns<br />
aspectos, também semelhantes. Mas esta resposta não é simples como parece.<br />
Depende do acúmulo de experiências que carregamos, bem como dos traços<br />
culturais que nos acompanham. Definir quem somos implica nos reconhecermos<br />
sujeitos com uma certa identidade, com determinadas características físicas,
intelectuais, emocionais, profissionais. Características raciais, étnicas, religiosas,<br />
sexuais, lingüísticas.<br />
A complexidade da questão cultural está, por exemplo, na dificuldade de<br />
desenraizarmos algumas certezas, que muitas vezes firma identidades culturais<br />
rígidas e resistentes às mudanças. Justamente esta característica da cultura – a de<br />
levar as pessoas a terem uma identidade cultural, precisa ser permanentemente<br />
discutida nas escolas e na sociedade porque, dependendo de como lidamos com a<br />
nossa própria identidade, afirmativamente, por exemplo, corremos sempre o risco de<br />
negar a outra identidade e, por conseguinte, a outra cultura. Superar esses limites,<br />
abrir-se à relação com o outro, com a outra cultura, é uma das preocupações<br />
centrais que temos quando nos referimos à imensa variedade e variabilidade<br />
cultural, que aos poucos vamos associando ao nosso entendimento do que seja uma<br />
necessária abordagem transcultural da cultura.<br />
Perceber este universo de qualidades e de identidades culturais na sociedade<br />
ou em qualquer organização social, não é possível à primeira vista como se poderia<br />
supor, muito menos no âmbito da educação e das escolas, até porque esta<br />
problemática só muito recentemente tem sido enfrentada.<br />
A diversidade cultural, é hoje, “uma realidade cada vez mais visível. E não há<br />
como estabelecer hierarquias entre as culturas” (Gadotti, 1992:39). Por exemplo, a<br />
crença até pouco tempo de que a cultura da elite era “superior” à cultura popular,<br />
está hoje bastante relativizada. Afirmar isso significa manter posturas resistentes à<br />
mudança, preconceituosas, limitadoras e descontextualizadas em relação às<br />
exigências do mundo atual.<br />
Ao retomarmos a ênfase cultural na sociedade e na educação, consideramos<br />
fundamental, justamente a possibilidade de acender o debate, por exemplo, de ser a<br />
educação um espaço de conflitos sociais, econômicos e culturais, que nos exige o<br />
permanente reconhecimento de seu caráter político. Portanto, falar e fazer<br />
educação, como ensina <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, é atitude afirmativamente política, como<br />
também o é falarmos de currículo e de cultura no âmbito educacional.<br />
190<br />
Esta discussão é recorrente na educação, sob diferentes óticas e, em<br />
particular, quando pensamos o currículo da escola mais voltado para a sua<br />
organização didático-administrativa. Conforme artigo recente do Prof. Vitor Paro, “há
191<br />
uma significativa tendência a apontar os atributos políticos da educação em termos<br />
de sua contribuição para a luta política” (Paro, 2002:16). Vitor Paro argumenta que<br />
quando discutimos o caráter político da educação escolar, deparamo-nos com três<br />
funções mais gerais relacionadas entre si. A primeira, visaria a “dotar os educandos<br />
das camadas populares dos conhecimentos e conteúdos culturais em geral, para<br />
que estes possam se antepor às ações dos inimigos políticos”. (ib.). Vemos,<br />
claramente aí, uma bipolaridade marcante, que combina com as análises<br />
educacionais muito presentes no Brasil na década de 70 e 80, sobretudo nos<br />
trabalhos de educadores como, por exemplo, Dermeval Saviani (1989). Uma<br />
Segunda função da educação política seria a busca de desenvolver a “competência<br />
política” dos educandos para que eles, nutrindo-se de subsídios teóricos dos seus<br />
“adversários políticos”, pudessem usar contra eles as mesmas “armas”, com o que<br />
poderiam conquistar maiores espaços de poder, utilizando os mesmos recursos<br />
daqueles, ou seja, argumentos consistentes e desenvolvimento de projetos<br />
coerentes competentemente elaborados pelos mesmo (Paro, 2002). E, uma terceira<br />
função da educação política seria, ainda, “a formação de uma ‘consciência política<br />
nos educandos, pela posse de conteúdos doutrinários que elevem seu saber a um<br />
nível capaz de perceber a injustiça social e de contestar o poder vigente” (id.:16).<br />
Como bem explica o Professor Paro, as três funções citadas mantêm,<br />
paradoxalmente afastadas, a relação entre educação e política, porque para que<br />
haja alguma ação política na educação, haveria que se acrescentar na educação,<br />
como se fosse de fora para dentro, a discussão política. Não é este o caráter de<br />
politicidade do ato educativo a que sempre se referiu <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>. Quando há o<br />
destaque da dimensão política do ato educativo, como bem lembra Vitor Paro, trata-<br />
se apenas de reforçar e de se empenhar para que a educação seja sempre vista<br />
politicamente, até porque, no contexto brasileiro e latinoamericano, durante os anos<br />
de regime de exceção – sobretudo nas décadas de 50 a 80 – a separação entre<br />
política e educação era também bem marcada para que não houvesse essa relação.<br />
Ou seja, o pedagógico já é político em si mesmo, a educação também, e, se há o<br />
reforço do político no pedagógico, trata-se, mesmo que não seja o suficiente, de<br />
eliminar qualquer possibilidade de se considerar acrítica ou neutra a ação<br />
educacional e as relações – sociais, humanas, políticas, culturais – que se<br />
estabelecem na escola e que, por isso mesmo, podem caracterizar um processo<br />
mais ou menos democrático na mesma e na sociedade como um todo. Daí a
intrínseca relação entre educação, política e cultura. Prova disso, e para que não<br />
continue na sombra o caráter intrinsecamente político e democrático da ação<br />
educativa (Paro, 2002), Vitor Paro resgata o conceito histórico de educação,<br />
diretamente relacionado à cultura, como estamos abordando neste trabalho. Nesse<br />
sentido, a educação<br />
em seu significado mais geral e abstrato, consiste na apropriação da cultura humana,<br />
entendida esta como aquilo que o homem produz em termos de conhecimentos, crenças,<br />
valores, arte, ciência, tecnologia, tudo enfim que constitui o produzir-se histórico do<br />
homem (Paro, 2002:16).<br />
O Professor Vitor Paro sustenta o que <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> tem nos ensinado, no<br />
sentido de que o homem, enquanto sujeito cultural, constrói a sua liberdade e se<br />
autoproduz, superando o domínio da necessidade natural. “É pela apropriação da<br />
cultura que o ser humano, a partir do nascimento, atualiza-se historicamente, à<br />
medida que se apropria do que foi produzido pelas gerações anteriores” (ib.).<br />
Como vemos, o homem vai se construindo “ser humano-histórico” (ib.) e, ao<br />
mesmo político. Esta simultaneidade acontece porque ao se apropriar da sua própria<br />
cultura e se tornar livre, ele estabelece a convivência com outros homens,<br />
caracterizando, como conclui Paro, o exercício da política no sentido mais amplo da<br />
palavra. Dá-se o “empoderamento”, segundo podemos inferir, ou seja, a conquista<br />
pelo sujeito de um poder a favor do interesse coletivo.<br />
Poder, aqui, passa a ser sinônimo de força, não no sentido de sua imposição,<br />
mas como fortalecimento da liberdade, que, longe de ser meramente conquistada ao<br />
inimigo, como entende o senso comum, e construída coletivamente como obra humano-<br />
histórica (Paro, 2002:17).<br />
192<br />
Fortalecimento da liberdade pelo diálogo, pela convivência humana, pela<br />
aproximação das culturas e não pela sua negação ou simplesmente pela<br />
hierarquização entre elas. Hoje, na escola, diante da “cultura primeira” dos alunos,<br />
ou da “cultura dos grupos”, ou da “cultura de massa” que tanto influenciam o<br />
comportamento discente e também docente (Snyders, 1988), precisamos considerar
a identidade dos nossos alunos a partir da síntese de suas experiências culturais. Ao<br />
pensarmos no currículo, estas questões, se levadas em conta, modificam o caráter<br />
do trabalho que a escola oferece à sua comunidade. O currículo escolar é resultado<br />
das influências e do acúmulo cultural dos diferentes sujeitos que compõem o<br />
universo escolar. E estas pessoas, certamente, sofreram influências das diferentes<br />
trocas e transmissões culturais que vivenciam nas suas trajetórias, bem como<br />
traduzem também os efeitos da “indústria cultural” que atravessou os últimos<br />
cinqüenta anos do século XX e chegou ao século XXI midiatizada. A escola,<br />
portanto, conta com essa diversidade cultural diariamente e o seu currículo acaba<br />
manifestando essa história coletiva.<br />
Georges Snyders, filósofo e educador francês, considera a cultura sob vários<br />
aspectos ao nos falar, por exemplo, de “alegrias e alegrias culturais”.(Snyders,1988).<br />
Ele afirma que a cultura dá satisfação, mas a satisfação é proibida e escandalosa.<br />
Portanto, questiona sobre como lidar com a alegria sem o escândalo de sermos<br />
felizes enquanto há tantos infelizes. Ele considera que<br />
é precisamente para não esquecer a infelicidade dos outros, para ter a força parra<br />
participar das lutas, que tenho necessidade da satisfação, que vou esforçar-me para<br />
atingir a satisfação (...) satisfação dolorosa, trágica, da qual a angústia nunca está<br />
ausente, nada que se assemelhe menos a calma uniforme, a banalidade da calma.<br />
(Snyders, 1988:21-22).<br />
É justamente buscando a alegria no ato de aprender e, nós diríamos, de forjar<br />
o currículo da escola na perspectiva da alegria, que o autor valoriza a diversidade e<br />
a multiplicidade dos vários tipos de alegria que a escola deveria considerar, já que<br />
os jovens vivem pelo menos em quatro ambientes: a família, a escola, a vida<br />
cotidiana com os colegas e as colegas e a formação fora da escola (...) cada um<br />
deve oferecer ao jovem suas possibilidades diferenciadas – e assim<br />
complementares” (ib.: 1988:276).<br />
Todo esse conjunto de influências contribui para a formação da identidade da<br />
pessoa. Como diz <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>,<br />
193
uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições<br />
em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a<br />
professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e<br />
histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos,<br />
capaz de ter raiva porque capaz de amar (...) A questão da identidade cultural, de que<br />
fazem parte a dimensão individual e a de classe dos educandos cujo respeito é<br />
absolutamente fundamental na prática educativa progressista, é problema que não pode<br />
ser desprezado (<strong>Freire</strong>, 1997b:46-47).<br />
O processo educativo é sempre permeado por relações de poder. Muitas<br />
vezes há uma centralização das discussões curriculares, no nível das propostas das<br />
políticas públicas oficiais, que acaba parecendo que discutir currículo significa,<br />
equivocadamente, fugir da discussão das questões mais sérias da educação ou, pior<br />
ainda, deixar de discutir profundamente os condicionantes, os fundamentos e os<br />
problemas educacionais mais importantes da nossa sociedade, para nos dedicarmos<br />
a discutir “apenas” currículo. Certamente argumentos como estes, além de<br />
pretenderem desqualificar a discussão sobre currículo, tentando mais uma insinuar<br />
que discutir currículo nada tem de intrínseco à educação numa perspectiva crítica,<br />
cultural e política. Talvez, nesse caso, considere-se currículo ainda como “grade<br />
curricular” ou, se preferirmos, como uma cadeia de conteúdos – verdadeira prisão<br />
que limita o aluno a determinados conhecimentos a serem aprendidos, definidos “de<br />
cima para baixo”, ou seja, por instâncias educacionais distanciadas da escola que,<br />
utilizando-se de argumentos astutos e bem elaborados, continuam impondo o que a<br />
escola, seus alunos, professores e demais segmentos deve fazer, ser, pensar e<br />
sentir. Tais visões não carregam purismo. Elas são clara e conscientemente<br />
defendidas para que o ststus quo seja mantido.<br />
Nossa reflexão sobre a diversidade cultural, nessa perspectiva, pode<br />
evidenciar uma dimensão individualizada ou coletiva do problema, ou, ainda, uma<br />
abordagem universalista ou particularista, restringindo ou ampliando não só o nosso<br />
campo de análise, mas também o alcance e a profundidade dos nossos estudos.<br />
194<br />
A fim de exemplificar, recorro ao professor Reinaldo Matias Fleuri, nos fala,<br />
referindo-se à luta político-partidária, que ela, “clivada pela oposição entre ‘direita<br />
versus esquerda’, tende a sectarizar e simplificar binariamente o debate sobre<br />
questões complexas”(Fleuri, 2002:3). Nesse sentido, continua mostrando que a
oposição binária, por exemplo, “das categorias macho/fêmea obscurece as<br />
diferenças entre as mulheres, no comportamento, no caráter, no desejo, na<br />
subjetividade, na sexualidade, na identificação de gênero e na experiência histórica”<br />
(ib.).<br />
A este respeito, Joan Scott, segundo as palavras de Fleuri, preconiza “que se<br />
desconstrua a oposição igualdade/diferença como única via possível, chamando<br />
atenção para o constante trabalho da diferença dentro da diferença. (ib.). Por<br />
conclusão, “a ‘mesmidade’ construída em cada lado da oposição binária oculta o<br />
múltiplo jogo das diferenças e mantém sua irrelevância e invisibilidade<br />
(Scott,1988:45).<br />
É justamente tentar desocultar as ‘mesmidades’ e enfrentar o difícil desafio de<br />
superar as lógicas binárias e os argumentos dicotômicos em educação, sobretudo<br />
nos dias atuais, que observamos ser necessário, quando falamos, hoje, numa<br />
educação e num currículo que tenha por referência a perspectiva cultural e, como<br />
aqui estamos anunciando, uma dimensão intertranscultural. Nessa direção é que<br />
buscamos ressignificar os próprios conceitos que temos utilizado, o que não é negar<br />
o sentido do anterior para endeusar o novo. Trata-se de reconhecer o dinamismo da<br />
nossa própria humanidade que, em contato com a humanidade do outro, reconhece<br />
suas diferenças, que são múltiplas. E que dentro desta própria humanidade<br />
diferenciada, recém-encontrada, percebemos diferentes nuances que antes não<br />
percebíamos, não levávamos em conta na nossa convivência. Até porque não<br />
tínhamos olhos voltados para elas ou então, até mesmo, por pré-julgarmos pela<br />
existência de um conceito unitário de cultura, que levaria, por sua vez, a uma visão<br />
equivocada de identidade cultural.<br />
Como diz Homi Bhabha,<br />
195<br />
nenhuma cultura é jamais unitária em si mesma, nem simplesmente dualista na relação<br />
do Eu com o Outro. Não é devido a alguma panacéia humanista que, acima das culturas<br />
individuais, todos pertencemos à cultura da humanidade; tampouco é devido a um<br />
relativismo ético que sugere que, em nossa capacidade cultural de falar sobre os outros<br />
e de julgá-los, nós necessariamente ‘nos colocamos na posição deles’, em um tipo de<br />
relativismo da distância sobre o qual Bernard Williams tanto escreveu (Bhabha:1998:65).
Observamos que não se trataria de tomar uma experiência cultural qualquer<br />
como pré-dada ou pré-existente para, passo-a-passo, como se estivéssemos<br />
utilizando as lentes de um possante microscópio, analisarmos cientificamente aquele<br />
“objeto” científico, devidamente enquadrado no tempo e no espaço para a nossa<br />
observação, a partir da qual desvelaríamos cada vez mais os diversos aspectos da<br />
diversidade cultural nossa ou do outro.<br />
O exemplo, segundo Homi Bhabha, seria característico da diversidade<br />
cultural, entendida como um “objeto epistemolópgico – a cultura como objeto do<br />
conhecimento empírico” (ib.:63). Ao se referir à diversidade cultural, ele afirma que<br />
ela é o<br />
reconhecimento de conteúdos e costumes culturais pré-dados; mantida em um<br />
enquadramento temporal relativista, ela dá origem a noções liberais de multiculturalismo,<br />
de intercâmbio cultural ou da cultura da humanidade. A diversidade cultural é também a<br />
representação de uma retórica radical da separação de culturas totalizadas que existem<br />
intocadas pela intertextualidade de seus locais históricos, protegidas na utopia de uma<br />
memória mítica de uma identidade coletiva única (ib.).<br />
A diversidade cultural é um conceito que tem sido muito utilizado nos últimos<br />
trinta anos e significa, por exemplo, que as culturas são dinâmicas e se transformam<br />
no contato com outras culturas (Gadotti, 1992). Nessa mesma direção, vinculada a<br />
esta visão de diversidade cultural, fala-se de identidade étnico-cultural como tendo,<br />
ao mesmo tempo, certa originalidade, uma diferença e também uma semelhança. E<br />
por seu dinamismo, torna-se “cada vez mais difícil reconhecer uma cultura que não<br />
esteja em íntima interdependência de outras (ib.:35).<br />
Como afirmava o Professor Moacir Gadotti, em 1992, quando da publicação<br />
do seu livro intitulado Diversidade Cultural e educação para todos, ao mesmo tempo<br />
em que se considerava notável, no final do século XX, a viabilidade da “aldeia<br />
global”, com o auge da globalização da economia – uma visão, sem dúvida, apoiada<br />
no ideário de “educação para todos” – conforme o próprio livro menciona – ao<br />
mesmo o autor reconhece que,<br />
196
paradoxalmente, uma outra tendência marcante já se revelava no cenário mundial, que<br />
era a multiculturalidade, a diversidade cultural, portanto, a valorização das culturas<br />
regionais, a afirmação da identidade e dos valores dos pequenos grupos, etnias etc.<br />
(Gadotti, 1992:35).<br />
O Prof. Stephen R. Stoer, ao retomar as suas reflexões, também em 1992,<br />
sobre o multiculturalismo e a educação intercultural, citando Arches, explica que isso<br />
acontecia, em primeiro lugar, “devido ao fenômeno da globalização: parafraseando<br />
Jameson (1996), quanto mais as culturas do mundo se aproximavam, mais eram<br />
sensíveis às diferenças entre elas. (...) Hoje em dia, com a globalização do saber e<br />
das comunicações, está-se, pela primeira vez na história, ‘condenado’ a pensar a<br />
unidade humana na base da sua diversidade cultural (Stoer, 2001:245).<br />
Uma segunda explicação para o mencionado movimento, conforme Stoer,<br />
refere-se ao fato de que a “educação inter/multicultural ter-se-ia imposto nas<br />
agendas devido ao fenômeno do racismo na Europa” (ib.).<br />
Como vemos, são várias as motivações para o crescimento dos estudos<br />
relacionados à diversidade cultural na nossa história recente. Nos Estados Unidos,<br />
por exemplo,<br />
o movimento da multiculturalidade surge também como educação anti-racista, como<br />
movimento social e como uma tentativa de transformação curricular específica. Segundo<br />
Carlos Alberto Torres, não se tratam de movimentos homogêneos: “há uma versão<br />
liberal, mas com diversas variantes; há uma versão conservadora, a que chamo<br />
conservadorismo pragmático, porque aceita a diversidade e, portanto, toma decisões<br />
com respeito à multiculturalidade; e há uma versão de esquerda, que também tem<br />
muitas variantes – por exemplo, a pedagogia crítica está muito vinculada à<br />
multiculturalidade crítica. (...) Creio que (a multiculturalidade) é o tema da transição do<br />
século. É o tema que vai marcar a crise e a resposta da educação frente às exigências e<br />
aos desafios do futuro. Por quê? Porque discute o tema da identidade, e em educação<br />
mais não fazemos do que discutir a questão da identidade (Torres, 1999:10; in: Stoer,<br />
2001:246).<br />
197<br />
Conforme acabamos de demonstrar, da mesma forma que a discussão sobre<br />
identidade, multiculturalismo e diversidade social surgem nos últimos 30 anos por
diversas razões, em diferentes contextos e condições históricas, entendemos que,<br />
hoje, podemos também ressignificá-la ou mesmo, como faz Bhabha, apresentar<br />
outras alternativas que possam dar conta da visão que temos de cultura e,<br />
sobretudo, como operamos com ela no contexto das nossas práticas.<br />
Bhabha propõe que trabalhemos, portanto, com o conceito de “diferença<br />
cultural”, entendida como um “processo de enunciação da cultura como ‘conhecível’,<br />
legítimo, adequado à construção de sistemas de identificação cultural (Bhabha,<br />
1998:63).<br />
Se, por uma lado, o conceito de diversidade, segundo ele, é uma “categoria<br />
ética, estética ou etnologia comparativas” (ib.),<br />
a diferença cultural é um processo de significação através do qual afirmações da cultura<br />
ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força,<br />
referência, aplicabilidade e capacidade (ib.).<br />
Mesmo considerando que a crítica de Bhabha sobre a utilização do conceito<br />
de diversidade cultural não deve ser generalizada, conforme as exceções às quais<br />
procuramos nos referir, consideramos pertinente e útil aos nossos estudos a<br />
diferenciação que ele nos apresenta entre diversidade cultural e diferença cultural.<br />
Isto porque, conforme a explicação do professor Reinaldo Matias Fleuri, referindo-se<br />
àquela obra de Bhabha (1998), “o conceito de diferença indica uma nova perspectiva<br />
epistemológica que aponta para a compreensão do hibridismo e da ambivalência,<br />
que constituem as identidades e relações interculturais” (Fleuri, 2002:3). O nosso<br />
interesse nesta análise, que estaremos aprofundando ainda neste capítulo, remonta<br />
ao entendimento do conceito de “entre-lugares” também desenvolvido por Bhabha<br />
(1998). Entre-lugar nos remete ao entendimento dos “contextos intersticiais que<br />
constituem os campos identitários, subjetivos ou coletivos, nas relações e nos<br />
processos interculturais” (Fleuri, 2002:3). (Grifos nossos). E, avançando nesta<br />
mesma perspectiva, diríamos que esta compreensão de “entre-lugares” nos ajudará<br />
no estudo dos textos, dos contextos e das relações que se estabelecem nos<br />
processos que estaremos chamando de intertransculturais.<br />
198
Não é mais possível avançar na reflexão sobre currículo da escola, com base<br />
nos mesmos referenciais metodológicos, objetivos e clássicos, que a antropologia<br />
moderna, por exemplo, utilizou. As singularidades relacionadas à cultura, presentes<br />
nos estudos intertransculturais, serão consideradas a partir de múltiplos aspectos da<br />
nossa realidade concreta, sensível e simbólica – o que nos permitirá novas<br />
explicações acerca dos problemas educacionais que temos enfrentado na escola:<br />
exclusão, violência, aprendizagem e não aprendizagem, relações étnicas, de<br />
gênero, raciais, diferença cultural, movimentos sociais, entre outros.<br />
Por outro lado, quando falamos em “oficial” versus “alternativo” (Corazza,<br />
2001) 69 , tornam-se necessários certos cuidados, conforme nos fala Sandra Corazza,<br />
porque já não é possível, segundo ela, considerar que do lado “oficial’ está tudo o<br />
que consideramos autoritário, conservador, ultrapassado, imposto ou vindo “de cima<br />
para baixo”. E como se do lado “alternativo” estivessem as formas puras para<br />
explicar a realidade. Se pensarmos no currículo da escola, o que seria uma proposta<br />
“alternativa”? Aquela nascida de “baixo para cima, de fora para dentro, de longe para<br />
perto do poder, que [queremos] fortalecer nas classes exploradas da sociedade”<br />
(Corazza, 2001:100). Mas quem é que está “embaixo” ou “em cima”. Quem vem de<br />
fora ou de dentro?<br />
Não queremos, com estas perguntas, afirmar a total impossibilidade de<br />
definirmos, minimamente, a nossa identidade, a “nossa cara”. O fundamental é<br />
termos, hoje, nas nossas avaliações dos projetos educacionais e dos nossos<br />
currículos, maior discernimento sobre a necessidade de considerarmos as respostas<br />
às nossas próprias perguntas a partir de alguns critérios que dependem muito do<br />
contexto, das relações e dos textos que vamos escrevendo em cada um dos<br />
cenários em que convivemos.<br />
199<br />
69 Só para oferecer um exemplo da dificuldade que é, hoje, fazermos certas afirmações em torno do<br />
que seria realmente uma política “oficial” ou “alternativa” no âmbito da educação, no capítulo 5 deste<br />
livro (Corazza, 2002:97-127), intitulado “Currículos alternativos-oficiais: o(s) risco(s) do hibridismo”, a<br />
autora nos fala, em detalhes, da sua (e da nossa) dor ao comparar analiticamente as similaridades<br />
discursivas entre o currículo nacional, expresso nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs e o<br />
“Movimento Constituinte Escolar”, movimento este de “construção da Escola Pública e Popular, que<br />
visa à definição de princípios e diretrizes para a educação da rede pública estadual”, do governo<br />
petista do Rio Grande do Sul” (p. 102). As conclusões, após um estudo comparativo das mesmas,<br />
são, no mínimo, surpreendentes. Mesmo constatando muitas semelhanças entre o que se propõe nos<br />
PCNs e o que foi consolidado na Constituinte Escolar, os dados e análises são contundentes ao<br />
mostras como princípios, diretrizes e propostas de ação entre um documento e outro se aproximam,<br />
mesmo vindas de governos que, historicamente, representam forças políticas e ideológicas diferentes<br />
e até opostas.
Como também afirma a professora Sandra Corazza a este respeito,<br />
não existe mais nenhuma dinâmica central que explique todo o funcionamento da vida<br />
social. Não há um único eixo dos processos culturais, porque os eixos estão em toda<br />
parte, ou não existem. Não há explicações causais, radicadas nos processos<br />
econômicos, que justifiquem os resultados educacionais. Não há mais enraizamento,<br />
nem raízes; só rizomas, só redes de poder que movem o mundo. (...) Este é o tempo do<br />
apogeu do localismo, da descentralização, da pura abstração codificada, da mestiçagem<br />
subjetiva. De simulação de mundos, simulacros de imagens, pastiches objetais,<br />
virtualização das realidades, simbiose entre máquina e organismo”. (Corazza, 2001:101).<br />
Analisando a questão da identidade no contexto da globalização, o professor<br />
Stephen Stoer (2001:246) retoma uma pergunta e, ao mesmo tempo, uma resposta<br />
de Alain Touraine: “Poderemos viver juntos? (...) nós já vivemos juntos” (1998:13).<br />
Continua Stoer: “o problema é saber como preservar essa identidade ao mesmo<br />
tempo em que ela é partilhada com outros” (2001:246).<br />
A esta resposta, continua Touraine: “só vivemos juntos perdendo a nossa<br />
identidade” (Touraine, 1998:15).<br />
Vejamos: se só vivemos juntos se perdermos a nossa identidade, poderíamos<br />
completar e ampliar esta afirmação de Touraine. Assim, diríamos: só vivemos juntos<br />
perdendo um pouco da nossa identidade, ganhando um pouco da identidade do<br />
outro, resguardando e conservando parte da nossa identidade anterior e, finalmente,<br />
descobrindo, que ao perdemos e ganharmos porções de diferentes identidades,<br />
passamos a ter, finalmente, uma renovada identidade.<br />
200<br />
Retomando a questão da diversidade mencionada por Bhabha, lembramos,<br />
também, que <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> sempre defendeu, por exemplo, a unidade na diversidade.<br />
Com isso, ele propunha a realização de um trabalho educacional em unidade,<br />
mesmo considerando que existem diferenças entre as pessoas, os grupos, as etnias<br />
e que estas diferenças possam gerar dificuldades para a realização deste trabalho.<br />
Ele fala da necessidade de se fazer concessões para que o grupo possa alcançar os<br />
seus objetivos comuns, apesar da diferença dos grupos que compõem a pretendida<br />
unidade. No livro À sombra desta mangueira, <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> considera que “a falta de
unidade entre os diferentes conciliáveis ajuda a hegemonia do diferente antagônico.<br />
O importante é a luta contra o inimigo principal” (<strong>Freire</strong>, 1995a:68).<br />
Desejamos esclarecer esta questão porque, à primeira vista, a partir dessas<br />
considerações, podem surgir confusões sobre a interpretação do significado de<br />
“unidade na diversidade”. O que <strong>Freire</strong> pretende é firmar posição de luta contra a<br />
dominação. Isso fica mais claro no livro Cartas a Cristina, quando ele afirma que<br />
“seria muito menos difícil às chamadas minorias acertar suas arestas entre si, num<br />
exercício político diário, e lutar unidas do que, debilitadas, cada uma lutando por si,<br />
conseguir seus objetivos” (<strong>Freire</strong>, 1994a:220).<br />
A auto-consciência de si e, diríamos, do grupo, “se desdobra na dialética<br />
identidade/diferença: reconhecer-se como um ‘eu’ e como um ‘nós’ implica a<br />
necessidade de confrontar-se com o outro” (Falteri, 1998:40). Portanto, ao<br />
pensarmos na construção do currículo da escola, é necessário considerarmos a<br />
categoria da diversidade, ou se preferirmos, a categoria da diferença, de acordo com<br />
Bhabha, enfim, o confronto entre questões relacionadas à raça, etnia 70 , gênero, entre<br />
outras diferenças que conformam, como já dissemos, a identidade das pessoas e<br />
dos grupos presentes e participantes do processo educacional.<br />
Pelo que vimos afirmando e constatando nos diversos autores estudados,<br />
reitera-se a necessidade de se considerar a cultura elemento imprescindível quando<br />
tratamos de educação, por extensão, de currículo da escola. O que desejamos é<br />
encontrar indicadores que nos ajudem a superar posições parciais e ambíguas<br />
relacionadas à cultura que podem mais confundir do que esclarecer e, por<br />
conseguinte, atrapalhar e empobrecer o trabalho educacional realizado nas escolas<br />
e nas comunidades.<br />
201<br />
70 Apenas para que possamos dar ao leitor uma dimensão dos cuidados que devemos ter com<br />
determinadas palavras, Stuart Hall, ao fazer a crítica das tentativas de construções de identidades<br />
nacionais, que insistem em expressões do tipo “um único povo’, mostra que a palavra etnia, termo<br />
utilizado para “nos referirmos às características culturais – língua, religião, costume, tradições,<br />
sentimento de ‘lugar’ – que são partilhadas por um povo”, tem sido utilizada de uma forma<br />
fundacional, como que para comprovar a existência de uma única cultura, o que considera um mito,<br />
pois, segundo ele, “as nações modernas são, todas, híbridos culturais” (Hall, 1997:17). Da mesma<br />
forma, fala também da dificuldade da unificação da identidade nacional em torno da raça, porque<br />
“raça não é uma categoria biológica que tenha qualquer validade científica (...) a raça é uma categoria<br />
discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de<br />
falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto<br />
frouxo, freqüentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas – cor da<br />
pele, textura do cabelo, características físicas e corporais etc. – como marcas simbólicas, a fim de<br />
diferenciar socialmente um grupo de outro” (Hall., 1997:67-78).
Somos pela superação de práticas e de discursos ideológicos que procuram<br />
conservar uma visão universalista de cultura e, portanto, de currículo, e<br />
reconhecemos, na problemática cultural, um terreno fértil para a discussão sobre o<br />
que hoje conhecemos como “multiculturalismo”.<br />
É importante, quando entramos na discussão cultural na escola, relacionada<br />
ao currículo, não desviarmos o olhar de outras problemáticas tão ou mais<br />
importantes do que esta que, ao contrário do que se poderia pensar, estão<br />
imbricadas e são partes constitutivas do currículo escolar e, portanto, das<br />
discussões relacionadas às culturas. Por exemplo, a própria exclusão escolar ou<br />
então da desigualdade social. Ou, ainda, o enfrentamento dos conflitos e<br />
contradições que permeiam as relações na escola. Elas surgem como problemas<br />
concretos que não pertencem só à instituição escolar, mas a toda a sociedade.<br />
Estamos falando de fenômenos sócio-econômicos quando tratamos da desigualdade<br />
social e de problemas sócio-culturais, quando nos referindo à exclusão escolar<br />
(Stoer & Cortesão, 1999). A compreensão desta distinção, para fins de análise, é<br />
sempre necessária.<br />
Pelo que acabamos de afirmar, entendemos que é preciso sempre ficarmos<br />
atentos à complexidade da discussão multicultural, pois sabemos que<br />
a simples constatação das diferenças, a adoção acrítica de um relativismo cultural (que<br />
se traduz por uma aceitação incondicional da diversidade), coexistindo com a ausência<br />
de análise das relações de poder sempre envolvidas nas situações em que diferentes<br />
culturas coexistem no mesmo espaço, tudo isto comporta também certos riscos (id.,<br />
1999:23).<br />
202<br />
Segundo Cornel West, como nos lembra o Professor Carlos Alberto Torres, o<br />
multiculturalismo “está relacionado com a política das diferenças e com o surgimento<br />
das lutas sociais contra as sociedades racistas, sexistas e classistas” (Torres,<br />
2001:196). Diferentes autores que pesquisamos 71 falam do surgimento do termo<br />
multiculturalismo a partir das reivindicações sociopolíticas dos anos 60, sobretudo<br />
nos Estados Unidos da América, quando surgiram os movimentos reivindicatórios da<br />
71 McLaren (1997); Sales & Garcia (1997); Hall (1997); Fleuri (1999); Wieviorka (1999); Vieira (1999);<br />
Caudau, 2000); Stoer& Cortesão (1999); Taylor (1994), Featherstone (1998); Laraia (1997); Forquin<br />
(1993), Snyders (1988), Bourdieu (2001); Morin (1999); entre outros.
comunidade negra norte-americana, num processo de luta para a conquista de<br />
direitos civis, contra a discriminação social e política, movimentos estes que se<br />
espalharam aos poucos para outros grupos e minorias. Conforme as palavras do<br />
Professor Carlos Alberto Torres,<br />
a discussão sobre o multiculturalismo nos Estados Unidos deve começar por uma sutil<br />
mas importante distinção entre as noções do multiculturalismo como movimento social e<br />
abordagem teórica, a educação multicultural como movimento reformista e a educação<br />
da cidadania como uma especialidade dos programas de estudos que, dadas as<br />
características especiais da composição racial dos Estados Unidos, precisa levar em<br />
conta os temas de identidade racial e da diversidade cultural para formação da cidadania<br />
como pedagogia anti-racista (Torres, 2001:196).<br />
O professor Torres faz uma análise sobre o multiculturalismo bastante<br />
centrada nos Estados Unidos da América, contexto em que vive e desenvolve<br />
pesquisa há muitos anos. Mas sem nos dedicarmos apenas ao caso dos EUA,<br />
consideramos pertinente registrar algumas distinções importantes oferecidas por<br />
aquele autor, diferenciando o multiculturalismo como “movimento social” e como<br />
“movimento programático de reforma”. No primeiro caso, trata-se de uma “orientação<br />
filosófica, teórica e política que não se restringe à reforma escolar” (id.). Aí o<br />
multiculturalismo estaria se referindo a alguns temas específicos, como, por<br />
exemplo, relações de raça, de sexo e classe.<br />
Como “movimento programático de reforma”, o multiculturalismo está no<br />
âmbito de uma educação liberal multicultural, que “visa a garantir igualdade nas<br />
escolas”, segundo o mesmo autor (id., 2001:197). Neste caso, as características das<br />
principais metas do multiculturalismo seriam, por exemplo, a idéia de “tolerância<br />
multicultural”, mas que não toca nas questões de redistribuição de renda e da<br />
igualdade, restringindo-se a falar de eqüidade, conforme Fraser (1997:174),<br />
lembrado por Torres.<br />
203<br />
Ao discutirmos o multiculturalismo como movimento social e como enfoque<br />
teórico, estamos, na visão daquele professor, tocando na questão da identidade,<br />
mas diretamente relacionada à cidadania e às discussões sobre o Estado. Logo,<br />
podemos completar, associando-as também à educação, numa perspectiva da
formação para o exercício crítico da “cidadania ativa” (Benevides, 1991), que passa<br />
pela questão do poder e da democracia.<br />
No livro Democracia, educação e multiculturalismo: dilemas da cidadania em<br />
um mundo globalizado (Torres, 2001), encontramos uma análise detalhada sobre as<br />
diversas correntes do multiculturalismo. O autor vai desde o multiculturalismo que<br />
está no coração do liberalismo, passando pelos neo-conservadores e pelos<br />
defensores, por exemplo, dos currículos multiculturais reformistas. E, além disso, o<br />
autor analisa, ainda, o que chama de teoria da cidadania multicultural democrática,<br />
que ele defende – tanto é que fala da “principais virtudes da cidadania multicultural,<br />
virtudes que deveriam ser cultivadas nas famílias, nas igrejas e das principais<br />
organizações onde nossas crianças e nossos jovens são socializados, e, o que é<br />
muito importante, nas escolas e na educação para a cidadania” (Torres, 2001:285).<br />
Uma primeira virtude da cidadania democrática multicultural, para Carlos<br />
Alberto Torres, é a tolerância, um dos maiores ensinamentos do liberalismo. 72 . Uma<br />
segunda virtude é tomada de empréstimo de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, quando o mesmo resgata<br />
o seu último livro Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa<br />
(<strong>Freire</strong>, 1997b). Dentre os vinte e sete saberes deste livro, Torres destaca dez que<br />
considera como princípios éticos para o ensino e que, segundo ele, “constitui o<br />
coração de um projeto de cidadania multicultural”. Estes saberes são: 1. respeito<br />
pelo conhecimento do estudante; 2. Estética e ética; 3. Dar o exemplo; 4. Respeito<br />
pela autonomia do estudante; 5. Bom julgamento; 6. Curiosidade; 7. Autoconfiança,<br />
competência profissional e generosidade; 8. Liberdade e autoridade; 9. Saber ouvir<br />
e, 10. Amor aos estudantes.<br />
Sem nos alongarmos nessas virtudes, registramos apenas que a “esperança”,<br />
o “amor” e o “diálogo” são também virtudes fundamentais para o estabelecimento da<br />
cidadania multicultural, esta última, entendida como “princípio social básico do<br />
discurso ideal e da racionalidade comunicativa, de que falava Habermas. No diálogo<br />
podemos construir uma racionalidade comunicativa, isto é, a capacidade de<br />
comunicar e de aceitar as reclamações válidas, um fator comunicativo que<br />
ultrapassa a simples coerência” (Torres, 2001:287-288).<br />
204<br />
72 Considerando os limites deste trabalho, não comentaremos cada uma dessas virtudes. Assim,<br />
remetemos o leitor ao texto em referência, onde as explicações do autor são apresentadas em<br />
detalhes (Torres, 2001:285-88).
Destacamos deste livro de Carlos Torres, algumas características<br />
fundamentais do multiculturalismo, sem entrarmos nos detalhes do estudo crítico<br />
que ele faz para chegar a essas conclusões. Limitamo-nos a extrair daquele estudo<br />
algumas contribuições que julgamos importantes para o nosso trabalho, mas<br />
registramos que o autor vai adiante no que se refere à interpretação sobre a<br />
natureza do Estado e da educação, da globalização, da cidadania e por fim das<br />
diferentes características e críticas feitas ao multiculturalismo, principalmente, como<br />
já dissemos, relacionado aos EUA.<br />
Outro crítico do Multiculturalismo, Michel Wieviorka, fala-nos do tema<br />
enquanto problema decorrente da realidade plural das sociedades e dos seus membros,<br />
e do qual é preciso partir para formular orientações políticas, enquanto eventual<br />
resposta, procurada na reflexão/interrogação valorativa centrada nas medidas jurídicas e<br />
políticas multiculturalistas e enquanto estudo analítico que leve à compreensão do<br />
aparecimento, do funcionamento e dos efeitos das formas institucionais e políticas que<br />
corporizam um princípio multiculturalista (Wieviorka, 1999:7)<br />
Este autor, a partir do reconhecimento público da diferença cultural, quando<br />
as afirmações identitárias são mais fortes nos diferentes países, dá ênfase às<br />
primeiras experiências do multiculturalismo, que chama de relativamente integrado,<br />
e que aconteceram no Canadá, na Austrália e na Suécia. Apesar de suas diferenças<br />
e peculiaridades, ele considera que, naqueles países, “o multiculturalismo integrado<br />
caracteriza-se por não separar as exigências sociais dos grupos minoritários das<br />
suas exigências culturais, as necessidades econômicas gerais do país dos seus<br />
valores políticos, morais e culturais” (id., 1999:15).<br />
Já o multiculturalismo norteamericano é qualificado por Michel Wieviorka<br />
como “estilhaçado”, por estar como que “separado em dois, assumido por duas<br />
lógicas distintas, uma mais social e econômica, a outra mais cultural” (Wieviorka,<br />
1999:15), e não da forma integrada como nos países europeus antes apontados.<br />
205<br />
Michel Wieviorka também analisa o multiculturalismo sub diferentes ângulos,<br />
estudando-o em relação à produção de identidades, às suas tensões, ao<br />
individualismo e à diferença cultural. Discute as suas dimensões filosófica, política e<br />
ética, apontando os seus limites, como também o fez Carlos Torres, analisando<br />
como tais perspectivas consideram questões como diferença cultural e
desigualdades sociais. O autor comenta e nos chama a atenção para o fato de que,<br />
se limitado apenas à cultura, o multiculturalismo<br />
corre o risco de aparecer como uma política ao serviço de grupos já socialmente bem<br />
colocados, ou como uma política inadequada às dificuldades especificamente<br />
econômicas e sociais de grupos para quem o reconhecimento não é necessariamente<br />
uma prioridade ou, em todo o caso, a única prioridade (id., 1999:40).<br />
Compartilhamos com a posição do autor que, além disso, defende que o<br />
multiculturalismo precisa estar integrado a uma política mais ampla, seja no aspecto<br />
social, seja no cultural. Por outro lado, questionamos a posição do mesmo quando<br />
ele afirma que a palavra multiculturalismo “teve a sua utilidade na formação de<br />
debates decisivos mas está hoje, senão gasta, pelo menos datada” (id., 1999:44).<br />
Por mais datada que esteja a palavra multiculturalismo e por mais gasta que<br />
se encontre, o debate sobre o mesmo continua necessário e, portanto, atual.<br />
Fundamental é que procuremos verificar, como o próprio autor o faz, e com bastante<br />
clareza, em que medida os debates sobre o tema têm contribuído ou ainda podem<br />
contribuir para que ações concretas, nas diferentes cidades, possam fortalecer as<br />
democracias. Trata-se de tentar entender o significado específico e respostas aos<br />
exageros dos universalismos culturais que defendem uma cultura universal e unitária<br />
para todos, favorecendo interesses elitistas ou classistas, ou também ajudando para<br />
a superação dos particularismos culturais. Estes, por sua vez, são incapazes de<br />
perceber outras dimensões da cultura senão aquelas mais voltadas pelos seus<br />
interesses mais imediatos, sejam eles relacionados à diversidade racial, étnica,<br />
religiosa etc, o que muitas vezes acaba gerando intolerância e ações drásticas em<br />
nome de diferentes tipos de fundamentalismos.<br />
206<br />
Michel Wieviorka reconhece que “nem todas as pessoas são multiculturais,<br />
mas as identidades da maior parte das pessoas e não só as das elites ou dos<br />
intelectuais ocidentais, são modeladas por mais do que uma cultura singular“<br />
(Wieviorka, 1999:11). O autor afirma também que não apenas as sociedades mas,<br />
também as próprias pessoas, são multiculturais, o que confirma o que temos<br />
enfatizado nesta investigação, que relacionamos diretamente ao currículo da escola.<br />
Nossa intenção é criar oportunidades para a ocorrência efetiva, sistemática,
permanente e profunda de trocas culturais na escola, para que ela possa, ao<br />
reconhecer a multiculturalidade, assumir que a diferença cultural é fator<br />
determinante para a definição do seu currículo. Nesse sentido, ela estará<br />
ressignificando a sua ação no que se refere, principalmente, ao respeito a cada<br />
pessoa às relações que elas estabelecem enquanto subjetividades e também na<br />
condição de grupos constituídos que ali convivem das mais diversas e variadas<br />
formas, diante de uma quantidade de situações e diferentes grupos e contextos que<br />
dificilmente podem ser previstas ou pensadas antecipadamente, com a devida<br />
profundidade, por exemplo, no seu projeto político-pedagógico.<br />
Em todos os espaços sociais, a partir dos anos 60, são constatadas<br />
exigências identitárias das mais variadas – religiosas, étnicas, raciais, histórias, de<br />
origem nacional, de gênero, de deficiências físicas e mentais, entre .outras. Diante<br />
desta variedade identitária, o estudo sobre o multiculturalismo, pode contribuir para<br />
estudos científicos relacionados à cultura e à educação escolar, conforme também<br />
nos lembra Wieviorka (1999). Desde uma abordagem sociológica (funcionamento da<br />
sociedade), filosófica política (reflexão sobre as vantagens e os limites ou<br />
inconvenientes das medidas jurídicas ou políticas) ou em termos de ciências<br />
políticas (análise das formas institucionais e políticas que, eventualmente dão corpo<br />
a um princípio multiculturalista.<br />
Para melhorarmos a nossa compreensão do fenômeno multicultural e, a partir<br />
daí, podermos falar em interculturalidade, em transculturalidade e em currículo<br />
intertranscultural, destacamos quatro principais correntes ideológico-políticas do<br />
multiculturalismo ou do movimento multicultural, conforme preferem chamar as<br />
autoras a quem agora recorreremos (Sales & Garcia, 1997).<br />
As quatro principais correntes ideológico-políticas do movimento multicultural<br />
que queremos enfatizar são o assimilacionismo, o integracionismo, o pluralismo e o<br />
interculturalismo. Todas essas correntes procuram dar respostas variadas ao<br />
fenômeno multicultural a partir de diferentes pressupostos antropológicos, sociais e<br />
políticos.<br />
207<br />
A corrente assimilacionista “pretende, basicamente, a absorção dos<br />
diferentes grupos étnicos e culturais numa sociedade que se supõe relativamente<br />
homogênea. Para esta assimilação o único critério cultural a ser considerado é o da
cultura dominante” (Sales & Garcia, 1997:16). Para esta corrente, a cultura<br />
dominante, receptora, considera-se superior a todas as demais. Por isso, os grupos<br />
culturais minoritários, que se aproximam da cultura vigente na localidade, é que<br />
devem se adaptar àquela, assimilando as características dominantes. Nesse<br />
sentido, “a diversidade étnica, racial, cultural..., a diversidade em geral, se concebe<br />
como um problema que ameaça a integridade e coesão social” (ib.). Ainda segundo<br />
as autoras, esta postura, que procura fazer com que os grupos minoritários se<br />
submetam totalmente aos majoritários que, por sua vez, controlam o poder político e<br />
econômico, tem causado sérios conflitos políticos, como foi o caso dos movimentos<br />
reivindicatórios nos Estados Unidos da América, nos anos 60.<br />
A outra corrente, integracionista, propõe, na verdade, a fusão de todas as<br />
diferenças étnicas numa só cultura ou numa única identidade cultural que, então,<br />
seria superior a cada etnia em separado. “O objetivo é manter a coexistência e o<br />
equilíbrio entre as culturas minoritárias e oferecer o melhor da cultura dominante<br />
para todos” (id., 1997:17). As autoras apresentam o exemplo da Grã-Bretanha, onde<br />
foi criado, com base nesta perspectiva, um currículo central para todos os alunos,<br />
“constituído de uma grande diversificação curricular”. Esta proposta, que surgiu no<br />
início dos anos 70, é, segundo a análise das autoras, um passo adiante em relação<br />
à corrente assimilacionista, pois propõe a “plena igualdade de direitos parar todos os<br />
cidadãos e trata de promover a unidade através da diversidade (grifos nossos),<br />
frente a políticas segregacionistas criticadas como claramente discriminatórias e<br />
vexatórias” (id.). Podemos perceber que esta proposta é ambígua e não avança<br />
efetivamente em relação à corrente anterior, além de, na verdade, manter o quase<br />
mesmo predomínio das culturas receptoras sobre os demais modelos culturais. Esta<br />
crítica também é feita pelo prof. Michel Wieviorka, quando o mesmo aponta para os<br />
riscos da manutenção das hierarquias culturais, que, segundo Sales e Garcia,<br />
“mantém os privilégios sociais e cede apenas nos aspectos superficiais, que não<br />
garantem o status quo, a não ser dos que comandam a ordem estabelecida” (Sales<br />
& Garcia, 1997:18).<br />
O pluralismo é uma outra corrente do multiculturalismo, muito aceita na<br />
atualidade pelos teóricos e<br />
208
surge como uma reação à hierarquização etnocêntrica das culturas e da afirmação da<br />
diferença cultural como positiva. Cada grupo cultural tem o direito de conservar e<br />
desenvolver sua cultura no marco da sociedade e a se educar a partir dos seus próprios<br />
valores e conhecimentos culturais, em igualdade de condições (id.).<br />
Aparentemente esta proposta é bastante avançada em relação às das<br />
correntes anteriores, já que esta não acredita que as diferentes minorias culturais<br />
sejam deficitárias ou que estejam desestruturadas apenas por serem diferentes da<br />
cultura dominante. Mas, na verdade, parece-nos que este discurso é altamente<br />
ideológico, pois, ao defender que os grupos étnicos sejam competitivos em relação<br />
aos interesses políticos e econômicos, conforme afirmam as autoras, consideram<br />
este princípio liberal da liberdade e igualdade de condições, sem que se garantam<br />
efetivamente os direitos à igualdade no seio de uma sociedade que pratica a<br />
desigualdade econômica e a segregação racial.<br />
Por outro lado, esta corrente concebe a cultura como algo demasiado estático e<br />
separado da sociedade; como um conjunto de costumes, ritos, tradições e valores que<br />
permanecem invariáveis no tempo e que não contemplam a heterogeneidade interna de<br />
cada grupo (também há lutas de poder dentro de um grupo cultural) e nega a<br />
possibilidade do enriquecimento produzido pelo intercâmbio e a mestiçagem intercultural<br />
(Sales & Garcia, 1997:19-20).<br />
Ao falar do pluralismo cultural e da aceitação, por conseguinte, da diversidade<br />
cultural, o respeito à diferença, neste caso, significa isolamento sob todos os<br />
aspectos: econômicos, culturais, sociais. O pluralismo cultural acaba, nesta ótica,<br />
tornando-se muito mais crítico e problematizador da diferença, que a própria<br />
corrente integracionista porque, nesta, observa-se um discurso ideológico que se<br />
fundamenta numa lógica liberal, criando dificuldades ao intercâmbio cultural e<br />
incentivando a competitividade entre as raças e as diferentes etnias.<br />
A corrente do interculturalismo<br />
209<br />
partindo do conceito de cultura mais dinâmico e móvel, permite o intercâmbio e o diálogo<br />
entre os grupos culturais e seu mútuo enriquecimento. Não considera nenhuma cultura
superior à outra e com o direito a dominá-la; porém tampouco concorda com os<br />
relativistas, para quem todas as culturas têm o mesmo valor (Sales & Garcia, 1997:20).<br />
Esta corrente, que se encaixa nas Teorias Pós-Críticas anteriormente<br />
estudadas, enfatiza a reflexão crítica sobre os elementos da cultura.<br />
Da mesma forma como observávamos anteriormente, quando nos referimos<br />
aos diferentes significados de cultura, a corrente interculturalista considera positiva a<br />
existência da diversidade cultural, o que comprova a riqueza da espécie humana.<br />
Ela defende que os indivíduos se tornem interculturais e isto significa que eles<br />
podem atuar nas diferentes culturas, já que a igualdade e a justiça social estariam<br />
pressupostas. Nesse sentido, esta tendência advoga a existência de uma estrutura<br />
social igualitária, apostando no desenvolvimento das relações sociais e políticas<br />
entre os diferentes grupos. Acredita-se que, assim, a justiça e a solidariedade estão<br />
mais presentes, o que não se constata no contexto da concepção assimilacionista<br />
(Sales & Garcia, 1997).<br />
Lembramos que estas correntes ideológico-políticas do movimento<br />
multicultural combinam com as diferentes políticas educacionais que fundamentam<br />
as práticas das escolas, das redes e dos sistemas de ensino, ainda que nem sempre<br />
sejam explicitadas. Enquanto corpo de ideologias e políticas estão associadas às<br />
correspondentes visões de mundo, de concepções de educação e de currículo,<br />
facilmente identificadas por suas características mais gerais e mais pontuais.<br />
210<br />
Como vimos nos capítulos anteriores, a educação no contexto da<br />
globalização 73 ou numa perspectiva emancipadora, que se opõe à globalização<br />
73 Conforme Boaventura Souza Santos (2002:26), “uma revisão dos estudos sobre os processos de<br />
globalização mostra-nos que estamos perante um fenômeno multifacetado com dimensões<br />
econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo. Por<br />
esta razão, as explicações monocausais e as interpretações monolíticas deste fenômeno parecem<br />
pouco adequadas. Acresce que a globalização das últimas três décadas, em vez de se encaixar no<br />
padrão moderno ocidental de globalização – globalização como homogeneização e uniformização –<br />
sustentado tanto por Leibniz, como por Marx, tanto pelas teorias de modernização, como pelas<br />
teorias do desenvolvimento dependente, parece combinar a universalização e a eliminação das<br />
fronteiras nacionais, por um lado, o particularismo, a diversidade local, a identidade étnica e o<br />
regresso ao comunitarismo, por outro”. Observamos que, na mesma obra, o autor analisa como a<br />
globalização cultural acabou assumindo um relevo especial na década de oitenta, com a chamada<br />
“viragem cultural” que, segundo ele, significa “a mudança de ênfase nas ciências sociais, dos<br />
fenômenos sócio-econômicos para os fenômenos culturais”(ib.:44). Além disso, Boaventura Souza<br />
Santos, explica que a “a idéias de uma cultura global é um dos principais projectos da modernidade<br />
(...) o esquema cultura é por definição um processo social construído sobre a intercepção entre o<br />
universal e o particular” (ib.:47). Lembra, ainda (ib.) que, de acordo com Appadurai afirma, o cultural é<br />
o campo das diferenças, dos contrastes e das comparações (1997:12) e que, conforme Wallerstein
capitalista, apresenta-nos cotidianamente novos desafios, sobretudo no âmbito das<br />
relações humanas – portanto sociais, culturais e políticas. Na educação,<br />
educadores/as, alunos/as, pais e mães e demais segmentos das escolas e das<br />
comunidades escolares se deparam diariamente com desafios para os quais não<br />
têm respostas e para os quais não foram formados, nem pelas instituições de ensino<br />
que freqüentaram, nem pela própria experiência de vida. É assim que ficamos,<br />
aparente e temporariamente sem respostas, para problemas como o preconceito e<br />
demais formas de violência contra o ser humano, falta de solidariedade,<br />
individualismo exacerbado, exclusão e a desigualdade social. Encontrar possíveis<br />
saídas exige de nós a problematização da realidade vivida. Não tomá-la como<br />
inexorável e sim como algo dinâmico, que se constrói histórica e socialmente.<br />
Analisar com calma as nossas experiências, os nossos contextos sociais,<br />
reconhecer a complexidade do real e buscar respostas com base nesta perspectiva.<br />
Mas o que fazer?<br />
Nesse sentido, chegamos à problemática da elaboração do conhecimento e,<br />
por conseguinte, ao problema de nossa tese, relacionado ao currículo da escola,<br />
como um campo propício para o enfrentamento daqueles desafios. A discussão que<br />
desenvolvemos acerca do conceito do conceito de cultura e de multiculturalismo<br />
vem ao encontro destas buscas. E assim, “para além da oposição reducionista entre<br />
o monoculturalismo e o multiculturalismo surge a perspectiva intercultural” (Fleuri,<br />
2001d:48). Conforme afirma o professor Reinaldo Matias Fleuri, esta perspectiva<br />
emerge no contexto das lutas contra os processos crescentes de exclusão social.<br />
Surgem movimentos sociais que reconhecem o sentido e a identidade cultural de<br />
cada grupo social. Mas, ao mesmo tempo, valorizam o potencial educativo dos<br />
conflitos. E buscam desenvolver a interação e a reciprocidade entre grupos<br />
diferentes, como fator de crescimento cultural e de enriquecimento mútuo (Fleuri,<br />
2001d:48).<br />
Vemos aqui uma possibilidade concreta de, na escola e nas diferentes<br />
comunidades sociais, buscarmos não só reconhecer os seus problemas mas,<br />
principalmente, criarmos dinâmicas e movimentos que possam, coletivamente,<br />
(1991b:187), “definir cultura é uma questão de definir fronteiras”.<br />
211
promover situações de aproximação entre pessoas, grupos e instituições, visando ao<br />
reconhecimento das diferenças culturais existentes entres eles e, com base nesta<br />
perspectiva, iniciar um trabalho de enfrentamento dos desafios que a realidade lhes<br />
apresenta. Ao fazê-lo, constróem-se espaços de encontro, de convivência e do<br />
estabelecimento de relações humanas favorecedoras da descoberta de possíveis<br />
respostas para as demandas que são apresentadas, desveladas e descobertas. É<br />
neste contexto que nasce a possibilidade de uma educação intercultural. Criam-se<br />
as condições para o diálogo, este, só possível se superarmos as lógicas binárias,<br />
que funcionam individual e socialmente sempre negando o próprio diálogo, a<br />
convivência, e alimentando as diferentes manifestações de fundamentalismos. O<br />
desafio, agora, é entendermos que lógicas e que mudanças são necessárias para<br />
que consigamos alcançar o diálogo e a educação intercultural.<br />
A experiência espanhola e valenciana das professoras Auxiliadora Sales e<br />
Rafaela García, autoras do livro Programas de educación intercultural (1997), nos<br />
ajuda a compreender a origem e os meandros do currículo intercultural. No entanto,<br />
observamos que as referidas autoras, ao nos oferecerem alguns indicadores<br />
analíticos sobre como trabalhar com a educação e com o currículo intercultural,<br />
acabam por oferecer uma espécie de “modelo” para se atuar nesta perspectiva<br />
curricular, com o que não concordamos, até porque, ao fazê-lo, acabam<br />
descaracterizando o que seria, ao nosso ver, uma proposta efetiva de educação<br />
intercultural.<br />
O enfoque assumido pelas autoras mostra claramente que avanços existem;<br />
contudo, diríamos, a forma modelar a partir da qual se apresenta a perspectiva<br />
intercultural, lança-a numa armadilha, oferecendo, por exemplo, “passo a passo”,<br />
algumas técnicas que levariam a uma atitude intercultural. E isso acaba se<br />
reduzindo à sugestão de um currículo oficial.<br />
O currículo intercultural é concebido e apresentado pelas autoras na forma de<br />
um Plano de Educação Intercultural, programa de educação em valores/educação<br />
para a paz da Conselleria de Educación y Ciencia de la Generalitat Valenciana<br />
(Sales & Garcia, 1997:77). Elas explicam que<br />
212
a Generalitat Valenciana, através do Conselho de Educação e Ciência, se soma à<br />
iniciativa do Ministério de Educação, Ciência e de outras Comunidades Autônomas que<br />
têm as competências transferidas na educação, da elaboração de guias orientadores<br />
para o professorado que desenvolve a educação intercultural em Projetos Educativos e<br />
Curriculares de seus centros. Os documentos revisados oferecem ao professorado um<br />
marco teórico que fundamenta a educação intercultural e um modelo de trabalho para as<br />
análises, a reflexão e a tomada de decisões diante da interculturalidade e seu tratamento<br />
educativo em cada contexto (ib.).<br />
O problema não é apenas o fato de se apresentar um programa oficial de<br />
currículo intercultural, até porque, conforme já mencionamos, a discussão sobre a<br />
polarização entre “oficial” e “alternativo” ganha, hoje, novos contornos (Corazza,<br />
2001). A questão maior é que a operacionalização do programa de educação<br />
intercultural, reveste-se das características de uma proposta limitadora de currículo<br />
que, a ‘nova’ direita, triunfante em tantos países (Silva, 1999) apresenta para manter<br />
o controle sobre a educação e sobre o currículo, centralizando-os em suas tentativas<br />
de reestruturação da sociedade, mas com o objetivo de organizar padrões culturais<br />
comuns 74 . Da mesma maneira, as políticas de currículo nacional vêm sendo<br />
desenvolvidas, em diferentes níveis, nos EUA, na Grã-Bretanha, no Canadá, na<br />
França, na Espanha, na Argentina, no Chile, no Brasil, dentre outros países.<br />
213<br />
Este processo, apesar de se dar em escala mundial, consegue garantir certa<br />
organicidade em razão dos objetivos do capitalismo globalizado. Esses objetivos são<br />
expressos nos documentos do Banco Mundial, que afirmam que os resultados da<br />
educação no mundo podem melhorar pela adoção de quatro importantes medidas:<br />
1) estabelecimento de normas referentes aos resultados da educação; 2) prestação<br />
de apoio aos insumos que melhoram o rendimento; 3) adoção de estratégias<br />
flexíveis para a aquisição e a utilização dos insumos; 4) vigilância dos resultados.<br />
Pode-se verificar que as prioridades da educação são determinadas mediante<br />
análise econômica, estabelecimento de normas e cumprimento de tais normas<br />
(Banco Mundial, 1996)”. Por aí podemos analisar o caráter da proposta de educação<br />
intercultural das autoras que estamos estudando. Apesar de nos ajudarem a<br />
entender os fundamentos do fenômeno multicultural, a opção político-pedagógica<br />
74 Conforme a análise do professor Tomáz Tadeu da Silva (Moreira e Silva, 1995), citado na nota de<br />
rodapé número 2 do artigo da professora Alice Ribeiro Casimiro Lopes. Ver: Lopes, Alice Ribeiro<br />
Casimiro. Pluralismo Cultural em políticas de currículo nacional. In: Moreira, Antônio Flávio Barbosa<br />
(org.). Currículo: Políticas e práticas. Campinas, Papirus, 1999a. Pp. 59-60).
diverge do nosso quadro referencial. E isso se traduz sutilmente, por exemplo, nos<br />
objetivos e no desenho do currículo intercultural que apresentam. Este acaba sendo<br />
mais um exemplo do hibridismo que hoje percebemos nas políticas educacionais em<br />
todo o mundo, conforme os estudos da professora Sandra Corazza (2001) sobre o<br />
“oficial” e o “alternativo”.<br />
Numa outra direção, quando pensamos no currículo associado à perspectiva<br />
da educação intercultural ou, então, no próprio conceito de currículo intercultural,<br />
assim também denominado por Concetta Sirna Terranova, estamos considerando<br />
sua associação a diversos fatores, textos e contextos do cotidiano escolar e<br />
comunitário. Apresenta-se a necessidade de uma ampliação de visão de mundo, de<br />
natureza humana, de cultura, pelos diferentes sujeitos que pensam e que constróem<br />
o currículo. Nesse sentido,<br />
exige que se alarguem os horizontes sobre o mundo, sobre as várias respostas culturais<br />
que a humanidade tem dado às necessidades comunitárias mas, sobretudo, que se<br />
organize um conhecimento construído não como sistema de segurança imodificável, mas<br />
como um saber que se vá reorganizando continuamente e que se faça atravessar pela<br />
sensibilidade, por paradigmas e óticas diversas. Um conhecimento que não se feche na<br />
forma de “apartheid cognitivo”, mas que aceite operações de releitura, composto de<br />
novos saberes, de comparações e de mistura com outra realidade (Terranova, 1997:87).<br />
Não foi isso o que observamos na proposta de Sales & Garcia (1997). As<br />
mesmas defendem um currículo intercultural que vem de encontro, inclusive, à<br />
nossa opção e proposta político-pedagógica, razão desta nossa crítica. Na verdade,<br />
elas defendem uma proposta oficial e governamental de currículo intercultural, que<br />
cristaliza e fundamenta a<br />
214<br />
Lei Geral de Ordenação do Sistema Educativo na Espanha (LOGSE), aprovada em<br />
outubro de 1990, e paulatinamente implantada no país desde então, (que) apresenta<br />
como um de seus princípios o respeito à diversidade, sem renunciar ao caráter de<br />
educação para todos. Documentos oficiais relativos à implementação dessa política em<br />
comunidades autônomas espanholas enfatizam que a proposta curricular defende o<br />
direito de todas as pessoas terem seu modo de ser respeitado, realçando a questão da<br />
diversidade cultural. Por sua vez, no documento dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN) para o ensino fundamental no Brasil, reconhecidamente fundamentado na<br />
proposta espanhola, a pluralidade cultural é apresentada como um dos temas<br />
transversais que devem perpassar diferentes disciplinas (Lopes, 1999:60).<br />
Nessa mesma direção, já fizemos uma crítica aos Parâmetros Curriculares<br />
Nacionais (Padilha, 2001:103-111), mesmo reconhecendo que os temas<br />
transversais, também propostos como parte das Diretrizes Curriculares Nacionais<br />
que definem doutrinariamente sobre princípios, fundamentos e procedimentos na<br />
Educação Básica, expressas pela Câmara de Educação Básica do Conselho<br />
Nacional de Educação (Brasil: 1997; 1998), representam algum avanço no que se<br />
refere ao currículo. Não se trata, neste caso, de uma dicotomia pura e simples entre<br />
proposta oficial e proposta alternativa de currículo. Trata-se de constatar que<br />
existem diferenças político-ideológicas nas políticas educacionais apresentadas, o<br />
que fica evidente diante de uma análise mais cuidadosa das mesmas, incluindo-se<br />
aí, um estudo cuidadoso das forças políticas que dão sustentação a elas. Desta<br />
forma, a confusão no nível do discurso fica, em parte, desfeita. Com isso, não<br />
estamos excluindo a possibilidade da existência de influências recíprocas em termos<br />
das concepções de educação e de currículo que fundamentam tais propostas,<br />
mesmo que sejam diametralmente opostas.<br />
No caso particular do Brasil, na segunda metade da década de 90, pela<br />
primeira vez o currículo escolar contemplou e associou questões sociais ao currículo<br />
escolar, o que representa um avanço. Este fato acabou incentivando as escolas, em<br />
âmbito nacional, a atribuir ao currículo um sentido mais próximo dos contextos<br />
escolares dos alunos, favorecendo uma maior participação dos mesmos na sua<br />
definição. No entanto, os “temas transversais” são ainda muito restritos e limitados,<br />
respondendo apenas muito parcialmente à complexidade do real, do social, e sem<br />
enfrentar de forma mais objetiva e direta, por exemplo, a questão da politicidade do<br />
ato educativo, fazendo com que a discussão sobre o currículo não caminhe mais<br />
profundamente na direção que aqui estamos discutindo.<br />
Já tendo analisado, em outra oportunidade, as concepções pedagógicas que<br />
orientaram o documento dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs – e<br />
estudado também a posição de outros educadores (Arroyo,1990; Silva,T.T., 1998;<br />
Macedo, 1999; Sancho, 1998, entre outros), consideramos os temas transversais<br />
215
uma escolha limitada, feita por uma equipe de especialistas e (que) significam uma<br />
dentre inúmeras opções temáticas possíveis, que não satisfazem a nossa concepção<br />
de currículo nem de transversalidade (Padilha: 2001:105).<br />
De qualquer forma, reconhecermos a importância dos temas transversais<br />
como um avanço, sobretudo se compararmos às proposta curriculares anteriores,<br />
que praticamente nenhum espaço dedicava aos temas sociais e culturais, quando se<br />
definia, de forma totalmente centralizada, o que a escola deveria ensinar. De<br />
qualquer forma, os Parâmetros Curriculares Nacionais e os temas transversais<br />
(Brasil, 1997; 1998) se vinculam a uma concepção clássica e conteudista de<br />
currículo e a uma visão positivista de ciência, que favorecem determinados<br />
conhecimentos e saberes em detrimento de outros. E esta escolha não passou,<br />
evidentemente, pela necessária discussão junto às escolas e respectivas<br />
comunidades. Os documentos oficiais dos PCNs e as publicações relacionadas<br />
àquele processo, conforme os autores que acabamos de citar, deixam claro o limite<br />
da pesquisa que foi realizada, em nível nacional, para a escolha dos temas<br />
transversais.<br />
O caráter complexo da multiculturalidade exige uma diferenciação do seu<br />
significado, até para que se possa fazer uma análise mais precisa das contribuições<br />
que as diferentes ciências podem oferecer à compreensão da multiculturalidade e da<br />
sua vinculação direta ao currículo. Poderíamos nos perguntar, antes de<br />
continuarmos, por quê, às vezes, nos referimos a multiculturalismo e outras vezes à<br />
multiculturalidade. Pela pesquisa que temos desenvolvido, esta diferença se refere<br />
mais a um caráter de regionalidade. Ou seja, desde sua origem, nos Estados Unidos<br />
e nos países anglo-saxões, fala-se em multiculturalismo, multiculturalismo crítico,<br />
conservador etc. Já na Europa, referem-se, geralmente, à multiculturalidade e, mais<br />
recentemente, à interculturalidade, termos poucos empregados nos EUA. Trata-se,<br />
então, como vemos, de uma distinção terminológica que varia de acordo com a<br />
região ou com o país em que o termo vem sendo utilizado, aplicado e estudado.<br />
216<br />
Mas vale o esforço de oferecer uma explicação mais precisa sobre cada um<br />
dos termos que estamos utilizando. No livro das professoras Auxiliadora Sales e
Rafaela García (1997: 33-8), encontramos as distinções, que citaremos<br />
sinteticamente.<br />
Segundo elas, a Educação Multicultural é uma espécie de conceito guarda-<br />
chuva, que abriga concepções muito diversas e mais específicas, dependendo do<br />
tipo de problema e enfoque que se aborde. Esta educação contempla a idéia da<br />
igualdade de oportunidades educativas para todos os alunos, seja de gênero, classe<br />
social, raça ou cultura.<br />
Por outro lado, a Educação Intercultural se diferencia da primeira em<br />
relação ao âmbito geográfico de uso, já que os países de influência anglosaxônica,<br />
como acabamos de mencionar – Reino Unido, Estados Unidos, Austrália e Canadá –<br />
utilizam geralmente o termo “multicultural”, enquanto que a literatura européia<br />
continental tem utilizado tradicionalmente o termo “intercultural”.<br />
No âmbito americano, as professoras Auxiliadora Sales e Rafaela Garcia<br />
explicam que a educação multicultural tem se referido e se dirigido a grupos não<br />
apenas culturais e étnicos, mas também às questões de gênero, classe social e<br />
minorias. Já, na Europa, quando se fala em educação multicultural, há um outro<br />
enfoque, pois se refere aos grupos étnicos e culturais que, como imigrantes,<br />
chegavam a países como Alemanha, onde se chamam “Ausländerpädagogik” e<br />
Pedagogia de Estrangeiros, França, Suíça e Inglaterra. Daí, podemos deduzir que a<br />
diferenciação terminológica vem também influenciada não só em função dos países<br />
de origem ou pela região mas, principalmente, de acordo com as distintas realidades<br />
socioculturais.<br />
O termo “multicultural” é puramente descritivo, porque descreve a realidade<br />
das sociedades nas quais coexistem distintas culturas, enquanto que o termo<br />
“intercultural” é normativo, posto que se refere a um processo de intercâmbio e<br />
interação comunicativa que seria desejável nas sociedades multiculturais, como<br />
recomenda o Conselho da Europa. Desta forma, uma vez que a educação responde<br />
tanto a um caráter normativo como prescritivo, parece mais adequada a expressão<br />
educação intercultural.<br />
217<br />
Só o termo multiculturalismo apresenta, segundo McLaren (1997), quatro<br />
variações, dependendo do tipo dos grupos culturais que encontramos numa mesma<br />
sociedade: o multiculturalismo conservador, o liberal, o de esquerda e o
multiculturalismo crítico, este último, do qual é defensor. Pode-se deduzir que o<br />
multiculturalismo não se manifesta de uma única maneira e que, enquanto<br />
concepção, depende da perspectiva teórica de quem a defende – daí a necessidade<br />
de sempre explicitarmos a que tipo ou grupo cultural ao qual estamos nos referindo.<br />
Dentre as várias perspectivas teóricas das quais podemos orientar nosso<br />
olhar, valemo-nos da contribuição das autoras Auxiliadora Sale e Rafaela García<br />
(1997:21-32), que sistematizam as principais características das perspectivas<br />
teóricas antropológica, psicológica, sociológica educacional, lingüística e<br />
pedagógica.<br />
Quando nos referimos à perspectiva antropológica, estamos tentando<br />
compreender o fenômeno multicultural a partir do conceito de cultura, buscando<br />
encontrar significados comuns para a comunicação intercultural, para o transcultural<br />
e para o desenvolvimento dinâmico de todas as culturas. Isso significa, por exemplo,<br />
voltarmo-nos para o levantamento, na escola e na comunidade, da diversidade<br />
cultural existente, bem como do relativismo cultural presente nas mesmas.<br />
Procuraremos reconhecer a existência de certos valores universais que possibilitam<br />
a comunicação, o intercâmbio cultural entre diferentes grupos humanos e<br />
tentaremos compreender em que medida esses valores universais procuram ou não<br />
eliminar ou se sobrepor à própria diversidade.<br />
A perspectiva antropológica na análise do fenômeno multicultural busca,<br />
portanto, os significados culturais que têm valor para o sujeito cultural, para o grupo<br />
e para a cultura do outro, criando comunicações diversas porém integradas por<br />
valores universais que, afinal, também contribuem para a convivência e para a<br />
comunicação.<br />
218<br />
A análise das diferentes culturas numa perspectiva psicológica enfatiza o<br />
desenvolvimento cognitivo das pessoas e como ele acontece, observando a<br />
heterogeneidade individual em relação ao processo de ensino e de aprendizagem.<br />
Isso nos remete à análise da problemática do respeito ao ritmo individual dos alunos<br />
na escola e na sala de aula, pois, dependendo de uma ou outra forma de considerá-<br />
los, alteraremos propriamente a nossa base ou abordagem curricular. Nessa<br />
perspectiva, observa-se também o impacto que o encontro intercultural produz nas<br />
sociedades multiculturais, medindo, por exemplo, o ajuste emocional das crianças
que se inserem num novo contexto cultural e também daquelas que passam a ter<br />
contato com crianças imigrantes, sendo possível analisar as causas dos sintomas da<br />
ansiedade, depressão, condutas consideradas “desordeiras”, baixa estima,<br />
problemas de identidade, estresse, entre outros.<br />
Na perspectiva da sociologia crítica da educação, o fenômeno cultural, no<br />
que se refere às teorias sobre desigualdade na escolarização – racial, sexual,<br />
formas de exploração e alienação institucional, estratégias de resistência à cultura<br />
dominante/contraculturas – estuda as relações de poder dentro da estrutura<br />
capitalista. Além disso, ajuda-nos a compreender os paradigmas sociais e<br />
educativos a partir dos quais desvelamos os critérios sociais utilizados pelas<br />
políticas educacionais para o estabelecimento de determinados currículos escolares.<br />
Portanto, o estudo do fenômeno cultural na perspectiva da sociologia crítica da<br />
educação nos ajuda a perceber a que concepção de sociedade o currículo que<br />
estamos estudando serve, bem como qual o tipo de conhecimento prioriza e que<br />
mecanismos de controle social utiliza.<br />
A perspectiva sociológica poderá, ainda, contribuir para esclarecer e desvelar<br />
criticamente a existência de eventuais imposições curriculares ou, simplesmente, o<br />
não reconhecimento do “currículo oculto” que, muitas vezes, tende a ensinar muito<br />
mais do que o currículo formal e explicitamente declarado. Tal reflexão vem ao<br />
encontro de uma formação crítica dos sujeitos que atuam e convivem na escola e<br />
que, como tal, assumem o conflito como condição básica e motor da criação de<br />
novos valores que orientarão as relações humanas nos diferentes níveis –<br />
intrapessoais, pessoais, interpessoais, grupais e institucionais.<br />
A perspectiva lingüística de análise do fenômeno multicultural nos ajuda a<br />
entender a educação multicultural se considerarmos que o estudo da língua e da<br />
cultura deve ser entendido com base na relação das partes com o todo, através de<br />
modelos integradores que expliquem as suas conexões internas, extralingüísticas e<br />
culturais. Nessa direção, a problemática do idioma/bilingüismos torna-se objeto<br />
privilegiado de observação e pesquisa.<br />
219<br />
Se observarmos e analisarmos o fenômeno multicultural sob a perspectiva<br />
pedagógica, poderemos fazê-lo tomando a educação como processo dinâmico e
interativo, que oferece alternativas pedagógicas ao modelo monocultural tradicional,<br />
que responde à pluralidade e à complexidade sociocultural.<br />
Se considerarmos a existência de um professor que chamaríamos de<br />
“professor monocultural” – o que não seria possível em “estado puro”, analisaríamos<br />
sob a perspectiva pedagógica os eventuais porquês das diferentes formas de<br />
resistência ou as abertas oposições docentes às mudanças, sobretudo curriculares.<br />
Poderíamos, ainda, buscar os motivos pelos quais o próprio sistema educativo<br />
apresenta, alguma vezes, inércia ou indiferença em relação à possibilidade de<br />
alterar rotinas escolares e a organização do próprio sistema para mudar. É<br />
importante reiterar que uma análise pedagógica do fenômeno multicultural, presente<br />
na escola, ajuda-nos a evitar as simplificações sobre o tema, que podem estar<br />
presentes nas propostas educacionais, geralmente salvacionistas. Estas, em nome<br />
de criar um modelo multicultural, caem no reducionismo de uniformizar ou de tentar<br />
universalizar determinados procedimentos didático-pedagógicos, desconsiderando<br />
assim as diferentes variáveis que influenciam no processo educacional, o que nada<br />
tem a ver com a compreensão de uma educação intercultural e de um currículo<br />
intertranscultural que defenderemos.<br />
220<br />
Por outro lado, respeitando as diferenças de abordagens apresentadas, cabe<br />
reiterar que a separação delas é apresentada aqui mais como um recurso de análise<br />
do fenômeno multicultural, do que como uma proposta que defenderia uma ou outra<br />
abordagem específica. Na verdade, o que nos importa é reconhecer a complexidade<br />
cultural presente na escola e verificar, por exemplo, de acordo com o professor<br />
Reinaldo Matias Fleuri, quando fala sobre a experiência italiana, que no atual<br />
contexto mundial, praticamente todas as culturas recebem correntes migratórias ou,<br />
pelo menos, convivem com o multiculturalismo. 75 . Para Paola Falteri (1998:37) o<br />
75 O Prof. Reinaldo Matias Fleuri (UFSC), no artigo intitulado “Educação intercultural e movimentos<br />
sociais: considerações introdutórias” (1998:11-12) escreve: “Na Itália – comenta Paola Falteri - o<br />
debate sobre o multiculturalismo (diferentemente dos países anglo-saxões, voltados para a integração<br />
de comunidades imigradas), dirigiu seu olhar para a multiplicidade das formas de vida que povoam o<br />
planeta, concentrando seu interesse na interdependência Norte-Sul e nas suas desigualdades, assim<br />
como na busca de reconstruir relações segundo valores de eqüidade e solidariedade. Isto implica em<br />
submeter a ordem mundial à crítica e explicitar as conexões entre o nosso quotidiano e a dimensão<br />
supranacional dos conflitos econômico-políticos e dos desequilíbrios ambientais. Quando a Itália<br />
passou também, a partir dos anos 80, a ser destino de ondas imigratórias do sul do mundo e do leste<br />
europeu, verificaram-se reações de intolerância de declarado racismo”. Para também<br />
acompanharmos em detalhes a trajetória histórica que culminou com a perspectiva da educação<br />
intercultural, bem como com a discussão sobre a passagem de uma pedagogia compensatória e<br />
assimilacionista para um trabalho intercultural, ver o livro de Concetta Sirna Terranova, intitulado<br />
Pedagogia interculturale: concetti, problemi, proposte (1997).
problema central passa a ser, neste contexto, como conciliar os direitos de igualdade<br />
dos cidadãos e os direitos à diferença de culturas. Por isso, cada projeto<br />
multiculturaslista comporta uma não eliminável dimensão política, de difícil solução.<br />
Da mesma forma que os conceitos de cultura e de multiculturalismo ou<br />
multiculturalidade, o conceito de educação intercultural, apresenta uma amplitude<br />
terminológica que necessita ser bem explicada. Estamos, neste momento, mais<br />
interessados na reunião de características e elementos que nos ajudem a<br />
compreender o significado de educação e currículo intercultural.<br />
A educação intercultural 76 é constituída pela “busca de criar contextos<br />
educativos que favoreçam a integração criativa e cooperativa de diferentes sujeitos,<br />
assim como a relação entre os seus contextos sociais e culturais” (Fleuri, 1998:9)<br />
Grifos nossos. É muito importante termos clareza do significado desta “busca” para<br />
entendermos a educação intercultural.<br />
Ao explicar o significado de educação intercultural, o professor Reinaldo<br />
Matias Fleuri se utiliza de um vocabulários bem específico e significativo, mostrando-<br />
nos as características que são associadas a esta perspectiva educacional:<br />
integração, cooperação, criatividade, respeito aos sujeitos do ato educativo, relação<br />
– e tudo isso relacionado à necessidade de se criar contextos sociais e culturais<br />
para que a educação intercultural aconteça. Os Círculos de Cultura são, para nós,<br />
exatamente os espaços privilegiados e os contextos mais propícios para a<br />
efetivação da educação e, por conseguinte, do currículo intertranscultural.<br />
As professoras Auxiliadora Sales e Rafaela García, coerentes com a posição<br />
de apoio à política educacional espanhola, consideram que a educação intercultural<br />
não deve nem pode se responsabilizar integralmente pela consecução da justiça<br />
social, mas<br />
221<br />
76 Segundo o professor Ricardo Vieira, em artigo intitulado “da multiculturalidade à educação<br />
intercultural: a antropologia da educação na formação de professores”, a reflexão intercultural tem<br />
estado muito ligada aos problemas das migrações e, em particular, em França, às questões do ensino<br />
para imigrantes, problemática dos trabalhadores estrangeiros etc. (cf. Camileri, 1989). Mas o<br />
intercultural não se reduz às relações internacionais e inter-étnicas. De certo modo, qualquer grupo<br />
social relativamente estável, tende a constituir uma identidade cultural; sejam as classes sociais, as<br />
identidades regionais, os grupos sócio-profissionais, as identidades sexuais e outras. A própria<br />
identidade nacional só poder ser considerada como culturalmente homogênea em termos ideológicos<br />
(cf. Vieira, 1995). Na prática ela é pluricultural. (Vieira, 1999:150).
pode, mediante os mecanismos pedagógicos e escolares, propiciar esta interação<br />
dialógica entre culturas, num clima democrático que defenda o direito à diversidade no<br />
marco da igualdade de oportunidades, flexibilizando os modelos culturais que se<br />
transmitem na escola, de forma que os alunos possam dispor de uma maior riqueza de<br />
conhecimentos e valores culturais, próprios e alheios, enriquecendo crítica e<br />
reflexivamente não apenas o seu desenvolvimento pessoal integral, senão propiciando<br />
sua conscientização e ação social solidária. (Sales & Garcia, 1998:38). (Grifo nosso)<br />
Aparentemente, a posição assumida pelas autoras tiram o peso da educação<br />
intercultural em relação à sua responsabilidade “integral” para com a problemática<br />
da justiça social. Mas podemos perceber, na citação que se seguiu que, na verdade,<br />
elas evitam enfrentar o desafio que efetivamente está posto, deixando a discussão<br />
sobre a justiça social diluída. Além disso, não se enfrenta a discussão sobre o<br />
problema educacional, a não ser na sua periferia e se restringindo à questão<br />
cultural, como se esta não implicasse no enfrentamento dos conflitos apresentados<br />
no âmbito da escola.<br />
Quando as referidas autoras falam que a diversidade é admissível no marco<br />
da igualdade de oportunidades, não aprofundam a verdadeira desigualdade social<br />
que pode estar presente na escola e na sociedade e, certamente, não é esta a<br />
nossa postura quando discutimos educação intercultural. Fazemo-la enfrentando os<br />
conflitos, as contradições, a diferença, as dificuldades e a complexidade que a<br />
dinâmica da escola apresenta, seja relacionada à dimensão cultural mais voltada<br />
para a exclusão escolar, seja em relação aos problemas que são de origem sócioeconômicos.<br />
E, para nós, estas questões, mesmo sendo parte integrante da<br />
discussão sobre cultura, multiculturalismo, interculturalidade ou transculturalidade,<br />
como veremos, merecem sempre uma referência explícita, até para marcar<br />
politicamente a discussão, que fazemos no âmbito da educação entendida, como<br />
nos ensinou <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, como ato político.<br />
Esclarecendo melhor os conceitos com os quais estamos lidando a partir<br />
daqui, temos também já observado que a noção de perspectiva intercultural 77 ,<br />
222<br />
começa somente quando se criam as condições para a troca, quando se estabelece<br />
uma relação de reciprocidade, quando, no reconhecer ‘o outro’, nos tornamos<br />
conscientes da nossa própria cultura. Então deixam de ser óbvias as práticas<br />
quotidianas, as regras dadas como certas e os automatismos da rotina; nos damos conta<br />
do quão local é o saber-fazer que transmitimos, quão etnocêntricas são as estruturas das<br />
77 Convém anotar a distinção apresentada pelo professor Ricardo Vieira: “O conceito de intercultural,<br />
interculturalidade ou interculturalismo, no sentido em que o utilizo, implica as noções de reciprocidade<br />
e troca na aprendizagem, na comunicação e nas relações humanas. É evidente que o intercultural<br />
não está liberto dos discursos ideológicos, inspirados fundamentalmente numa ética humanista, que<br />
deseja um ideal de diálogo, de respeito pelas diferenças, de compreensão mútua etc. Mas o olhar<br />
pedagógico, essa dimensão política a que aqui dou ênfase, resulta do estudo de práticas e<br />
representações que fiz e prolonga-se numa reflexão crítica.” (Vieira, 1999:151)
disciplinas nas quais nos formamos, quanta pedagogia implícita existe na organização<br />
material da sala de aula (tempos, espaços, sistemas dos objetos), nas redes de relações<br />
e de papéis, nas formas de comunicar (Falteri, 1998:39). (Grifos nossos).<br />
Concluindo esta sua reflexão, a autora considera a perspectiva intercultural ou<br />
a intercultura um “poderoso motor de renovação, através do qual as formas do<br />
nosso pensar e agir se redefinem segundo um ‘humanismo integral’”(ib.). Estamos<br />
aqui falando justamente do momento em que a intercultura ganha um sentido mais<br />
complexo, isto é,<br />
um projeto comunitário que torne o mundo utilizável e doméstico, no qual seja<br />
possível o ‘appaesamento’, ou seja, o ‘sentir-se em casa’- o reencontrar-se em um<br />
horizonte de significados – e a contínua regeneração do existir como centro de<br />
iniciativa. (ib).<br />
Para os fins aos quais nos propusemos no início desta investigação,<br />
consideramos que o estudo dos significados de cultura, de multiculturalismo e de<br />
interculturalidade, permite-nos pensar o currículo com base na perspectiva cultural,<br />
como sempre defendeu <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> e, agora diríamos, na perspectiva<br />
intertranscultural, que nos permite pensar no currículo intertranscultural, que<br />
considere os diferentes contextos escolares e comunitários, bem como nos múltiplos<br />
textos, contextos, símbolos e sentidos que são estabelecido do contato e no<br />
encontro entre as culturas. Nesse aspecto, entendemos ser possível retomarmos,<br />
hoje, os Círculos de Cultura de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, para trabalharmos o currículo<br />
intertranscultural. Os Círculos de Cultura, no seu conceito original, realizavam uma<br />
educação intercultural ao ressignificarem os espaços e os tempos educacionais, ao<br />
promoverem o encontro das pessoas, das diferentes culturas e ciências e das<br />
diferentes manifestações simbólicas do ser humano, permitindo a realização de<br />
estudos disciplinares e mesmo transdisciplinares, ou seja, que ultrapassavam os<br />
limites das disciplinas e permitiam que conhecimento fosse trabalhado resgatando,<br />
ao mesmo tempo, o seu caráter de totalidade e as diversas dimensões e<br />
manifestações do conhecimento humano - científico, filosófico, artístico, religioso,<br />
mitológico, imaginário etc.<br />
223
A propósito das dimensões disciplinares às quais nos referimos, observarmos<br />
que, para Edgar Morin (1999:36)<br />
a interdisciplinaridade pode significar, por exemplo, que diferentes disciplinas encontram-<br />
se reunidas como diferentes nações o fazem na ONU, sem entretanto poder fazer outra<br />
coisa senão afirmar cada uma seus próprios direitos e suas próprias soberanias em<br />
relação às exigências do vizinho. Mas a interdisciplinaridade pode também querer dizer<br />
troca e cooperação e, desse modo, transformar-se em algo orgânico.<br />
A polidisciplinaridade constitui uma associação de disciplinas em torno de um<br />
projeto ou de um objeto que lhes é comum. As disciplinas são chamadas para colaborar<br />
nele, assim como técnicos especialistas convocados para resolver esse ou aquele<br />
problema. De modo contrário, as disciplinas podem estar em profunda interação para<br />
tentar conceber um objeto e um projeto, como já se viu no estudo da hominização.<br />
Enfim a transdisciplinaridade se caracteriza geralmente por esquemas cognitivos<br />
que atravessam as disciplinas, às vezes com uma virulência tal que as coloca em transe.<br />
Em resumo, são as redes complexas de inter, poli e transdisciplinaridade que operaram<br />
e desempenharam um papel fecundo na história das ciências.<br />
Como vemos, Morin acaba sugerindo o trabalho transdisciplinar, pois<br />
considera a necessidade de “ecologizar as disciplinas, ou seja, levarmos em conta<br />
tudo o que lhe é contextual, aí compreendidas as condições culturais e sociais”<br />
(Morin, 1999:36).<br />
Falar em educação intercultural para nós significa trabalhar com essas<br />
categorias, sem que estejamos, em nenhum momento, presos a “camisas-de-força”<br />
ou a modelos previamente definidos num programa “oficial” ou “alternativo” ou “as<br />
duas coisas juntas”.<br />
224<br />
Fazer uma educação intercultural significa agir num espaço em que<br />
experiências culturais diferentes se encontram em diálogo para realizar um trabalho<br />
reconstrutivo de conhecimentos, na perspectiva do encontro das várias pessoas e<br />
das várias ciências, que também se entrecruzam, como acontece com a própria<br />
cultura das pessoas. Nesse sentido, os Círculos de Cultura, numa perspectiva<br />
intertranscultural, não se limitariam ao espaço da escola formal, mesmo que este<br />
seja um local privilegiado para a sua renovada atuação. Eles podem também ser<br />
organizados nos demais contextos educacionais da sociedade: na comunidade, nas
instituições educativas de caráter informal, nas igrejas, nos sindicatos, enfim,<br />
sempre que houver e que forem criadas situações de encontro para a troca de<br />
experiência, de reconstrução do conhecimento e, portanto, de novas aprendizagens,<br />
buscando-se realizar com base em relações humanas éticas, solidárias, política e<br />
ideologicamente situadas. Desta forma,<br />
é possível afirmar que a perspectiva intercultural em educação não pode ser<br />
dissociada da problemática social e política presente em cada contexto. Relações<br />
culturais e étnicas estão permeadas por relações de poder. Daí seu caráter muitas<br />
vezes contestador, conflitivo e mesmo socialmente explosivo (Candau, 2000b49).<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, no livro Pedagogia da esperança, não se refere à<br />
interculturalidade, mas à multiculturalidade. Ao fazê-lo, recorda o inacabamento da<br />
pessoa humana e a tensão permanente que existe entre as culturas. Mas fala que<br />
é a tensão a que se expõem por ser diferentes, nas relações democráticas em que se<br />
promovem. É a tensão de que não podem fugir por se acharem construindo, criando,<br />
produzindo a cada passo a própria multiculturalidade que jamais estará pronta e<br />
acabada (<strong>Freire</strong>, 1994b:156).<br />
Esta “tensão” à qual se refere <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, oferece-nos o indicador inicial<br />
para falarmos de transculturalidade, de círculos intertransculturais e, portanto, de<br />
currículo intertranscultural. Esta nossa perspectiva curricular, como veremos, não<br />
admite polarizações do tipo monoculturalismo versus multiculturalismo ou, então,<br />
particularismos versus universalismos.<br />
Pensando no multiculturalismo, lembramos que <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> a ele se refere<br />
como fenômeno que implica a convivência, num mesmo espaço, de diferentes<br />
culturas, o que não é, segundo ele, algo natural e espontâneo.<br />
É uma criação histórica que implica decisão, vontade política, mobilização,<br />
organização de cada grupo cultural com vistas a fins comuns: que demanda, portanto,<br />
uma certa prática educativa coerente com esses objetivos. Que demanda uma nova<br />
ética fundada no respeito às diferenças” (Ib.:157).<br />
225
As professoras Auxiliadora Sales e Rafaela García, apesar de apresentarem<br />
modelos para a construção de um currículo intercultural, avançam nos estudos que<br />
fazem sobre currículo e contribuem para dar sentido ao currículo intercultural,<br />
ajudando-nos no seu entendimento. Segundo elas,<br />
um verdadeiro currículo intercultural é um processo ético de diálogo criativo, através do<br />
qual se dá oportunidade aos alunos de investigar como as origens culturais, os marcos<br />
de referência e as perspectivas dentro de cada disciplina influem na construção do<br />
conhecimento. E se oferece a oportunidade de criar eles mesmos conhecimento,<br />
identificando seus próprios interesses, idéias, atitudes e experiências (Sales & Garcia,<br />
1997:111)<br />
Dentre as exigências às quais nos referimos para a existência de um currículo<br />
intertranscultural, há de se considerar elementos que nos permitam identificar e<br />
propor também práticas e reflexões sobre as teorias do Estado na educação para<br />
que compreendamos, como nos ensina <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, a politicidade do ato educativo<br />
e, portanto, as ‘implicações políticas de compreender as relações entre cidadania e<br />
educação” (Torres, 2001: 250).<br />
Gabrielle Giacomelli, em tese intitulada La pedagogia interculturale e il<br />
pensiero pedagogico di <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> (1998), compara a pedagogia intercultural à<br />
pedagogia freiriana. Ele enfatiza o fato de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> valorizar a cultura popular<br />
como uma forma de resistência à cultura hegemônica. E, ao se referir à proposta de<br />
libertação coletiva, de autonomia e de responsabilidade, Giacomelli observa que é<br />
pela categoria do diálogo que <strong>Freire</strong> propõe o reconhecimento da diferença entre as<br />
pessoas, o enfrentamento do conflito como forma de escuta e de acolhimento,<br />
visando ao equilíbrio que conjuga solidariedade e respeito, reconhecendo a<br />
importância do debate científico e, ao mesmo tempo, a emoção e o sentimento.<br />
Conforme suas próprias palavras,<br />
226<br />
Na perspectiva de uma educação intercultural, no contexto da pós-<br />
modernidade e de crise do debate ético, que se manifesta sobretudo no esgotamento
das práticas de diálogo e discussão, o pensamento pedagógico de <strong>Freire</strong> pode<br />
oferecer uma contribuição à definição de uma filosofia da educação coerente e<br />
necessária, sobretudo, se nos situamos na perspectiva da formulação e formação -<br />
como dois processos inseparáveis - de uma experiência de cidadania que vá além do<br />
horizonte estreito do já dito e pré-estabelecido ou dos limites de uma democracia<br />
fictícia, que funciona por delegação (Giacomelli, 1998:107).<br />
Segundo conclui o mesmo autor, <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> propõe uma educação atenta a<br />
cada ser humano e também ao mundo, uma educação em que o coração não está<br />
ausente e que, ao promover a transformação individual, esta educação promove<br />
também a coletividade.<br />
Na verdade, <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> colabora, sim, para a formulação da educação<br />
intercultural e intertranscultural, além mesmo das suas reflexões acerca do<br />
multiculturalismo. Como a cultura sempre esteve presente na sua obra, na condição<br />
de alicerce para toda e qualquer ação educativa – que ele preferia chamar “ação<br />
cultural”, observamos que, na verdade, cultura para <strong>Freire</strong> é sinônimo de práxis<br />
libertadora, que se dá pelo diálogo crítico e criativo entre as diferentes pessoas. Ou<br />
seja, no processo educacional,<br />
através dessa ‘ação cultural’, a relação entre os intelectuais/líderes e o ‘povo’ se<br />
transforma numa ‘síntese cultural’ onde ‘o conhecimento mais sofisticado’ dos líderes<br />
e a ‘cultura popular’ se fecundam mutuamente para formar uma práxis libertadora’<br />
(Schelling, 1990:386).<br />
Fecundar mutuamente. Esta seria a síntese que estamos buscando neste<br />
trabalho, síntese cultural, à qual Vivian Schelling faz referência. Notamos aí o<br />
semear de novos caminhos, que nos exigem a convivência com a outro, com a<br />
alteridade, sem subordinações de parte a parte mas, ao contrário, intensa de uma<br />
relação germinativa. E para que uma semente possa brotar, há que haver o mínimo<br />
equilíbrio de forças desde a sua fecundação e o cuidado na medida certa, ou quase<br />
certa, no regá-la periodicamente. Há que se realizar, o reencontro e até mesmo o<br />
desencontro para que se os caminhos trilhados sejam efetivamente prósperos.<br />
227
É assim que se realiza a educação intercultural, dialogicamente, permeada<br />
pelos encontros, pelos desencontros, pelo enfrentamento curioso e corajoso dos<br />
conflitos. Um percurso rumo à transculturalidade, mas permeado por idas e vindas,<br />
num processo dinâmico, permeado pelo desafio da descoberta, “momento em que<br />
os humanos se encontram para refletir sobre sua realidade tal qual a fazem e re-<br />
fazem” (<strong>Freire</strong>, 1996:123).<br />
Esta dimensão do encontro nos dá a configuração da educação intercultural,<br />
segundo as palavras do Prof. Reinaldo Matias Fleuri. Assim,<br />
a educação intercultural se configura como uma pedagogia do encontro até suas últimas<br />
conseqüências, visando a promover uma experiência profunda e complexa, em que o<br />
encontro/confronto de narrações diferentes configura uma ocasião de crescimento para o<br />
sujeito, uma experiência não superficial e incomum de conflito/acolhimento. No processo<br />
ambivalente da relação intercultural, é totalmente imprevisível seu desdobramento ou<br />
resultado final. (Fleuri, 2001d:55)<br />
Concluimos que na educação intercultural os diferentes sujeitos estabelecem<br />
relações permanentemente, criam as condições de superação dos seus próprios<br />
problemas, ressignificam e atualizam os problemas e a si próprios, bem como a<br />
forma de encarar a sua própria realidade e as suas atitudes diante do seu viver. Dá-<br />
se a relação entre as diferentes culturas, em contextos complexos, que produzem os<br />
confrontos entre diferentes visões de mundo. Na interação das culturas, nos<br />
espaços criados para isso – e a escola é um espaço privilegiado para isso – criam-<br />
se as possibilidades para as pessoas e os diferentes grupos possam identificar<br />
diferenças com as outras culturas e, diante delas, “assumir pontos de vista ou<br />
lógicas diferentes de interpretação da realidade ou de relação social (Fleuri,<br />
2001d:53). 78<br />
228<br />
Cabe-nos, ainda, complementando as últimas reflexões, fazer o registro do<br />
trabalho de Maria Izabel Porto de Souza, que nos oferece inúmeros exemplos de<br />
78 Além disso, o professor Fleuri se refere à contribuição de Antonio Nanni (1998:55), que entende a<br />
educação intercultural como um processo, ou seja, um caminho aberto, complexo e multidimensional,<br />
pois envolve a multiplicidade de fatores e de dimensões: a pessoa, o grupo social, a cultura e a<br />
religioão, a língua, a alimentação, os preconceitos e as expectativas. Esta relação, completa Fleuri,<br />
“vai além da dimensão individual dos sujeitos e envolve suas respectivas identidades culturais<br />
diferentes. (2001d:53).
experiências de encontros interculturais, relatados e analisados no seu trabalho<br />
intitulado Construtores de Pontes: explorando limiares de experiências em educação<br />
intercultural. (2002). Ela recupera o sentido da palavra encontro e nos mostra a sua<br />
própria ambigüidade enquanto palavra, que,<br />
no seu sentido etimológico foi produzida pela reunião da palavra encontro que significa<br />
‘relação de pessoas’ que se encontram em oposição às outras’ e a partícula in pode ter<br />
um duplo sentido: como preposição ‘dirigir-se contra a’, correspondendo a um embate e<br />
como prefixo indicando uma negação – ‘não dirigir-se contra a’, correspondendo a uma<br />
articulação (Souza, 2002:14).<br />
Conforme dizia Fleuri e como completa Maria Izabel, estamos diante de uma<br />
palavra em si mesma ambivalente, que, ao mesmo tempo, pode nos dar a idéia de<br />
uma aproximação, como também a de distanciamento ou embate entre diferentes<br />
sujeitos, remetendo-nos à idéia de “entre-lugar”.<br />
É possível concluir que um currículo intercultural se refere,<br />
fundamentalmente, a três aspectos já citados, mas que podemos, para fins<br />
didáticos, mencioná-los mais sinteticamente. São eles:<br />
cidadania;<br />
• espaços e tempos relacionados às perspectivas da educação para a<br />
• a explicitação dos princípios da justiça social que fornece motivos<br />
racionais, que justificam a crítica das relações sociais que impedem a satisfação<br />
eqüitativa da necessidades humanas, e,<br />
• a inclusão da noção de responsabilidade individual, que é central para<br />
estabelecer moralidade e ética em educação.<br />
No próximo capítulo, identificaremos os elementos constitutivos básicos do<br />
currículo intertranscultural. Este, pressupõe a educação intercultural, não prescinde<br />
dela e, diríamos mesmo, como o próprio termo que estamos criando o demonstra,<br />
funde a interculturalidade e a transculturalidade.<br />
229
É oportuno esclarecer que, se algo temos para contribuir, ensinar ou aprender<br />
neste processo,<br />
o que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar<br />
além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e focalizar aqueles<br />
momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais.<br />
Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de<br />
subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e<br />
postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria idéia de<br />
sociedade. (Bhabha, 1998:20).<br />
Partimos das nossas experiências pessoais e das práticas de outras pessoas,<br />
grupos de pessoas e instituições, mencionadas na apresentação e nos capítulos<br />
iniciais deste trabalho. Depois, arrolamos diversas contribuições e reflexões de<br />
diferentes autores que nos ajudam a pensar o currículo, a cultura, o multiculturalismo<br />
e a interculturalidade. No próximo capítulo, com base nestas e em outras<br />
discussões, estabeleceremos algumas sínteses para, de maneira mais<br />
problematizadora do que conclusiva, desvelarmos novos caminhos relacionados ao<br />
currículo.<br />
Já temos alguns indicadores que nos ajudarão, partindo da perspectiva da<br />
educação intercultural, a pensar no significado de currículo intertranscultural. Nessa<br />
direção, convém antes explicar o que ele não é, o que ele é e, afinal, como e onde<br />
ele acontece.<br />
230<br />
Antecipamo-nos e afirmamos que o currículo intertranscultural não é um<br />
conjunto ou um corpo de conhecimentos previamente definido, de caráter oficial,<br />
alternativo, ou ambas as coisas, a servir como referência ou como um rol de<br />
conteúdos mínimos obrigatórios a serem seguidos por quem quer que seja – uma<br />
rede nacional, estadual ou municipal de ensino, ou por um número determinado de<br />
escolas, ou por uma única escola ou, mesmo, por um único professor na sua sala de<br />
aula. Por outro lado, também não é sinônimo de parâmetros curriculares que,<br />
disfarçados ou não de “referência”, sejam, de qualquer forma, direta ou<br />
indiretamente, sutil ou deliberadamente, obrigatórios. E também não é estatuto de<br />
negação deste ou daquele fazer didático ou pedagógico. Muito menos sinônimo de
ecletismo educacional ou curricular, como se fosse um “vale tudo”. E não é também<br />
uma nova concepção de currículo, a disputar espaço com concepções anteriores,<br />
para ser, em seguida, superada por uma nova concepção. Diríamos, parafraseando<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, que o currículo intertranscultural não é; o currículo intertranscultural<br />
está sendo. 79 A este propósito é pertinente citar <strong>Freire</strong> (1997b:85-86) na íntegra.<br />
Um dos saberes primeiros, indispensáveis a quem, chegando a favelas ou a<br />
realidades marcadas pela traição a nosso direito de ser, pretende que sua presença se<br />
vá tornando convivência, que seu estar no contexto vá virando estar com ele, é o saber<br />
do futuro como problema e não como determinação. O mundo não é. O mundo está<br />
sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que<br />
dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que<br />
ocorre mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas<br />
objeto da História mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura, da<br />
política, constato não para me adaptar mas para mudar.<br />
Este currículo intertranscultural nasce na educação intercultural, esta, que<br />
pode se constituir numa diretriz essencial para considerarmos e orientarmos a<br />
discussão do currículo a partir da diferença cultural e dos seus desdobramentos<br />
pedagógicos, filosóficos, antropológicos, sociológicos, psicológicos, lingüísticos,<br />
políticos, econômicos etc. Ele nasce das possibilidades evidenciada por <strong>Paulo</strong><br />
<strong>Freire</strong>, que nos incentiva a pensar numa escola curiosa – que valoriza a<br />
“subjetividade curiosa; prazerosa – porque nos faz sentir “inteligentes, interferidores”<br />
e aprendentes – porque relacionais e seres da mudança.<br />
Nessa perspectiva, temos por referência, entre outros autores, o universo de<br />
princípios filosóficos, políticos e pedagógicos freirianos, progressistas e<br />
emancipadores do ser humano.<br />
231<br />
Pensar no currículo intertranscultural significa tomar todos os cuidados para<br />
não corrermos o risco de propor um currículo único, modelar. Isso porque ele ele se<br />
constrói na direção de um processo aberto, reflexivo, ético, dialógico, valorativo,<br />
criativo, ousado e complexo. Se ele não é e está sendo, teremos diante de nós, mais<br />
79 Originalmente <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> afirma: “O mundo não é; o mundo está sendo” (1997:83). Esta máxima<br />
de <strong>Freire</strong> encontramos no item 2.8 – “Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível”, no<br />
seu livro Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.
do que certezas curriculares, o necessário aprofundamento investigativo sobre os<br />
meandros do processo de ensino e de aprendizagem, incluindo-se aí todas as<br />
dimensões da organização do trabalho da escola, que estará sendo objeto de uma<br />
reflexão permanente, em diferentes espaços intertransculturais – salas de aula,<br />
corredores, pátio, salas-ambiente, todo e qualquer espaço interno ou externo da<br />
escola que permita uma reunião, um encontro entre as pessoas da escola e da<br />
comunidade, de forma que se sintam confortáveis e bem recebidas, espaços vários<br />
da comunidade, dos vizinhos da escola, das organizações governamentais, não<br />
governamentais, empresariais e não empresariais, que acreditam e luta para que a<br />
se possa construir uma educação intercultural e o currículo intertranscultural,<br />
instituições múltiplas que desejam criar um escola melhor, da comunidade, do bairro,<br />
da vila, do planeta – por isso também os espaços virtuais - para que se possa<br />
buscar, curiosamente, os diferentes sentidos que dão novos rumos para as ações<br />
escolares e educacionais como um todo. Enfim, pessoas e instituições que<br />
acreditam que “um mundo melhor é possível” e que possam contribuir para uma<br />
educação intercultural e, por conseguinte, para a construção do currículo<br />
intertranscultural.<br />
Reafirmamos: o currículo intertranscultural pressupõe a educação<br />
intercultural, não prescinde dela e, diríamos mesmo, como a própria expressão que<br />
estamos criando o demonstra fisicamente ao fundir a interculturalidade e a<br />
transculturalidade (intertrans) fazendo de ambas mais do que a soma de suas<br />
características. No entanto, é oportuno esclarecer que, se algo temos para<br />
contribuir, ensinar ou aprender neste processo,<br />
o que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além<br />
das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e focalizar aqueles momentos ou<br />
processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses ‘entre-<br />
lugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular<br />
ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de<br />
colaboração e contestação, no ato de definir a própria idéia de sociedade. (Bhabha,<br />
1998:20).<br />
232
No compasso do que estamos afirmando, os vários espaços<br />
intertransculturais acima referidos são os locais privilegiados para a realização dos<br />
Círculos de Cultura na perspectiva intertranscultural. Onde acontecem as<br />
experiências das trocas intertransculturais, onde as pessoas se reunem<br />
intencionalmente, como seres humanos aprendentes e ensinantes que são e que,<br />
nesse movimento, dão a este lugar o sentido de “o lugar” e não de “qualquer lugar”.<br />
Trata-se de um lugar privilegiado porque pessoas, sujeitos individuais e coletivos 80<br />
autores e atores, que se organizam, relacionam-se, contextualizam-se, trocam<br />
experiências “inter/multiculturais críticas” (Stoer), aprendem e ensinam culturas<br />
diferentes, reaprendem as suas próprias culturas, aprendem e reconstroem<br />
conhecimentos com base na totalidade dos seus saberes, incluindo-se aí,<br />
necessariamente, os conhecimentos científicos acumulados historicamente, levando<br />
em consideração todas as manifestações das suas humanidades. O Círculo de<br />
Cultura é, para nós, este lugar “de exploração coletiva do sentido da experiência<br />
vivida” (Galvani, 2000:10), onde se criam novos “entre-lugares” (Bhabha), novos<br />
textos, contextos e meta-contextos, tornando o currículo da escola mais significativo<br />
para alunos, professores e demais pessoas envolvidas diretamente ou envolvidas<br />
potencialmente. Apenas para destacar o caráter transcultural do Círculo de Cultura,<br />
de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, estamos comparando-o ao “Círculo de palavra transcultural” (ib.), de<br />
acordo com o professor Pascal Galvani, quando este se refere às diferentes<br />
abordagens de autoformação.<br />
233<br />
Os Círculos de Cultura são dinâmicos e funcionam de diversas formas, para<br />
diversos fins: são salas de aula, palcos, lugares de estudos, de encontro, de<br />
pesquisa, de realização de eventos populares e comunitários dos mais variados, de<br />
reuniões, de confraternização, de transcendência, de decisões coletivas e de<br />
organização dos diferentes trabalhos da escola. Eles são, assim, intertransculturais.<br />
Até porque é justamente nestas ocasiões citadas em que as pessoas buscam<br />
aprender, ensinar, reconhecer as suas subjetividades, objetividades, os seus traços<br />
multiculturais ou, pelo menos, evidenciar as condições contextuais em que se<br />
encontram e o nível das relações pessoais, intrapessoais, interpessoais e grupais<br />
que permanentemente estabelecem no encontro e no confronto de suas posições,<br />
diferenças e interesses. Neste processo, surgem questões eventualmente nunca<br />
80 A respeito de “sujeitos coletivos”, ver o livro de Jair Militão da Silva, intitulado A autonomia da<br />
escola pública: a reumanização da escola (1996).
pensadas ou imaginadas pelos sujeitos que participam deste círculo, que colocam<br />
em dúvida as suas próprias identidades. Afinal, quem somos?<br />
Conforme exemplo que nos apresentam os professores Reinaldo Matias<br />
Fleuri e Maria Izabel Porto de Souza,<br />
o que significaria ser brasileiro, ou ser sulista, gremista ou corintiano, nordestino, branco,<br />
negro, índio, homem, mulher, criança, idoso, militante, camponês, sem-terra, estudante,<br />
operário, classe média...? Cada uma destas identidades assumiria significados<br />
específicos conforme os sujeitos, as relações sociais e os contextos históricos em que se<br />
colocam? Mais do que isso, cada identidade desta não seria híbrida, deslizante,<br />
possibilitando a coexistência de identidades contraditórias? (Fleuri & Souza, 2002: 3).<br />
Na verdade, quando nos deparamos com um grupo em que questões como<br />
estas são apresentadas e, para muitas pessoas, são pela primeira vez desveladas,<br />
cria-se, como nos dizem aqueles autores, perturbações e deslocamentos dos eixos,<br />
das tendências estáveis e unificantes, antes trazidos pelas pessoas. Descobre-se<br />
que, muitas vezes, as nossas análises são quase sempre dicotômicas, uma coisa ou<br />
outra, ou seja, que as lógicas que utilizamos para explicar, por exemplo, as nossas<br />
relações culturais, são binárias,<br />
(índio x branco, centro x periferia, dominador x dominado, sul x norte), que não permite<br />
compreender a complexidade dos agentes e das relações subentendias em cada pólo,<br />
nem a reciprocidade das inter-relações, nem a pluralidade e a variabilidade dos<br />
significados produzidos nestas relações” (Fleuri & Souza, 2002:4).<br />
234<br />
Devido à intensa variabilidade de informações levantadas e à dificuldade de<br />
lidar com os conflitos que podem surgir nesse processo, podem surgir<br />
entendimentos mobilizantes ou imobilizantes, sem que saibamos como sair deles.<br />
Mas é aí que se dá a riqueza do Círculo de Cultura, uma vez que a partir deste<br />
momento os sujeitos percebem a complexidade da relação entre culturas, a<br />
diferença dentro da diferença, e começam, então, um trabalho permanente de nova<br />
percepção sobre as suas próprias identidades pessoais e grupais. Evidenciam-se<br />
também as relações que diferentes pessoas e grupos estabeleciam entre si, muitas
vezes de mando e desmando, de dominação e submissão ou então de relações<br />
dialógicas, compartilhadas e solidárias.<br />
Como vemos neste exemplo, o Círculo de Cultura na perspectiva<br />
intertranscultural representa um novo espaço de encontro e de relações humanas.<br />
Estaremos, aí, reconhecendo que a nossa identidade é, na verdade, plural, e que a<br />
complexidade da relação entre as culturas está presente em qualquer grupo social,<br />
porque a diferença mais evidente esconde outras diferenças não tão evidentes<br />
assim, que só aparecem num encontro e no estabelecimento de relações mais<br />
profundas. Isso é muito comum na escola, onde verificamos resistências de toda<br />
ordem a determinados projetos ou propostas, de diferentes grupos, e não<br />
conseguimos efetivamente localizar os seus porquês. Neste processo, surgem os<br />
desafios para a própria compreensão das relações educativas e humanas, à medida em<br />
que nos movem a investigar com mais atenção os possíveis intervalos, fronteiras<br />
culturais, margens deslizantes que perpassam as classificações e análises polarizadas<br />
(Feuri & Souza, 2002: 8).<br />
Ao voltarmos o nosso olhar para a nossa identidade – que está sempre em<br />
processo – e para as identidades dos outros sujeitos e grupos com os quais<br />
convivemos, estamos estabelecendo e revisando quais são os desejos dos mesmos<br />
em relação às suas próprias expectativas diante do processo educacional do qual<br />
participam, mas, agora, levando-se em conta as suas origens culturais e as relações<br />
que, com base nelas, se estabelecem. Nesse diálogo, cada pessoa tem papel<br />
importante, já que traz uma herança cultural significativa, experiências e práticas,<br />
valores, características e formação específica para o exercício de suas funções, o<br />
que fazem com base nas identidades que também assumem, agora, de forma<br />
diferenciada. Estamos no contexto de uma educação intercultural, na qual as<br />
relações se estabelecem entre pessoas concretas, de forma também muito<br />
perceptíveis. Conforme escreve o professor Reinaldo Matias Fleuri no artigo<br />
intitulado Desafios à educação intercultural no Brasil (2001d:55-56), relações que se<br />
dão<br />
235
entre sujeitos que decidem construir contextos e processos de aproximação, de<br />
conhecimento recíproco e de interação. Relações que produzem mudanças em cada<br />
indivíduo, favorecendo a consciência de si e reforçando a própria identidade. Sobretudo,<br />
[que] promovem mudanças estruturais nas relações entre grupos. Estereótipos e<br />
preconceitos – legitimadores de relações de sujeição ou de exclusão – são<br />
questionados, e até mesmo superados, na medida em que sujeitos diferentes se<br />
reconhecem a partir de seus contextos, de suas histórias e de suas opções.<br />
Portanto, estamos afirmando que as trocas intertransculturais, que<br />
acontecem nos Círculos de Cultura, podem contribuir para alterar significativamente<br />
as práticas educativas nas escolas e nos demais espaços de formação humana. O<br />
que objetivamos aqui, pressupondo que nas trocas intertransculturais a<br />
multiculturalidade é elemento fundamental que deve ser considerado em qualquer<br />
ação educacional, é tentar perceber quais as características e diferenças de um<br />
currículo intertranscultural para outro que é predominantemente monocultural, sem,<br />
no entanto, dicotomizá-los nem, muito menos, criar uma polarização negadora de<br />
parte a parte.<br />
É com base nestas distinções e, mais do que isso, nestas aproximações e<br />
encontros identitários, nestes contextos e nestes “entre-lugares” (Bhabha) que, aos<br />
poucos, a escola poderá distinguir e construir o seu currículo numa perspectiva<br />
intertranscultural, conforme veremos mais adiante. Mas é importante que cada<br />
sujeito, ao perceber a sua identidade e ao se relacionar com outras pessoas, saiba<br />
que<br />
os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem<br />
consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e<br />
modernidade, realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o<br />
baixo, assim como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento e progresso.<br />
(Bhabha, 1998:21).<br />
236<br />
São justamente estes riscos, presentes no “interculturalismo como projeto<br />
ético e político” (Cortina, 1997:1987), que a intertransculturalidade se propõe a<br />
enfrentar, considerando, para isso, a possibilidade da articulação das diferentes<br />
identidades culturais, que buscam fundamentos e explicações não binárias nem
dicotômicas, em nenhum sentido, oferecendo um certo conforto e um espaço-tempo<br />
ampliado para a negociação e o enfrentamento das dificuldades e dos impasses que<br />
podem surgir nos encontros e nas relações interculturais.<br />
Ao pensarmos na figura do/a professor/a para percebermos claramente o que<br />
se altera em termos de sua formação, de sua atuação, quando se mostra a<br />
possibilidade do enfrentamento de tais desafios que, de forma tão marcante, estará<br />
alterando práticas e convidando à reflexão sobre elas.<br />
Como já analisamos, as características principais de um currículo intercultural,<br />
podemos começar por tentar reunir as de um currículo monocultural. A escola<br />
chamada “tradicional”, como sabemos, cria mecanismos muito objetivos e concretos<br />
para manter o predomínio de uma cultura chamada letrada, ou de elite, criando um<br />
currículo em que os alunos podem pouco contribuir para a sua definição. Neste<br />
contexto, as experiências de vida dos discentes não são consideradas para a<br />
construção do currículo.<br />
É pertinente anotarmos que, nos anos 80 e 90, travou-se um debate entre o<br />
monoculturalismo e o multiculturalismo no campo das relações sociais e<br />
intergrupais, e, especificamente, em relação aos movimentos sociais, no contexto da<br />
globalização. De um lado, a visão essencialista, igualitária do monoculturalismo<br />
corre o risco de legitimar a dominação de um projeto civilizatório frente às minorias<br />
culturais. De outro lado, o multiculturalismo,<br />
ao enfatizar a historicidade e o relativismo inerentes à construção das identidades<br />
culturais, permite pensar alternativas para as minorias; mas também pode justificar a<br />
fragmentação ou criação de guetos culturais que reproduzem desigualdades e<br />
discriminações sociais. Coloca-se, pois, no contexto de globalização, o desafio de se<br />
promover, em nível de pesquisa social e das práticas educacionais, a construção de<br />
identidades particulares e ao mesmo tempo a abertura e respeito à diferença (Fleuri,<br />
1998:11).<br />
237<br />
Na perspectiva de uma educação monocultural, o processo de aprendizagem<br />
subordina-se ao de ensino. Há,. Geralmente, uma única abordagem cultural – a<br />
dominante. O sujeito que opera com o conhecimento também é único: o professor,<br />
ou um suposto “especialista” em educação, que determina quais conhecimentos são<br />
mais ou menos importantes e, por conseguinte, o que o aluno deve aprender. Se
não for o professor, o sujeito mais importante do processo passa a ser a direção da<br />
instituição educacional, que define sua política. No extremo da centralização desse<br />
processo, os parâmetros curriculares a serem cumpridos pelas escolas – ou que<br />
servirão de referência, geralmente única, para o trabalho dos alunos e dos<br />
professores, são pensados e definidos por um grupo geralmente pequeno de<br />
grandes intelectuais e especialistas. Esta prática caracteriza, por exemplo, o<br />
tecnicismo educacional que esteve presente no Brasil, de forma marcante, nos anos<br />
setenta e subseqüentes e que, se prestarmos atenção, continua presente entre nós.,<br />
Como afirma a professora Ana Maria Saul,<br />
a tradição educacional brasileira, em torno do currículo, é presidida pela lógica do<br />
controlo técnico. O currículo tem sido tratado, inspirado no paradigma técnico-linear de<br />
Ralph Tyler (1949), como uma questão de decisão sobre objectivos a serem atingidos,<br />
‘grades curriculares’ que definem as disciplinas, tópicos de conteúdos, carga horária,<br />
métodos e técnicas de ensino e avaliação de objectivos preestabelecidos (Saul,<br />
1998:153).<br />
Apenas neste exemplo, já podemos elencar várias características de um<br />
currículo monocultural, quais sejam:<br />
1. Tem por referência um paradigma técnico-linear<br />
2. É objetivista<br />
3. Trabalha com a noção de “grades curriculares”<br />
4. Trabalha com disciplinas e conteúdos isolados uns dos outros (tópicos)<br />
5. Trabalha com carga horária fixa<br />
6. Utiliza técnicas específicas de ensino<br />
7. Avalia os objetivos pré-estabelecidos<br />
238<br />
Essas características nos oferecem a possibilidade de reafirmar que, neste<br />
caso, a cultura não é considerada em sua multiplicidade, já que os conhecimentos a<br />
serem aprendidos pressupõem uma concepção “única” ou “universalista” de cultura<br />
e, por conseguinte, de currículo. Esta visão monocultural de cultura, tende a<br />
conservar as tradições culturais e a negar o conflito racial, étnico, de gênero, sexual.
Por outro lado, além de não assumir outros conflitos relacionados com o<br />
preconceito, com a exclusão cultural e com a desigualdade social presente na<br />
sociedade e na escola, tem a tendência de enfatizar o que é comum, universal,<br />
secundarizando a diferença cultural, como estudamos anteriormente (Bhabha), e<br />
considerando-as como problemas que, além de não serem enfrentados, não são<br />
pensados e assumidos como riqueza da própria humanidade.<br />
Um olhar monocultural, na verdade, não apenas nega, mas é efetivamente<br />
indiferente à diferença, o que é uma atitude ideológica e intencional de<br />
homogeneização cultural. Conforme afirma Michael Apple, “o neoliberalismo cria<br />
políticas e práticas que encarnam o homem de negócios empreendedor,<br />
constantemente ocupado com suas estratégias a partir do individualismo possessivo<br />
que estabele como o cidadão ideal”. (2003:242). Cria-se uma cultura individualista,<br />
universalista e competiviva, preconizando valores de uma cultura hegemônica, onde<br />
aparentemente não há espaços para negociações e, sequer, para hibridismos. As<br />
particularidades do ser humano (Geertz) são deixadas de lado, criando-se, desta<br />
forma, uma visão única de cultura, como se existisse apenas essa bipolaridade entre<br />
cultura universal e particular e tivéssemos de fazer uma única escolha.<br />
Um currículo monocultural privilegia, portanto, a homogeneização cultural e<br />
tem dificuldade para assumir a heterogeneidade. Procura enfatizar a necessidade de<br />
que todas pessoas aprendam a conviver consensualmente na sociedade e, por<br />
conseguinte, na escola, o que exige a aceitação e a assimilação de uma única<br />
matriz cultural. Em suma, um currículo monocultural geralmente propõe uma<br />
organização curricular que sirva a todos. Neste aspecto, tende a desconsiderar a<br />
desigualdade social e a manter o status quo. Há um descompasso entre cultura<br />
escolar e cultura social.<br />
Dependendo da perspectiva curricular que uma escola assume, as suas<br />
práticas, as suas experiências, o seu fazer e pensar cotidianos são completamente<br />
diferentes. Por isso, na ótica do professor Gimeno Sacristán,<br />
os currículos são a expressão do equilíbrio de interesses e forças que gravitam sobre o<br />
sistema educativo num dado momento, enquanto que através deles se realizam os fins<br />
da educação no ensino escolarizado (Sacristán, 1998:17).<br />
239
Além de ser um espaço para o estabelecimento de relações humanas<br />
criativas, enriquecedoras e de reconstrução permanente de conhecimentos,<br />
segundo a professora Vera Maria Candau,<br />
as nossas salas de aula, onde pretensamente se ensina e se aprende, deveriam ser<br />
espaços de lidar com o conhecimento sistematizado, construir significados, reforçar,<br />
questionar e construir interesses sociais, formas de poder, de vivências que têm<br />
necessariamente uma dimensão antropológica, política e cultural. (Candau, 2000b:47).<br />
Completando a sua reflexão, que confirma e amplia o que vínhamos até aqui<br />
defendendo, ela recorre também ao Professor Gimeno Sacristán, para nos mostrar<br />
que a cultura escolar apresenta um caráter monocultural.<br />
A cultura dominante nas salas de aula é a que corresponde à visão de<br />
determinados grupos sociais: nos conteúdos escolares e nos textos aparecem poucas<br />
vezes a cultura popular, as subculturas dos jovens, as contribuições das mulheres à<br />
sociedade, as formas de vida rurais, e dos povos desfavorecidos (exceto os elementos<br />
de exotismo), o problema da fome, do desemprego ou dos maus tratos, o racismo e a<br />
xenofobia, as conseqüências do consumismo e muitos outros temas e problemas que<br />
parecem “incômodos”. Consciente e inconscientemente se produz um primeiro<br />
velamento que afeta os conflitos sociais que nos rodeiam quotidianamente (Sacristán,<br />
1995: 97).<br />
240<br />
A professora Vera Maria Candau, que tem coordenado diversas pesquisas<br />
relacionadas ao tema da interculturalidade e da violência escolar, considera que “a<br />
cultura escolar predominante nas nossas escolas se revela ‘engessada’, pouco<br />
permeada ao contexto em que se insere, aos universos culturais das crianças e<br />
jovens a que se dirige e a multiculturalidade das nossas sociedades” (Candau,<br />
2000b:53). Nesse sentido, deparamo-nos com uma cultura escolar com as seguintes<br />
características apontadas por ela: padronizada, ritualística, formal, pouco dinâmica e<br />
mera transmissora de conteúdos. Mas não é possível generalizar o alcance desta<br />
afirmação, até porque nos deparamos, muitas vezes, com professores e professores
que, mesmo submetidos a propostas curriculares centralizadoras, procuram, nas<br />
suas práticas cotidianas, alterar este processo e desafiar as políticas educacionais<br />
que pressionam para que as escola sigam determinados parâmetros curriculares, o<br />
que reforçaria uma perspectiva monocultural de currículo. De qualquer forma, é<br />
possível reconhecer ainda hoje, nas nossas escolas, diríamos mesmo de forma<br />
predominante, a capacidade de não perceber ou de não querer assumir a existência<br />
da diversidade cultural. A esta prática, os professores Stephen Stoer e Luiza<br />
Cortesão chamam de “daltonismo cultural”, que<br />
dificulta a percepção da diversidade (ao contrário do daltonismo que pode afetar a visão<br />
e que é hereditário), é essencialmente adquirido através de uma socialização muito<br />
freqüentemente etnocêntrica e uniformizante (Stoer & Cortesão, 1999:78).<br />
Esta imagem sugere que os professores, culturalmente daltônicos,<br />
desenvolvem, então, esta cegueira em relação às questões relacionadas à cultura,<br />
como resultado mesmo de um processo cultural do qual participam, razão de, por<br />
exemplo, negarem-se, muitas vezes, a desenvolver um trabalho pedagógico<br />
utilizando, por exemplo, a metodologia da “leitura do mundo” que, segundo <strong>Paulo</strong><br />
<strong>Freire</strong>, permite pesquisar o universo escolar dos estudantes para, a partir dele,<br />
definir o currículo da escola numa perspectiva interdisciplinar. Nesse sentido, torna-<br />
se possível realizar estudos relacionados a uma visão de totalidade do<br />
conhecimento, porque situações significativas são desveladas pela própria<br />
comunidade escolar no processo de investigação da realidade, o que permite definir<br />
“temas geradores” de toda a ação curricular, ampliando, assim, o universo cultural<br />
dos alunos e das alunas. É nesse sentido que, em Pedagogia da Esperança, <strong>Freire</strong><br />
nos fala que<br />
241<br />
a tensão necessária permanente, entre as culturas na multiculturalidade é de natureza<br />
diferente. É a tensão a que se expõem por ser diferentes, nas relações democráticas em<br />
que se promovem. É a tensão de que não podem fugir por se achar construindo, criando,<br />
produzindo a cada passo a própria multiculturalidade que jamais estará pronta e<br />
acabada. A tensão, neste caso, portanto, é a do inacabamento que se assume como<br />
razão de ser da própria procura e de conflitos não antagônicos e não a criada pelo medo,<br />
pela prepotência, pelo ‘cansaço existencial’, pela ‘anestesia histórica’ ou pela vingança
que explode, pela desesperação ante a injustiça que parece perpetuar-se (<strong>Freire</strong>,<br />
1994b:156).<br />
Mesmo a “tensão” a que se refere <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> pode ser compreendida como<br />
resultado da própria forma com que os alunos têm, numa abordagem curricular<br />
monocultural, desenvolvido os seus estudos curriculares. Ou seja, diante de um<br />
espaço delimitado e esquadrinhado, da composição e da recomposição exterior ao<br />
aluno, que pretende adequar até mesmo os seus gestos e atitudes, e submetidos a<br />
um “olhar hierárquico” (Foulcault: 1977:158), procura-se, segundo nos lembra Fleuri<br />
(1996), sob comando centralizado, estabelecer a seriação dos atos e a acumulação<br />
de forças individuais sobre todo o grupo de alunos, o que gera, assim, uma anti-<br />
disciplina, justificando também a tensão a que se refere <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>. Assim,<br />
consolida-se uma cultura disciplinar e, ao mesmo tempo, anti-disciplinar, que gera o<br />
conflito a ser enfrentado no círculo intertranscultural.<br />
Como vimos, se nos lançarmos cuidadosamente a este desafio, é possível<br />
identificarmos alguns indicadores da presença do currículo monocultural nas nossas<br />
escolas. Constatamos que este monoculturalismo apresenta uma “visão<br />
essencialista acerca da identidade dos sujeitos coletivos. Os negros, índios e demais<br />
minorias têm suas identidades determinadas objetivamente numa realidade<br />
específica. (Scherer Warren, 1998:32). E a referida perspectiva curricular não abre<br />
espaços para que as diferentes cores da realidade possam ser enxergadas.<br />
Contudo, é necessário alertarmos que, concretamente falando, esta<br />
caracterização do currículo monocultural não se apresenta, assim, em estado tão<br />
puro, até porque a realidade é dinâmica e complexa e, até mesmo, porque a<br />
proclamação – digamos “oficial” – de um currículo escolar monocultural, não<br />
conseguiria, na sua totalidade, garantir a homogeneização cultural pretendida. Pois,<br />
se assim fosse, acreditaríamos na possibilidade de colocarmos, de um lado, o<br />
currículo monocultural e, do outro lado, um currículo “alternativo”, que poderia ser o<br />
intercultural, o Inter/multicultral (Stoer & Cortesão, 1999) ou o intertranscultural,<br />
conforme estamos aqui propondo. Estaríamos diante de uma lógica binária, que nos<br />
impediria de entender a relação complexa entre as diferentes perspectivas.<br />
242<br />
Nesse sentido, o currículo intertranscultural tem por referência um “um<br />
projeto educativo complexo que deve considerar como correlacionadas (pensar
contemporaneamente) tanto a diferenciação das identidades quanto as estruturas de<br />
conexão (os contextos comunicativos)” (Severi, Zenelli, 1990:39). Trata-se, como<br />
nos ajuda novamente o Prof. Fleuri (1999), referindo-se a Edgar Morin, de<br />
considerarmos complexidades que são tecidas conjuntamente e que nos desafiam a<br />
trabalhar com as incertezas e com um pensamento multidimensional baseado no<br />
diálogo, que “significa que duas lógicas, duas ‘naturezas’, dois princípios são<br />
coligados em uma unidade sem que com isto a dualidade se dissolve na unidade”<br />
(Morin, 1985:57). Não queremos dizer, com isso, que não haja diferenças enormes<br />
entre uma perspectiva e outra, nem muito menos que elas sejam entre si, na maioria<br />
dos casos, antagônicas. O que estamos afirmando é que um currículo<br />
intertranscultural também não existe, enquanto perspectiva curricular, em estado<br />
puro, como acontece com o monocultural. Nesse sentido, estamos defendendo que<br />
“pensar o currículo em termos de hibridação contribui para analisar a complexidade<br />
dos processos de produção culturais, políticos e sociais que o configuram” (Dussel,<br />
2002:57).<br />
Se estamos interessados em construir um currículo intertranscultural, os<br />
nossos postulados também precisam levar em consideração o caráter de abertura<br />
de dimensão “trans”. A esse respeito, é mais do que oportuno esclarecer, o que<br />
propositadamente não fizemos até agora, o significado, para nós, de “transcultural”<br />
e, depois, de intertranscultural. A este respeito, O professor Reinaldo Matias Fleuri<br />
explica que o termo<br />
transcultural faz referência a elementos culturais comuns, aos chamados ‘traços universais’, aos<br />
‘valores permanentes’ nas diferentes culturas. Ou seja, a perspectiva transcultural identifica<br />
estruturas semelhantes de relação social ou de interpretação em culturas diferentes sem que<br />
estas culturas interajam entre si (Fleuri, 2001d:51).<br />
Fleuri faz menção, ainda, à relação intercultural, que indicaria uma situação em que<br />
pessoas pertencentes a culturas diferentes interagem. Portanto, a interação é<br />
pressuposto desta relação.<br />
Encontramos também outra definição de transculturalidade apresentada pelo prof.<br />
João Viegas Fernandes.<br />
243
A transculturalidade engloba a multiculturalidade e a interculturalidade visa o<br />
enriquecimento cultural dos membros das culturas em presença, através da superação e<br />
da construção de um patrimônio cultural comum. Sendo impossível o estabelecimento de<br />
uma moral universal, é contudo necessário desenvolver um tronco que seja comum a<br />
todas as morais (Fernandes, 2001:108).<br />
Há uma contradição fundamental entre as duas definições. Enquanto para o<br />
professor Fleuri a transculturalidade não pressupõe interação entre as culturas,<br />
bastando que haja a identificação de estruturas semelhantes entre elas, o professor<br />
Fernandes é explícito ao afirmar a necessidade de se construir um patrimônio<br />
cultural comum para que se configure a transculturalidade.<br />
Em relação à interculturalidade os autores não discordam, pois a<br />
intencionalidade e a interação são fatores comuns para ambos. No entanto, a<br />
diferenciação já mencionada no que se refere à transculturalidade, nos exige uma<br />
postura bem específica na determinação do termo ‘intertransculturalidade”. Ou seja,<br />
é recomendável juntarmos as duas dimensões como forma de assegurarmos tanto<br />
as interações, como a intencionalidade, como a existência de espaços para trocas<br />
culturais e, ao mesmo tempo, de uma relação mútua que permita o reconhecimento<br />
de elementos patrimoniais comuns, bem como os seus traços universais que podem<br />
contribuir para aproximar e mais identificar as culturas. No encontro intercultural não<br />
necessariamente se dá a transculturalidade.<br />
Várias são as explicações para o significado da palavra transculturalidade.<br />
Comecemos pelo prefixo “trans”. Etimologicamente, trans significa aquilo que<br />
está ao mesmo tempo, entre, através ou além de, geralmente remetendo à<br />
idéia de transcendência<br />
O caráter principal da transculturalidade, segundo definição de Duccio<br />
Demetrio (1997), faz referência a elementos culturais comuns, aos chamados<br />
traços universais entre as culturas. Desta forma, “é transcultural tudo aquilo – das<br />
idéias aos sentimentos, às emoções, às formas da criatividade – que nos pertence<br />
como espécie humana”. (ib.:40). Nesse sentido, independentemente das suas<br />
origens e proveniências, as pessoas sonham, sofrem, alegram-se, desejam... Esta<br />
seria, segundo Demétrio, uma dimensão universal que caracterizaria as pessoas.<br />
244
No entanto, o mesmo autor adverte para o risco de se cair no formalismo ao<br />
ser considerar esta universalidade, já que dependendo, por exemplo, do “lugar” ou<br />
do “olhar da ciência” a partir do qual o observador se coloca, estas considerações<br />
universais podem se tornar por demais abstratas, porque dependentes de variáveis<br />
psicológicas que vão desde os campos do desenvolvimento, da percepção, da<br />
cognição, da personalidade, da crença e dos valores.<br />
Por outro lado, conforme Petracchi (1994), ‘pesquisas transculturais’ parecem<br />
hoje atestar que ‘o pensamento humano se manifesta por meio de processos que<br />
não variam nos diferentes contextos culturais. (ib.).<br />
Por sua vez, o Físico Basarab Nicolescu afirma que o transcultural “designa a<br />
abertura de todas as culturas para aquilo que as atravessa e as ultrapassa”<br />
(2000:145). Para ele,<br />
o multicultural e o intercultural não garantem sozinhos a comunicação entre todas as<br />
culturas, o que pressupõe uma linguagem universal fundada em valores compartilhados,<br />
mas certamente são um passo em direção ao advento da comunicação transcultural.<br />
(ib.).<br />
Podemos inferir que o transcultural é uma forma de comunicação que<br />
ultrapassa, que vai além daquela possível no âmbito das relações que se<br />
estabelecem no nível do multiculturalismo e da interculturalidade.<br />
Nicolescu, que vê na linguagem transcultural um dos principais aspectos para<br />
se alcançar o que ele considera uma pesquisa transdisciplinar, justamente por<br />
permitir o diálogo entre todas as culturas e, por outro lado, por impedir a sua<br />
homogeneização. Ele considera que a percepção que atravessa e transcende as<br />
culturas é, em primeiro lugar, “uma experiência que não pode ser reduzida à teoria,<br />
contudo, ela é rica como ensinamento para nossas vidas e para nossas ações no<br />
mundo” (ib.:146).<br />
245<br />
Temos considerado a diferença, mais do que a diversidade, um fator fundante<br />
para o estudo do currículo da escola na perspectiva intertranscultural. Como vimos<br />
anteriormente, a intertransculturalidade nasce no contexto da educação intercultural,<br />
esta, que por sua vez, envolve sempre sujeitos concretos, também em contextos
em concretos. Nesse sentido, Maria Izabel Porto de Souza (2002), que participou e<br />
acompanhou em sua pesquisa intitulada Construtores de Pontes: explorando<br />
limiares de experiências em educação intercultural, ao ser perguntar sobre como<br />
caracterizar tais experiências, considera que o melhor caminho para isso é utilizar o<br />
conceito de itinerário. Ao compreendermos este caminho feito por Maria Izabel,<br />
pretendemos dispor de maiores elementos para nos ajudar a consolidar o que<br />
chamaremos de currículo intertranscultural.<br />
Em primeiro lugar, o itinerário, segundo ela, é esta espécie de percurso<br />
eventualmente adotado durante a experiência, e que serve para “pensar, propor,<br />
produzir e dialogar com várias modalidades do conhecimento, fundado na relação<br />
intencional entre sujeitos de diferentes culturas” (Souza, 2002). As escolhas feitas<br />
por esses sujeitos, que envolvem a construção de contextos inéditos de<br />
aproximação, reciprocidade e interação, acabam gerando mudanças em cada um<br />
deles. E como estão em relação – na experiência que vivenciam – se reconhecem a<br />
si mesmos, em suas múltiplas identidades e, ao fazê-lo, se vêem reconhecidos pelos<br />
outros, o que dá satisfação e reforça a própria identidade pessoal. No mesmo<br />
movimento, os outros sujeitos, que também, por sua vez, percebem-se reconhecidos<br />
em suas identidades e reconhecem-nas igualmente, sentem-se fortalecidos e<br />
ressignificados no contexto e na relação, mais do antes, porque, agora, já criaram<br />
meta-contextos, frutos das relações estabelecidas no grupo.<br />
Por mais estranhamento e confusão que possa nos trazer este verdadeiro<br />
emaranhado relacional, contextual e comunicativo, consideramos que este<br />
movimento é extremamente fértil porque permite o encontro, estabelece a relação,<br />
reconhece os conflitos, os estranhamentos e exigem dos sujeitos em relação e em<br />
contexto, o enfrentamento das suas próprias descobertas. Estas descobertas são<br />
fruto das interações entre as pessoas ou, então, naturalmente surgidas em função<br />
das diferenças culturais existentes entre todos os sujeitos, síntese, inclusive, do<br />
enfrentamento da própria pessoa consigo mesma, em seus limites e nas suas<br />
potencialidades pessoais.<br />
A partir das experiências de educação intercultural relatadas por Maria Izabel<br />
Porto de Souza e também daquelas que pudemos registrar no primeiro capítulo<br />
deste trabalho, tornam-se possíveis algumas inferências.<br />
246
Em primeiro lugar, que os contextos culturais geram, por suas vez, meta-<br />
contextos, que são resultado dos enfrentamentos, dos conflitos e das aproximações<br />
pessoais, interpessoais e grupais. Desta forma, cruzam-se experiências, cingem-se<br />
culturas, criam-se novas formas de relacionamento e de superação dos problemas,<br />
recorrendo a diferentes manifestações e expressões do conhecimento humano –<br />
científico, cultural, religioso, simbólicos, imaginativos etc.<br />
Em segundo lugar, verificamos a possibilidade de, no Círculo de Cultura, se<br />
realizar uma verdadeira recriação comunicativa, quando o diálogo aberto e<br />
aprofundado sobre os problemas apresentados, o enfrentamento dos desafios e dos<br />
paradoxos percebidos, permite a busca da superação dos limites próprio contexto<br />
criado para o encontro entre as pessoas. Nesse sentido, também a dificuldade<br />
comunicacional dos sujeitos em relação vai sendo superada quando eles recorrem<br />
as diferentes linguagens e símbolos para se fazerem entender. E, ao fazê-lo, criam<br />
novas formas de se comunicar entre si, estabelecendo verdadeira interação<br />
transcultural. Estamos diante de um processo de educação intercultural, no qual se<br />
estabelece intensa comunicação e diálogo, que nos leva à intertransculturalidade.<br />
O “intercultural” cria as situações espaciais e temporais, concretas e<br />
específicas, para o encontro das diferentes pessoas e das diferentes culturas. Sem<br />
nos esquecermos de que, neste encontro, estabelecem-se novas relações,<br />
descobertas, diferenças e conflitos, negociadas, desenvolvidas e ampliadas, na<br />
integração das diferentes ou coincidentes experiências concretas e relacionais.<br />
A dimensão “transcultural”, por sua vez, permitiu os diferentes níveis e as<br />
várias formas de diálogo, recorrendo, quando necessário, às suas<br />
multidimensionalidades simbólicas, com o qual foram capazes de se comunicar –<br />
seja diante das novas situações e consigo mesmo, seja com os diferentes sujeitos e<br />
grupos participantes das experiências vivenciadas. Ou, ainda, diante das<br />
dificuldades e dos conflitos, nem todos resolvidos, mas de qualquer maneira<br />
enfrentados e evidenciados na relação.<br />
247<br />
Todo este movimento é extremamente pedagógico. Ao procurar reconhecer<br />
os valores coincidentes, as diferenças, as particularidades e as universalidades<br />
existentes nas diferentes culturas – mesmo que sejam significativamente parciais – o<br />
processo de educação cultural e de relação intertranscultural está consumado,
mesmo temporariamente, porque em si, ele é sempre processual e depende da<br />
intencionalidade dos sujeitos. Assim, não há sujeito intertranscultural que não queira<br />
sê-lo, porque só o é quem intencionalmente e, profundamente, aceita o desafio da<br />
relação. O sujeito intertranscultural é, portanto, um sujeito educado, porque só pode<br />
ser considerado educado quem consegue ultrapassar a sua primeira cultura (Serres,<br />
1993).<br />
O importante é que se torna possível a convivência e a interconexão das<br />
pessoas, das culturas, das culturas com as ciências, utilizando como recursos para<br />
as mesmas, diferentes conhecimentos, saberes, signos e símbolos, sempre em<br />
relação de aprendizagem. Por isso é que consideramos a relação intertranscultural,<br />
eminentemente aprendente. Ela é simplicidade e complexidade, é movimento, é<br />
troca, é híbrida, é mestiça, é “entre-lugar, é “lugar trágico”. Segundo Michel Serres,<br />
do lado da engrenagem, onde o singular toma o lugar do ciclo universal e uniforme, a dor<br />
local grita sua estória. Desde que nasceu, a literatura lamenta a miséria e o sofrimento. A<br />
ciência ainda não aprendeu a linguagem desse soluço. Neste lugar trágico começa a<br />
razão instruída com mestiçagem.<br />
O sofrimento e a desgraça, a dor, a injustiça e a fome se encontram no ponto<br />
onde o global toca o local, o universal o singular, a ciência a cultura, a potência a<br />
fraqueza, o conhecimento a cegueira, ou o próprio Deus a sua encarnação (...) A ciência<br />
encontra a cultura quando ela se encarna e descobre ou produz dor, mal e pobreza.<br />
Esse tempo não acaba, pois traz consigo o mundo e a história (...) eis o segredo do<br />
conhecimento: ele funciona como o mundo (...) O conhecimento nos vem pelo patético e<br />
pela razão, inseparáveis, ambos universais, um no foco na ciência e a outra no das<br />
culturas; nós pensamos porque eu sofro e porque assim é.<br />
Então o ápice do universal atinge o singular, aqui ou ali, tal herói ou este<br />
exemplo; aquele da abstração é lido e é visto na paisagem, o do saber se debruça sobre<br />
o concreto; o ápice da crítica ou da teoria, na narrativa; o do monoteísmo, no regime do<br />
espírito e da vida do encarnado; o ápice da ciência chega ao conhecimento da fraqueza<br />
e da fragilidade. (Serres, 1993:84-85). Grifos nossos.<br />
248<br />
Diríamos que a ciência encontra a cultura, e esta àquela, quando elas<br />
também descobrem ou produzem prazer e alegria, satisfação no encontro, na<br />
descoberta instituinte, nas suas energias criativas e criadoras, superadoras dos
preconceitos, das desigualdades, da exclusão. Geradoras do currículo<br />
intertranscultural.<br />
Há autores que consideram, por exemplo, o símbolo como a fonte de todo o<br />
conhecimento humano. Desse ponto de vista,<br />
as representações epistêmicas científicas, as representações gestuais e ritualísticas,<br />
bem como a representações míticas de cada cultura nada mais são que cristalizações da<br />
potencialidade semântica inesgotável do símbolo. Então, o imaginário não é uma<br />
faculdade local do psiquismo humano, ele é a matriz de todos os processos de<br />
conhecimento (Galvani, 2000:9).<br />
Essa é uma visão possível, a do movimento psico-culturalista, que tem por referência a<br />
psicologia e a psicanálise. Contudo, como afirma Pascal Galvani, esse movimento tende a<br />
“reduzir os comportamentos humanos a ‘tipos’, a construir tipologias mais conforme à<br />
intuição e à personalidade do investigador do que à construção do rigor científico” (2000:9).<br />
Se assumimos a possibilidade do diálogo intertranscultural – através e para além das<br />
fronteiras – evitaremos as lógicas bipolares considerem que apenas esta ou aquela ciência ou<br />
concepção de ciência, de visão de mundo ou qualquer manifestação cultural, mítica ou<br />
religiosa, possa se considerar matriz de todos os processos de conhecimento. Afirmações<br />
deste tipo, ao mesmo tempo em que afirmam, negam a complexidade do real; representam um<br />
contra-senso em relação ao que acabaram de defender, pois revisões unificadoras como<br />
aquela, interpretam a realidade “a partir de uma lógica binária, e de oposição”, conforme<br />
afirma o Professor Reinaldo Matias Fleuri (2001c:117) quando analisa “o jogo do paradoxo”.<br />
Não é demais insistirmos neste ponto:<br />
O paradoxo remete-nos a elaborar uma lógica de interpretação que permita pensar<br />
simultaneamente a multiplicidade de termos e de interações entre eles. Trata-se de explicitar a<br />
lógica que permite compreender simultaneamente a articulação entre a unidade do conjunto e a<br />
diversidade de elementos que o constituuem. (ib.:118).<br />
249<br />
Resta-nos defender a necessidade da explicitação das interconexões relacionais. Se<br />
pensarmos nas escola, por exemplo, podemos novamente recorrer à síntese do professor
Reinaldo Matias Fleuri, a respeito da noção do paradoxo, que aqui utilizamos para mostrar<br />
que ela se aplica perfeitamente à perspectiva do currículo intertranscultural. Como, na escola,<br />
nos deparamos, todos os dias, com situações e demandas muito concretas, estas nos<br />
apresentam, igualmente, o desafio de<br />
focalizar simultaneamente a multiplicidade de ações, de finalidades, de interpretações, de lógica e<br />
categorias de interpretação, desenvolvidas por diferentes sujeitos, em múltiplas relações que criam,<br />
sustentam e modificam múltiplos contextos sociais que configuram os sentidos de nossas ações.<br />
Tal desafio nos remete à necessidade de um ‘salto lógico’ que nos coloque em uma perspectiva<br />
teórica que torne possível compreender as relações entre diferentes dimensões das práticas<br />
humanas e entre diferentes pontos de vista (Valla, 1998).<br />
Após considerarmos estas características da perspectiva transcultural e do<br />
currículo intetransculrural, fica mais fácil identificarmos as especificidades do<br />
currículo monocultural e, principalmente, do seu “daltonismo cultural”, sempre<br />
considerando os aspectos híbridos e paradoxais já mencionados, que não nos<br />
permite fazer uma análise na perspectiva de uma lógica binária ou bipolar que,<br />
contraditoriamente, separasse mecanicamente de um lado o monoculturalismo e, de<br />
outro, o multiculturalismo.<br />
O “daltonismo cultural” ou a cegueira para as diferentes culturas e para a<br />
diversidade cultural presente na escola, é resultado também de uma política<br />
educacional que, além de não se preocupar com a educação permanente dos<br />
professores, não enfrenta efetivamente os problemas de sua prática. Nem o<br />
incentiva a trabalhar no contexto do desenvolvimento de pesquisas, com a<br />
participação dos alunos – o que nos pareceria o mais indicado – nem, tampouco,<br />
instrumentaliza culturalmente o docente – como se isso fosse efetivamente possível<br />
e não dependesse de uma atitude permanentemente reflexiva, investigativa e crítica<br />
por parte dos docentes.<br />
250<br />
Em Educação na Cidade (1999b), <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> mostra-nos o seu repúdio à<br />
“educação bancária”, ao defender uma “pedagogia crítico-dialógica”, uma<br />
“pedagogia da pergunta”. Nestas “pedagogias” o professor trabalha na perspectiva<br />
da construção de uma escola pública que tenha como “lugar de destaque a<br />
apreensão crítica do conhecimento significativo através da relação dialógica” (<strong>Freire</strong>,
1999b:83). Nesse sentido, o autor defende a escola e, portanto, uma prática<br />
educativa que “estimula o aluno a perguntar, a criticar, a criar; onde se propõe a<br />
construção do conhecimento coletivo, articulando o saber popular e o saber crítico,<br />
científico, mediados pelas experiências no mundo” (<strong>Freire</strong>, 1999b:83). Mas <strong>Freire</strong><br />
reconhece que esta não é, ainda, a prática da escola brasileira, pelo que se torna<br />
necessário investir, forte e permanentemente, na formação dos educadores, em<br />
todos os níveis de ensino. E, ao fazê-lo, propõe um processo de reorientação<br />
curricular que, conforme podemos inferir pelas características da escola que acima<br />
mostramos, visa a um trabalho interdisciplinar, só efetivamente possível mediante a<br />
superação de uma pedagogia monocultural, rumo à formação de um professor<br />
intercultural.<br />
Numa perspectiva intercultural, o professor acompanha permanentemente o<br />
seu próprio desenvolvimento pessoal e profissional, que<br />
acaba, assim, por ser visto como um percurso de vida e formação em que a pessoa, que<br />
habita no professor, se constrói por um processo global de autonomização, em busca da<br />
sua própria identidade. Uma identidade que se pretende capaz de entender e comunicar<br />
com a alteridade, de ‘fazer alongar as racionalidades’ (Stoer, 1994:22), logo, uma<br />
identidade intercultural. O professor deve construir-se como uma pessoa intercultural<br />
(Vieira, 1999:145)<br />
251<br />
Para Ricardo Vieira, um professor intercultural seria aquele que também se<br />
preocuparia com a formação de crianças interculturais, ou seja, estudantes que se<br />
comunicam apesar de se reconhecerem diferentes. Este professor teria de ser capaz<br />
de pôr em prática o que ele chama de “pedagogia da divergência” (Vieira, 1999:152)<br />
e não apenas a pedagogia da convergência. Ou seja, enfrentarmos o desafio, na<br />
sala de aula e na escola, de trabalhar com o diferente, com as diferenças e<br />
sabermos construir um processo educacional no encontro dessas diferenças que,<br />
longe de se constituir algo linear, fácil, calmo, é espaço de conflitos, de explicitação<br />
de interesses, de jogo de poder, de diferenças, logo, de divergências. Por isso<br />
mesmo, um espaço criativo, pois quando se diverge, posicionamentos diferentes<br />
podem emergir e trazer um novo cenário, um novo contexto, um novo referencial
para as relações humanas, pessoais e interpessoais na escola, constituindo o que<br />
chamaremos, depois, de currículo intertranscultural.<br />
Para tanto, a formação do professor é imprescindível, mas não só dele, como<br />
também dos demais sujeitos escolares. No que se refere ao docente, a sua<br />
educação continuada estaria voltada para a compreensão da relação, em primeiro<br />
lugar, de empatia entre docentes e discentes, para que sejam capazes de tirar<br />
proveito da diversidade e, diríamos melhor, da diferença cultural (Bhabha, 1998). A<br />
partir deste momento, assumir o desafio de uma educação intercultural, que<br />
possibilite a construção do currículo intertranscultural. Aquela educação, conforme<br />
Vieira, estimula<br />
o diálogo com os outros grupos, as outras culturas, os outros modos de vida e de pensar<br />
o mundo, e o diálogo consigo mesmo, transformam o sujeito num terceiro homem – a<br />
expressão é de Ernest Gellner (1994:108) – um ser intercultural. (Vieira, 1999:154)<br />
Para o professor Vieira, torna-se necessário uma formação específica<br />
também em antropologia social e cultural para os professores, no sentido de se<br />
tornarem sensíveis e em condições de observar e compreender a heterogeneidade<br />
cultural dos alunos, dos grupos de alunos ou mesmo da escola como um todo, bem<br />
como ser capaz de construir pontes entre os saberes cotidianos e o currículo escolar<br />
(cf. Vieira 1992 e 1995).<br />
Para fomentar a interculturalidade (Vieira, 1999:156) o professor deve:<br />
• Ter consciência dos protagonistas do processo educativo que por vezes<br />
originam tais desentendimentos e choques culturais<br />
• Estimular aprendizagem com o intercâmbio e a partilha: quanto mais se<br />
aprende mais se deseja partilhar.<br />
• Ensinar a aprender e aprender a aprender, deve, sem dúvida, preparar a<br />
aprender a partilhar.<br />
Como vemos,<br />
252
Trata-se de uma ruptura com os caracteres unidimensionais das instituições, a<br />
começar pelas instituições educativas, de formação, de cultura etc, que devem abarcar a<br />
diversidade cultural, entender e pensar a complexidade humana numa perspectiva<br />
antropológica que integra o único e o múltiplo. O desenvolvimento daria assim lugar a<br />
uma outra perspectiva de sociedade, capaz de conjugar a unidade e o pluralismo –<br />
aquilo que idealizo como uma sociedade intercultural (Vieira, 1999:156-7)<br />
Construir uma sociedade intercultural, conforme defende o Professor Ricardo<br />
Vieira, não é nada simples e demanda a nossa reflexão no sentido de avançar em<br />
relação à sua própria proposta. Isto é, encaminha-nos na direção de uma Pedagogia<br />
Intercultural, que também é uma Pedagogia do Encontro, e que “permite sair da<br />
alternativa binária e demasiada simplista: novos objectos, novas didácticas”<br />
(Abdallah-Pretceille, 1990:215-16).<br />
A partir do reconhecimento de uma Pedagogia e de uma educação<br />
intercultural, torna-se necessária a dinâmica de um movimento que possa contar<br />
com um currículo intertranscultural, perfeitamente e viável por suas características<br />
comunicativas, universalizantes e integradoras, conforme pudemos explicar<br />
anteriormente. Trata-se, pois, de uma perspectiva que vem ao encontro, sem<br />
competir ou negar, ao currículo que até agora chamamos de intercultural. É uma<br />
questão quase semântica, pois há diferentes interpretações sobre estes termos,<br />
como pudemos perceber. Portanto, para que não corramos riscos de uma eventual<br />
incompletude do termo, preferimos trabalhar na dimensão integradora e não<br />
excludente e muito menos binária.<br />
Na verdade, estamos tentando avançar conceitualmente, mas com base nas<br />
práticas e nas experiências refletidas. O currículo intertranscultural, desta forma,<br />
pemite-nos alcançar outras dimensões eventualmente não percebidas ou, pelo<br />
menos, não tão enfatizadas, na perspectiva do currículo intercultural.<br />
253<br />
Consideramos, assim, que o currículo intertranscultural não admite, por<br />
exemplo, a dicotomia “professor monocultural versus professor intercultural ou inter/<br />
multicultural”. Nem, tampouco, um currículo intercultural enquanto negador ou<br />
superador de um currículo monocultural; nem mesmo a idéia de currículo<br />
intertranscultural sendo uma superação linear das demais dimensões curriculares ou
a somatória das mesmas, conforme poderia nos sugerir João Viegas Fernandes.<br />
Isso seria o mesmo que encarar de maneira simplista uma questão que nos exige<br />
considerar, caso a caso, as diferenças e as relações complexas presentes num<br />
processo educacional, que caracterizam a atuação docente e que não pode ser<br />
tomada em estado puro – ou de um jeito ou de outro, isto é, ou monocultural ou<br />
multicultural.<br />
Os professores Stephen R. Stoer e Luiza Cortesão, ao analisarem a<br />
construção do tipo-ideal de professor Inter/Multicultural, confirmam o nosso<br />
entendimento acima. Mostram, em primeiro lugar, que essa construção “realiza-se<br />
necessariamente no terreno e dentro dos limites da agenda da construção da escola<br />
oficial, da chamada Escola para Todos” (1999:46). Nesse sentido, trata-se apenas<br />
de uma separação didática para identificar certas diferenças e reconhecer avanços<br />
na passagem de uma Escola Meritocrática para uma Escola Democrática. Mas não<br />
se pode ir muito além disso, no tocante à predeterminação de tipos-ideais de<br />
professores, sob o risco de criarmos modelos estereotipados para a função docente.<br />
A classificação feita por Stoer e Cortesão, mostra que existe uma passagem<br />
de um professor monocultural para o professor inter/multicultural: o primeiro<br />
apresenta um olhar passivo sobre a diferença, enquanto que o segundo toma por<br />
base uma “política de diferença”. O professor monocultural, característico da<br />
Escola Meritocrática, “encara a diversidade cultural como obstáculo ao processo de<br />
ensino/aprendizagem potencializador de discriminação” (Stoer & Cortesão, 1999:47).<br />
Nesse sentido, a diversidade cultural é considerada uma preocupação com o que<br />
estaria faltando nas culturas desviantes da norma, ou seja, na cultura nacional ou<br />
oficial para todos. Por outro lado, o professor inter/multicultural, no que se refere<br />
aos mesmos aspectos, considera a “diversidade cultural como fonte de riqueza para<br />
o processo de ensino/aprendizagem, promove a rentabilização de saberes e de<br />
culturas e leva em conta a diversidade cultural na sala e aula” (ib.).<br />
254<br />
Para superar os referidos limites dos tipos-ideais citados, os autores propõem<br />
uma “educação inter/multicultral crítica”, em que o professor valoriza a confrontação<br />
cultural dentro da escola, incentivando a cidadania participativa que se constrói pela<br />
inclusão da diferença no desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem.<br />
Reconhece, ainda, que o papel da educação inter/multicultural “surge como um<br />
desafio à formação, através da escolarização, das entidades nacionais e das
minorias”. Enfatiza a simultaneidade de identidades múltiplas e híbridas, tanto dos<br />
professores quanto dos alunos, superando os tipos-ideais antes pensados.<br />
As diferenças acima apontadas nos indicam que o currículo intercultural, para<br />
se constituir numa prática mais efetiva nos diferentes sistemas educacionais e redes<br />
de ensino, deve percorrer caminho inverso do que fez, historicamente, a escola<br />
meritocrática. Nesse sentido, como os próprios autores afirmam, esta distinção não<br />
é algo dado, fixo, como se fosse possível classifica o que seja um professor<br />
monocultural ou multicultural.<br />
Por outro lado, o currículo intertranscultural nasce no contexto das salas de<br />
aula ou dos Círculos de Cultura e estes, por sua vez, se constituem em espaços de<br />
excelência da formação docente, unindo ensino e pesquisa sem dicotomizá-las,<br />
favorecendo a reflexão formativa sobre as práticas que relacionam<br />
permanentemente cultura social, “cultura escolar” e “cultura da escola”. Portanto, o<br />
professor intertranscultural se forma na práxis, que <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> define como “ação<br />
transformadora”, como um ser de relações, sensível, ético e criativo, por isso, mais<br />
capacitado para enfrentar os desafios presentes e futuros da sua prática e do mundo<br />
em que vive.<br />
O currículo intertranscultural ao pressupor também a escola como parte<br />
integrante de sua comunidade local e, diríamos, também de uma comunidade<br />
planetária, estimula que os seus sujeitos, com as suas respectivas diferenças que,<br />
por sua vez, compõem também os vários segmentos e grupos escolares, estejam<br />
participando da gestão escolar na perspectiva da democracia participativa, da<br />
mesma forma que propõem Stoer e Cortesão quando falam da educação<br />
inter/multicultural crítica. Por isso mesmo, ultrapassa a perspectiva da participação<br />
como relação de poder e se encaminha na direção da participação como relação<br />
intertranscultural.<br />
255<br />
Nesse sentido, perguntamo-nos sobre quais seriam as características, os<br />
tipos e as modalidades da participação, relacionando-a com o que estamos<br />
denominando, neste trabalho, de relação intertranscultural. Nosso objetivo será<br />
demonstrar que um movimento de reorientação curricular, numa perspectiva<br />
intertranscultural, acaba ressignificando a ênfase que até então se deu à<br />
problemática da gestão democrática da escola pública e dos demais eixos do
currículo da escola, até agora vistos, de certa forma isolados uns dos outros, o que<br />
desejamos superar.<br />
Desde Pedagogia do oprimido e em toda a sua obra, encontramos em <strong>Paulo</strong><br />
<strong>Freire</strong> a defesa de uma relação horizontal e da participação dialógica entre educador<br />
e educando. Isso aponta para o desenvolvimento de uma pedagogia dialética, em<br />
que, além da necessidade de uma “ação criadora”, o educador deve aliar-se ao<br />
educando em sua atividade prática educativa no cotidiano da escola, desenvolvendo<br />
continuamente o trabalho escolar, de forma que os vários elementos do processo<br />
ensino – e – aprendizagem se relacionem de maneira que todos possam ensinar e<br />
aprender.<br />
Também lemos em <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> que a participação relacionada à dimensão<br />
cultural e enquanto capacidade de decisão, é fundamental e inerente ao ser<br />
humano, pois este já não é apenas um “ser no mundo”, mas “uma presença no<br />
mundo, com o mundo e com os outros” (<strong>Freire</strong>, 1997b:20).<br />
Com base nesses pressupostos e no conjunto de princípios político-<br />
pedagógicos desenvolvidos por <strong>Freire</strong>, busca-se respostas sobre como ampliar a<br />
participação coletiva, as relações entre as pessoas, a convivência e as decisões<br />
democráticas no âmbito da escola, a definição do seu projeto político-pedagógico,<br />
enfim, os diferentes eixos do currículo intertranscultural, que são aqui ressignificados<br />
e atualizados.<br />
Parte do problema que estamos discutindo é verificar se podemos falar numa<br />
nova concepção de participação 81 , ou seja, se é coerente falarmos em participação<br />
como relação intertranscultural. Complementarmente, como estamos pensando o<br />
currículo da escola, desejamos conhecer quais seriam as implicações dessa<br />
participação para a organização do trabalho na escola, pensada também numa<br />
perspectiva ativa, democrática, ampla, que parte do trabalho desenvolvido nos<br />
Círculos de Cultura referenciados na perspectiva intertranscultural.<br />
256<br />
81 Para <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, a participação relacionada à dimensão cultural e enquanto capacidade de<br />
decisão é fundamental e inerente ao homem, pois “mais do que um ser no mundo, o ser humano se<br />
tornou uma presença no mundo, com o mundo e com os outros” (1997:20). Por outro lado, o mesmo<br />
autor afirma também que “uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno, está em<br />
que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade organizada, ideológica ou<br />
não, e por isso vem renunciando cada vez, sem o saber, à sua capacidade de decidir. Vem sendo<br />
expulso da órbita das decisões” (<strong>Freire</strong>, 1983:43).
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> desenvolveu, no conjunto de sua obra, uma reflexão sistemática<br />
sobre a importância da participação na escola, com ênfase à dimensão cultural,<br />
incentivando sempre o “o ouvir e a conversa com o diferente”, a “curiosidade”, a<br />
“alegria na escola”, a “esperança”, a “não-discriminação”, a “ética”, o prazer, o<br />
gostar, a relação entre a “identidade cultural” e o “itinerário educativo” dos sujeitos<br />
da educação, a “integração escola-comunidade” e a criação de vínculos entre essas<br />
dimensões da cultura. E como podemos constatar, o pensamento de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong><br />
podem contribuir muito, ainda hoje e no futuro, para melhor lidarmos com a<br />
complexidade dos processos participativos no âmbito da educação, na constituição<br />
dos currículos escolares e, particularmente, conforme queremos aqui analisar, no<br />
que concerne à gestão democrática da escola.<br />
Com base nas experiências que investigamos e nos estudos delas<br />
decorrentes, estamos sedimentando a perspectiva intertranscultural que, como<br />
vimos, tem seu alicerce nas relações interculturais que acontecem na escola e na<br />
comunidade escolar, apoiado na criação de novos espaços e tempos interculturais.<br />
Estamos preocupados mais em provocar do que comprovar (<strong>Freire</strong>; Corazzo),<br />
até porque estamos transitando em terreno inédito, o que sempre exige cautela e<br />
visão coerente dos caminhos a serem trilhados. Nesse caso, a participação, as<br />
relações pessoais e interpessoais e os demais eixos integrantes do currículo<br />
intertranscultural, resultam desta reflexão sobre a prática que permanentemente<br />
procuramos realizar, o que justifica o nosso trabalho.<br />
Quando nos referimos aos novos espaços e tempos intertransculturais, temos<br />
em mente o respeito ao ritmo das pessoas e às experiências escolares para que,<br />
partindo daí, possamos alcançar a melhor qualificação dos resultados do processo<br />
aprendente que queremos enfatizar nesta tese. Afinal, é para isso que propomos a<br />
construção coletiva de uma nova perspectiva curricular, que chamamos<br />
intertranscultural, até mesmo como forma de superarmos as teses psicologistas dos<br />
anos 70, que atribuíam aos alunos a “culpa” pelo fracasso escolar.<br />
257<br />
Segundo a professora Helena Coharik Chamlian (1988:25), “a psicologia,<br />
porém, não foi a única área deficiente por imputar deficiências às crianças mal<br />
sucedidas na escola. A tese da carência é corroborada, ainda por trabalhos<br />
desenvolvidos no campo da Medicina”. Ao invés de acirrarmos “o jogo de esconde-
esconde da relação professor-aluno nas pesquisas sobre fracasso escolar”<br />
(Chamlian, 1988:22), é mister reconhecer a importância da dialogicidade no<br />
processo de construção de novas relações pedagógicas na sala de aula.<br />
Para <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, o diálogo é “o encontro amoroso dos homens que,<br />
mediatizados pelo mundo, o ‘pronunciam’, isto é, o transformam, e, transformando-o,<br />
humanizam para a humanização de todos” (<strong>Freire</strong>, 1982a:43). Não há relação<br />
pedagógica sem diálogo amoroso e conflitivo, da mesma forma que não há relação<br />
amorosa que resista à falta do diálogo e à ausência do conflito. E falarmos de<br />
participação pressupõe, inicialmente, compreendermos que ela nasce do encontro<br />
entre sujeitos e, a partir deste encontro, com o diálogo.<br />
Se, nos anos 80, percebíamos uma certa baixa nos processos participativos<br />
como um todo, ao contrário do que parecia no final dos anos 90, a experiência do<br />
Fórum Social Mundial – só para dar um exemplo concreto – acontecida na cidade de<br />
Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, no ano de 2001 82 , mostrou que<br />
havia uma imensa capacidade mobilizadora que não tinha um canal de expressão. O<br />
Fórum Social Mundial se constituiu num espaço de intensa mobilização, que<br />
contribuiu para desfazer aquela sensação anterior de desmobilização dos indivíduos,<br />
da sociedade como um todo, que se mostrava sem iniciativa e subserviente durante<br />
a década de 90.<br />
258<br />
Nos últimos dez anos, em especial, o capitalismo viveu um momento peculiar da<br />
sua expansão, aparentemente, sem resistências ou contestações conseqüentes.<br />
Coveiros da modernidade deram adeus ao trabalho e ao proletariado. As elites<br />
econômicas vislumbraram a possibilidade de estender sua dominação sem fronteiras, do<br />
nível macroeconômico até o âmago de corações e mentes. Porém, sob a superfície,<br />
represava-se uma força extraordinária. Lentamente, um número crescente de cidadãos<br />
do mundo passou a tomar nas mãos seu próprio destino. A solidariedade consciente,<br />
como a unificação de pequenas gotas d’água que fazem uma enchente, desperta a força<br />
revolucionária que arrancará os dormentes da sua letargia, quebrará as amarras<br />
embrutecedoras, superará a mediocridade opressora e impulsionará a humanidade em<br />
um movimento ascendente para uma fase superior da civilização. (...) A resistência ao<br />
caráter predatório do modelo dominante foi sendo ampliada. A ação coletiva dos<br />
cidadãos, o engajamento em associações, o esforço de apropriação coletiva das<br />
condições de existência e do conteúdo do trabalho e da cultura multiplicaram-se<br />
82 Ver Cattani, Antônio David. Fórum Social Mundial: a construção de um mundo melhor. Porto Alegre/<br />
Petrópolis. Editora da Universidade/UFRGS/Vozes/Unitrabalho/Corag/Veraz Comunicação, 2001.
infinitamente. Um impressionante movimento, antes subterrâneo, foi aflorando para a<br />
superfície (Cattani, 2001:9-10).<br />
Descontados os exageros e o caráter apaixonado e “engajado” da citação,<br />
não há como negar que os movimentos sociais e toda a sociedade demonstram,<br />
efetivamente, no final do Século XX e início do Século XXI, a existência da maior<br />
participação. O que estamos argumentando se refere mais a um desafio não só<br />
deste trabalho, mas que se apresenta a todos aqueles/as que se preocupam com o<br />
crescimento do eventual desinteresse pela participação, que tem reflexos no que<br />
acontece na escola na “era da globalização”, que nos indica um fenômeno não só<br />
econômico mas, fundamentalmente, político, social e cultural. 83 Desde que se criem<br />
mecanismos de participação, ela ocorre. Mas o Estado que não tem interesse em<br />
desenvolver a democracia, não cria esses espaços e não desenvolve o que<br />
chamamos de “educação cidadã”. Segundo a análise do Professor Ladislau Dowbor,<br />
neste fim de século que apresenta transformações tecnológicas profundas, com<br />
inovações informáticas que permitem modernizar e dar transparência à administração,<br />
com a telemática que permite dar acesso instantâneo ao munícipe sobre dados de<br />
gestão referentes à sua cidade (...) com novos enfoques organizacionais mais<br />
horizontais e flexíveis, as administrações devem perder o medo de inovar, podendo<br />
inclusive introduzir soluções em caráter experimental, deixando a própria sociedade se<br />
pronunciar sobre o acerto de determinadas inovações (Dowbor, 1998:379).<br />
259<br />
O mesmo autor afirma que “a informação, a cultura, a educação, a mídia, as<br />
diversas formas de acesso ao conhecimento, constituem um eixo essencial de<br />
recuperação da democracia (id., 1998:383). Nesse sentido, Dowbor considera que “o<br />
conjunto de áreas que formam os novos espaços do conhecimento devem assumir,<br />
numa gestão moderna, um papel essencial, traduzindo-se em programas ativos e<br />
dinâmicos, com os meios correspondentes” (ib.). Por essa ótica, a presença da<br />
tecnologia poderia significar um elemento facilitador à maior participação.<br />
Concordamos com a afirmação de Ladislau Dowbor, no sentido de perceber nas<br />
83 O professor Octavio Ianni analisa o fenômeno da globalização no livro intitulado A sociedade global.<br />
2ª, Civilização Brasileira,1993). Ver também o item 1.3 de nossa dissertação de mestrado (Padilha,<br />
1998) intitulado “Estado e sociedade civil frente aos desafios educacionais contemporâneos”, onde<br />
analisamos a questão da ‘crise civilizatória’.
novas tecnologias mundiais, se devidamente socializadas a médio e longo prazos,<br />
um grande potencial para se transformarem em ferramentas muito favoráveis para<br />
que as classes populares possam não apenas ter maior acesso ao conhecimento<br />
mas, principalmente, utilizá-las para a sua produção. Quando falamos da<br />
participação na escola não podemos deixar de considerá-la no contexto das novas<br />
tecnologias mundiais, pois elas abrem novas perspectivas de participação na<br />
gestão, na administração do bem público e na determinação do currículo escolar.<br />
A participação tem sido tema recorrente na educação e objeto de várias<br />
pesquisas e publicações relacionadas à gestão democrática da escola pública e à<br />
construção coletiva de seu projeto pedagógico 84 . No entanto, podemos afirmar que<br />
tais estudos, quando relacionados à gestão democrática e à participação popular<br />
nos destinos da escola pública, têm sistematicamente enfatizado vários enfoques e<br />
tipos de participação que, no geral, referem-se à possibilidade da tomada de decisão<br />
nos destinos da escola pública. Inclui-se aí a execução de planos escolares de<br />
forma participativa e o envolvimento dos diversos segmentos escolares e extra-<br />
escolares nas deliberações concernentes aos aspectos pedagógicos, administrativos<br />
e financeiros das escolas e da educação num sentido mais amplo.<br />
Nestes mesmos trabalhos, observamos que a escola não está organizada<br />
dentro de um processo democrático que viabiliza a participação efetiva dos<br />
diferentes segmentos em torno do seu projeto, até mesmo porque ela está inserida<br />
numa estrutura que se fundamenta numa concepção clássica de administração e de<br />
planejamento escolar, caracterizada pela divisão pormenorizada do trabalho,<br />
hierarquizado verticalmente e com ênfase na organização técno-burocrática e<br />
pragmática.<br />
Ao revisitarmos o conceito de participação e as diversas classificações que<br />
este termo tem recebido, bem como os seus condicionantes em relação à gestão<br />
escolar, destacamos, desde já, os trabalhos de alguns autores que têm sido<br />
referência quando se trata de discutir a gestão democrática da escola pública.<br />
260<br />
84 Dentre os trabalhos mais recentes, sobretudo relacionados à gestão e à participação popular na<br />
escola e na educação, podemos destacar os de Le Boterf (1982), Campos (1983); Díaz Bordenave,<br />
Sposito (1984); Demo (1988), Silva; Sposito (1989), Avancini, Gadotti, Jacobi (1990), <strong>Freire</strong> (1991),<br />
Pontuschka (1993), Benevides (1994a); Ghanem, Paro, Pontual (1995); Dallari, Jacobi, Silva (1996),<br />
<strong>Freire</strong>, Ciseski, Costa, Oliveira, Paro (1997), Dowbor (1998) e Lima (1998; 2000; 2001), Feuri (2001;<br />
2002), além de várias obras de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> (1959-1997). Sobre a complexidade da própria estrutura<br />
do sistema educacional e da organização da escola no Brasil, ver também os trabalhos de Ferreira<br />
(1979), Teixeira (1987), Fischmann (1987), Gadotti (1993) e Sander (1995).
Em primeiro lugar, destacamos que, quando falamos em gestão democrática,<br />
ela implica automaticamente na necessidade da participação da comunidade. Mas,<br />
como nos adverte o Professor Vitor Paro, nestes casos parece faltar ainda uma<br />
maior precisão desse conceito. Ele afirma que quando utiliza o conceito de<br />
participação, está se referindo e está preocupado “com a participação nas decisões,<br />
o que não elimina, obviamente, a participação na execução; mas também não a tem<br />
como fim e sim como meio, quando necessário, para a participação propriamente<br />
dita, que é a partilha do poder, a participação na tomada de decisões” (Paro,<br />
1997:16).<br />
O professor Paro refere-se também, como dissemos anteriormente, aos<br />
inúmeros obstáculos para se promover a participação nas decisões no âmbito da<br />
escola pública, que está estruturada na fragilidade de “nossa democracia liberal”,<br />
que, restringindo a participação da grande maioria da população ao momento do<br />
voto, priva-a de processos que, durante os quatro ou cinco anos de mandato,<br />
permitiriam controlar as ações dos governantes no sentido de atender aos interesses<br />
das camadas populares” (ib.).<br />
Em seu livro intitulado Gestão democrática da escola pública (1997), Vitor<br />
Paro apresenta o resultado de uma pesquisa que realizou junto uma Escola<br />
Estadual de 1 o Grau (EEPG) de São <strong>Paulo</strong> (Paro, 1997:41). Ao referir-se aos<br />
determinantes internos e externos da participação, o autor reafirma que sua análise<br />
sempre estará “levando em conta a participação nas decisões” (id., 1997:43).<br />
Destacamos que o referido autor (ib.:47), quando se refere especificamente<br />
aos condicionantes internos da participação, que ele chama de “ideológicos”, afirma<br />
que é justamente o modo de pensar e de agir das pessoas que atuam nas unidades<br />
escolares, que vai facilitar e incentivar ou, ao contrário, dificultar ou impedir a<br />
participação das mesmas nos destinos da escola pública, o que já entendemos<br />
como uma primeira aproximação do tema da participação com o da cultura.<br />
261<br />
Numa análise sobre as dinâmicas contraditórias, tensões e limites da<br />
participação, o professor Pedro Roberto Jacobi lembra que, quando se fala de<br />
“participação dos cidadãos deve-se enfatizar que se trata de uma forma de<br />
intervenção na vida pública com uma motivação social concreta que se exerce de<br />
forma direta, baseada num certo nível de institucionalização das relações
Estado/Sociedade (Jacobi, 1990:132). Por outro lado, ao referir-se ao conceito de<br />
cidadania ativa e ao articulá-lo ao princípio da participação popular, Maria Vitória<br />
Benevides (1991) afirma que<br />
a cidadania ativa através da participação popular (...) é considerada um princípio<br />
democrático, e não um receituário político que pode ser aplicado como medida ou<br />
propaganda de um governo, sem continuidade institucional (...) a participação popular,<br />
assim entendida, supera a velha polêmica sobre o ‘verdadeiro’ significado de cidadania<br />
ativa na filosofia política, desde o século XVIII – assim como a dicotomia Estado e<br />
sociedade civil, vigente até hoje entre liberais e antiliberais. Esta cidadania ativa supõe a<br />
participação popular como possibilidade de criação, transformação e controle sobre o<br />
poder, ou os poderes.<br />
262<br />
Por sua vez, para Diaz Bordenave, “a palavra participação vem da palavra<br />
‘parte’. Participação é fazer parte, tomar parte ou ter parte” (1984:22). Mas adverte<br />
que estas três possibilidades caracterizam formas diferentes de participar, pois é<br />
possível realizá-la de forma ativa ou passiva, engajada ou não. No segundo sentido,<br />
estaríamos diante de uma máscara democrática, ou seja, dependendo de como se<br />
toma parte no processo ou de como se dá essa participação, ela poderá assumir um<br />
caráter praticamente nulo, meramente formal. Este mesmo autor afirma que existem<br />
diferentes tipos de participação: de fato, espontânea, voluntária, provocada,<br />
dirigida, manipulada ou concedida e estabelece graus de participação, quais sejam,<br />
enquanto informação/reação, consulta facultativa, consulta obrigatória, co-gestão,<br />
delegação e auto-gestão (ib.: 30-33). Por outro lado, estabelece que podemos ter<br />
seis níveis de decisão, segundo sua importância, se pensarmos num processo<br />
participativo. Estes níveis são os seguintes: 1. Formulação da doutrina e da política<br />
da instituição; 2. Determinação de objetivos e estabelecimento de estratégias; 3.<br />
Elaboração de Planos, programas e projetos; 4. Alocação de recursos e<br />
administração de operações; 5. Execução das ações, e, 6. Avaliação dos resultados.<br />
Observamos ainda que Díaz Bordenave considera que “a participação é mais<br />
genuína e produtiva quando o grupo se conhece bem a si mesmo e se mantém bem<br />
informado sobre o que acontece dentro e fora de si. A qualidade da participação<br />
fundamenta-se na informação veraz e oportuna. Isto implica num contínuo processo
de criação de conhecimento pelo grupo, tanto sobre si mesmo como sobre seu<br />
ambiente” (Días Bordenave,1984: 50).<br />
Em seu livro intitulado A escola como organização e a participação na<br />
organização escolar (1998), o professor Licínio C. Lima, da Universidade do Minho,<br />
Portugal, considera a que a participação é uma “palavra-chave na política educativa”<br />
(p. 180) e a assume enquanto um “direito reclamado e conquistado através da<br />
afirmação de certos valores (democráticos) e da negação de outros que estiveram<br />
na base de uma situação de não participação forçada, ou imposta”(p. 181). Neste<br />
caso, está se referindo também à existência de hierarquias e à exclusão na tomada<br />
de decisões.<br />
Este professor define vários e tipos e graus de participação, ou seja, afirma<br />
que ela pode ser direta ou indireta enquanto democraticidade, formal ou não formal<br />
enquanto regulamentação, ativa, reservada ou passiva enquanto envolvimento e<br />
convergente e divergente enquanto orientação (Lima, 1998:180-198).<br />
Para concluir este breve inventário de características da participação,<br />
recorremos ao trabalho de Pedro Demo que, pelo próprio título, nos dá a entender<br />
como o autor pensa a participação. O título do livro é Participação é conquista<br />
(Demo, 1996). Segundo aquele autor, “a participação possui inúmeras facetas<br />
relevantes de um fenômeno complexo e rico (...) e a característica de ser meio e fim,<br />
porquanto é instrumento de autopromoção, mas é igualmente a própria<br />
autopromoção. Prevalece, porém, a conotação instrumental, no sentido de que é<br />
vista como caminho para se alcançarem certos objetivos” (ib.:66). O professor Demo<br />
considera, ainda, que a participação é exercício democrático e, nesse sentido, faz<br />
associações ao poder, à prestação de contas, ao exercício do voto. Ou seja, é<br />
analisada também como “implementação de regras democráticas de jogo” (ib.:<br />
1996:71), também como “controle do poder”, enquanto fenômeno básico da<br />
democracia, como “controle da burocracia”, como “negociação” e como “cultura<br />
democrática”, neste último caso considerada, talvez, como o objetivo mais essencial<br />
da participação, “assumindo o conceito de cultura como processo de identificação<br />
comunitária, cristalizando os traços mais característicos dos modos de ser e de<br />
produzir (...)” (Demo, 1996:78-79). 85<br />
263<br />
85 Pedro Demo define participação como “processo imorredouro de conquista. Nunca será suficiente,<br />
porque vive da utopia da igualdade, da liberdade, da fraternidade totais. Não é dada, é criada. Não é<br />
dádiva, é reivindicação. Não é concessão, é sobrevivência. Participação precisa ser construída,
Em dissertação de mestrado, Ângela Antunes Ciseski (1997:22) observa que<br />
numa visão mais abrangente, a participação é entendida como “intervenção<br />
constante nas definições e nas decisões das políticas públicas, tornando-se uma<br />
prática social efetiva que sedimenta uma nova cultura de cidadania”.<br />
Mesmo considerando a validade das tipologias e das características da<br />
participação acima enunciadas, além da importante contribuição que estes e outros<br />
trabalhos têm dado à compreensão dessa complexa temática, interessamo-nos,<br />
particularmente em destacar alguns elementos que são inerentes à participação,<br />
mas que pouco têm sido analisados sob a ótica que aqui queremos fazer, ou seja, o<br />
sentido da participação como relação pedagógica intercultural.<br />
O nosso enfoque da participação na escola – tema que ganha no Brasil atual,<br />
a cada dia, novos contornos, principalmente no contexto da transição democrática<br />
que culminou com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e, mais<br />
recentemente, com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB -<br />
9394/96) – privilegiará uma análise sobre como se dá o processo que possibilita a<br />
participação na escola, partindo da diversidade cultural (Gadotti, 1992) e dos<br />
condicionantes culturais que estimulam a criação de vínculos e de relações<br />
democráticas dentro da escola e, desta, com toda a comunidade escolar 86 .<br />
Ao enfocarmos o tema da participação, não queremos nem poderíamos<br />
desejar eliminar a intrínseca relação dessa temática com a questão também atual do<br />
novo papel da Sociedade Civil frente aos desafios educacionais contemporâneos,<br />
questão que já estudamos, em parte, na nossa dissertação de Mestrado (Padilha,<br />
1998) 87 . Contudo, delimitaremos a nossa análise em torno do estudo sobre a<br />
participação como relação intertranscultural e suas implicações para cada um dos<br />
eixos do currículo intertranscultural. Nesse sentido, novos hábitos de participação já<br />
eram defendidos por <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> em 1967, quando ele afirmava em seu livro<br />
forçada, refeita e recriada. Nem podem faltar o entusiasmo e a fé nas potencialidades de quem a<br />
primeira vista pareça de tudo destituído e imerso só em pobreza.” (Demo, 1996:82).<br />
86 Em artigo intitulado Redefinindo a participação popular na escola, Marília Pontes Spósito (1989: 61-<br />
7) observa que a escola pública deve interagir com todas as forças sociais que estão presentes nos<br />
bairros e que os canais de participação não devem restringir-se àqueles que têm acesso à escola em<br />
determinados momentos do seu cotidiano. Por outro lado, segundo entendemos, Spósito afirma que a<br />
integração da escola com a família e com a comunidade, de forma que haja efetivamente a<br />
possibilidade de participação, implica em considerar, reconhecer, conviver e aceitar os conflitos e a<br />
diversidade.<br />
87 Para uma análise mais aprofundada sobre as relações entre Estado e Sociedade Civil no Brasil, ver<br />
Pontual (1995) e Jacobi (1996).<br />
264
Educação como prática da liberdade que “a educação teria de ser, acima de tudo,<br />
uma tentativa constante de mudança de atitude. De criação de disposições<br />
democráticas através da qual se substituíssem, no brasileiro, antigos e<br />
culturológicos hábitos de passividade” (<strong>Freire</strong>, 1983:93). E que a participação,<br />
voltada para a transformação, deveria ser uma participação crítica (ib.:102).<br />
A participação intertranscultural caracteriza-se por sua eticidade, envolvendo<br />
grupos e pessoas instituintes, o que implica a idéia de movimento, do respeito às<br />
individualidades e às diferenças – inclusive às ideológicas. Estamos falando de uma<br />
participação também complexa, não estática, mais dinâmica, centrada em princípios<br />
e em convivência e não apenas em regimentos e normas, tão comuns nas<br />
instituições educativas.<br />
Novas abordagens de análise para o tema da participação se apresentam,<br />
sobretudo utilizando o enfoque da “razão cultural” para a gestão escolar que,<br />
segundo a Professora Maria Cecília Sanchez Teixeira, tem por característica<br />
“permitir um questionamento dos enfoques teóricos que orientam as práticas<br />
pedagógicas e administrativas nos sistemas de ensino” (Teixeira, 1990:92). Ou<br />
então como nos lembra a Professora Maria do Rosário Silveira Porto, “a perspectiva<br />
da complexidade do social, partindo-se da concepção de educação enquanto prática<br />
simbólica que encaminha as demais práticas sociais, é possível pensar em uma<br />
outra escola, tanto relativamente à organização (ou organizacionalidade), quanto às<br />
funções que pode desempenhar” (Porto, s.d., 8).<br />
Para nós, portanto, não é mais possível pensar o futuro, e a participação no<br />
futuro, se continuamos satisfeitos com explicações parciais da própria ciência, como<br />
se ela desse conta da nossa realidade e como se fosse admissível continuarmos<br />
deixando de lado aquilo que não conseguimos explicar. Por isso é que se torna<br />
necessário, para pensarmos e ao realizarmos o currículo intertranscultural, fazê-lo<br />
com base numa nova lógica científica, como temos discutido, superando a visão<br />
fragmentada do ciência moderna. A busca de alternativas ao racionalismo positivista<br />
já é um caminho importante que vem sendo percorrido. Só para dar um exemplo, se<br />
considerarmos as novas formas de participação, no contexto das novas tecnologias,<br />
é hoje impossível dissociá-la de uma perspectiva que leve em conta a complexidade<br />
da participação, como tão claramente se referiu o professor Pedro Demo.<br />
265
Não desejamos nos limitar a pensar participação como forma de intervenção<br />
na vida pública ou no estabelecimento de relações institucionalizadas ou, pior ainda,<br />
burocratizadas e hierarquizadas. Desejamos pensar na participação enquanto<br />
fenômeno condicionante, condicionador e também condicionado pelas trocas de<br />
experiência, pela construção de vivências significativas, inter e transculturais, que se<br />
traduzem na dialogicidade, na possibilidade da ampliação das relações pessoais,<br />
culturais e interculturais, levando-se em conta a diversidade de possibilidades que<br />
temos e que nos é apresentada por Morin quando ele se refere à dialógica, que<br />
significa “que duas ‘lógicas’ diferentes estão ligadas em uma unidade, de forma<br />
complexa (complementar, concorrente e antagônica) sem que a dualidade se perca<br />
da unidade). (Morin, 1999:44). Edgar Morin quando nos fala em “duas lógicas<br />
diferentes”, quer nos falar, na verdade, de diferentes lógicas mas, sobretudo, na<br />
possibilidade de substituirmos as opções ou/ou (uma ou outra realidade ou<br />
possibilidade) por e/e (uma e outra realidade ou possibilidade, no sentido de<br />
diferentes formas e níveis de representarmos a realidade).<br />
Assim sendo, cremos estar caminhado, a passos necessariamente lentos,<br />
para desvelarmos a nova dialógica e tentarmos compreender a cidadania enquanto<br />
uma nova cultura, mudança de atitude, que tem por referência a participação, que<br />
seja resultado do conhecimento sobre si mesmo, como quer Bordenave, e não como<br />
máscara da democracia, como tem sido também significada. Estamos tentando<br />
construir ou, pelo menos, encaminhando-nos para a possibilidade de construir, uma<br />
nova perspectiva de pensar a participação, a partir de uma nova lógica científica,<br />
compatível com uma ética que aposta no querer viver, nos estar junto, na<br />
valorização e criação de espaços e tempos para as trocas e as relações culturais e<br />
interculturais, sobretudo no âmbito da educação, consubstanciadas na criação de<br />
espaços para que estas trocas se efetivem, numa relação de reciprocidade (Falteri,<br />
1998). Assim nos tornamos mais conscientes e sensíveis de/sobre nossa própria<br />
cultura a partir do instante em que reconhecemos a cultura do outro.<br />
266<br />
E diríamos: só nos tornamos mais participativos se participamos da<br />
participação do outro, com o outro (<strong>Freire</strong>) nos envolvendo com ela, com a cultura<br />
que está implícita naquela forma de participar, de ser, de pensar, de tomar atitudes<br />
abertos às mudanças que se apresentam, hoje e a cada segundo, na direção da<br />
construção da escola e da sociedade mais participativa e, portanto, mais criativa e
feliz no próximo milênio. Como afirma <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, “não podemos nos assumir<br />
como sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos<br />
históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos” (<strong>Freire</strong>,<br />
1997b:19). 88<br />
As implicações decorrentes dessa forma de pensar a participação – como<br />
relação pedagógica intertranscultural – para a organização do trabalho na escola e<br />
para a construção de um novo currículo escolar – interessam-nos enquanto<br />
possibilidade de construção de uma escola que consideramos estar a serviço da<br />
superação dos desafios e dos dilemas da cidadania neste mundo globalizado, como<br />
diz o Prof. Carlos Alberto Torres, e também da formação de pessoas humanas que<br />
se (re)constróem na e pela convivência multicultural e para o exercício pleno da<br />
‘cidadania ativa’. Nessa perspectiva consideramos a possibilidade da construção de<br />
uma “Escola Cidadã”, que consolida a Escola Pública Popular dos anos 80-90 e que<br />
nos oferece elementos fundamentais para vislumbrarmos a possível organização<br />
dos princípios e diretrizes do que chamamos de currículo intertranscultural.<br />
Como construir uma escola mais curiosa, prazerosa e aprendente, que<br />
colabore para a inserção e para a emancipação social, numa perspectiva<br />
humanizadora?<br />
267<br />
Entendemos que um bom início de conversa para se criar as condições<br />
propícias para que a educação possa buscar respostas para essas perguntas seja,<br />
de início, que os governos deixem de querer “inventar” soluções mágicas e saídas<br />
peremptórias para os problemas da educação sem consultar, cuidadosa e<br />
efetivamente, as escolas, os educadores, as comunidades escolares. Mas para que<br />
isso aconteça, conforme temos observado ao longo deste trabalho, caberia à escola<br />
e à sociedade como um todo, a reflexão permanentemente crítica e atualizada sobre<br />
a própria relação entre Estado - educação escolar – democracia (Stoer, 2001;<br />
Torres, 2002). Significa, também, pensar e investir na educação a partir do que<br />
chamamos de Planejamento Dialógico ao nível das escolas e de Planejamento<br />
Socializado e Ascendente, ao nível dos sistemas ou sub-sistemas educacionais.<br />
(Romão & Padilha, 1997b; Padilha, 2001). Em palavras mais simples: que as<br />
88 Em outra passagem <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> afirma: “A ética de que falo é a que se sabe afrontada na<br />
manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe. É por essa ética inseparável da prática<br />
educativa, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou com adultos, que devemos lutar. E a<br />
melhor maneira de por ela lutar é vivê-la em nossa prática, é testemunhá-la, vivaz, aos educandos<br />
em nossas relações com eles”. (<strong>Freire</strong>, 1997b:17).
escolas públicas e privadas elaborem os seus projetos político-pedagógicos e que,<br />
num movimento “de baixo” para “cima”, possam, de forma participativa e<br />
amplamente democrática, desde o início do processo, influenciar as políticas<br />
públicas educacionais em quaisquer níveis. Desta forma, os Planos Municipais e<br />
Estaduais de Educação estariam sendo desenvolvidos em consonância com as<br />
consolidações e decisões escolares, interescolares, regionais, inter-regionais,<br />
municipais, intermunicipais, estaduais, interestaduais e, finalmente, em nível<br />
nacional.<br />
No âmbito deste capítulo, ofereceremos alguns elementos teórico-práticos<br />
para que este processo, certamente desafiador e inédito, possa se dar com base<br />
num alicerce firme. E, para nós, isso significa pensar no currículo intertranscultural<br />
da escola.<br />
O início do ano letivo é, geralmente, o momento político mais do que oportuno<br />
para que as escolas, seus professores e suas respectivas comunidades, possam<br />
(re)construir os seus projetos político-pedagógicos e, por conseguinte, pensar o seu<br />
currículo. Mas isso não se restringe ao início do período letivo. O melhor espaço-<br />
tempo político-pedagógico de cada escola é ela quem faz, até mesmo porque o<br />
currículo intertranscultural se realiza processualmente, fruto das ações, das<br />
relações, dos contextos e dos metas contextos que vão sendo criados na escola. Ao<br />
considerarmos tais premissas, poderíamos pensar, por exemplo, em como realizar<br />
tal obra na escola e na educação.<br />
268<br />
As mudanças não são simples, até porque, ao nível das escolas, por<br />
exemplo, exige-se que elas retomem e ressignifiquem as suas experiências,<br />
superem práticas às vezes cristalizadas, e sugere a revisão dos caminhos antes<br />
percorridos para a superação de eventuais erros cometidos, o que nem sempre é<br />
fácil reconhecer e, mesmo que isso aconteça, assumir, aprender com o erro e<br />
superá-los. Procuramos até aqui, mesmo considerando todos os limites de uma<br />
pesquisa acadêmica, dialogar com diversos autores, com as suas “teorias”, e refletir<br />
algumas experiências e práticas com as quais nos deparamos ao longo de nossa<br />
experiência, inclusive desta que estamos ainda vivenciando. E é diante destas<br />
condições bem concretas e contextualizadas que pretendemos oferecer algumas<br />
orientações práticas e possíveis ações, sem nunca considerá-las fechadas em si<br />
mesmas, para que tenhamos uma visão mais clara e abrangente sobre como
entendemos a consecução de um currículo intertranscultural nas escolas. Com isso,<br />
pretendemos acalentar as nossas próprias provocações, sem, com isso, esperarmos<br />
oferecer as respostas para todas as nossas perguntas. Até porque nossa tese teve<br />
como uma de suas hipóteses que mais avançaríamos quanto mais fôssemos<br />
capazes de nos abrirmos ao diálogo e às perguntas de outras pessoas, das outras<br />
ciências e das outras formas e manifestações do saber e do aprender humanos. E<br />
todo o desenvolvimento que até aqui pudemos imprimir às nossas reflexões e<br />
argumentos, comprovam, conforme entendemos, tal hipótese.<br />
Um dos grandes problemas com os quais nos deparamos nas escolas diz<br />
respeito à dificuldade da continuidade dos projetos com os quais ela trabalha ou que<br />
desenvolve, por conta de um sem número de dificuldades. Muitos desses<br />
problemas, evidenciados nas experiências que pudemos relatar, acontecem, por um<br />
lado, pela falta mesma de uma cultura da participação democrática, reconhecida por<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> desde 1959, em Educação e Atualidade Brasileira. Por outro lado, pela<br />
ausência de ações melhor coordenadas dentro da própria escola, pelos seus<br />
diversos segmentos escolares, o que é fruto das relações controladoras de um<br />
Estado que mantém uma política de “gestão controlada de desigualdade – sendo um<br />
exemplo no campo de educação escolar o sistema escolar binário com via<br />
acadêmica e via técnico-profissional” (Stoer, 2001:248), ou, conforme vimos nas<br />
palavras do mesmo prof. Stoer, um Estado que “desenvolve políticas de gestão<br />
controlada de exclusão – sendo exemplo no campo de educação escolar os<br />
‘currículos alternativos’” (ib.).<br />
Considerando a necessidade de superar estes modelos e estas práticas,<br />
sobretudo aprendendo a lição de que, por exemplo, os movimentos por uma<br />
educação multicultural não estão em oposição – aos de educação intercultural – ao<br />
contrário, eles “não só se complementam como se reforçam”, (ib.:265), podemos<br />
afirmar, também, que um currículo intertranscultural vem se associar, complementar<br />
e reforçar o movimento por uma educação inter/multicultural crítica, conforme<br />
defende Stephen Stoer, compreendida como<br />
269<br />
movimento contra-hegemônico (com a suas preocupações emancipatórias face à<br />
mercadorização da educação, face à individualização da responsabilidade, e no que diz
espeito ao seu combate, por exemplo, ao daltonismo cultural e à sua promoção do<br />
desenvolvimento do bilingüismo cultural 89 (Grifo nosso)<br />
Uma das questões que fazem parte essencial da discussão de um currículo<br />
intetranscultural é a diminuição do que se convencionou chamar de descontinuidade<br />
administrativa. É que, pela inexistência de projetos político-pedagógicos de curto,<br />
médio e longo prazos, tanto as escolas, as comunidades, quanto toda a sociedade<br />
ficam à mercê das vaidades políticas ou dos caprichos dos novos ou dos antigos<br />
governos que mais se preocupam em deixar suas “marcas” – às vezes não importa<br />
quais sejam elas – do que, na verdade, atender às imensas demandas sociais.<br />
270<br />
Ao nos referirmos ao projeto político-pedagógico da escola na perspectiva do<br />
currículo intertranscultural, podemos defini-lo como sendo um processo de mudança<br />
e de antecipação do futuro, que estabelece princípios, diretrizes e propostas de ação<br />
para melhor organizar, sistematizar e significar as atividades desenvolvidas pela<br />
escola como um todo. Sua dimensão político-pedagógica caracteriza uma<br />
construção ativa e participativa dos diversos segmentos escolares - alunos e alunas,<br />
pais e mães, professores e professoras, funcionários, direção e toda a comunidade<br />
escolar. Ao desenvolvê-lo, as pessoas ressignificam as suas experiências,<br />
reconhecem as suas diferenças, mantêm e ao mesmo tempo transcendem a sua<br />
cultura na interação com outras culturas, vivenciam conflitos, aprendem com eles,<br />
refletem as suas práticas, resgatam, reafirmam e atualizam os seus valores na troca<br />
com os valores de outras pessoas, explicitam os seus sonhos e utopias,<br />
demonstram os seus saberes, dão sentido aos seus projetos individuais e coletivos,<br />
reafirmam as suas identidades, estabelecem novas relações de convivência e<br />
indicam um horizonte de novos caminhos, possibilidades e propostas de ação. Este<br />
movimento visa à promoção da transformação necessária e desejada pelo coletivo<br />
escolar e comunitário. Nesse sentido, o projeto político-pedagógico é práxis, ou seja,<br />
ação humana transformadora, desinstaladora de certezas, resultado de um<br />
planejamento dialógico, resistência e ao mesmo tempo alternativa ao projeto de<br />
escola e de sociedade burocrático, centralizado, descendente, político, social,<br />
89 Os conceitos de daltonismo cultural e bilinguismo cultural, segundo nota do autor, “fazem parte de<br />
uma problemática de conceitos em desenvolvimento – que também inclui outros como dispositivo de<br />
diferenciação pedagógica, interculturalidade invertida, interface de educação inte/multicultural” (Stoer,<br />
2001:267). Estes conceitos são discutidos no livro intitulado Levantando a Pedra (Stoer & Cortesão,<br />
1999).
econômico e culturalmente injusto. Ele é movimento de ação-reflexão-ação, que<br />
enfatiza o grau de influência que as decisões tomadas na escola exercem nos<br />
demais níveis educacionais e, por conseguinte, nas relações entre Estado e<br />
educação escolar.<br />
A discussão sobre o conceito de projeto político-pedagógico é relativamente<br />
recente e tomou força, no Brasil, principalmente, a partir de década de 90, onde<br />
localizamos os principais trabalhos relacionados ao mesmo. Mesmo assim, ainda<br />
não é possível determinar com exatidão quando surge o termo projeto político-<br />
pedagógico. Conforme Adalberto Dias de Carvalho e Manuela Afonso, o conceito de<br />
projeto "no terreno muito concreto da educação institui-se como estratégia<br />
pedagógica dado o seu potencial valor formativo" (Carvalho, 1993:16).<br />
Hoje são muitos os autores, professores, pesquisadores e instituições que<br />
discutem, estudam e escrevem sobre projeto político-pedagógico, visando à<br />
melhoria da qualidade do ensino, da construção da autonomia da escola e das redes<br />
e sistemas educacionais em nível municipal, estadual e nacional. No Brasil, Moacir<br />
Gadotti e José Eustáquio Romão são referências sobre o tema. Consideram o<br />
projeto político-pedagógico um processo que define um horizonte e uma direção<br />
para a ação, alicerçado no resgate do cotidiano das pessoas e da instituição escolar,<br />
como das finalidades da educação.<br />
Encontramos uma coletânea de textos, entre os quais outro artigo do<br />
professor Moacir Gadotti, organizado pelo professor Mário Osório Marques, que foi<br />
discutido durante Conferência Nacional de Educação para Todos, em Brasília. Neste<br />
trabalho são apresentados os fundamentos e os princípios para a elaboração do<br />
projeto. (Marques, 1994). Trata-se de um texto-referência sobre o tema. Ainda, no<br />
livro intitulado Autonomia da Escola: princípios e propostas (Gadotti & Romão,<br />
1997e:43-50), Moacir Gadotti apresenta o artigo "Projeto político-pedagógico da<br />
escola: fundamentos para a sua realização" (Gadotti, 1997a), onde discute a<br />
reivindicação de um projeto político-pedagógico próprio de cada escola na<br />
perspectiva da Escola Cidadã.<br />
271<br />
Outros autores nacionais que têm escrito sobre o tema são: Danilo Gandin<br />
(1995), Celso dos Santos Vasconcelos (1995; 2000), Ilma Passos Alencastro Veiga<br />
(1997; 1997), todos voltados para a evolução da práxis relacionada à construção do
projeto político-pedagógico da escola. Discutem de forma aprofundada as várias<br />
dimensões da planificação e do projeto educacional. Mas nos perguntamos: o que<br />
fazer para operacionalizar o projeto político-pedagógico da escola sem oferecermos<br />
“receitas prontas” nem mesmo apresentarmos modelos que possam significar uma<br />
espécie de “camisa-de-força”? É o que discutiremos a seguir.<br />
Quando nos referimos, no decorrer deste trabalho, à possibilidade da construção de<br />
uma escola curiosa, alegre e aprendente, desde a sua epígrafe introdutória, visamos à<br />
superação dos “procedimentos autoritários ou personalistas que impedem ou dificultam o<br />
exercício da curiosidade do educando” (<strong>Freire</strong>, 1997b:94). É nesse sentido que falamos da<br />
curiosidade na escola e na educação, tanto por parte do professor como dos demais sujeitos<br />
que, direta ou indiretamente, lá convivem. E este é, ao nosso ver, outro aspecto fundamental<br />
para a viabilização do projeto político-pedagógico da escola, para a sua (re)significação para<br />
as pessoas, porque associado aos seus projetos de vida, aos seus históricos de vida e às suas<br />
experiências mais imediatas. Porque, quando resgatam a cultura e ampliam o horizonte delas<br />
na interação superadora com outras culturas, o projeto se realiza, se operacionaliza e, por<br />
conseguinte, dá sustentação à construção do currículo intertranscultural que estamos<br />
conformando.<br />
A idéia básica é enfatizar o sentido do fazer político-pedagógico na<br />
escola numa perspectiva intertranscultural. Cada pessoa e cada segmento<br />
escolar ressignificando a sua história, as suas próprias vidas, diferenças, crenças,<br />
superando limites, enfrentando conflitos, desafiando e refletindo as suas próprias<br />
práticas, convivendo com a correlação de forças de forma ética, estética e<br />
ecopedagogicamente ampliando o seu ser-estar-sentir-saber-pensar-vivenciar-<br />
ensinar e (re)aprender na escola e no mundo em que vive, tomando pé e refletindo<br />
individual e coletivamente sobre condições concretas em que a instituição escolar, a<br />
sua comunidade e a sociedade se encontram.<br />
272<br />
É necessário mais plantar do que implementar e implantar o projeto e o<br />
currículo intertranscultural. Para começar a construção do projeto político-<br />
pedagógico da escola, cada pessoa busca o sentido mais profundo da sua presença<br />
na escola e do significado de sua ação nela e da própria existência dessa instituição.<br />
Para tanto, procura-se criar clima e espaços favoráveis para a construção do projeto,<br />
de forma a que as pessoas sintam prazer em participar e em colaborar para a<br />
mudança da escola: todos se tornam parte e co-responsáveis pelo projeto, desde o
início da sua elaboração e durante as várias etapas de sua realização,<br />
operacionalização, avaliação e atualização permanentes.<br />
Concretamente: refletir individual, coletiva e participativamente sobre a<br />
escola, sobre os seus problemas, sobre os seus êxitos, reconhecer e resgatar a<br />
alegria, a felicidade de cada pessoa e também os êxitos e acertos delas na<br />
instituição escolar, valorizar o encontro das pessoas e dos grupos, investir nas<br />
festas junto à comunidade escolar, multiplicar os espaços de trocas e de relações<br />
interculturais na escola e construir o seu currículo intertranscultural, tornar mais<br />
bonito o espaço físico escolar para que todos sintam prazer de chegar e de<br />
permanecer na escola (<strong>Freire</strong>, 1997b:160).<br />
Conviver nesta instituição e entender o seu espaço como um jardim, a escola<br />
como jardim (Gadotti, 2002:13). Estamos falando da dimensão estética deste<br />
projeto, que se caracteriza por ser eco-político-pedagógico: ética e estética,<br />
sustentabilidade e virtualidade, referências e princípios indispensáveis para a feliz<br />
operacionalização, concretização e realização efetiva do projeto escolar e para a<br />
superação da lógica da exclusão via currículo da escola.<br />
Ao organizar e sistematizar esta fase da construção do projeto, levanta-se a<br />
visão de mundo e de ser humano dos diferentes segmentos escolares, seus sonhos<br />
e utopias, etapa que Celso dos S. Vasconcellos (1995, 2000) chama de "Marco<br />
Referencial". Após isso, pensar as possíveis propostas de ação para os diferentes<br />
problemas levantados e diagnosticados, além de apontar soluções com base nas<br />
experiências comprovadamente positivas e exitosas da comunidade escolar. Trocar<br />
experiências dentro e fora da escola (escolares e interescolares) é fundamental<br />
nesse processo, com vistas à (re)construção ou (re)orientação do currículo escolar,<br />
da proposta pedagógica da escola, que é a dimensão propriamente pedagógica do<br />
projeto, onde se apresentam em detalhes as ações e a operacionalização das ações<br />
e relações docentes e discentes, voltadas para a reconstrução do conhecimento.<br />
273<br />
Os princípios de convivência, o regimento escolar e, por conseguinte, o<br />
próprio currículo da escola, florescem também deste movimento e neste processo,<br />
permitindo a escrita e a sistematização organizada e democrática dos pensares,<br />
fazeres, aprenderes e formas de ser e de se relacionar de todas as pessoas, criando<br />
novos textos e novos contextos culturais. A escola requer respostas concretas e
ápidas para os seus problemas e o reconhecimento imediato dos seus êxitos. Por<br />
isso o seu projeto e o seu currículo, ao invés de tecnicizar e burocratizar as ações e<br />
as relações, busca formas criativas e ousadas de dinamizá-las, sistematizando as<br />
experiências sem, contudo, tornar complicado o que pode ser simples. Por outro<br />
lado, não deixa de reconhecer a natureza complexa de toda atividade humana.<br />
Reconhece, sim, a necessidade de humanizar todas as relações, dando novas cores<br />
aos seus contextos vivenciais e, por conseguinte, aos seus projetos de futuro.<br />
Como dissemos, a reflexão sobre a própria prática, sobre os pensares,<br />
saberes, fazeres e aprenderes individuais e coletivos, permite o desvelamento da<br />
própria necessidade de melhor organizar ou reorganizar o trabalho na escola, o que,<br />
muitas vezes, está encoberta pela força das urgências cotidianas. Alteram-se, desta<br />
forma, concretamente, as vivências do presente, ao mesmo tempo em que se pensa<br />
o futuro. Este processo permite ao coletivo escolar perceber que, muitas vezes, ao<br />
invés de se cuidar da organização de uma unicidade de ações voltadas para o<br />
melhor desenvolvimento das atividades e das relações ali estabelecidas, ou mesmo<br />
de procurar ampliar a consolidação dos trabalhos da escola junto às demais<br />
instâncias ou níveis de gestão educacional, há uma maior entrega às urgências e<br />
mesmo às burocracias do cotidiano – entendidas como organização hierárquica e<br />
não democrática. A escola deixa de lado o que é mais importante – dar e qualidade<br />
didático-pedagógica à organização do nosso trabalho, significar a própria vida, as<br />
relações pessoais e interpessoais, o verdadeiro sentido de educar – para se<br />
entregar ao tarefismo, às vezes ao projetismo – quando a escola se perde na<br />
realização de tantos projetos e no cumprimento de tantas obrigações sem saber,<br />
exatamente, o significado e a importância deles para as pessoas e para a escola.<br />
274<br />
Ao invés de se dedicar à definição dos princípios, das diretrizes, das<br />
prioridades, da organização e distribuição responsável e democrática do trabalho a<br />
ser realizado pela escola, de trabalhar, executar e avaliar as atividades<br />
conjuntamente, visando ao alcance das finalidades mais fundamentais de um projeto<br />
educacional humanizante e emancipatório, acontece justamente o contrário. A<br />
escola passa a funcionar como uma engrenagem que independe dos sujeitos; por<br />
isso mesmo, eles se tornam vulneráveis à burocracia, controlados-controladores,<br />
amedrontados, às vezes paranóicos e, por conseguinte, descartáveis. Deixam de<br />
conviver, de viver, de terem prazer, para investir na competição, na produção
automatizada, na valorização das estatísticas, no acúmulo dos conteúdos e na<br />
obediência aos currículos alternativos-oficiais ou oficiais-alternativos – de qualquer<br />
maneira, como já vimos, sem nenhum sentido emancipador ou humanizador.<br />
Com a vivência da construção do projeto, assumida como pertencente a toda<br />
a comunidade escolar, evita-se a sobreposição de ações, até porque se encara de<br />
frente este problema e os desafios dele decorrentes. O objetivo, neste particular, é<br />
parar para repensar e para ressignificar as práticas, os fazeres da escola, o que<br />
gera, no mais das vezes, um processo conflituoso mas, certamente, criativo e<br />
gerador de novas práticas e posturas político-pedagógicas. Nesse sentido, o/a<br />
educador/a, por exemplo, revê o seu próprio projeto político-pedagógico pessoal,<br />
não numa dimensão de isolamento, mas na consonância, no encontro com as<br />
atividades desenvolvidas pelo coletivo de pessoas com o qual ele/a trabalha.<br />
Para sistematizar este processo de mudança, de práticas e de reflexão sobre<br />
as mesmas, o registro é fundamental para que os pequenos detalhes, as pequenas<br />
adequações do trabalho, das ações, das relações pessoais e interpessoais, possam<br />
ser observadas pelos diversos participantes da construção coletiva do projeto e do<br />
currículo intertranscultural.<br />
A avaliação dialógica e continuada do processo permite o reconhecimento<br />
dos êxitos e avanços da escola, o que retroalimenta as futuras ações, estas, que<br />
refletem igualmente adequações e alterações dos tempos e espaços eco-político-<br />
pedagógicos também nos demais níveis de decisão e de gestão do processo<br />
educacional. Mas, mostra, também, os problemas, os erros, os desafios e os limites<br />
da ação e das próprias relações estabelecidas, oferecendo, assim, um novo<br />
referencial para a mudança de rumos que a escola pretende realizar.<br />
275<br />
Neste novo contexto, a comunidade escolar organiza a sua própria ação e<br />
reorganiza as suas relações conforme as suas experiências intertransculturais<br />
evidenciadas no processo. Tais vivências permitem a negação do preconceito, da<br />
exclusão, bem como o enfrentamento das dificuldades e a superação dialógica, por<br />
exemplo, das experiências de violência escolar tão comuns hoje em dia, porque<br />
permite ressignificar as relações de poder na instituição educacional, rever conceitos<br />
disciplinares e relacionais, potencializando a reflexão sobre direitos e deveres, bem
como a construção processual da autonomia dos sujeitos individuais e coletivos,<br />
implicando em relações democráticas ativas e efetivamente participativas.<br />
A reflexão sobre a prática, etapa permanente de avaliação e de reconstrução<br />
do projeto, permite, aí sim, a melhor compreensão e entendimento do significado<br />
conceitual e vivencial do que seja um projeto politico-pedagógico. E tudo isso exige,<br />
sem dúvida, a formação continuada do/a professor/a e de todos os segmentos<br />
escolares: alunos e alunas, pais e mães, funcionários e funcionários, membros da<br />
direção da escola e demais integrantes da comunidade escolar. Um processo de<br />
formação hoje requerido pelas escolas e pela comunidade, que aparece nos seus<br />
projetos como uma de suas importantes demandas que necessitam ser atendidas<br />
prioritariamente, até mesmo como forma de dar um caráter de permanência ao seu<br />
próprio projeto.<br />
Mas aqui nos deparamos com a grande pergunta: Por onde começar?<br />
Em Pedagogia da Autonomia (1997b), <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> nos lembra a necessidade<br />
de não transformarmos a experiência educativa em algo puramente técnico, pois<br />
isso seria amesquinhar o caráter humano da formação da pessoa. Fala-nos, ainda,<br />
da importância do incentivo à curiosiadade, imaginação, emoção, intuição do aluno<br />
e do professor, sempre associados à necessária rigorosidade da pesquisa científica.<br />
Nesse contexto, vários são os caminhos para iniciar, na escola, a elaboração do seu<br />
projeto político-pedagógico e, a partir daí, a ressignificação do seu currículo numa<br />
perspectiva intertranscultural. Com base nesta pesquisa e no conjunto das nossas<br />
reflexões até aqui apresentadas, oferecemos alguns indicadores que respondem ao<br />
nosso desafio inicial: como transformar a escola num espaço curioso, prazeroso e<br />
aprendente? É o que tentaremos responder agora.<br />
276<br />
Quando a escola consegue criar, aos poucos, uma ambiência favorável ao<br />
trabalho coletivo, alcançada através do esforço democrático e criativo, em que as<br />
atribuições de cada segmento escolar são claramente compreendidas por todos, ela<br />
vai formatando a sua própria autonomia, sempre relativa. A autonomia aqui<br />
entendida como conquista (Pedro Demo) e não doação de alguém para outro<br />
alguém ou de uma instituição para outra. O envolvimento com satisfação no projeto<br />
político-pedagógico e na construção do currículo de uma escola, depende da criação<br />
de vários espaços e tempos para que ele aconteça – espaços e tempos para
pesquisas, encontros, festas, reuniões, discussões, confrontos de poder,<br />
organização social, confraternizações, passeios, estudos etc – e do estabelecimento<br />
de relações democráticas, de confiança e de comprometimento com as atividades<br />
que são desenvolvidos na instituição escolar.<br />
Procura-se criar, na escola, uma ambiência democrática, comunicativa,<br />
dialógica e, portanto, intertranscultural – que trabalha profundamente os textos, as<br />
relações, os contextos e os meta-contextos recriados permanentemente nos vários<br />
Círculos de Cultura. Gradual e ascendentemente, amplia-se o envolvimento de todos<br />
os segmentos na definição do projeto e do currículo da escola, dando novo sentido à<br />
própria educação escolar, associada à educação comunitária, aos movimentos<br />
sociais, à “energia emancipadora” presente nestes vários espaços sociais e<br />
políticos, sem que haja hierarquias sociais, culturais e humanas validadas pela<br />
escola. Isso ressignifica o trabalho pedagógico para professores, alunos e demais<br />
membros da comunidade escolar que, então, passam a conviver e a decidir sobre o<br />
currículo da escola.<br />
A perspectiva ecopedagógica nos indica a possibilidade de iniciarmos este<br />
trabalho considerando a “escola como jardim”. Para Moacir Gadotti isto significa uma<br />
escola visualmente bonita, bem cuidada, festiva, alegre e feliz. Aqui já entramos<br />
numa outra dimensão de nossa reflexão, ou seja, buscando respostas sobre como é<br />
possível tornar a escola e a educação escolar realmente mais feliz. Nessa direção, o<br />
“querer bem” (<strong>Freire</strong>, 1997b) e o saber cuidar (Boff, 2002) são pressupostos iniciais<br />
e básicos para a transformação e melhoria da escola que sonhamos e estamos<br />
construindo.<br />
Encontramos também em Georges Snyders uma excelente manifestação da<br />
busca de uma escola prazerosa, que trabalha na perspectiva da satisfação, da<br />
amplitude, da plenitude da aprendizagem que tão caracteriza o currículo<br />
intertranscultural ao qual temos nos referido até aqui, presente em certa medida nas<br />
experiências às quais os referimos, mas que ainda é uma utopia a ser construída<br />
pela Escola Cidadã. De qualquer maneira, utopia em parte já realizada, uma vez que<br />
ela alimenta os sonhos e a Escola Cidadã já tem alcançado e concretizado, como<br />
pudemos constatar, vários destes sonhos. Nesse sentido, Snyders afirma:<br />
277
Quero encontrar a alegria na escola no que ela oferece de particular, de<br />
insubstituível e um tipo de alegria que a escola é única ou pelo menos a mais bem<br />
situada para propor: que seria uma escola que tivesse realmente a audácia de apostar<br />
tudo na satisfação da cultura elaborada, das exigências culturais mais elevadas, de uma<br />
extrema ambição cultural?<br />
Determinando logo que há, que se trata de resgatar, até mesmo de criar um<br />
conjunto cultural que se possa propor a cada idade: o conjunto cultural para uma criança<br />
de oito anos é a elaboração de suas experiências, de suas surpresas, de seus<br />
questionamentos – bem como a sua linguagem, e o cultural estende-se a todos os<br />
domínios da atividade quando ela atinge o brilho do sucesso; então cada<br />
individualidade, cada classe social pode aí encontra seu proveito.<br />
Minha escola: uma alegria que brota de um encontro com as obras de arte,<br />
desde os grandes poemas de amor até as realizações científicas e técnicas, de uma<br />
tensão em direção aos mais realizados sucessos humanos, de uma participação, de um<br />
certo modo de participação nos movimentos organizados pelo que os homens se<br />
esforçaram para progredir em seus estilos de vida (...) ousar proclamar a escola, o que<br />
eu ousaria chamar, às vezes, de ‘minha’ escola, como o lugar da satisfação, a escola<br />
partindo para a conquista da satisfação. ‘Vocês verão, vocês compreenderão quando<br />
forem grandes, isto lhes servirá quando vocês crescerem’. Provavelmente é verdade,<br />
mas quero que os jovens tenham satisfação imediatamente, na sua vida de jovens.<br />
Um lugar onde teremos a ousadia de visar à grandeza, apostar na grandeza<br />
(...) e que se chegue até as grandes verdades, às convicções fortes; não obrazinhas. (...)<br />
A primeira reforma da formação dos professores seria para mim que eles atingissem um<br />
entusiasmo cultural, a confiança de que a cultura que eles ensinam pode dar satisfação<br />
a seus alunos; num certo sentido, ela está destinada a dar satisfação; ensina-se para dar<br />
satisfação; ao mesmo tempo em que se estuda matemática, alunos e professores juntos<br />
devem se questionar, sobre a satisfação que se poder te em fazê-lo. (Snyders, 1988:13-<br />
14). Grifos nossos.<br />
Esta dimensão da alegria que propõe a transformação dos conteúdos<br />
culturais é, sem dúvida, fundamental que seja considerada. Mas vamos mais além,<br />
pensando também nas alegrias da vida cotidiana, reconhecendo na “cultura<br />
primeira”, como faz Snyders, o seu enorme valor, porque mobilizadora de outras<br />
manifestações culturais.<br />
278<br />
Entendemos que escola bem cuidada é aquela onde convivem pessoas que,<br />
em primeiro lugar, cuidam-se enquanto seres humanos, individual e coletivamente.<br />
Pessoas que se valorizam, que estão sempre ou quase sempre motivadas e que são
capazes de se organizar em torno de desejos comuns. Quem gosta de freqüentar<br />
uma escola suja, feia, depredada, pichada, com mal cheiro, cheia de muros e de<br />
grades? Que prazer sentimos em adentrar numa escola assim? Sentir-se bem na<br />
escola exige inicialmente a preocupação com a sua estrutura física, com a<br />
conservação das suas dependências e diferentes espaços como o seu jardim, a sua<br />
horta, as suas possíveis áreas livres e áreas esportivas para que alunos,<br />
professores e comunidade possam ocupar, freqüentar e explorar de forma lúdica,<br />
alegre, científica, pedagógica. Quanto menos cimento melhor. E se a escola não<br />
conta com estes espaços, nestas condições, razão maior possui para que se<br />
dedique a reivindicá-los, a lutar por eles e, por conseguinte, a conquistá-los.<br />
Estas reflexões nos remetem ao resgate da história de vida que fizemos no<br />
início deste trabalho, quando evidenciamos as inquietações do menino que não via a<br />
escola estimulando a sua curiosidade, nem possibitando aprendizagens<br />
significativas, nem tampouco oferecendo-lhe momentos de prazer. Como<br />
educadores que somos, carregamos em nós, conforme enfatiza Mário Sérgio<br />
Cortella, “uma idéia irrecusável: gente foi feita para ser feliz!” (1998:157). E se é<br />
assim, o nosso trabalho traz a “paixão pela inconformidade de as coisas serem<br />
como são; paixão pela derrota de desesperança; paixão pela idéia de, procurando<br />
tornar as pessoas melhores, melhorar a si mesmo ou mesma; paixão, em suma,<br />
pelo futuro” (ib.). Futuro dos nossos filhos, dos nossos alunos, das nossas crianças e<br />
da humanidade. Nesse sentido, a nossa ciência não se afasta da nossa dimensão<br />
humana nem, portanto, da busca de uma escola que resgate a possibilidade de<br />
aprendizagens humanizadoras, prazerosas e curiosas. Mas como fazê-lo?<br />
279<br />
Nenhuma conquista ou mudança fundamental acontece gratuitamente, sem<br />
esforços, sem luta e sem conflito. Aí está a dimensão política do ato educativo. Daí a<br />
necessidade do projeto político-pedagógico para fortalecer a dimensão ideológico-<br />
política do próprio currículo intertranscultural, para que não se confunda esta<br />
perspectiva de currículo com mais uma concepção de currículo “alternativa”,<br />
negadora de outras experiências. O currículo intertranscultural registra, procura<br />
enfrentar e superar os conflitos da escola, das pessoas, os seus desafios, os seus<br />
paradoxos, os seus problemas no limite e na profundidade das suas diferenças,<br />
criando, como já dissemos, movimentos, ações, relações e contextos favoráveis ao
alcance das mudanças desejadas. Necessidades e desejos que mobilizam a ação e<br />
que mudam, mais do que transformam, as relações.<br />
Para alcançarmos os nossos objetivos, uma outra possibilidade e, por<br />
conseguinte, um outro indicador de ação para a conformação do currículo<br />
intertranscultural, é a realização do que poderíamos chamar de “Festa da Escola<br />
Cidadã”.<br />
A festa da escola cidadã pode ser entendida como momentos de<br />
descontração, de alegria, de encontro, de satisfação e, sobretudo, de resgate<br />
permanente da cultura popular. Ela pode se traduzir em atividades potencializadoras<br />
de processos altamente político-pedagógicos e intertransculturais, superadores de<br />
preconceitos, reconhecedores e tradutores de diferenças e de hibridismos culturais,<br />
capazes de clarificar os processos de exclusão e desigualdade tantas vezes<br />
presentes e invisíveis na escola. 90 A festa entendida enquanto espaço-tempo de<br />
ações e relações capazes de integrar e permitir que as pessoas se reconheçam<br />
iguais e diferentes, portanto, que evidencie particularismos e universalismos<br />
presentes da multidimensionalidade e na complexidade do ser humano e da<br />
realidade que ele próprio constrói.<br />
Nesse sentido, podemos oferecer indicadores concretos, para atingir tais fins,<br />
que seriam referencias para a realização da festa da escola cidadã, entendida,<br />
desde já, como primeiro momento da leitura do mundo para a construção do<br />
projeto político-pedagógico da escola e, portanto, do seu currículo intertranscultural.<br />
280<br />
A “leitura do mundo” é este conhecimento da realidade para nela intervirmos<br />
democrática e participativamente, que pode favorecer, por exemplo, um trabalho<br />
contínuo de avaliação e de reconstrução do próprio projeto de vida, de escola, de<br />
90 Só para dar um exemplo desta exclusão também presente nas festas populares, Mário Sérgio<br />
Cortella cita, em seu livro intitulado “A escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e<br />
políticos” (1998), o caso do simulacro das “festas juninas” tão comum em nossas escolas. Cortella<br />
nos fala da festa junina que fantasia e caracteriza o “caipira” com “roupas remendadas, dentes<br />
falhados, bigodes e costeletas horrorosas, chapéus esgarçados, andar trôpego e espalhafatoso e um<br />
falar incorreto” (ib.: 149), sem que, na sua maioria, as escolas expliquem a origem dessa festa, a<br />
importância do cidadão do campo, a sua dignidade humana e os porquês muitas pessoas, na cidade<br />
ou no campo, ainda vivem em condições de pobreza, subhumanas. Como completa o mesmo<br />
professor, também não se trata de “ficar fazendo ‘discurso político’ para as criancinhas, tornando o<br />
ensaio um espaço panfletário; porém, não se pode omitir a realidade completamente e achar que a<br />
vida rural (sem reforma agrária) é uma delícia, festa contínua” (ib.:150). A festa na escola, da qual<br />
falamos, numa perspectiva intertranscultural, continua realizando “festa junina”, mas com o cuidado<br />
para não reforçar o preconceito, a exclusão, nem considerar normal ou engraçado a injustiça social e<br />
os seus efeitos na sociedade.
cidade ou de sociedade da equipe escolar, que é convidada a refletir, observar e<br />
reconhecer no que as pessoas, grupos e instituições participantes deste processo<br />
são parecidas, iguais ou diferentes. Demandas permanentes e esporádicas da<br />
comunidade, satisfações e insatisfações dos jovens que estão dentro e fora da<br />
escola, também podem ser mobilizadas e registradas na festa, o que facilita a<br />
aproximação da comunidade com a escola e melhora as relações pessoais e<br />
interpessoais, dentro e fora dela.<br />
A festa da escola cidadã, como também outros encontros intertransculturais<br />
que podem se realizar na escola e nos diversos espaços e contextos comunitários,<br />
ampliam e criam novos espaços relacionais, novos Círculos de Cultura, “entre-<br />
lugares” criativos e aprendentes, mais do que transmissores, reprodutivos e<br />
puramente pseudo ensinantes, como se fosse efetivamente possível apenas ensinar<br />
sem aprender. Sermos aprendentes significa compreendermos, como nos ensina<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, que “aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar,<br />
o que não se faz sem abertura ao risco e à eventura do espírito” (1997b:77).<br />
Realizar ou construir a festa da escola cidadã e, por conseguinte,<br />
processualmente enfrentar o desafio da consolidação de um currículo<br />
intertranscultural, exige esta aventura ao risco, esta visita ao desconhecido, este<br />
enfrentamento do que aparentemente é imutável (um outro mundo é possível!).<br />
Exige, ainda, esta aproximação disciplinar, interdisciplinar, poli, multi e<br />
transdisciplinar das diversas ciências, mas articulada à superação das lógicas<br />
binárias, excludentes, bipolares. Significa este conviver com o complexo, com o<br />
aparentemente inaceitável, e superar a negação fragmentária da realidade, que<br />
opera com o que é simples e objetivamente fenomenal, isolando o que é intangível,<br />
transcendental, poético ou espiritual – fazendo-o, muitas vezes, ou por preconceito,<br />
ou por medo sem ousadia, ou, o que é pior, motivado por convicções ideológico-<br />
políticas negadoras do direito e do saber do outro, defensoras, portanto, do status<br />
quo e da manutenção da exclusão (cultural) bem como da desigualdade<br />
(econômica).<br />
281<br />
Assumir estas novas perspectivas do currículo intertranscultural na escola<br />
significa desfazer-se da arrogância ou da presunção do conhecimento único, como<br />
se o meu conhecimento, a minha ciência, a minha emoção, o meu olhar, fosse o<br />
mais razoável ou, ainda, o único válido e verdadeiro. Estamos, pois, na dimensão do
aprender a amorosidade, a transcendência, ao mesmo tempo, simultaneamente à<br />
aprendizagem da ciência, da técnica, das lógicas, das dialogias. E sem sermos<br />
piegas, nem ingênuos, nem violentos. Fazermos ciência como quem faz vida porque<br />
entende que uma coisa é inseparável da outra, da mesma forma que a ciência é<br />
inseparável da arte, da emoção e das diferentes manifestações e representações<br />
simbólicas do ser humano. E entendendo todas estas possibilidades acontecendo<br />
como encontros festivo-pedagógicos nos Círculos de Cultura da escola e da<br />
comunidade – na dimensão glocal. Estes espaços se tornam, todos, espaços de<br />
conflito, de amorosidade, de querer bem, não de uma coisa ou outra.<br />
Como mais uma vez nos ensina <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>,<br />
a minha abertura ao querer bem significa a minha disponibilidade à alegria de viver.<br />
Justa alegria de viver, que, assumida plenamente, não permite que me transforme num<br />
ser ‘adocicado’ nem tampouco num ser arestoso e amargo”. A atividade docente de que<br />
a discente não se separa é uma experiência alegre por natureza (...) Ensinar e aprender<br />
não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria. (<strong>Freire</strong>, 1997b:160).<br />
Falamos de uma escola viva, festiva, séria, ética e esteticamente<br />
ressignificada. Ela considera o conhecimento historicamente acumulado<br />
fundamental para o crescimento do ser humano e possibilita a revisão também<br />
histórica, pelos diversos sujeitos educacionais, com base nos contextos em que<br />
vivem, numa dimensão local e ao mesmo tempo planetária. Por isso falamos de<br />
Ecopedagogia (Gutierrez), de Pedagogia da Terra (Gadotti), de Pedagogia da<br />
Sustentabilidade (Antunes), de Pedagogia Dialógica (Romão). Enquanto mudança<br />
possível, os indicadores aqui apresentados, visando ao currículo intertranscultural,<br />
inverte o que geralmente tem sido proposto numa proposta curricular que<br />
poderíamos chamar de monocultural. Um possível caminho é iniciarmos<br />
organizando e provocando os diferentes encontros e vivências na escola, aos quais<br />
já nos referimos.<br />
282<br />
Diferentes eventos temos encontrado como representativos destas<br />
mobilizações: festivais de música, festas populares, potencializando na escola e na<br />
comunidade, teatro crítico, grupos folclóricos, manifestações da cultura local,<br />
trazendo a comunidade para dentro da escola, reuniões de discussão dos problemas
do bairro, chamamento de todos a contribuir com a melhoria da qualidade de vida e<br />
do ambiente em que vivemos, mutirões de limpeza, de coleta e seleção do lixo,<br />
construção de jardins e hortas na escola e na comunidade, trabalho com projetos de<br />
vida, com os ciclos de vida, situações de encontro e de mobilização comunitária,<br />
incentivo a cursos na escola demandados pela comunidade e patrocinados pelo<br />
Estado em parceria com a Sociedade Civil, mobilizações envolvendo as escolas e os<br />
movimentos sociais para a organização de suas lutas comunitárias e para o<br />
enfrentamento coletivo das dificuldades encontradas, melhorando o nível de<br />
participação dessas comunidades nas diferentes políticas públicas. Numa<br />
perspectiva monocultural essas atividades seriam consideradas como “extras-<br />
escolares” ou “extra-curriculares”. Numa perspectiva intertranscultural elas são<br />
consideradas como “curriculares”, isto é, como parte do percurso, do itinerário<br />
coletivo da escola. Por isso, elas precisam ser registradas e refletidas.<br />
Ao relacionarmos estas e outras experiências, é importante destacar que o<br />
registro das mesmas historicizam o vivido. Ou seja, quando há o registro da<br />
experiência, mesmo que de forma simples e descritiva, estabelecem-se as<br />
condições para a continuidade do processo. Questões simples de serem<br />
respondidas, tais como: o que, com quem e como nos organizamos para fazer o que<br />
fizemos? O que foi mais fácil ou mais difícil? O que planejamos e não conseguimos<br />
fazer? Por quê? O que não planejamos e acabamos fazendo? Quais os conflitos que<br />
vivenciamos? Quais os avanços e eventuais retrocessos? O que aprendemos e o<br />
que ensinamos? Quais os tipos de relações foram estabelecidas no grupo? E,<br />
fundamentalmente, quais as descobertas mais significativas da experiência, quais os<br />
problemas que precisamos enfrentar e resolver, o que desconhecíamos na<br />
comunidade que agora já sabemos? Quais as sensações, as emoções? O que deu<br />
mais prazer e mais medo? E como conseguimos superar as dificuldades e os<br />
problemas surgidos? Quais os nossos maiores êxitos? O que devemos fazer de<br />
novo e o que não vale à pena repetir? Quais foram os registros que passamos a Ter<br />
a partir desta experiência? Quais são as diferentes manifestações sócio-culturais-<br />
políticas e econômicas observadas?<br />
283<br />
Ao respondermos a estas questões, estaremos também nos preparando para<br />
a escrita do projeto político-pedagógico da escola e reunindo elementos concretos,<br />
contextualizados e sobretudo vivenciados sobre como está a nossa escola, como
está relação da escola com a comunidade, o que precisamos mudar para melhorar a<br />
escola, de que mundo queremos fazer parte, que mundo e que escola queremos<br />
para nós, para os nossos filhos e para as futuras gerações? Aí, sim, teremos dado<br />
os passos iniciais e criado as condições para a definição dos princípios, das<br />
diretrizes e das propostas de ação do nosso projeto de escola, de cidade, de<br />
sociedade e de mundo. Teremos nas mãos, no coração e na mente matéria-prima<br />
suficiente para a construção de uma Escola Cidadã que é catalisadora da vida social<br />
e, portanto, mais bela, alegre e prazerosa. O conjunto destas informações,<br />
vivências, relações etc, vai nos dando o currículo intertranscultuaral da escola.<br />
A proposta indicativa da festa de escola cidadã associada à construção<br />
projeto político-pedagógico e à leitura do mundo, contribui para se evitar o risco,<br />
sempre possível e presente, da simplificação da idéia da festa, como se falar em<br />
“festa do povo”, ou em “festa da escola cidadã” fosse “apenas” mais um momento de<br />
lazer, ou de brincadeira, ou de “oba-oba” na escola ou na comunidade. Em primeiro<br />
lugar, há que se alargar a visão setorizada da festa. Isto significa superar as análises<br />
reducionistas que considera a festa como algo alienante. Ao contrário, ela é<br />
justamente, a expressão do maior investimento afetivo que o povo faz num evento<br />
que deve ser, portanto, valorizado. (Ribeiro Júnior, 1982). Estamos no “terreno do<br />
possível”, tentando abrir a possibilidade de, através da alegria, da satisfação e da<br />
valorização da cultura e dos saberes populares, construirmos uma escola mais<br />
significativa e curiosa para os alunos e para toda a comunidade escolar. A festa, que<br />
originalmente seria uma prática mais ligada à educação informal – aquela<br />
representada pelo cotidiano, que geralmente acontece desde a família e que se<br />
reporta às primeiras experiências de vida da pessoa, passa a ser integrada às<br />
chamadas educação não-formal e educação formal 91 . Nesse sentido, quando<br />
falamos de festa na escola, estamos justamente aproximando a escola da<br />
comunidade e resgatando, na perspectiva da escola cidadã e da pedagogia freiriana,<br />
a informalidade.<br />
284<br />
91 Também de acordo com o livro de Jorge Cláudio Noel Ribeiro Júnior (Op cit., p.37), a Educação<br />
Formal acontece especialmente na escola e é dotada de hierarquias, prazos e legislações<br />
decorrentes de sua íntima ligação com o poder. Já a Educação não-formal seria elaborada pelos<br />
meios de comunicação, projetos sociais, publicidade, movimentos da sociedade civil e de educação<br />
popular, integrando projetos de diferentes áreas e dotada de maior elasticidade que a escola. O autor<br />
cita, neste último particular, o professor Carlos Jamil. Cury. Educação e contradição. São <strong>Paulo</strong>,<br />
PUCSP. Mímeo, 1979, 142p.
A festa significa esta incorporação da informalidade ao currículo, como<br />
sempre defendeu <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>. Estamos falando da “leitura do mundo” como<br />
incorporação dos saberes, das manifestações dos interesses populares e da sua<br />
expressividade mais espontânea, da reconstrução dos conhecimentos que serão<br />
trabalhados pela/na escola que, portanto, farão parte do seu projeto político-<br />
pedagógico e do seu currículo. Daí a dimensão e o alcance político-pedagógico da<br />
festa: ela possibilita uma reflexão sócio-antropológica da realidade em que está<br />
inserida a escola.<br />
Giacalone.<br />
É importante destacarmos o significado da festa, como afirma Fiorella<br />
Ela é um evento excepcional, e o é assim exatamente porque rompe as lógicas<br />
do comum, mas esta peculiaridade subentende, no seu interior, muitas e profundas<br />
variáveis de sentido, de valores, de modalidades participativas. A festa fala a linguagem<br />
do “como se”, pois é uma forma espetacular, às vezes diretamente teatral, mas á<br />
exatamente esse “como se” que muda segundo os contextos, os valores culturais e<br />
políticos do momento, e as mudanças dos próprios conceitos de identidades. (Giacalone,<br />
in: Fleuri, 1998:127).<br />
A mesma autora nos fala da dimensão pedagógica da festa, quando esta<br />
desenvolve uma função educativa por, justamente, resgatar e exprimir diferentes<br />
formas de linguagem tais como a escrita, a fala, a linguagem corporal, musical,<br />
visual, que ao mesmo tempo transmitem saberes, competências, além de<br />
significarem para a comunidade um momento lúdico-corporal fundamental para a<br />
sua convivência, para o resgate da sua história e das suas manifestações simbólicas<br />
e expressivas.<br />
Ao realizarmos a festa na escola estaremos também colaborando para o<br />
reconhecimento da multiculturalidade, “como presença de nacionalidade, tradições<br />
diversas, como um dado de algum modo objetivo” (Giacalone, in: Fleuri, 1998:135).<br />
Neste momento, segundo a autora, a multiculturalidade<br />
285<br />
torna-se intercultura quando as diferentes dimensões entram em relação: se “colocam<br />
em jogo”. Se a multiculturalidade pode ser a convivência, mais ou menos alcançada,
entre indivíduos e grupos de nacionalidades distintas, a intercultura é a possibilidade<br />
de um projeto, de uma troca, na qual existe a reciprocidade de olhares e de intenções<br />
na qual se dá o confronto entre identidade/diferença. (Idem, In: Fleuri, 1998:135). (Grifos<br />
nossos)<br />
Sistematizar a festa é muito importante. Mas o mais importante ainda é que<br />
estejamos aproveitando o potencial criativo das comunidades escolares e abrindo<br />
espaços para que as trocas e as relações culturais, interculturais e transculturais<br />
possam acontecer. E isso podemos potencializar através da própria organização da<br />
festa e da garantia das condições para que alunos, professores e toda comunidade<br />
possam resgatar e expressar sua cultura, nas diferentes manifestações artísticas e<br />
criativas.<br />
A festa resgata a cultura do povo. Para realizá-la como “leitura do mundo”<br />
alguns procedimentos precisam ser levados em conta:<br />
1º - Discutir com a comunidade escolar o significado da Festa da Escola<br />
Cidadã para evitar, desde logo, as possíveis simplificações, as resistências e até<br />
mesmo manifestações preconceituosas com a idéia da festa. Buscamos o diálogo<br />
crítico e uma adesão consciente e comprometida com este possível caminho para<br />
iniciarmos a leitura do mundo. Isso precisa ficar claro, até para se garantir também<br />
que outras formas e possibilidades de ler o mundo sejam desde já realizadas, se<br />
assim a comunidade o desejar. Se o preferir, a comunidade ou a escola pode<br />
preferir trabalhar com outras nomenclaturas, outros nomes para identificar este<br />
processo. Por exemplo, pode chamá-lo mesmo de “leitura do mundo”, de “ação<br />
intercultural”, de “projeto intertranscultural na escola e na comunidade”, enfim, pode-<br />
se pensar em diferentes nomes para realizar o que estamos aqui chamando de<br />
“Festa da Escola Cidadã”, de acordo com uma discussão coletiva e uma decisão<br />
democrática a ser realizada feita pela própria escola/comunidade.<br />
286<br />
2º - Constituir na escola uma Comissão da Festa da Escola Cidadã – um<br />
pequeno coletivo instituinte que possa organizar e coordenar todo o processo na<br />
escola. Esta comissão trabalha em total sintonia com os outros colegiados<br />
escolares, como é o caso do Conselho de Escola/Colegiado Escolar/Grêmio<br />
Estudantil, entre outros. Até porque são estes colegiados que possuem as<br />
prerrogativas legais e institucionais para respaldar a realização do trabalho da
comissão, além de, naturalmente, ser necessário que se envolvam profundamente<br />
na realização desta atividade. A sugestão de uma nova comissão é para, muita<br />
vezes, não atribuirmos novas funções aos membros dos colegiados escolares<br />
existentes na escola. Da comissão participam também representantes dos vários<br />
segmentos escolares e, sobretudo, da comunidade, de forma que a escola esteja<br />
efetivamente aberta às pessoas e instituições que desejam colaborar para a<br />
realização da sua festa e da sua “leitura do mundo”. Isso favorece e facilita muito o<br />
sucesso da proposta.<br />
3º - Criar espaços para que a toda a comunidade escolar possa estar<br />
definindo e decidindo, conjuntamente, sobre como será a festa da escola, ou seja,<br />
sobre quais atividades a escola estará desenvolvendo a título desta festa. Dentre<br />
estas atividades, que podem ser múltiplas e variáveis, podemos citar, por exemplo:<br />
4. Apresentações musicais<br />
5. Apresentações teatrais<br />
6. Festivais de música<br />
7. Apresentações de vídeos produzidos pela comunidade escolar e/ou<br />
outras produções escolhidas pela mesma<br />
8. Apresentações de grupos folclóricos e regionais de dança ou de outras<br />
manifestações artísticas e culturais do bairro, da cidade, da região etc.<br />
9. Reuniões para discutir os problemas do bairro e da comunidade ou,<br />
então, para resgatar as suas experiências exitosas – ou ambas as coisas<br />
10. Realização de mutirões de limpeza, de coleta e seleção de lixo etc<br />
11. Atividades interdisciplinares e inter-períodos<br />
12. Realização de oficinas variadas para a participação e formação da<br />
comunidade: música, teatro, cinema, dança, artes marciais, capoeira, hip hop, rádio<br />
escolar e/ou comunitária, grêmio estudantil, formação de pais, fanzine, fantoches,<br />
artesanato, jornal escolar, trabalho com sucata etc;<br />
287
13. Realização de cursos e/ou palestras temáticas demandados pela<br />
comunidade escolar, convidando especialistas e pessoas da própria comunidade<br />
para falar de suas experiências profissionais etc.<br />
4º - Após a definição das atividades, definir responsabilidades, cronograma<br />
das ações e formar os membros da Comissão da Festa para coordenar a<br />
sistematização processual da festa.<br />
5º - Preparar os membros da comunidade para a busca e captação de<br />
recursos para as diferentes ações relacionadas à festa.<br />
6º - Definir um calendário para que haja momentos em que os participantes<br />
das atividades da festa possam apresentar o resultado dos trabalhos para um<br />
público ampliado, em eventos organizando o encontro de várias escolas<br />
(interescolares) e também destes com as escolas de outros pólos etc.<br />
7º - Estar permanentemente dando o retorno à comunidade escolar sobre o<br />
resultado dos trabalhos e das atividades desenvolvidas , após a avaliação coletiva<br />
da festa e de todo o processo<br />
8º - Em regime de colaboração com o Conselho Escolar/Colegiados<br />
Escolares/ Conselho Consultivo e Deliberativo da Escola e demais colegiados ou<br />
comissões existentes na escola e na comunidade, realizar e coordenar a discussão<br />
do Marco Referencial do Projeto político-pedagógico da escola, sobretudo a partir da<br />
sistematização da experiência da festa, cujos registros serão objeto da reflexão de<br />
todos os segmentos escolares e se transformam, por exemplo, em material didático-<br />
pedagógico a ser trabalhado em sala de aula durante todo processo de construção,<br />
execução e avaliação do projeto político-pedagógico da escola. Daí ser este<br />
processo político, pedagógico e aprendente em si mesmo.<br />
9º - Processualmente atualizar o direcionamento do olhar em relação a<br />
determinados enfoques e dimensões que se deseja pesquisar, de acordo com a<br />
própria dinâmica escolar/comunitária, para que a festa esteja sempre voltada para a<br />
construção do currículo da escola e da atualização do seu projeto político-<br />
pedagógico, além de sua dimensão lúdica e prazerosa.<br />
288<br />
10 – Tornar a festa um evento permanente na escola e na comunidade, mas<br />
sempre diferenciada, atualizando linguagens, atividades, oficinas, cursos. E sempre<br />
que possível, trocar experiências com outras escolas, comunidades, bairros,
municípios, estados e também com outros países, visando ao intercâmbio cultural e<br />
científico cada vez mais ampliado. Dessas trocas de experiências, procurar registrar<br />
sempre o processo e as suas consolidações, de forma a que as decisões nos<br />
diferentes níveis possam servir, efetivamente, como subsídios fundamentais para a<br />
definição das políticas públicas educacionais.<br />
Como vimos, são várias as possibilidades da realização da festa da escola<br />
cidadã e inúmeros os seus possíveis formatos. Cada escola deve ter a possibilidade<br />
de escolher o seu, de criar e inovar. O fundamental é que haja um movimento<br />
positivo na escola e na comunidade e que escolhas sejam feitas, processualmente,<br />
para orientar o olhar para determinadas dimensões e características de interesse da<br />
própria da comunidade escolar. Porque o projeto político-pedagógico da escola,<br />
nascido da leitura do mundo, estará ressignificado e será resultado de um<br />
planejamento dialógico, participativo, interativo, e não mais representará apenas um<br />
documento burocrático, puramente técnico e sem vida.<br />
É importante, por outro lado, que sempre nos perguntemos sobre como<br />
podemos manter, melhorar e ampliar o processo de leitura do mundo 92 . Nesse<br />
sentido, algumas questões não podemos perder de vista: como ampliar a leitura do<br />
mundo? Que dados precisamos coletar e quais informações nos interessam mais<br />
imediatamente neste ou naquele momento? Estamos lendo a escola nas suas<br />
diferentes dimensões: administrativa, pedagógica, financeira, social, cultural? Os<br />
diferentes olhares estão sendo contemplados (pais, alunos, crianças, adultos,<br />
funcionários etc.)? Eles se referem à escola? À comunidade? A ambos? E a que<br />
dimensões já estudadas eles devem se referir? Onde vamos buscar (novas)<br />
informações, até mesmo para a realização de outras festas na escola? Quais<br />
perguntas já nos fizemos, quais problemas já resolvemos, que tipos de registros já<br />
possuímos e quais outros ainda não temos? Enfim, como melhorar a nossa festa e a<br />
nossa leitura do mundo para que o nosso projeto político-pedagógico esteja sempre<br />
atualizado?<br />
289<br />
Para concluir, reafirmamos que é muito ampla a possibilidade que temos de<br />
orientar o nosso olhar para a “leitura do mundo”, e isso é, na verdade, uma opção<br />
que a escola faz em determinado momento, de acordo com as suas experiências,<br />
92 Antunes, Ângela. Leitura do Mundo no contexto da planetarização: por uma pedagogia da<br />
Sustentabilidade. Tese de doutoramento. São <strong>Paulo</strong>, FE-USP, 2002.
vivências ou problemas mais imediatos. Até porque não é possível resolver todos os<br />
problemas ao mesmo tempo nem tampouco enfrentar tudo de uma vez, é que a<br />
escola precisa se organizar e fazer escolhas e definir prioridades. E isso se aplica<br />
também à sua festa.<br />
Pensamos que, diante desta perspectiva, a escola estará se conhecendo<br />
melhor. Como afirma Gilberto Velho,<br />
para conhecer certas áreas ou dimensões de uma sociedade é necessário um contato,<br />
uma vivência durante um período de tempo razoavelmente longo, pois existem aspectos<br />
de uma cultura e de uma sociedade que não são explícitos, que não aparecem à<br />
superfície e que exigem um esforço maior, mais detalhado e aprofundado de observação<br />
e empatia” (Gilberto Velho, in: Edson NUNES, 1978:36-37).<br />
A festa como caminho da “leitura do mundo” vai sendo aos poucos<br />
aperfeiçoada, aprendida e melhor organizada, servindo como matriz para a<br />
realização das sínteses necessárias para que a escola construa o seu marco<br />
referencial e o seu projeto político-pedagógico 93 . E na continuidade deste processo<br />
poderemos também decidir, além das prioridades e propostas de ação do projeto<br />
político-pedagógico da escola, sobre os eixos para a definição, por exemplo, do<br />
plano municipal ou estadual de Educação, que será então consubstanciado nas<br />
experiências das escolas e das suas respectivas comunidades. Assim a escola<br />
estará trabalhando, conforme afirmamos anteriormente, na perspectiva do<br />
planejamento dialógico e as respectivas redes ou sistemas educacionais na do<br />
planejamento socializado e ascendente, estes que, por sua vez, estão<br />
fundamentados no universo de princípios político-pedagógicos desenvolvidos por<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> e por todos aqueles que procuram, no cotidiano de suas ações,<br />
continuar e ampliar o seu legado.<br />
290<br />
Apresentamos até aqui algumas orientações e elementos práticos sobre como<br />
a escola pode se organizar para consolidar o seu currículo intertranscultural. No<br />
entanto, observamos que o conjunto de reflexões aqui discutidos, apenas terá<br />
sentido no confronto com a história, com o contexto e, enfim, com a práxis de cada<br />
93 Vide capítulo 4 do livro Planejamento dialógico: como construir o projeto político-pedagógico da<br />
escola (Padilha, <strong>Paulo</strong> Roberto, São <strong>Paulo</strong>, Cortez, 2001).
instituição escolar e de cada sujeito ali presente. Nesse sentido, reiteramos que não<br />
poderia haver, de antemão, um currículo intertranscultural que sirva a diferentes<br />
contextos. Há, sim, princípios a serem observados que podem nos ajudar a definir<br />
as nossas diretrizes e propostas de ação intertransculturais, visando a uma<br />
educação emancipadora e humanizadora. Mesmo assim, conforme explica Moacir<br />
(2000a:242), referindo-se a um trabalho de Francisco Gutièrrez (1994), não se trata<br />
de uma proposta educacional “centrada no discurso da proclamação”, pois isso nos<br />
faria correr o risco de achar que bastaria propor alguns princípios para que o<br />
currículo intertranscultural se realizasse. Ao contrário, estamos falando da uma<br />
“educação centrada na demanda”, ou seja, num processo educacional que exige<br />
uma pedagogia da intercomunicação a partir da cotidianeidade dos interlocutores.<br />
Nessa pedagogia, as dinâmicas e a participação nascem da própria realidade<br />
vivenciada que é o que realmente imprime sentido ao processo.” (ib.).<br />
Encontramo-nos diante da possibilidade de novas perspectivas educacionais,<br />
que nos animam a seguir na busca da (re) construção de uma escola que “vive a<br />
experiência tensa da democracia”, conforme palavras de <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, em 1997. E o<br />
fazemos com a necessária humildade do educador que se reconhece incompleto e<br />
inacabado, que tenta fazer o seu trabalho de forma dialógica, alegre, curiosa,<br />
prazerosa e aprendente. E, o mais importante, sedimentando o necessário alicerce à<br />
construção de uma sociedade que, aos poucos, vai também se tornando mais<br />
dialógica, bela, prazerosa, aprendente; enfim, mais justa e solidariamente<br />
humanizada.<br />
Eis alguns princípios e valores, orientações gerais e práticas que destacamos<br />
no estudo que realizamos e que podem ser levados em conta na construção de um<br />
currículo intertranscultural:<br />
1. Englobar, no conceito de currículo, todas as ações e relações<br />
desenvolvidas na escola, incluindo a sua organização democrática,<br />
dinâmica e aberta à comunidade escolar.<br />
2. Tornar a escola significativa para a vida dos educandos e de todas as<br />
pessoas que nela convivem.<br />
3. Valorizar a escola como espaço de construção individual e coletiva da<br />
ação pedagógica e das trocas intertransculturais.<br />
291
4. Visar à formação permanente de todas as pessoas que participam e<br />
atuam direta ou indiretamente na escola, para o exercício da cidadania<br />
planetária.<br />
5. Assumir uma postura dialógico-dialética e complexa diante da realidade,<br />
abrindo-se para toda manifestação de sensibilidade, expressividade,<br />
espiritualidade, do sentimento e do conhecimento humanos.<br />
6. Questionar todo e qualquer discurso, informação, conhecimento e<br />
processo de ensino – e – aprendizagem que se autodenomine neutro ou<br />
que se apresente numa perspectiva homogeneizadora.<br />
7. Valorizar o intercâmbio e o diálogo entre os grupos culturais e seu mútuo<br />
enriquecimento, questionar e buscar a superação de qualquer<br />
manifestações que pretenda, sob qualquer alegação, naturalizar o<br />
predomínio de uma cultura sobre a outra.<br />
8. Trabalhar o conhecimento na escola com base nas relações e nas trocas<br />
intertransculturais e valorizar os Círculos de Cultura como espaços<br />
privilegiados para as mesmas.<br />
9. Promover a superação de toda e qualquer lógica binária e analisar a<br />
multidimensionalidade do ser humano.<br />
10.Criar novos contextos educativos para a integração criativa, cooperativa,<br />
solidária, emancipadora e humanizadora entre os diferentes sujeitos,<br />
grupos de pessoas e comunidades.<br />
11.Posicionar-se frontalmente contra qualquer tipo de manifestação<br />
preconceituosa, etnocêntrica, violenta, que promova a desigualdade e a<br />
exclusão social.<br />
12.Superar o modelo de controle da exclusão social por um Estado que<br />
“pilota” as políticas sociais como “tutelador” e não como gestor, alterando<br />
as formas de relação entre Estado educador e educação escolar.<br />
13.Trabalhar os processos de reconstrução do conhecimento sempre visando<br />
à justiça social e à humanização da educação, estimulando a<br />
aprendizagem como forma de intercâmbio e partilha.<br />
292
14.Respeitar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os princípios da<br />
Carta da Terra, bem como todos aqueles já consagrados nas Cartas e nos<br />
documentos surgido nas amplas discussões nacionais e internacionais,<br />
como demanda dos povos.<br />
A análise realizada até aqui nos obriga a reler, com um olhar<br />
intertranscultural, os eixos do currículo da Escola Cidadã, apresentados no<br />
primeiro capítulo: 1. Princípios de Convivência e Aprendizagem em rede; 2. Gestão<br />
democrática; 3. Currículo; 4. Ciclos e Avaliação. Passamos agora a considerá-los<br />
com outra nomenclatura.<br />
O primeiro eixo que temos é o das relações humanas e de aprendizagem.<br />
Passou a ser assim chamado porque consideramos que é impossível nos<br />
relacionarmos em nível glocal, quaisquer que forem as instâncias, sem<br />
estabelecermos relações humanas diferenciadas. Estas, por sua vez, criam novos<br />
contextos e meta-contextos relacionais, que permitem a definição de indicadores<br />
para que a relação humana se estabeleça com base nos princípios da<br />
ecopedagogia, da sustentabilidade, e da cultura da paz. Nesse sentido, todos os<br />
esforços reguladores desta relação, que podem estabelecer novos princípios de<br />
convivência, sempre valorativos, poderão ser incluídos. Ênfase especial deverá ser<br />
dada ao resultado das novas relações em redes virtuais, hoje favorecidas pelo<br />
advento das novas tecnologias, que criam novas atitudes e tessituras relacionais e<br />
comunicativas que terão reflexos diretos sobre o currículo intertranscultural da<br />
escolas e das suas comunidades E isso no que se refere às relações pessoais,<br />
interpessoais, grupais ou institucionais<br />
O segundo eixo do currículo intertranscultural é o que passamos a chamar<br />
de gestão democrática e parcerias comunitárias e sociais. Ele envolverá toda<br />
gestão da escola mas, principalmente, a organização democrática efetivamente<br />
participativa. Aqui estarão registradas as diretrizes ressignificadas de todos os<br />
colegiados escolares e, principalmente, um referencial sobre a sua organização<br />
básica no estabelecimento de parcerias com a comunidade e com as demais<br />
instâncias da sociedade civil.<br />
293<br />
O terceiro eixo, no lugar do que antes era denominado apenas de currículo,<br />
temos agora a gestão sócio-cultural das aprendizagens. Ela representa a<br />
ressignificação das aprendizagens na escola e a filtragem das informações para que
estas possam se transformar em processos de (re)construção do conhecimento a<br />
partir da escola e da comunidade escolar. Representa, sobretudo, o aprofundamento<br />
das questões demandadas pelas escolas, para além das convencionalidades e dos<br />
limites até agora estabelecidos, seja no que se refere às relações humanas, seja no<br />
que se refere às diferentes e multidimensionais manifestações do conhecimento, do<br />
saber e dos aprenderes do ser humano. Nesse sentido, os conhecimentos são<br />
apenas mais uma dimensão do currículo intertranscultural<br />
O quarto eixo do currículo intertranscultural é o da avaliação dialógica<br />
continuada e formacão humana. É assim denominado porque a avaliação é<br />
sempre permanente, processual, continuada, institucional, geral e específica.<br />
Sobretudo combinada à formação permanente dos professores<br />
Sugerimos, ainda, um quinto e último eixo para descatarmos, dentro do<br />
currículo intertranscultural, todas as iniciativas relacionadas ao projeto eco-político-<br />
pedagógico da escola, a educação pensada enquanto princípios, diretrizes e<br />
propostas de ação numa dimensão poética, ética, estética, sensível, criativa, crítica<br />
etc.<br />
Chegando ao fim dessa tese podemos nos perguntar: o que aprendemos de<br />
novo? Que lições podemos tirar de todo aprendizado que o processo de elaboração<br />
de uma tese nos possibilita?<br />
O desenvolvimento deste trabalho nos ajudou a atualizar o significado do<br />
Círculo de Cultura e a entender melhor a originalidade do movimento da Escola<br />
Cidadã, suas propostas, seus eixos e suas estratégias. A perspectiva do currículo<br />
intertranscultural permite o aprofundamento do trabalho escolar com base nas<br />
diferenças pessoais e grupais, nos seus respectivos contextos e meta-contextos.<br />
Supera, nesse sentido, as lógicas binárias, bipolares, excludentes, buscando no<br />
encontro entre as pessoas o reconhecimento, também, do que lhes é perculiar,<br />
reconhecível, próximo e que, portanto, dá segurança e reforça mutuamente as<br />
identidades individuais e coletivas.<br />
294<br />
Outro aspecto que podemos considerar como um aprendizagem importante, é<br />
o fato de o currículo intertransculrual nos mostrar que os eixos do currículo não são<br />
categorias isoladas e independentes entre si. Ao contrário, eles são construções
didáticas para facilitar a organização do trabalho da própria escola e, não, como tem<br />
acontecido, para isolar as atividades de um ou de outro eixo.<br />
O trabalho didático-pedagógico, numa perspectiva intertranscultural, é<br />
avaliado e ressignificado a todo momento. Como não há modelos a serem seguidos,<br />
este tipo de currículo incentiva a curiosidade, a criatividade, a ousadia, o<br />
enfrentamento dos conflitos, a superação dos problemas da realidade, a riqueza e a<br />
complexidade da multidimensionalidade do ser humano e dos contextos relacionais<br />
que ele cria, o atendimento das demandas comunitárias, os conflitos sociais, os<br />
problemas da desigualdade, da exclusão social. Este movimento, que se articula aos<br />
diferentes eixos curriculares acima identificados, reforça a autonomia da escola<br />
que, desta forma, passa a questionar as proposta totalizadoras de currículo ou,<br />
então, eventuais parâmetros que, ao invés de servirem efetivamente como<br />
referências, acabam funcionando como modelos curriculares a serem<br />
obrigatoriamente seguidos.<br />
REALIZAÇÃO DE<br />
Conclusão pessoal<br />
UM SONHO POSSÍVEL<br />
295
Uma outra história para “terminar” a tese...<br />
... Era uma vez um menino que sonhava. Um menino que sonhava crescer e ser<br />
grande. Ser um grande homem. Ele, desde muito cedo, era considerado um pequeno-grande-<br />
homem por aquelas pessoas simples com quem convivia, gente do povo, do povo pobre deste<br />
país; mas, na escola, era apenas um número, uma estatística e passava quase despercebido.<br />
Aquele menino de família humilde, que em casa gostava de conversar com<br />
todo mundo, que adorava brincar, correr, pular, desenhar, dançar, cantar e sorrir, na<br />
escola era tímido, tinha medo de insistir com a professora para escrever com a mão<br />
esquerda, quando ela o obrigava insistentemente a escrever com a mão direita – o<br />
que acabou acontecendo – era um menino bem comportado, que não fugia aos<br />
padrões e às normas estabelecidas pelas idéias, pelos valores e pelas<br />
determinações contidas nas cartilhas. Mas, algo havia de diferente naquele menino,<br />
como deveria acontecer também com outros meninos, que não se ajustavam<br />
totalmente à “moral e cívica” vigente; talvez, um olhar triste, talvez, um quê de<br />
descontentamento, talvez, algo de revolucionário.<br />
O tempo foi passando e o menino foi crescendo, sempre acanhado na escola<br />
e expansivo em casa e fora da sala de aula. “Passava de ano” e observava,<br />
descontente, que muitos de seus amiguinhos eram reprovados. Era estudioso mas,<br />
como todos, ficava apavorado com a quantidade de conteúdos a decorar e das<br />
lições de casa que precisava fazer, tanto nos períodos de aula como nos períodos<br />
das férias escolares. Por isso, quase já não gostava quando terminava o semestre<br />
ou o ano, pois sabia que suas lições de casa seriam até mesmo duplicadas. Só não<br />
entendia para que tanta lição, justamente num momento previsto para seu<br />
descanso, em que mais poderia brincar. Aquilo virava um pesadelo e ele nem<br />
brincava nem estudava direito.<br />
296
Aquela criança ficava sempre ansiosa e com vontade de não voltar para a<br />
escola depois das férias. Retornar passava a significar, aos poucos, conviver com<br />
situações “chatas”, constrangedoras, repressoras, humilhantes e até mesmo de<br />
opressão. Por freqüentar a escola, ele deveria, por exemplo, decorar tabuada, datas<br />
e fatos históricos que não faziam sentido aprender; “guardar” conceitos, informações<br />
e uma quantidade enorme de dados que pareciam jamais servir para alguma coisa –<br />
a não ser para aumentar o pânico na hora das provas escritas ou das chamadas<br />
orais, que a todos mantinha em posição de obediência durante as aulas e que<br />
servia, aos professores e às professoras, como instrumento com o qual a maioria<br />
deles ameaçava a turma e mantinha a disciplina e o silêncio. Assim, tentavam fazer<br />
com que as normas, vindas das leis, dos decretos, das cartilhas, e fixadas nas<br />
paredes dos corredores da escola e das salas de aula, fossem cumpridas.<br />
O garoto passou a desgostar da escola. O que antes lhe causara tanta<br />
curiosidade, aos poucos se tornou uma obrigação enfadonha e cansativa, que<br />
precisava ser cumprida, porque era assim mesmo que deveria ser. Não havia outro<br />
jeito. Quase nada lhe despertava interesse: nem a escola, que de repente se tornara<br />
um prédio gelado e estranho, nem a professora, que raramente olhava nos seus<br />
olhos, que quase nunca lhe tocara as mãos ou o corpo, a não ser alguns olhares de<br />
reprovação, de censura, e alguns contatos físicos, dos dedos docentes nas orelhas<br />
discentes. As lições transmitidas pela professora também não despertavam o<br />
entusiasmo infantil, pois geralmente faltava aos alunos tempo e agilidade para<br />
acompanhar a velocidade da mão da docente que mais parecia uma atleta no<br />
preenchimento de lousas. Atleta medalha de ouro em final de Olimpíada! Mas, uma<br />
coisa o menino reconhecia, invejava e inutilmente tentava imitar: a letra arredondada<br />
e bela da professora que, perto dos seus “garranchos” de canhoto transformado em<br />
destro, jamais conseguira igualar.<br />
297<br />
Apesar dos seus fracassos e dos fracassos dos seus colegas, pois eles eram<br />
sempre os culpados no final da história – ou eram ignorantes, ou eram<br />
desadaptados, ou eram deficientes, diferentes ou incompetentes – entre outros<br />
“entes” (menos entes queridos e privilegiados), o menino insistia e se esforçava<br />
muito para continuar a estudar, pois queria ser grande. Não sabia muito bem o que<br />
isso significava, mas queria crescer não só em tamanho. Queria ser bom, bondade<br />
aprendida em casa com seu pai, com sua mãe, com sua irmã, com a gente simples
com quem convivia diariamente. E ser bom significava também não entristecer<br />
aqueles a quem amava e não ser reprovado no final de cada ano, já que tanto<br />
esforço todos faziam para que ele continuasse a estudar. Ser bom significava, de<br />
acordo com os valores que aprendia em casa, lutar para que todas as pessoas do<br />
mundo tivessem um mundo melhor. Um mundo mais justo e solidário.<br />
A escola era muito diferente das coisas que aconteciam fora dela e o menino<br />
não entendia o porquê daquela diferença. Por mais que se perguntasse e que<br />
perguntasse, ninguém sabia ou pelo menos se dispunha a explicar. E a diferença<br />
permaneceu não só nos primeiros oito anos de sua escolaridade inicial, mas se<br />
estendeu anos afora...<br />
O jovem aprendiz cresceu, aprendeu a ler, a escrever, a contar, a obedecer e<br />
a, geralmente, calar-se. Sequer conseguia colar. Nem sabe como tudo aconteceu,<br />
mas nos tempos de ensino técnico profissionalizante e da primeira faculdade, teve<br />
muita dificuldade para acompanhar a enorme quantidade de conteúdo que<br />
continuava a ter de aprender e de acumular.<br />
O rapaz se sentia culpado por não assimilar a matéria e por continuar a não<br />
ter coragem de perguntar, principalmente agora, no meio de mais de cem alunos e<br />
alunas que se amontoavam na mesma sala de aula. Mas já percebia, como os<br />
demais colegas, que aquele sentimento era geral. E começava a compreender que a<br />
responsabilidade por tais resultados não era, conforme ele pensava, sua total<br />
responsabilidade, nem apenas de seus colegas, como ele antes pensava, como hoje<br />
o seu filho começa a pensar.<br />
O nosso personagem que, aos doze anos, quis trabalhar e chegou a<br />
experimentar por alguns dias as funções de “sorveteiro” e “engraxate”, aos quatorze<br />
anos se tornou office boy e nunca mais parou de trabalhar, e também se acostumou<br />
a não gozar férias, o que era estimulado por seus “patrões” 94 . E isso durou até o dia<br />
em que, após cinco anos de trabalho sem descanso, tirou férias forçadas num<br />
hospital.<br />
Aos poucos, o jovem profissional foi percebendo o quanto aprendia fora da<br />
escola, principalmente nas suas conversas com o seu pai, homem autodidata, com o<br />
exemplo de sua mãe, doméstica sempre muito “trabalhadeira”, na postura de alguns<br />
94 E esta palavra significa também, de acordo com os dicionários, “patrono” ou “protetor”.<br />
298
poucos professores “revolucionários” e, em grande parte, com os seus amigos. Ele<br />
foi percebendo as condições em que se davam as relações de trabalho e as<br />
relações pedagógicas na escola e na sala de aula. E tomou gosto por questionar tais<br />
relações.<br />
O rapaz, que, nesses tempos, cursava a primeira faculdade, aprendeu que ficar fora da<br />
sala de aula era, muitas vezes, muito mais interessante e útil, principalmente nas aulas de<br />
alguns professores, que jamais estabeleciam qualquer relação com os alunos, nem pedagógica,<br />
nem profissional, nem pessoal, nem nada. Relacionavam-se apenas com os seus conteúdos.<br />
Assim, os bancos do pátio da faculdade tornavam-se ponto de encontro e as relações<br />
estabelecidas nas reuniões extraclasse com os amigos, com as amigas e eventuais namoradas,<br />
eram mais do que agradáveis e de freqüência “obrigatória”.<br />
Ali o jovem descobria o mundo: nas conversas informais com os<br />
“companheiros” e também através das leituras dos gibis, revistas, jornais e livros que<br />
lia e discutia com os outros rapazes e moças. Aos poucos, encontrou-se na poesia,<br />
na música, nas letras e nos ritmos revolucionários que embalavam o seu tempo de<br />
juventude. Inventou textos e novos contextos. Espelhou-se no cinema, no teatro,<br />
admirou a dança (e recordou-se da “Dança do Cisne” que, uma vez havia visto na<br />
tevê e que nunca mais esquecera) e as artes plásticas. Encantou-se com elas. E, de<br />
repente, como num passe de mágica – mas na verdade como resultado de toda uma<br />
vida – o nosso personagem voltou a ter prazer de ir para a escola, para a faculdade,<br />
pois ali ele poderia mudar o mundo junto com os seus iguais. E ele, que jamais<br />
parara de estudar, tomou ainda mais gosto pela descoberta, pela pesquisa, pela<br />
complexidade da ciência, pela reflexão coletiva, pelo trabalho democrático, pela<br />
atividade em grupo, pelo debate emancipador. Fez amizade com alguns de seus<br />
professores e viu possível o diálogo entre professor e aluno, conforme afirmava<br />
certa literatura pedagógica que havia lido, de passagem, anos atrás, e foi<br />
observando melhor as pessoas à sua volta e percebendo que, como ele, eram<br />
pessoas que traziam experiências parecidas com as suas, pequenos e grandes<br />
traumas, revoltas e sonhos idênticos aos seus, problemas comuns e perspectivas de<br />
vida semelhantes.<br />
299<br />
Essa história não tem fim, até porque a história não acaba mesmo e porque o<br />
tempo não pára. Nem os preconceitos e a exclusão desaparecem de uma hora para
a outra, sem mais nem menos. Para serem superados, um longo trabalho precisa<br />
ainda ser feito.<br />
A história vive para ser reescrita. A história existe porque ela é sempre<br />
reconstruída, pensou o nosso personagem, descobrindo que as mudanças são<br />
processuais e que ele sempre esteve mudando o mundo ao mesmo tempo em que<br />
era por ele transformado. E percebeu também que é com base nas pequenas ações<br />
cotidianas, fundadas nos princípios e nos valores que as regem, que o menino, que<br />
o jovem, vai se tornando homem, sem perder jamais a sua juventude e a sua<br />
meninice.<br />
O nosso personagem guardou consigo algumas imagens negativas dos seus<br />
tantos anos de escolaridade formal, que gostaria não se repetissem nunca mais,<br />
com criança, jovem ou adulto algum. Até por isso considera bom não ter esquecido:<br />
alunos e alunas enfileirados, todos os dias; o patriotismo obrigatório ao cantar o hino<br />
nacional com a mão no peito, sem saber o porquê disso; a sala de aula muito fria ou<br />
muito quente; as carteiras enormes, antigas, de um verniz desbotado, inadequadas<br />
para o tamanho do/a aluno/a; a lousa cheia de lição para copiar; as explicações<br />
sempre apressadas da professora ou do professor, o olhar frio, vazio e distante<br />
deles, a ameaça da palmatória, do milho ou da tampinha de garrafa, o puxão de<br />
orelhas ardido e as orelhas vermelhas dos colegas, também ardidas; a denúncia aos<br />
pais do comportamento na sala de aula, no caso de alguma reclamação sobre a<br />
atitude do professor para os pais; a proibição de conversar com o colega do lado; a<br />
proibição de falar alto ou de correr no horário do “recreio” – proibição nunca<br />
respeitada; a vontade de comer a merenda e a escassez de merenda na escola; o<br />
tapa no ouvido (um “pé d’ouvido”) que certa vez levou de um professor de<br />
português, extensivo aos seus coleguinhas, o ser culpado por coisas que não fez<br />
porque ninguém se importou em ver realmente o que aconteceu, ou de se sentir<br />
menor porque filho de família pobre ou aluno de escola pública.<br />
300<br />
Outras cenas igualmente humilhantes ficaram na memória daquele estudante,<br />
só que agora experimentadas durante o antigo ginásio (o equivalente hoje às quatro<br />
séries finais do ensino fundamental), também durante o ensino técnico<br />
profissionalizante, equivalente ao antigo segundo grau (hoje ensino médio),<br />
chegando aos primeiros anos de faculdade. Por exemplo, o sentimento de<br />
inferioridade ao estudar em escola particular com bolsa do juizado de menores, o
que exigia a sua renovação anual mediante apresentação de atestado de pobreza<br />
da família, na escola e no juizado, e também a apresentação do boletim do aluno<br />
sem notas vermelhas. Escola particular para a “classe média”, onde aquele jovem foi<br />
estudar, uma vez que não havia vaga na escola pública. Lá estava ele, mal vestido,<br />
junto aos alunos bem vestidos e bem equipados, sendo, às vezes, alvo de chacotas<br />
dos colegas e do abandono deles e da escola, principalmente quando havia<br />
excursões e passeios dos quais ele sempre se via excluído, pois a bolsa do juizado<br />
não previa verba para tais atividades.<br />
Outro sentimento de inferioridade do nosso personagem surgia do fato de não<br />
ter conseguido entrar numa universidade pública. Por conseguinte, ao cursar<br />
faculdade privada, por diversas vezes não pôde pagar a mensalidade e viu suas<br />
provas retidas na secretaria da escola, o que acontecia também com vários de seus<br />
companheiros, tornando a “humilhação” coletiva e, nesse sentido, mais suportável.<br />
Quando a miséria é coletiva ela parece ser mais suportável. Mas era justamente aí<br />
que o jovem universitário sentia que a pobreza não era algo normal, que não podia<br />
nem precisava ser daquele jeito e que outro jeito, outra alternativa, deveria existir.<br />
301<br />
Depois de outras experiências, de outros cursos e, em especial, após o curso<br />
de pedagogia, o nosso personagem tornou-se professor, por sua escolha e também<br />
por contingências de sua própria vida. Ele, certamente, sentiu-se feliz por ter<br />
conseguido chegar muito mais longe do que esperava; mas, ao mesmo tempo, viu-<br />
se triste por ter alcançado o que a maioria de seus colegas de infância não alcançou<br />
em termos de escolaridade. E, também por isso, ele sonha e trabalha todos os dias,<br />
com toda a sua energia e vontade, por uma mudança radical de cenário: uma escola<br />
e uma sociedade alegre e dinâmica, séria e feliz, criativa e ousada, responsável e<br />
esperançosa, justa e solidária, que não trabalhe com a lógica da advertência, da<br />
expulsão, da humilhação, da exclusão, da competição e da exploração (para não<br />
dizer espoliação). Que, ao contrário disso, incentiva a curiosidade, crie espaços para<br />
o lazer, para o prazer, e permita que alunos e professores se percebem ambos<br />
aprendentes, apesar de suas diferenças etárias, culturais, raciais, étnicas,<br />
profissionais, de experiências de vida etc. Felizmente, já temos muitos exemplos de<br />
escolas que passaram e que estão passando por experiências desse tipo. Só nos<br />
falta ampliar esse horizonte, multiplicar essas vivências, lançar essa rede para<br />
mares mais amplos, estender esses avanços a favor de todos os povos. Falta-nos,
ainda, organizar melhor estas experiências, resgatar e registrar essas estórias e<br />
essas histórias, contar aos nossos alunos o que vivemos, o que vemos, o que<br />
desejamos.<br />
Ainda bem que muitas das nossas escolas e dos/as nossos/as educadores/as<br />
estão mudando. E, principalmente, que estão abertos a essas mudanças, resistindo<br />
cada vez menos a elas. Torna-se necessário reconhecer também os seus acertos.<br />
O nosso personagem, hoje professor, que no início de sua carreira no<br />
magistério, por força do modelo de sua própria formação, quase reproduziu os erros<br />
que com ele foram cometidos, espera, “sem espera”, que em pouco tempo algumas<br />
mudanças muito concretas, nem sempre fáceis mas possíveis, possam continuar a<br />
acontecer na escola pública, na escola privada, em qualquer espaço em que<br />
acontece educação de qualquer tipo. E como somos seres humanos, estamos<br />
sempre nos educando nos diferentes espaços em que convivemos. Basta estarmos<br />
vivos para educarmos e nos educarmos.<br />
Algumas mudanças que já acontecem e que hoje estão sendo cada vez mais<br />
ampliadas nas nossas escolas e nas salas de aula (ou que, se não acontecem,<br />
gostaríamos que fossem plantadas nas escolas), que têm a ver com um novo tipo de<br />
relação humana e pedagógica. Vejamos alguns exemplos:<br />
12.Não gritar com os alunos e com as alunas, em nenhuma circunstância, em<br />
nenhum espaço da escola.<br />
13.Não admitir qualquer tipo de preconceito, de racismo, de exclusão, de agressão<br />
ou de violência na sala de aula, na escola ou na sociedade. Envidar todos os<br />
esforços contra tais práticas. Lutar contra a desigualdade social na escola ou fora<br />
dela.<br />
14.Acabar com a lógica de que as filas (de alunos, de carteiras, da arquitetura das<br />
salas de aula etc), ou que o silêncio, ou que a obediência são sinônimos de<br />
ordem, de progresso, de sucesso, de organização.<br />
15.Respeitar os discentes em seus ritmos e necessidades individuais e coletivos<br />
(incluindo-se aí, inclusive, coisas muito simples como a necessidade de irem ao<br />
banheiro quando precisarem, ou como compreenderem a matéria e realizarem as<br />
suas descobertas em momentos diferentes, por exemplo).<br />
302
16.Escutar mais as diversas falas dos alunos, dentro e fora da sala de aula. Por<br />
isso, ampliar o espaço para a realização dos estudos, diversificar e enriquecer as<br />
atividades pedagógicas, significando-as e trabalhando-as com base na<br />
participação dos alunos nos diferentes tempos e espaços didático-pedagógicos.<br />
17. Incentivar a pesquisa, a criatividade, a crítica, as vivências e convivências em<br />
grupo, em coletividade; criar espaços para trocas culturais, multiculturais,<br />
interculturais e transculturais, visando a melhoria e a qualificação da participação<br />
dos alunos na definição do currículo da escola, incluindo-se aí os momentos de<br />
planejamento, de avaliação da avaliação do processo de ensino e aprendizagem,<br />
superando a seriação que tanto tem contribuído para reprovar os nossos alunos<br />
e para a exclusão de milhões de crianças, de jovens e de adultos das escolas e,<br />
aos poucos, ir plantando a possibilidade do regime de ciclos, de progressão<br />
continuada que não é sinônimo de promoção automática e incentivando a prática<br />
de uma avaliação dialógica continuada. 95 Nesse sentido, pensar a sala de aula<br />
como “Círculo de Cultura” 96 , tornando a aula um encontro de trabalho, de<br />
relações e da criação de novos textos, contextos e meta-contextos nos quais os<br />
alunos, junto com os seus professores e com a orientação e participação<br />
responsável e comprometida deles, possam pesquisar, realizar experiências<br />
científicas, refletir sobre o que fizeram, discutir, debater e superar, juntos, as<br />
dificuldades surgidas no processo. Que se possa buscar na descoberta coletiva,<br />
no lúdico, na brincadeira, na curiosidade dos alunos, dos professores e de toda e<br />
qualquer pessoa da escola ou da sua comunidade escola (e, diríamos,<br />
planetária), a explicação para os conflitos, para as contradições e para os<br />
problemas da práxis educativa e, concomitantemente, da práxis social.<br />
303<br />
18. Ampliar os espaços de comunicação na sala de aula e na escola, de forma a que<br />
todos os segmentos escolares (alunos e alunas, pais, mães, professores e<br />
professoras, coordenadores/as pedagógicos/as, diretores/as, secretárias,<br />
merendeiras, todos os demais funcionários da escola e comunidade escolar)<br />
95 A esse propósito, leia-se: Padilha, <strong>Paulo</strong> R. (2000b) – Caderno da Escola Cidadã n.º 9, intitulado<br />
“Ciclos e avaliação dialógica continuada na escola cidadã” e a bibliografia nele indicada.<br />
96 No final da década de 50, <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> criou e coordenou, no MCP – Movimento de Cultura Popular<br />
do Recife, os chamados “Círculos de Cultura”. Segundo o próprio <strong>Freire</strong>, “eram espaços em que<br />
dialogicamente se ensinava e se aprendia. Em que se conhecia em lugar de se fazer transferência de<br />
conhecimento. Em que se produzia conhecimento em lugar da justaposição ou da superposição de<br />
conhecimentos feitas pelo educador a ou sobre o educando. Em que se construíam novas hipóteses<br />
de leitura do mundo” (<strong>Freire</strong>, 1994a:155).
possam se fazer presentes na instituição escolar todos os dias, influenciando e<br />
decidindo sobre as questões pedagógicas, administrativas e financeiras das<br />
escolas. Nesse sentido, abrir a sala de aula à comunidade, à visitação<br />
permanente dos pais e mães de alunas e alunos, onde estes possam relatar<br />
suas experiências escolares, profissionais e de vida. Tornar a sala de aula, ao<br />
mesmo tempo, espaço de troca de experiências, laboratório de pesquisa, de<br />
investigação, de descobertas e de produções científicas, onde alunos e<br />
professores exercitem a possibilidade maravilhosa e humana da criação artística,<br />
onde possamos escutar tanto o silêncio quanto o barulho criativo (sem silêncio<br />
não há música), de bagunça organizada, de participação viva, de busca<br />
permanente do novo, do estabelecimentos de novas relações pessoais e<br />
interpessoais, de vivências que sirvam não apenas à produção de novos<br />
conhecimentos mas também à ampliação da cultura, às trocas intertransculturais,<br />
à formação da “cidadania ativa” e, principalmente, que esteja a serviço do<br />
desenvolvimento humano, no sentido lato do termo.<br />
19. Ampliar a compreensão de que todos aprendem e ensinam ao mesmo tempo e,<br />
levando em conta a contribuição de todas as ciências, enfrentando os desafios e<br />
a complexidade do real, do conhecimento sobre ele e do desenvolvimento da<br />
pessoa humana, da sua emoção, do seu imaginário, estar aberto às<br />
transformações que estão sendo operadas no mundo contemporâneo, aos<br />
recursos oferecidos pelas novas tecnologias informáticas e da comunicação,<br />
aceitando como locus de ação desde os micro-espaços, onde as nossas<br />
intervenções acontecem diariamente, até sua ampliação ilimitada em rede e em<br />
ondas que se encontram e se somam a outras ações, a outras redes e a outras<br />
ondas, emitidas por outras pessoas, de outras sociedades, de todo o planeta, de<br />
todo o universo, num processo interativo, integrativo e dialético de conexões e de<br />
interconexões.<br />
304<br />
Hoje e no futuro, as alegrias das crianças não serão mais contadas nos<br />
dedos, como a satisfação daquele menino em receber da mãe, ou do juizado de<br />
menores, parte do material escolar no início do ano, de encapar o caderno e, mesmo<br />
assim, acompanhado da angústia de não poder comprar o restante do material ou o<br />
uniforme solicitados pela escola. Ou, então, apenas a alegria de andar de casa até a<br />
escola em companhia dos coleguinhas, ou a alegria contida por ficar sabendo, no
último dia de aula, que foi aprovado, mesmo diante da tristeza de tantos colegas<br />
reprovados e “condenados” a ver, com as mesmas “caras”, corpos, jeitos, prática e<br />
sabores, tudo o que foram “obrigados” a estudar e que não conseguiram “assimilar”.<br />
A escola já tem mudado, está mudando e todos nós, meninos e meninas,<br />
jovens adultos e adultos jovens (que todos somos), estamos envolvidos ou nos<br />
envolvendo neste processo de mudança.<br />
Estamos convencidos de que a sala de aula e todos os demais espaços de<br />
aprendizagem, na escola e na comunidade, e mesmo os virtuais, enquanto Círculos<br />
de Cultura são, a cada dia mais, espaços privilegiados a partir do qual podemos<br />
fazer história. Para tanto, é mister que construamos novas relações pedagógicas,<br />
novos espaços, novos contextos educacionais e, por conseguinte, uma nova forma<br />
de pensar e de concretizar o currículo intertranscultural da/na escola e, a partir dela,<br />
na educação como um todo. Mas isso depende de todos nós.<br />
Depende de reconhecermos que somos sempre aprendentes. Que uma<br />
dissertação ou uma tese, uma poesia, uma música ou outra nossa criação qualquer,<br />
mostra-nos o quanto precisamos ainda aprender, o quanto precisamos ser humildes<br />
diante do conhecimento, diante das outras pessoas e respeitosos com o mundo em<br />
que vivemos.<br />
Importa compreender que os nossos registros, sempre parciais da história,<br />
dão conta apenas de uma minúscula parcela da experiência acumulada pela<br />
humanidade mas que, apesar disso, tem uma grande importância porque revela os<br />
nossos pequenos avanços, a conquista de mulheres e de homens que empenharam<br />
suas vidas a favor da construção de um mundo melhor. E que é neste processo que<br />
estamos também engajados, sempre percebendo que vale a pena sempre insistir<br />
para que as mudanças ocorram, que vale acreditar no sonho e trabalhar na direção<br />
da sua realização. Por mais difíceis que pareçam, mudanças acontecem, mas<br />
dependem dos nossos esforços coletivos, nunca apenas individuais.<br />
305<br />
Aprendemos, ainda, que a experiência da Escola Pública Popular, da<br />
Escola Cidadã, conforme hoje percebemos, não é resultado apenas de uma teoria,<br />
mas da maturação histórica que se deu no Brasil e também em diversos países. E<br />
aprendemos, finalmente, que inventar e recriar são possibilidades humanas. Por<br />
isso, a ousadia do currículo intertranscultural pode tornar-se cada vez mais concreta
se cada um de nós contribuir, como dissemos, de forma curiosa, prazerosa e<br />
aprendente. Se conseguirmos isso, estaremos, enquanto alunos e professores que<br />
sempre somos, buscando novas respostas para as demandas da nossa realidade. E<br />
assim vamos nos provocando e incentivando as futuras gerações que também o<br />
façam.<br />
Aprendemos, finalmente, durante este trabalho, que para responder às<br />
questões teórico-práticas que nos desafiavam desde a infância, tivemos de entrar<br />
profundamente na discussão sobre o currículo da escola. Esta discussão está<br />
apenas no início e assume, nos dias atuais, extrema relevância social, porque pode<br />
contribuir para que a educação, em perfeita consonância com a cultura, ajude-nos a<br />
encontrar algumas respostas para superar o fundamentalismo nas diferentes<br />
culturas e buscar a paz. E não é possível construir a paz falando e fazendo a guerra,<br />
da mesma forma que não é possível acreditar numa educação humanizadora, se<br />
nada fizermos para viabilizar a sua concretização e para nos humanizarmos<br />
enquanto pessoas.<br />
A nossa conclusão pessoal é de que o currículo intertranscultural pode<br />
significar um importante avanço para a consolidação da uma Escola Cidadã e de<br />
uma educação ainda mais humanizadora que caminha na direção do nosso sonho<br />
possível, sonho este que se constrói com a radicalidade democrática e pedagógica<br />
de quem busca incessantemente construir um mundo mais justo e uma educação<br />
que, ao invés de excluir, inclua e forme cidadãos emancipados.<br />
306
BIBLIOGRAFIA<br />
307
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